90 ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA Casos Clínicos NEFROPATIA UNILATERAL ASSOCIADA À HIPERTENSÃO José Maria de Freitas* e Horacio Kneese de Melo** S. Paulo Desde que Goldblatt, em 1934, publicou suas experiências demonstrando as relações entre rim e hipertensão arterial, vários casos têm sido publicados de pacientes hipertensos e com molést i a r e n a l u n i l a tera l, em q u e h o u v e q u e d a d a pre s s ã o a pós nefrectomia. Os resultados, entretanto, nem sempre têm sido completamente satisfatórios. Goldring e Chasis, 1 em 1944, fazendo uma revisão da literatura, encontraram 76 casos publicados, cujas moléstias renais eram: Pielonefrite e hidronefrose ............................ 55 casos Tumor renal .................................................. 1 caso Constrição perirrenal por hematoma ............. 2 casos Obstrução da artéria renal ............................. 2 casos Tuberculose renal unilateral .......................... 11 casos Hipoplasia congênita ..................................... 1 caso Diagnóstico errado de moléstia renal unilateral 4 casos Em 39 dêsses casos (51%) não houve modificação da pressão arterial após a nefrectomia. Nos 37 restantes os resultados foram considerados satisfatórios. Na opinião de Goldring e Chasis, entretanto, êsse último grupo requer ainda uma relação mais rigorosa, com a qual ainda separam 30 casos, assim discriminados: - a pressão arterial não caiu a valores normais ...................................................... 8 casos - a pressão arterial voltou a valores altos dentro de 6 meses ................................. 2 casos - observação inadequada .......................... 1 caso -“follow-up” post-operatório incompleto .. 19 casos (*) Catedrático de Técnica Cirúrgica da Escola Paulista de Medicina. (**) Livre-Docente e Assistente de Clínica Propedêutica Médica da Escola Paulista de Medicina. NEFROPATIA UNILATERAL 91 Apenas nos 7 casos restantes, ou seja, em 9%, houve, para os referidos AA., um resultado perfeitamente satisfatório, mantendo-se a pressão arterial dentro de valores normais num período de 2 a 5 anos. Page e Corcoran 2 acham que a questão não é tão simples como querem os clínicos, ao transportar as experiências feitas em animais, para o homem. Não descrêem, entretanto, do tratamento cirúrgico nas moléstias renais unilaterais associadas à hipertensão, achando apenas que a indicação operatória deve ser feita com muita cautela, a não ser quando a lesão renal a impõe por si própria. Wosika, Jung e Maher, 3 procurando relacionar hipertensão arterial e alterações urológicas, reviram os protocolos de 2.002 autópsias. Entre elas, 568 haviam sido hipertensos e dêsses, 40% apresentavam alterações urológicas. Entre os não-hipertensos, a incidência de tais alterações foi de 27%. Rachmilewitz e Braun 4 publicaram 5 casos operados. Em todos houve melhora subjetiva dos pacientes e em 5 houve queda da pressão arterial. Entre nós foi publicado um caso por Mota Pacheco e Décourt 5 em que, embora havendo grande queda, não houve, entretanto, normalização absoluta da pressão arterial, que permaneceu entre 140 e 160 para a máxima, e 90 e 100 para a mínima. O pequeno número de casos publicados com resultados bastante satisfatórios justifica a apresentação que ora fazemos. OBSERVAÇÃO R. A. F., 36 anos, médico. Há vinte dias sente dormência nos dedos mínimo e anular de ambas as mãos e cefaléia occipital, como um pêso, principalmente pela manhã. Procurou-nos, entretanto, porque ao experimentar um aparelho de pressão arterial, verificou que estava hipertenso. Cêrca de um ano antes havia medido sua pressão, sendo normal. Nos antecedentes pessoais nada referia digno de nota. Antecedentes familiares: pai falecido de acidente cerebral e mãe de edema agudo do pulmão. Ao exame físico tratava-se de um indivíduo em bom estado geral, havendo de anormal apenas ligeira hiperfonese da segunda bulha aórtica e a pressão arterial, que era de mx. 190 e mn. 115. Os fundos oculares eram normais; um exame de urina nada revelou de anormal e a taxa de uréia no sangue era de 0,035 gr. %. O eletrocardiograma também nada revelou de anormal. Apesar de os exames suplementares serem normais, suspeitamos de uma glomérulo-nefrite aguda difusa, pelo fato de a hipertensão ser recente. Fizemos, então, com que o paciente guardasse o leito, em repouso absoluto e em dieta acloretada. A pressão caiu muito pouco, ficando em tôrno de mx. 170 e mn. 100. Durante o repouso foram feitos mais dois exames de urina, um sendo normal e outro acusando traços de albumina e, no sedimento, cêrca de 2 hemácias por campo, alguns cilindros hialinos e células de origem renal. A cultura foi negativa. Dado o pequeno resultado obtido pelo repouso, demos licença ao paciente para levantar-se e mandamos que fizesse um pielograma descendente, no qual 92 ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA não houve aparecimento do contraste no bacinete esquerdo. Foi tentada uma urografia ascendente, que demonstrou obstrução do ureter esquerdo. Nessa ocasião foi feita a prova do índigo-carmim e não houve eliminação do corante pelo rim esquerdo. Como se tratava, sem dúvida, de um rim não-funcionante, aconselhamos a nefrectomia, que foi feita em 19-4-1945. A pressão arterial no dia da operação era de 160 (mx.) e 100 (mn.). A seguir transcreveremos o relatório anátomo-patológico do rim (fig. 1), feito pelo Dr. Cassio Montenegro: Figura 1 - Note-se o bacinete grandemente dilatado e o duplo acotovelamento do uréter : o primeiro logo após a sua origem e o segundo ao passar por traz do vaso aberrante Diag. Anátomo-Patológico: Hidronefrose por compressão do ureter por vaso aberrante. Exame macroscópico: Rim medindo 11 x 8 x 3,5 cm nos seus maiores diâmetros. Apresenta-se deformado pela considerável dilatação de seu bacinete que de per si já mede 7 x 5 x 3 cm nos maiores diâmetros. O conjunto do rim com o bacinete tem a forma de um triângulo de lados desiguais. Pela face anterior, verifica-se superfície renal bosselada, com acentuação da lobulação Li- NEFROPATIA UNILATERAL 93 geiras aderências conjuntivas da sua cápsula. Pela sua face posterior observa-se que a lobulação do parênquima é mais acentuada, e na sua parte média verifica-se um pequeno cisto do tamanho de um grão de bico, cisto de retenção. Chama atenção a presença de uma anomalia vascular ao nível do seu pólo inferior, caracterizada pela presença de um vaso de médio calibre que sai isoladamente, sem relação alguma com os vasos do pedículo. Êsse vaso apresenta-se de parede espessada e sua luz mede 2mm de diâmetro. No seu ponto de penetração no parênquima êle caminha uma curta distância entre dois ramos de bifurcação de uma artéria de médio calibre, contrai aderência com o ramo superior da bifurcação dessa artéria e depois se afasta em direção ao ponto de nascimento do ureter. O outro vaso de médio calibre referido é um ramo de bifurcação da artéria renal que cruzou, de cima para baixo, o bacinete dilatado e penetrou no polo inferior do rim. O ureter nasce do ápice da porção dilatada do bacinete 4 cm para baixo, para dentro da artéria renal. Logo após o seu nascedouro êle sofre um acotovelamento e cruza horizontalmente tôda a porção dilatada do bacinete e dirige-se para fora, passa por baixo do ramo de bifurcação inferior da artéria renal, sofre um novo acotovelamento e, agora, passando pela frente do ramo de bifurcação da artéria renal e da veia polar inferior, desce verticalmente para baixo. Nota: Anatômicamente falando, o uréter passa anteriormente ao ramo inferior da artéria renal e depois se acotovela, passando para a face posterior. Do duplo acotovelamento do uréter resulta um obstáculo ao trânsito do fluxo urinário. Corte do parênquima renal revela considerável atrofia da túnica medular. A cortical, embora atrofiada, ainda está relativamente conservada. Cálices fortemente dilatados. Superfície interna dos cálices e bacinete lisa, de caracteres regulares. Exame microscópico: Ao lado de áreas apresentando na cortical túbulos e glomérulos mais ou menos normais, vêm-se outras onde êles estão em número diminuído. Há pronunciada redução de túbulos na medular. Na cortical, em alguns pontos, esclerose ou hialinização de glomérulos e atrofia dos túbulos correspondentes que se mostram como pequenos espaços dilatados revestidos por células cúbicas achatadas. Entre êsses túbulos há aumento do tecido fíbrocolágeno e em alguns pontos acúmulo de tecido linfóide. Aqui e ali vêm-se arteríolas de médio calibre esclerosadas ou hialinizadas, inclusive arteríolas aferentes. EVOLUAÇÃO O post-operatório correu normalmente. No dia seguinte ao da intervenção a pressão arterial era de mx. 148 e mn. 100; oito dias após, mx. 135 e mn. 85. O paciente teve alta sem qualquer queixa especial. A pressão manteve-se sempre baixa, sendo de 125 e 75 em junho de 1946, quatorze meses após a intervenção e, atualmente, decorridos dois anos e meio, de 130 e 80. COMENTÁRIOS O caso que apresentamos é interessante sob 2 aspectos: pela normalização da pressão arterial e pelo tipo da anomalia verificada. O duplo acotovelamento do ureter, no seu ponto de origem e ao passar por trás de um vaso aberrante, tornou-se maior à medida que o bacinete aumentou, formando-se um círculo vicioso: a constrição do ure- 94 ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA ter levou à hidronefrose e essa, quanto mais aumentava, maior era a constrição do ureter. Em relação à pressão arterial, vimos que houve normalização completa. Se no período em que o doente foi observado antes da nefrectomia a pressão mínima nunca desceu abaixo de 100 mm de mercúrio, apesar de repouso absoluto no leito e regime acloretado, após a extirpação do rim caiu progressivamente até níveis normais, mantendo-se em 80 mm. de mercúrio após 2 anos e meio de observação. Se nos reportarmos ao critério de Goldring e Chasis ‘ que acham que o resultado só pode ser considerado satisfatório quando houver normalização absoluta da pressão em período de 2 a 5 anos, vemos que o nosso caso pode perfeitamente ser reunido aos 7 únicos casos que encontraram descritos na literatura que satisfaziam a êsses requisitos. BIBLIOGRAFIA 1. Goldring, - W.; Chasis, H.: Hypertension and hypertensive disease, The Commonwealth Fund, New York, 1944. 2. Page, I. H.; Corcoran, A. C.: Arterial hypertension, its diagnosis and treatment, The Year Book Publishers, Chicago, 1946. 3. Wosika, P.; Jung, F.; Maher, C.: Urologic hypertension as an entity. Am. Heart J., 24: 483, 1942. 4. Rachmilewitz, M.; Braun, K.: Nephrectomy in hypertension associated with unilateral kidney disease. Cardiologia, 7: 304, 1943. 5. Motta Pacheco, A. A.; Décourt, L. V.: Nefropatia unilateral hipertensiva, Arq. Bras. Urologia, 1: 221hip, 1942.