A FALÁCIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA Gustavo Assis Garcia Juiz de Direito da Vara da Auditoria Militar De acordo com estatísticas recentes, o Brasil é o terceiro país no mundo em taxa de encarceramento, mas, da leitura mais detida das pesquisas, do perfil do preso e da natureza de sua prisão, não se trata de um lugar no pódio a se comemorar. Pelo contrário, surge a triste explicação em números de um Brasil sem cultura e educação, sem acesso de crianças e jovens ao ensino fundamental e à formação técnica, expondo-os ao contato com a criminalidade, gerando o crescimento das atividades ilícitas e o aumento das prisões, que, expressas em números, totalizam 711.463 casos, segundo dados divulgados neste ano de 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça. Diante deste quadro, surge a ideia da audiência de custódia, mas resultante de um discurso reducionista, posto que aparece apregoada como uma garantia prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, mas como um ato estritamente jurisdicional, ou seja, a garantia somente é efetivada se o detido é levado diante de um juiz, por partirem da premissa ser um ato sob a égide da reserva absoluta da jurisdição, o que é um equívoco epistemológico, portanto, um sofisma. Dentre os pontos importantes destacados por seus defensores, ressalto o de que a audiência representaria uma "forma eficiente de combater a superlotação carcerária” e evitar "disseminar a tortura", como apregoam a Rede Justiça Criminal (Informativo, 5. Ed., ano 3, 2013) e ainda Maria Laura Canineu, Diretora da Human Rights Watch/Brasil. Neste contexto, nosso parlamento apresentou o PLS 554/2011, que visa alterar o art. 306, § 1º do CPP, criando a obrigatoriedade de apresentação do preso ao juiz, em 24 horas após a prisão. Segundo a exposição de motivos do projeto de lei, o Brasil viola sistematicamente o art. 7.5 do Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificado pelo Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. O projeto de lei inspirou o Tribunal de Justiça de São Paulo, dentre outos, a editar atos administrativos normativos com o intuito de regulamentar a audiência de custódia. Em São Paulo, de acordo com os Provimentos Conjuntos nº 03 e 04, as audiências de custódia somente ocorreriam durante a semana, o que importa em se atribuir uma eficácia limitada a um direito humano fundamental, além de uma interpretação míope dos casos já decididos sobre o tema na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se olvide que o Delegado de Polícia, que em verdade é o "primeiro garantidor da lei e da justiça", na feliz observação do Ministro Celso de Melo em sede do HC 84548/SP, não tem o papel de garantir uma política criminal de direito penal máximo denominada de lei e ordem ("law and order"- política norte americana de tolerância zero), mas sim uma política criminal garantista de direitos humanos fundamentais. Veja-se que a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, entendeu que não teria havido violação dos direitos humanos, no parágrafo 195, ao analisar em conjunto o art. 7.5 e 8.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica e citando como precedente a opinião consultiva, OC-9/87 del 6 de octubre de 1987. Serie A Nº 9, párr. 27, ipsis literis: "Dichas garantías (do conduzido ser ouvido por um juiz ou outra autoridade que exerca funcões judiciais) deben ser observadas en cualquier órgano del Estado que ejerza funciones de carácter materialmente jurisdiccional, es decir, cualquier autoridad pública, sea administrativa, legislativa o judicial, que decida sobre los derechos o intereses de las personas a través de sus resoluciones." É fácil perceber que a Corte IDH adota um sistema descentralizador de garantia da liberdade aos direitos humanos fundamentais, discurso este bem harmônico e uníssono com a denominada reserva relativa da jurisdição, na qual CANOTILHO (J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. Ed., 11. Reimp., Almedina, Almedina, p.584) já nos ensina que o juiz não tem o monopólio da primeira palavra, mas sim da última, distinto do que ocorre na reserva absoluta da jurisdição, em que o juiz tem a primeira e última palavra sobre uma decisão. Por isso, preconizar a audiência de custódia ignorando completamente os diversos precedentes da Corte IDH, para limitar a incidência dos tratados de direitos humanos, e o que é pior, por meio de ato administrativo, é adotar metodologia centralizadora. Colocar somente o ator judiciário como único órgão efetivador do alcance jurídico e político da eficácia do princípio pro homine é engessar a eficácia dos direitos humanos fundamentais, e criar uma interpretação nacionalista. Em outras palavras, o que querem os países signatários dos tratados e convenções sobre direitos humanos e a ONU é que o preso seja levado perante alguém que tenha conhecimento jurídico para poder decidir sobre a legalidade de sua prisão, e garantir o seu direito de ser considerado presumidamente inocente e de participar da instrução processual em liberdade. Este é o sentido do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em seus artigos 5º§ 2 e 9º, §§ 1º e 3º, bem como o artigo 7, item 5 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica). De fato, se os tratados não reconhecessem a legitimidade de órgãos não jurisdicionais, que exercem função igualmente jurídica, ou materialmente jurisdicional, de prender e soltar, o Pacto não iria dispor sobre o direito dos presos de se socorrerem de juízes e tribunais acaso a decisão daqueles órgãos, de não soltar, seja arbitrária, conforme o artigo 7.6 do Pacto de San Jose da Costa Rica, verbis: "Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estadospartes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa." Neste mesmo sentido dispõe outro documento das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, denominado de “Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão – 1988”, que elenca 39 princípios sobre pessoas capturadas, detidas e presas, e realiza uma interpretação teleológica sobre o alcance de "ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.", disposto em seu ANEXO, e seu princípio 11.3, in verbis: "Para los fines del Conjunto de Principios: (…) f) Por "un juez u otra autoridad" se entiende una autoridad judicial u otra autoridad establecida por ley cuya condición y mandato ofrezcan las mayores garantías posibles de competencia, imparcialidad e independencia." Analisando esse conceito sob a ótica do ordenamento jurídico interno, percebe-se que a lei maior da República instituiu o cargo de delegado de polícia como dirigente das Polícias Civis, sendo, portanto o titular das funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais, nos termos do no § 4º do art. 144, da Constituição Federal. Nesse sentido, o delegado de polícia é a autoridade autorizada pela Constituição Federal e por diversas leis federais a exercer atipicamente funções tipicamente judiciais, mesmo não integrando o Poder Judiciário, o fazendo, por exemplo, quando arbitra fiança como condição para concessão da liberdade do preso em flagrante, quando apreende um bem relacionado ao crime, quando homologa a prisão em flagrante e determina o recolhimento do conduzido à prisão ou quando promove o indiciamento, ato que se reveste das mesmas formalidades das decisões judiciais, nos termos do § 6º, do art. 2º, da Lei Federal nº 12.830, de 20 de junho de 2013, verbis: “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”. É possível citar diversos outros dispositivos legais que habilitam o delegado de polícia a exercer tais funções. Basta notar que o ingresso no cargo de delegado de polícia federal possui requisitos semelhantes aos exigidos pela Constituição Federal para ingresso na magistratura, nos termos da Lei nº 9.266/96, alterada pela Lei nº 13.047/2014. Em razão de suas funções, definidas por lei como de natureza jurídica e privativas de bacharel em Direito, o delegado goza de estabilidade funcional decorrentes do exercício de cargo público essencial e exclusivo de Estado, sendo-lhe deferidas garantias que conferem segurança jurídica para atuar com imparcialidade e autonomia. A Lei nº 12.830/2013, por sua vez, estabelece regras que garantem a autonomia do delegado de polícia em sua atividade, tais como a exigência de despacho fundamentado com base no interesse público ou descumprimento de normas regulamentares para que o inquérito possa ser avocado (art. 2º, §4º); a necessidade de fundamentação para que o delegado possa ser removido de sua lotação (art. 2º, §5º); a previsão de que o indiciamento é ato privativo do delegado de polícia (art. 2º, §6º); além de lhe ser deferido o mesmo tratamento protocolar dispensado a magistrados, promotores e advogados (art. 2º, §7º). Podemos concluir que, nos termos dos tratados internacionais mencionados, o delegado de polícia é, ao lado do juiz, a autoridade habilitada a primeiro tomar conhecimento da prisão e decidir sobre sua legalidade. Se alguma dúvida ainda resta, a Constituição Federal vem ao amparo e deixa tudo definitivamente esclarecido. Quando restringe determinado ato à reserva de jurisdição, a Constituição Federal o faz claramente, como no inciso LXI do art. 5º, ao dispor que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Como se nota, a prisão em flagrante delito não está sujeita à reserva de jurisdição. Corroborando esse entendimento, o inciso LXII do art. 5º da Carta Magna estabelece que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”, não impondo a apresentação imediata do preso nem ao juiz nem à família, que, está claro, devem ser comunicados imediatamente. Da mesma forma, o inciso LXIV do art. 5º da Constituição dispõe que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”. Percebe-se que as normas constitucionais servem ao mesmo tempo de autorização constitucional para que o delegado de polícia seja o primeiro a decidir sobre a prisão e exercer atipicamente atos tipicamente judiciais, como o interrogatório e a prisão em flagrante; e garantia do preso para que tenha ciência sobre a identidade de quem o prendeu e da autoridade de polícia judiciária responsável pela análise da legalidade do ato que restringiu sua liberdade. E não há nisso nada de surpreendente ou que fomente qualquer questionamento sobre a validade das referidas normas constitucionais, visto que são fruto do trabalho do constituinte originário, elencadas no âmbito do Título II da Constituição Federal, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, e também porque a Carta Magna está indubitavelmente num patamar hierárquico superior aos referidos tratados. Desta feita, a interpretação lógica, sistemática e teleológica dos dispositivos analisados nos permite concluir que as funções exercidas pelo delegado de polícia encontram não só amparo, mas verdadeira previsão legal no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos, estando inserido no conceito amplo de autoridade previsto nesses tratados, demonstrado que o sistema processual penal brasileiro, nesse aspecto, não está a dever em nada, visto que é ainda mais rigoroso ao estabelecer um duplo controle de legalidade da prisão em flagrante, realizado tanto pelo delegado de polícia como pelo juiz de direito, sob o controle externo do Ministério Público e da própria defesa. Para que a interpretação das normas sobre direitos humanos fundamentais não ocorra de forma desassociada com a hermenêutica da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, é relevante observar trechos da sentença, no Caso Vélez Loor Vs. Panamá, na qual o Panamá foi condenado por violação aos direitos humanos, em tradução livre: "Este Tribunal considera que, para atender à garantia estabelecida no artigo 7.5 da Convenção em matéria migratória, a legislação interna deve assegurar que o funcionário autorizado pela lei para exercer funções jurisdicionais preencha as características de imparcialidade e independência que devem orientar todo órgão encarregado de determinar direitos e obrigações das pessoas. Nesse sentido, o Tribunal já estabeleceu que essas características não apenas devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, mas que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos (Delegados de Polícia, destaque nosso). Uma vez que, em relação a essa garantia, que cabe ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias, seja imprescindível que esse funcionário esteja autorizado a colocar em liberdade a pessoa, caso sua detenção seja ilegal ou arbitrária". Ora, se em nosso ordenamento qualquer pessoa pode prender, e é dever dos agentes policiais realizar prisões e conduzirem os detidos ao Delegado de Polícia, salta aos olhos que este se trata de um órgão autorizado por lei “a colocar em liberdade a pessoa, caso sua detenção seja ilegal ou arbitrária.” O caso foi um julgamento do imigrante equatoriano Jesús Tranquilino Vélez Loor, ilegal no Panamá, onde foi preso pela Polícia Nacional de La Zona, e somente após 25 dias a autoridade administrativa competente para verificar a ilegalidade ou legalidade da mesma, La Dirección de Migración y Naturalización de Darién, conforme art. 67 do Decreto Lei 16 de 1960, Panamenho, ratificou a sua condução coercitiva e sem nenhuma fundamentação, não tendo havido no período a comunicação ao juiz e nem a nomeação de defensor público. Neste caso concreto, dentre outras fundamentações sobre violações a direitos humanos, se ressaltou a importância de a autoridade administrativa exercer a função materialmente jurisdicional de forma imediata, para que o judiciário e a defensoria pudessem atuar, bem como que a prisão pelo Diretor fosse necessariamente fundamentada. Para a Corte Interamericana, a proteção aos direitos humanos desde o início, com a análise imediata, pelo órgão administrativo com função materialmente jurisdicional, da condução realizada pela polícia, com direito à revisão pelo judiciário e à defesa técnica, tudo de forma fundamentada, é a maneira de assegurar o acesso à Justiça. Em outras palavras, a Corte IDH em nenhum momento decidiu que este direito a ser ouvido somente deva ser exercido em sede judicial e que a liberdade seja uma função estritamente jurisdicional, pois entendeu que o órgão de imigração, por sua lei interna, teria errado por não ter ouvido o imigrante e não lhe oportunizado defesa para poder decidir pela sua liberdade em um prazo razoável (já que demorou 25 dias para ser levado ao Diretor de Imigração). Ou seja, o direito de liberdade deve ser analisado também por órgão administrativo quando a lei assim permitir. Conclui-se, portanto, que não há violação alguma a direitos humanos quando a lei autoriza que a “audiência de custódia” seja realizada por outro órgão distinto do judicial, como preconiza o art. 7, item 5 da CADH, tornando absolutamente desnecessária a instituição de outro ato processual para a apresentação do preso ao juiz.