História na Educação 1 Volume 1 Ana Maria Santiago Helena M. M. Araújo Keila Grinberg Apoio: Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Rua Visconde de Niterói, 1364 – Mangueira – Rio de Janeiro, RJ – CEP 20943-001 Tel.: (21) 2334-1569 Fax: (21) 2568-0725 Presidente Masako Oya Masuda Vice-presidente Mirian Crapez Coordenação do Curso de Pedagogia para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental UNIRIO - Adilson Florentino UERJ - Vera Maria de Almeida Corrêa Material Didático Departamento de Produção ELABORAÇÃO DE CONTEÚDO Ana Maria Santiago Helena M. M. Araújo Keila Grinberg EDITORA Tereza Queiroz COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Jorge Moura COORDENAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL COORDENAÇÃO EDITORIAL Jane Castellani PROGRAMAÇÃO VISUAL Cristine Costa Barreto COPIDESQUE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL E REVISÃO Cristina Freixinho José Meyohas Renata Borges Bruno Gomes Luciana Messeder Ana Tereza de Andrade REVISÃO TIPOGRÁFICA Cristina Freixinho Elaine Barbosa Patrícia Paula COORDENAÇÃO DE LINGUAGEM Maria Angélica Alves Cyana Leahy-Dios AVALIAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO Aroaldo Veneu Sami Souza CAPA Sami Souza PRODUÇÃO GRÁFICA Oséias Ferraz Patricia Seabra COORDENAÇÃO DE AVALIAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO Débora Barreiros ILUSTRAÇÃO Copyright © 2006, Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Fundação. S235h Santiago, Ana Maria. História na educação 1. v. 1 / Ana Maria Santiago; Helena M. M. Araújo; Keila Grinberg. - Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2010. 282p.; 19 x 26,5 cm. ISBN: 85-7648-281-9 1. História. 2. Estudo e ensino. 3. Cultura. 4. Documentos. 5. Cinema. 6. Pesquisas. 7. Avaliação. I. Araújo, Helena M. M. II. Grinberg, Keila. III. Título. 2010/1 CDD: 372.9 Referências Bibliográficas e catalogação na fonte, de acordo com as normas da ABNT. Governo do Estado do Rio de Janeiro Governador Sérgio Cabral Filho Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia Alexandre Cardoso Universidades Consorciadas UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO Reitor: Almy Junior Cordeiro de Carvalho UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Aloísio Teixeira UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor: Ricardo Vieiralves UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Ricardo Motta Miranda UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitora: Malvina Tania Tuttman História na Educação 1 SUMÁRIO Volume 1 Aula 1 – O que é História? ______________________________________ 7 Keila Grinberg Aula 2 – Estudar história por quê? _______________________________ 21 Helena M. M. Araújo Aula 3 – História e memória ___________________________________ 33 Keila Grinberg Aula 4 – O tempo histórico 1 __________________________________ 43 Helena M. M. Araújo Aula 5 – O tempo histórico 2 __________________________________ 57 Helena M. M. Araújo Aula 6 – A noção de tempo em crianças e adolescentes _______________ 67 Helena M. M. Araújo Aula 7 – Construindo a noção de espaço e tempo na escola ___________ 81 Helena M. M. Araújo Aula 8 – Caminhos da História ensinada 1 ________________________ 95 Helena M. M. Araújo Aula 9 – Caminhos da História ensinada 2 _______________________ 107 Helena M. M. Araújo Aula 10 – Síntese __________________________________________ 119 Keila Grinberg / Helena M. M. Araújo Aula 11 – A cultura como objeto de estudo da história ______________ 125 Ana Maria Santiago Aula 12 – Cultura, identidade e educação ________________________ 137 Ana Maria Santiago Aula 13 – História e documento _______________________________ 149 Keila Grinberg Aula 14 – Documentos textuais _______________________________ 167 Keila Grinberg Aula 15 – Documentos orais __________________________________ 179 Keila Grinberg Aula 16 – Documentos visuais_________________________________ 191 Keila Grinberg Aula 17 – Cinema e história __________________________________ 203 Keila Grinberg Aula 18 – História e pesquisa _________________________________ 219 Keila Grinberg Aula 19 – História e pesquisa na sala de aula _____________________ 235 Keila Grinberg Aula 20 – Avaliação ________________________________________ 247 Keila Grinberg Referências _____________________________________ 263 1 AULA O que é História? Meta da aula objetivos Apresentar o conceito de História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar o significado da disciplina História. • Comparar conceitos diferentes de História (conceito acadêmico x senso comum). • Reconhecer a importância da relação entre passado e presente para a História. • Reconhecer a subjetividade na construção do conhecimento histórico. História na Educação 1 | O que é História? (...) para fazer história, virem resolutamente as costas ao passado e antes de mais vivam. Envolvam-se na vida. Lucien Febvre, Combates pela História Papai, então me explica para que serve a história. Marc Bloch, Apologia da História INTRODUÇÃO Se alguém fosse fazer uma pesquisa com alunos e professores do Ensino Básico perguntando o que é História, certamente teria muitas respostas do gênero “História é o estudo do passado”. Mas, será mesmo? Ou melhor, será apenas isso? Será que alunos e professores teriam a resposta na ponta da língua para esta pergunta? Provavelmente, não. Não porque sejam ignorantes, mas porque a resposta não é fácil mesmo. O objetivo principal desta aula é justamente apresentar os diversos significados que a palavra “História” vem adquirindo hoje em dia, para entender como este campo de conhecimento vem sendo definido por professores e especialistas. A HISTÓRIA E A EXPERIÊNCIA Todo ser humano, desde pequeno, utiliza sua experiência. Um bebezinho que leva um choque ao colocar os dedos na tomada acaba por aprender, às vezes depois de várias tentativas, que a cada vez que puser o dedo na tomada levará um choque. Esse é o primeiro momento em que a idéia de passado faz sentido para nós: aprendemos a partir de experiências anteriores. Aprendemos a partir daquilo que vivenciamos. Por isso, o passado é tão importante para todos. O conhecimento que temos dele é o que nos situa no grupo ao qual pertencemos, em nossa família e em nossa própria existência. Não é à toa que as fotografias de família ocupam um lugar central em nossas casas: elas estão ali para dizer quem somos. Também não é por acaso que nos dedicamos tanto a registrar todos os momentos de nossas vidas, principalmente os da infância: queremos deixar um legado – ou, ao menos, uma lembrança – para o futuro. Sabemos que o tempo passa. As noções de passado, presente e futuro são, portanto, fundamentais para a existência humana, e entendê-los é uma necessidade. Nesse sentido, quando essa compreensão está relacionada às experiências coletivas, ou a experiências individuais que se tornaram importantes para um grupo, estamos falando de História. Também estamos falando de História 8 CEDERJ 1 quando interrogamos o passado para tentar descobrir características do AULA presente, ou para tentar arriscar um prognóstico para o futuro, embora os historiadores não costumem fazê-lo. Um exemplo para deixar claro o nosso argumento: você provavelmente já se perguntou como o homem se transformou tanto, e transformou tantas coisas à sua volta, desde a pré-história até os dias atuais. Como conseguiu passar das cavernas para as naves espaciais? A essa necessidade de compreensão, de estabelecer ligações explicativas entre fenômenos ocorridos em épocas diferentes, chama-se História. Por isso, não é o passado em si que constitui o objeto da História. Por exemplo: as eras geológicas da Terra, antes do surgimento do ser humano, não interessam aos estudiosos da História; interessam ao geólogo. Da mesma forma, o sistema solar e suas mudanças não fazem parte das preocupações dos historiadores; são estudadas por astrônomos. E por que esses dois exemplos não são relativos ao objeto de estudo da História? Porque o interesse da História está justamente no entrelaçamento entre a Humanidade e o tempo. Tudo o que se relaciona aos homens, suas formas de viver, de sobreviver, de se reunir e de se divertir em todos os tempos – inclusive o presente – é História. Mas, como nós não dispomos da faculdade de prever o futuro, é para o passado que nos voltamos, na tentativa de resolver problemas do presente (ou, pelo menos, de compreendê-los) e também para aprendermos alguma coisa com a experiência do que já foi vivido por outras sociedades, em outras épocas, para não repetirmos no futuro os erros anteriores. Como disse o historiador MARC BLOCH, a História é a ciência MARC BLOCH “dos homens no tempo”. Ela possibilita a reflexão sobre as formas (1886-1944) de vida dos homens em todos os tempos e espaços, procurando Historiador francês que se tornou famoso por, junto com o colega Lucien Febvre, revolucionar as formas de se pensar e fazer História no início do século XX. Seu livro de iniciação à História – Apologia da História (ou o ofício do historiador) – é leitura obrigatória para todos os que se interessam pelo assunto. compreender e explicar as relações entre os diversos fenômenos sociais e suas implicações. Agora que você já sabe que História é a ciência que estuda os homens no tempo, podemos tentar entender um pouco mais o que significa estudar o passado a partir do presente. CEDERJ 9 História na Educação 1 | O que é História? O PRESENTE E O PASSADO Costumamos dizer que “o homem é fruto de seu tempo”. O que isso quer dizer? Significa que, a cada época, os homens são diferentes. Seus interesses são diferentes, suas escolhas são distintas. A História, da mesma forma, também é filha de seu próprio tempo. A cada época, os interesses das pessoas que estudam História são diferentes, porque os problemas que elas vivenciam em seus cotidianos também o são. Um exemplo desse argumento é a história das mulheres. Essa disciplina começou a ser estudada em meados da década de 1960, justamente quando o movimento feminista crescia em todo o mundo. ANNALES É o nome reduzido da revista Annales d´Histoire Économique et Sociale (Anais de História Econômica e Social), criada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. Até hoje, a revista é referência para os estudiosos da História em todo o mundo. Veremos esse assunto com mais detalhe no decorrer da disciplina. Nessa época, tornou-se expressiva a participação das mulheres nas universidades, fazendo com que mais mulheres exercessem profissões antes predominantemente masculinas e, ainda, se interessassem pelo estudo de sua história. Outro exemplo é o da história do meio ambiente, ou da história ambiental. Antes de haver a preocupação com a destruição de rios, matas e florestas e com a escassez da água, ninguém estudava a história da relação do homem com a Natureza. Hoje em dia, há vários livros sobre o assunto. Por isso, o que orienta o estudo da História é o presente, não o passado. É a partir das preocupações do presente que os historiadores HIPÓTESE interrogam o passado. Essa é a raiz da chamada “história-problema”, Segundo o Dicionário Houaiss, hipótese é a “proposição que se admite, independentemente do fato de ser verdadeira ou falsa, mas unicamente a título de um princípio a partir do qual se pode deduzir um determinado conjunto de conseqüências; suposição, conjectura”. Portanto, do ponto de vista da História, hipóteses são as respostas às questões formuladas pelo historiador no início da pesquisa. Ao propor uma questão, um “problema”, ele formula hipóteses. Durante a investigação, ou seja, durante a busca por documentos e outras evidências do passado, ele confirma suas hipóteses ou não. Estudaremos o método de investigação da História com mais detalhes no decorrer da disciplina. formulada pelo historiador francês Lucien Febvre, na década de 1930. 10 CEDERJ Febvre pertence à geração dos ANNALES, que pretendia revolucionar a forma como se pensava e se escrevia a História. Até, o fim do século XIX, a História era basicamente uma narrativa dos grandes acontecimentos políticos e militares, que enaltecia os feitos dos grandes homens, fossem eles chefes militares ou reis. Febvre se insurgiu contra a idéia de que a História legítima deveria ser apenas a História política e militar e passou a defender que qualquer área de conhecimento que envolvesse a ação dos homens e o tempo podia ser objeto da História. Isto porque, para ele, a História não era uma sucessão de narrativas sobre acontecimentos – ela deveria ser uma resposta a um “problema”, a uma questão, que orientava uma investigação. A cada problema deveria corresponder uma HIPÓTESE. Todo relato histórico, ou seja, a própria História, é o resultado dessa investigação. Por exemplo, um historiador pode desenvolver uma pesquisa motivado pela seguinte questão: “Quem foi o primeiro europeu a chegar 1 ao Brasil?” Por que ele a formulou? Digamos que ele tenha suspeitas AULA de que, na realidade, não tenha sido Pedro Álvares Cabral o primeiro europeu a chegar ao Brasil. Digamos que ele suspeite de que outros navegantes chegaram antes, em outros locais do atual território brasileiro. Ele formulará, portanto, hipóteses – possíveis respostas – à sua questão. Suponhamos que a sua hipótese seja: “Os primeiros europeus a chegar ao Brasil foram navegantes portugueses, que desembarcaram na costa do atual Maranhão em 1498.” O que ele deve fazer a partir daí? Deve buscar evidências, documentos que comprovem sua hipótese. Se não conseguir comprová-la, vai chegar à conclusão de que ela estava errada. De qualquer forma, com o resultado de sua pesquisa, esse historiador certamente escreverá um texto, no qual defenderá suas idéias acerca do descobrimento do Brasil. O que importa nesse raciocínio é demonstrar que, ainda seguindo o exemplo anterior, o texto do historiador não é resultado de uma simples narrativa cronológica de fatos, mas, sim, de uma investigação que teve origem em um problema. Um problema que está sempre conectado com a vivência cotidiana de quem o formula. Um problema sobre o passado que está sempre baseado, portanto, no presente. ATIVIDADE 1. Nesta atividade, você lerá um trecho escrito pelo historiador Jacques Le Goff . O objetivo é verificar a sua compreensão da relação entre passado e presente para a História. Você levará cerca de 20 minutos para resolver a questão. Marc Bloch propôs também ao historiador, como método, um duplo movimento: compreender o presente pelo passado, compreender o passado pelo presente: ‘A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas é talvez inútil esgotar-se a compreender o passado, se nada se souber do presente.’ (...) Daí a importância da recorrência da história: ‘Seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigações se deve modelar necessariamente pela dos acontecimentos. Para restituir à história o seu verdadeiro movimento, seria muitas vezes proveitoso começar por lê-la ao contrário’ (...). Esta concepção das relações passado/presente (...) inspirou e deu nome à revista britânica ‘Past and Present’ [Passado e Presente], a qual, no primeiro número, em 1952, declarou: ‘A história não pode, logicamente, separar o estudo do passado do estudo do presente e do futuro (1990, pp. 223-4). CEDERJ 11 História na Educação 1 | O que é História? Analise o trecho acima. A partir dele, explique por que a relação entre passado e presente é tão importante para a História. __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ __________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ __________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Para responder a esta questão, você deve ter compreendido que não é somente o passado, que interessa à História. As investigações históricas são feitas a partir de um problema que tem sempre origem no presente. A partir do presente, o historiador olha para o passado buscando respostas para suas indagações. HISTÓRIA E VERDADE A essa altura você já deve ter percebido que, a cada época, a História escrita pelos historiadores é diferente. Se você pegar um livro de História do início do século XX, verá que ele é diferente de um livro de História escrito no século XIX, que, por sua vez, será também diferente de um livro de História escrito no século XXI. Isto não cria outro problema? Em que livro acreditar? No mais antigo ou no mais atual? Se for o mais atual, o que faremos com os mais antigos? Devemos jogá-los fora? Não, de maneira nenhuma. Em primeiro lugar, é importante que tenhamos em mente que, quando lemos um livro de História, não estamos diante daquilo que realmente aconteceu. O passado é irrecuperável. O que temos diante de nós ao abrir um livro de História? Temos um relato sobre o passado. É importante ter em mente, também, que esse relato foi escrito por uma pessoa, usando documentos e evidências por ela encontrados, a partir de seus interesses, preocupações e questões suscitadas por sua época. Após a leitura do parágrafo anterior, você deve estar se perguntando: “Isto quer dizer, então, que nem todos os livros de História 12 CEDERJ 1 serão semelhantes?” Exatamente. Os livros de História serão diferentes AULA de acordo com o autor que os escreveram, de acordo com a época em que foram escritos e, ainda, de acordo com as questões e os interesses do autor e de seu tempo. Por exemplo, um relato sobre o processo de impeachment do governo Collor descrito por alguém da família dele será, necessariamente, diferente da descrição feita por um aposentado que teve sua poupança confiscada que, por sua vez, será diferente da vivência do estudante “cara-pintada” que participou pessoalmente das manifestações políticas. Percebeu como estes diferentes olhares sobre um determinado acontecimento são subjetivos? Depende de quem escreve. A visão deste autor, por sua vez, é formada por uma série de variáveis, que compreendem desde a sua formação escolar até suas concepções políticas. Se podem existir diferentes relatos sobre um acontecimento, isto é, várias versões sobre um mesmo fato, você deve estar se perguntando, então, como devemos fazer para escolher um livro de História. Onde estará a verdade? Em primeiro lugar, devemos saber que, embora todos os livros de História apresentem diferenças, eles devem sempre se reportar a um acontecimento. Por exemplo: um livro sobre a proclamação da República no Brasil pode conter diferentes pontos de vista sobre o assunto; pode enfatizar mais a ação dos militares, ou se ater mais à atuação dos membros do partido republicano. Uma coisa, no entanto, não pode ser ignorada por nenhum livro sobre a proclamação da República no Brasil: que ela foi proclamada no dia 15 de novembro de 1889, encerrando o Império. Com este raciocínio, pretendo demonstrar que, quando falamos sobre o passado, não existe uma verdade. Como o passado não é recuperável, nós o descrevemos de acordo com as informações disponíveis e de acordo com os nossos interesses e preocupações. Isso quer dizer que existe uma alta dose de subjetividade no conhecimento histórico. CEDERJ 13 História na Educação 1 | O que é História? ATIVIDADE 2. Esta atividade deve ser realizada em um cômodo de uma casa ou de uma escola. Você deve ter em mãos uma folha de papel e uma caneta. Seu objetivo é exemplificar o argumento anterior sobre a realidade e a subjetividade no conhecimento histórico. Ela tanto pode ser desenvolvida por você, individualmente, quanto por um grupo de pessoas. Também pode ser desenvolvida em sala de aula, mesmo por grupos de alunos muito jovens. Sente-se em um canto do cômodo e olhe apenas para a frente. Na folha de papel, escreva tudo o que vê (se for apenas um participante, deve se sentar nos quatro cantos do cômodo e escrever tudo o que vê a cada ângulo; se os alunos forem muito jovens podem, em vez de escrever, desenhar). Depois, deve-se comparar o que cada um escreveu ou desenhou. COMENTÁRIO Como o objetivo desta atividade é fazer com que você compreenda, na prática, a questão da realidade e da subjetividade no conhecimento histórico, não existe uma resposta correta, apenas a constatação do argumento desenvolvido ao longo da aula. Digamos, por exemplo, que o cômodo escolhido tenha sido uma sala de aula com um quadro-negro em uma parede e uma janela na parede oposta. Digamos que esta atividade seja exercida por duas pessoas. A PESSOA 1 está sentada de frente para o quadro-negro e de costas para a janela; A PESSOA 2 está sentada de frente para a janela e de costas para o quadro-negro. Ao descrever a sala de aula, o que a PESSOA 1 verá? O quadronegro, as carteiras, a mesa do professor etc. Ela não verá a janela. 14 CEDERJ 1 AULA Da mesma forma, ao descrever a sala de aula, o que a PESSOA 2 verá? Provavelmente, as mesmas carteiras e a mesa do professor, mas ela verá a janela e não verá o quadro-negro. Qual dos dois relatos sobre a sala está correto, o da PESSOA 1 ou o da PESSOA 2? Os dois! Contudo, os dois serão relatos parciais sobre a sala, já que nenhum deles abrange a sala de aula por inteiro. E nenhum abrange a sala de aula por inteiro porque isto significaria que o observador está fora da sala de aula, ou seja, que o observador tem a capacidade de observar e ao mesmo tempo ficar fora da sala. Ora, isso é impossível. O historiador (aquele que observa a História ou, no caso do nosso exemplo, a sala de aula) deve estar dentro dela; do contrário, ele seria incapaz de enxergar o que se passa lá dentro. Mas, e se a PESSOA 1 escrever que tem uma vaca dentro da sala de aula? Nesse caso, seu relato estará equivocado, porque, no caso do nosso exemplo, não havia vacas na sala de aula. O mesmo raciocínio se aplica ao conhecimento histórico. Ele nunca será completo – os conteúdos descritos em um livro de História serão sempre uma versão sobre um determinado fato ou processo. Afinal, o historiador nunca consegue reconstituir o passado tal qual aconteceu. O passado é sempre relatado por meio das informações que encontramos e a partir da perspectiva de quem o descreve. Por isso, o conhecimento histórico será sempre dotado de subjetividade. Nunca será possível chegar à reconstituição exata do passado – mas, ao mesmo tempo, é preciso sempre se reportar à realidade. ATIVIDADE 3. Para reforçar a idéia de que o conhecimento histórico, embora baseado em fatos e acontecimentos reais, tem sempre um grau de subjetividade, leia os textos a seguir, sobre a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, no Rio de Janeiro, quando marinheiros revoltaram-se contra os castigos corporais. Os relatos foram escritos por pessoas bem diferentes em épocas distintas. O primeiro é de um oficial de armada anônimo, que escreveu o panfleto Política versus Marinha logo após o fim da revolta; o outro foi escrito pelo historiador Álvaro Pereira do Nascimento, em 1997. Eles mostram como um mesmo fato pode ser entendido e descrito de maneiras totalmente diferentes. CEDERJ 15 História na Educação 1 | O que é História? TEXTO 1 A oficialidade da marinha sempre foi, ao menos, uma parte das mais escolhidas da alta sociedade do Brasil; por que ela merecerá menos crédito quando afirma a imprescindível necessidade do castigo do que indignos políticos que advogam os próprios inconscientes interesses explorando uma falsa piedade pelo negro boçal que mata e rouba? (...) Enquanto a guarnição for o esgoto da sociedade, a disciplina, a ordem e a segurança têm os seus direitos e a chibata o seu lugar (apud GRINBERG, 2000). TEXTO 2 Os marinheiros viviam o processo crescente de lutas acirradas na chamada República Velha por maiores espaços de cidadania, e partiram em busca de seus direitos. Eles haviam entendido que a República não era um sinônimo de mudanças concretas: os oficiais continuavam castigando as guarnições, os salários permaneciam baixos, a alimentação de péssima qualidade, o ensino insuficiente e o trabalho estafante. A revolta dos marinheiros de 1910, assim, foi mais do que uma luta contra os castigos corporais, (...) ela foi uma das maiores expressões de reivindicação pelos direitos de cidadania na República Velha” (NASCIMENTO apud GRINBERG, 2000). Agora que você terminou de ler os textos, faça o mesmo que os autores: descreva um episódio qualquer, que envolva pelo menos três pessoas diferentes. Faça um relato para cada pessoa, expondo seu ponto de vista. Se você quiser fazer esta atividade com um grupo de alunos, pode optar por pedir que eles recortem notícias de jornais diferentes sobre um mesmo fato e depois comparem a forma como cada jornal o noticiou. COMENTÁRIO Não existe uma resposta correta para esta atividade. O objetivo é que você, além de exercitar a escrita, reforce os conhecimentos apreendidos nesta primeira aula. O importante é que consiga perceber que, da mesma forma como todo episódio é descrito de formas diferentes por pessoas distintas, também o conhecimento histórico varia de acordo com a pessoa que o escreve, seus interesses e preocupações. 16 CEDERJ AULA 1 ATIVIDADE FINAL 1. Esta atividade demanda cerca de uma hora, já que envolve outras pessoas. Faça uma pesquisa com quatro pessoas suas conhecidas, perguntando-lhes “O que é História?” a. Liste as respostas em uma folha de papel. Compare-as. As respostas que você obteve são parecidas? Há elementos que aparecem em todas as respostas? Quais são eles? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ b. Compare as definições dadas pelas pessoas que você entrevistou com a definição de História de Marc Bloch. Quais são as semelhanças e as diferenças entre elas? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ CEDERJ 17 História na Educação 1 | O que é História? RESPOSTA COMENTADA Provavelmente, quando você for entrevistar as outras pessoas, elas mencionarão a palavra “passado” em suas respostas. Esse será o elemento em comum, já que, no senso comum, História é tudo o que se refere ao passado. A semelhança principal dessa resposta com a definição de Marc Bloch é que ele também mostra que a História é o estudo do passado. Mas a principal diferença é que a História não estuda apenas o passado; ela estuda o passado na medida em que ele envolve a Humanidade. A História não estuda o passado por si só, estuda o passado a partir do presente. Ao realizar esta atividade, você está justamente aprendendo as diferenças entre os significados da História para o senso comum e da História como disciplina. RESUMO A História é o campo de conhecimento que trabalha com duas variáveis: o estudo dos homens e o estudo do tempo. Ela se dedica a analisar as múltiplas formas de organização social no tempo. O que orienta o estudo da História são as perguntas (os problemas) geradas em nosso próprio tempo. Assim, são as preocupações do presente que dão a tônica dos estudos de História, e não o contrário. Esses estudos históricos têm como origem as investigações históricas, que, por sua vez, constituem a base do conhecimento histórico, produzido a partir de problemas, hipóteses e evidências (fontes, documentos). Embora esse conhecimento seja dotado de uma alta dose de subjetividade, ele não nega, de forma alguma, a existência da realidade. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, estudaremos o ensino de História, ou melhor, veremos como essa História, da qual aprendemos a definição e as principais características, vem sendo ensinada nas escolas. Também discutiremos a importância do estudo da História para a formação de uma consciência crítica e analisaremos o papel do professor de História na construção da cidadania brasileira. 18 CEDERJ Se você gostou do tema desta aula, alguns livros possibilitarão o aprofundamento de suas reflexões sobre o assunto. São eles Apologia da História ou O ofício do historiador, de Marc Bloch, já mencionado anteriormente, e O que é História, de Vavy Pacheco Borges, que resume os conteúdos abordados nesta aula. Para refletir especificamente sobre como um mesmo episódio pode ser descrito de várias maneiras, leia o conto “Cinco relatos e um tema”, escrito por Clarice Lispector e publicado no livro A descoberta do mundo. A partir de um acontecimento corriqueiro – matar baratas –, ela descreve cinco versões diferentes sobre o tema. CEDERJ 19 AULA 1 LEITURAS RECOMENDADAS AULA Estudar História por quê? 2 Meta da aula objetivos Analisar e discutir o estudo de História para a formação de uma consciência crítica. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Analisar a importância do ensino de História para a formação de consumidores e leitores críticos frente à sociedade contemporânea. • Relacionar História com Educação. • Reconhecer a importância do papel do professor de História na formação de uma consciência crítica. • Identificar estratégias a serem desenvolvidas pelo professor de História para dinamizar suas aulas. História na Educação 1 | Estudar História por quê? (...) Veio para contar o que não faz jus a ser glorificado e se deposita, grânulo, no poço vazio da memória. É importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel. (ANDRADE, Carlos Drummond. O historiador. In: A paixão medida) INTRODUÇÃO O poema de Carlos Drummond de Andrade ressalta a importância do papel do historiador na sociedade, de sua função, que é “contar”, esclarecer – o que nem sempre é desejado (“É importuno”). Esse historiador tem por matériaprima a memória, ou melhor, a construção da memória, seja ela individual, familiar ou social. Segundo Tomaz Tadeu (1999), a Educação transforma subjetividades. Por isso, é tão importante refletirmos sobre os nossos objetivos ao educarmos nossos alunos, pois, com certeza, ao educá-los, estamos não só informando-os, mas formando-os cidadãos, seres humanos. Assim, podemos afirmar que transformamos subjetividades, idéias, sentimentos, ideologias etc. Considerando essa afirmativa, cabe perguntar qual é o objetivo da Educação? Para que queremos transformar? Em favor de que classes pretendemos educar? Qual o nosso objetivo com o ensino de História nas escolas de Ensino Fundamental e Médio? É comum estudantes dos últimos períodos de licenciatura ou professores recém-formados nos perguntarem que caminhos devemos seguir. Recorrendo à metáfora de Alice no País das Maravilhas, tal como a perplexidade de Alice diante do gato, podemos responder: “Depende de aonde pretendemos chegar!” É isso mesmo! A busca de caminhos a seguir relaciona-se ao lugar aonde desejamos chegar, pois depende de nossa postura política e ideológica. Concordamos com Paulo Freire, quando afirma que “educar é um ato político”, pois exige de nós, professores, posicionamento, criticidade e desejo de desenvolvimento da autonomia de nossos educandos. Autonomia está pautada em liberdade de escolha e reflexão. Neste caminho, faz-se urgente ressignificar a escola, rever o seu sentido e o espaço que ocupa atualmente na vida dos alunos. A escola deve reconhecer o saber dos educandos, promovendo o encontro entre saberes escolares e não-escolares, entre cultura erudita e popular. Sem dúvida, o acesso ao legado cultural da Humanidade é um direito do(a) aluno(a), e favorecer esse acesso é também papel da escola. O diálogo entre os saberes 22 CEDERJ 2 e suas finalidades faz parte de sua definição político-ideológica, em favor de AULA uma educação emancipatória. Nas aulas posteriores, trabalharemos mais a construção da memória e o tempo histórico. POR UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA A educação na América Latina tem de se enfrentar no próximo milênio, que já está em processo, com questões radicais: construir e/ou promover ecossistemas educativos diversificados, multiplicar os seus locus e reinventar a escola. Somente assim poderá dar resposta aos desafios do continente: assumindo uma configuração plural, reconhecendo o conhecimento e as práticas educativas produzidas e acumuladas no continente, fazendo da escola um espaço de cruzamento de saberes e linguagens, de educação intercultural e construção de uma nova cidadania. Uma proposta educativa ampla e consciente, capaz de contribuir para encontrar respostas aos desafios que todo o continente está chamado a enfrentar para construir sociedades onde a justiça, a solidariedade e a felicidade sejam direitos de todos. Sem horizonte utópico é impossível educar (CANDAU, 2000, pp. 15-16). Em colégios, universidades e outros espaços sociais – mídia, jornais, rodas de amigos etc. – buscam-se caminhos para a Educação brasileira. Paralelamente, impõe-se a importância de se educar para a cidadania. Mas de que tipo de cidadania estamos falando? E que tipo de Educação desejamos para se alcançar essa cidadania? Qual o papel da escola, da universidade e dos professores nesse conceito de Educação centrado na formação da cidadania? A função básica da Educação não consiste em inserir o educando no mercado de trabalho e, sim, formar cidadãos capazes de serem autores da história de sua própria vida, função contrária aos interesses neoliberais atuais. Dessa forma, acreditamos que a Educação deva formar cidadãos autônomos, capazes de atuar como leitores e consumidores críticos no mundo. Esta aula pretende levar à reflexão sobre alguns problemas inerentes à Educação para a cidadania. Vinculamos essa reflexão às políticas universitárias de formação de professores e ao papel social da escola/universidade na transformação da sociedade, em prol de uma democratização do saber e da construção de um mundo mais justo e igualitário. CEDERJ 23 História na Educação 1 | Estudar História por quê? Diante desse quadro, torna-se lócus de especial importância a formação dos professores; em particular, a do professor de História. É fundamental que o licenciando adquira competência teórica, assim como fortaleça sua identidade político-pedagógica ao longo do seu curso de licenciatura. Precisamos promover a formação do professor reflexivo, que faça da sua aula um espaço de investigação, de pesquisa, de crescimento de seus alunos e dele mesmo, onde a construção do conhecimento ocorra de forma dialógica, participativa, estabelecendo espaços de ensino-aprendizagem por meio do convívio democrático entre alunos e professores. Neste ponto, podemos lembrar e citar Paulo Freire (1997), quando nos afirma a importância e a “boniteza” da função do professor autônomo, reflexivo, consciente e crítico: (...) sou professor a favor da decência contra o despudor. A favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura... Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais... Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo... Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por esse saber, se não luto pelas condições materiais necessárias... (p. 115). O CONHECIMENTO HISTÓRICO ESCOLAR É essencial que, por meio do ensino de História no Ensino Fundamental e Médio, nossos(as) alunos(as) consigam se identificar como sujeitos históricos, participantes de um grupo social, simultaneamente único e diverso. Talvez aí esteja nosso maior desafio: ensinar primeiramente a pensar, criticar, propor, despertando em nossos estudantes o desejo de conhecer, de participar ativamente de forma crítica, reflexiva e transformadora da sociedade em que vivem. O sentido maior das aulas de História no Ensino Básico consiste não apenas na aprendizagem de conteúdos específicos, mas na construção do cidadão crítico, capaz de se indignar frente aos acontecimentos da sociedade em que vive. 24 CEDERJ “A aula de história é o momento em que, ciente do conhecimento que possui, o professor pode oferecer a seu aluno a apropriação do conhecimento histórico por um esforço e uma atividade com a qual ele retome a atividade que edificou esse conhecimento” (SCHIMIDT; CAINELLI, 2004, p. 31). ATIVIDADE 1. Como você relaciona a importância da Educação, neste caminho de busca de uma consciência crítica, utilizando o estudo de História? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A Educação deve ser capaz de formar cidadãos autônomos, conscientes de seus direitos e deveres na sociedade em que vivem, capazes de se indignar mediante as injustiças sociais, de serem cidadãos e consumidores críticos, LEITORES DO MUNDO. O estudo de História deverá permitir, através do conhecimento dos processos históricos, o entendimento da origem e do desenvolvimento desses processos pelas diferentes sociedades em tempos e espaços diferenciados, contribuindo, portanto, para a formação dessa consciência crítica por meio da análise de diferentes momentos históricos. Com a utilização de diversas metodologias em sala de aula – como, por exemplo, o uso de filmes, a análise de documentos de época, a observação reflexiva de ilustrações etc. –, o professor pode favorecer a aquisição de competências, tais como interpretar um texto, sintetizar, perceber mudanças e permanências em diferentes conjunturas, dentre outras, favorecendo, então, a formação desse pensamento crítico. LEITORES DO MUNDO É uma expressão pedagógica utilizada por Paulo Freire, que você já deve ter estudado para ter chegado até aqui. Mas, mesmo assim, vamos relembrar! Ao fornecer um instrumental teórico básico capaz de auxiliar o aluno a refletir e aprender a pensar, a construir um aprendizado significativo, estamos permitindo que ele se torne um cidadão autônomo, capaz de gerir sua própria vida, de interpretar o mundo, de ler o mundo, de darlhe sentido e significado crítico. Recomendamos, caso você não o tenha lido, o livro Pedagogia da autonomia, de Paulo Freire, da Editora Paz e Terra, 1997. CEDERJ 25 AULA 2 ! História na Educação 1 | Estudar História por quê? É importante, também, que o professor entenda que teoria e prática caminham juntas e que a didática torna-se ponte nesta interseção. Logo, o professor de História deve criar estratégias em sua sala de aula, utilizando diferentes linguagens para promover, de fato, a construção do conhecimento em vez de sua memorização. Entendemos a importância de se analisar teoria e métodos de ensino como elementos pertencentes ao próprio conhecimento escolar. Nesse prisma, a didática passa a ser compreendida como elo entre teoria e prática. O conhecimento escolar configura-se como campo específico e com peculiaridades: uma delas, talvez das mais importantes, é o papel desempenhado pela didática nesse processo de produção do conhecimento histórico escolar. ATIVIDADE 2. Imagine que você vai montar uma aula de História. Faça um plano de aula que demonstre que você entendeu o significado da didática como elo entre teoria e métodos de ensino. Utilize como temática, a título de exemplificação, o Renascimento. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ __________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ REPOSTA COMENTADA Teríamos inúmeros exemplos a serem trabalhados, mas escolhemos o Renascimento, por ser este muito trabalhado nas escolas. Inicialmente pode-se explorar um texto básico sobre a localização geográfica e temporal do Renascimento, suas principais características e seu significado, relacionando-o à ascensão da burguesia e ao desenvolvimento do comércio. Durante esses primeiros 50 minutos de aula, deve-se 26 CEDERJ 2 reflexos nas diversas regiões da Europa Ocidental. Paralelamente a isto, é importante a realização de uma leitura socializada do texto, incentivando bastante o debate no grupo. No tempo seguinte, devemos dividir a turma em grupos ou duplas, pedindo-lhes que elaborem um vocabulário ilustrado sobre as características principais do Renascimento, dando a cada grupo uma palavra para definirem e ilustrarem. São características importantes do Renascimento: racionalismo, espírito crítico, individualismo, classicismo etc. Caso você tenha dificuldade em questões de metodologia, nós podemos ajudá-lo, pois nas aulas seguintes detalharemos maior variedade de dinâmicas que poderão ser utilizadas para enriquecer suas aulas e auxiliar o seu aluno a fixar o conhecimento ensinado. Voltando ainda à questão teórica sobre o conhecimento escolar, vamos tentar defini-lo. Segundo Lucíola Santos (1994), o conhecimento escolar é tecido num emaranhado de fatores, como apresenta a seguir: Nessa abordagem, o sistema escolar e o contexto econômico e social que o informam, com base nas diferentes relações de poder que se estabelecem no interior do aparelho escolar e entre este e a sociedade, produzem o que chamamos de conhecimento escolar. A compreensão do processo de produção desse conhecimento amplia a compreensão sobre a prática pedagógica e evita simplificações centradas na questão de conteúdo x método (p. 27). Entende-se, portanto, que o conhecimento escolar, numa perspectiva de educação emancipatória, se configura como um texto aberto que vem a ser constituído da participação de alunos e professores. Por tudo isso, está sujeito a um emaranhado de fatores de ordem interna e externa, ou seja, depende do contexto histórico no qual está inserido, das relações de poder existentes na escola e fora dela, do ambiente escolar, das classes sociais de origem dos alunos e professores, das teorias e métodos utilizados para ensinar etc. CEDERJ 27 AULA mostrar um mapa localizando a Itália, berço do Renascimento, e seus História na Educação 1 | Estudar História por quê? ATIVIDADE 3. Comente a passagem em destaque, extraída do texto: “...o conhecimento escolar, numa perspectiva de educação emancipatória, se configura como um texto aberto...”. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O conhecimento escolar configura-se como um texto aberto, pois recebe a influência de todo o contexto cultural que permeia a sala de aula e a escola, assim como das relações humanas que se estabelecem entre alunos e professores, além, é claro, das questões ligadas ao conhecimento científico, propriamente dito, e da didática. Portanto, tudo influencia o conhecimento escolar. Ele não é neutro, não está imparcialmente no mundo, não possui uma verdade única. Este conhecimento é, também, algo socialmente construído pelo homem, sujeito às teorias do momento, à conjuntura histórica, às novas metodologias etc. Daí podermos afirmar que ele é um texto aberto, que muda, caso esses fatores se alterem. Por isso, o estudo de nossos pais, por exemplo, foi diferente do nosso; mudaram os temas ensinados, como se ensinava, para que se ensinava. Voltando ao nosso texto, vamos nos centrar em discutir a importância da Pedagogia no ensino das disciplinas. Referendando André Chervel (1990, p.182), pode-se afirmar que “excluir a pedagogia do estudo dos conteúdos é condenar-se a nada compreender do funcionamento real dos ensinos”. Logo, percebemos que o conhecimento escolar não é uma simples e pura redução do conhecimento acadêmico, científico. Nessa transposição didática, deve ser incorporado ao ensino o conhecimento científico, propriamente dito, o conhecimento escolar da disciplina e as relações humanas que permeiam todo esse ensino-aprendizagem, o contexto escolar. 28 CEDERJ 2 O professor de História deve discutir e problematizar com AULA os(as) alunos(as) questões pertinentes ao saber histórico escolar e suas interfaces com a História, propriamente dita, e a Educação. Fazem-se necessários o aprofundamento e a discussão, com seus pares, dos princípios teórico-metodológicos para o ensino de História no Ensino Fundamental e Médio. Esse profissional deve, também, ter clareza da aplicabilidade do conhecimento histórico na prática pedagógica atual, envolvendo discussões sobre os currículos e programas de História das instituições em geral, as estratégias e recursos do ensino de História, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ensino Fundamental e do Ensino Médio (PCN) e questões pertinentes à disciplina e à avaliação, a serem abordadas em aulas posteriores, ao estudarmos os PCN de História do Ensino Fundamental e Médio. A aula reprodutiva limita o aluno, pois não permite a formação de sua autonomia, já que apresenta modelos prontos, repetitivos e descolados de sua vivência real. Aprender é construir e reconstruir o conhecimento, elaborando e exercendo a autonomia de sujeito histórico. Crianças e jovens devem ser partícipes ativos de sua sociedade, gerando a transformação social e política da mesma. Logo, urge a reinvenção da escola comprometida com uma cidadania participativa e democrática, ampliando seus horizontes e derrubando os seus próprios “muros”. Para que o ensino se torne mais ativo, o trabalho em sala de aula muito se enriquece ao realizarmos oficinas pedagógicas. No dia-a-dia, a oficina é o lugar onde se faz, se constrói ou se conserta alguma coisa. Segundo Mediano (1997), a oficina é o lugar de se produzir conhecimento a partir do próprio aluno, onde se une teoria e prática, através do jogo dos participantes com a tarefa. Logo, nessas oficinas sempre se utiliza diferentes linguagens como a musical, teatral, plástica etc. Portanto, realiza-se uma integração teórico-prática no processo de aprendizagem. Esse conhecimento construído vai da ação para a reflexão, voltando para a ação, ou seja, vai do concreto para o conceitual e depois do conceitual para o concreto, de forma criativa, crítica e transformadora. ! Lembre-se do que você estudou sobre multiculturalismo em Fundamentos da Educação 3. Veja algumas aulas sobre Multiculturalismo e Ações Afirmativas (Aula 3), Ações Afirmativas e Cotas nas Aulas 12 e 13. CEDERJ 29 História na Educação 1 | Estudar História por quê? Cabe ao professor de História dinamizar as suas aulas, aplicando diferentes estratégias e recursos como, por exemplo, a confecção de jornais, a elaboração e encenação de peças teatrais, a criação de desenhos e caricaturas etc. Além disso, devemos diversificar os instrumentos de fixação de conhecimento e avaliação. Você verá tudo isso, mais detalhadamente, em aulas posteriores. CONCLUSÃO O professor/educador deve acreditar no poder transformador da Educação e investir em sua formação continuada, reformulando, a todo momento, suas experiências em sala de aula, cuidando sempre do aprimoramento do seu saber docente, assim como de sua prática pedagógica. É importante também que o professor tenha consciência de que a escola é um lugar de acesso ao legado cultural da Humanidade; por isso, deve ser para todos, sem diferenças de raça, religião ou cultura. Esses conhecimentos são universais, perpassam as particularidades de cada contexto histórico e devem ser privilegiados em todas as escolas. O papel da escola deve estar referido aos aspectos culturais universais, dos quais todos e todas devem se apropriar. A escola é o lugar da igualdade e da universalidade e não da diferença e das particularidades (CANDAU, 2002, p. 98). 30 CEDERJ Elabore uma atividade para dinamizar suas aulas, partindo de um tema da realidade atual como, por exemplo, a presente situação do trabalhador no Brasil. Utilize jornais e/ou revistas e compare essa situação à do trabalhador do Brasil Colônia. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Hoje, temos diversos tipos de trabalhadores urbanos e rurais, assalariados com carteira assinada ou não, biscateiros, “bóias-frias” etc. No Brasil Colônia, a maioria dos trabalhadores era constituída de escravos; havia poucos homens livres e pobres, que eram em geral mascates, pequenos comerciantes, vagabundos etc. RESUMO O ensino de História deve contribuir para a formação de um ser humano reflexivo e crítico, capaz de se autogerenciar de modo autônomo, tornando-se um leitor e consumidor crítico no mundo atual. Na perspectiva de uma educação emancipatória, o professor pode trabalhar em sala de aula com atividades dinâmicas que permitam ao aluno “vivenciar” a História, construindo o conhecimento histórico, recolocando-o como autor e produtor de seu próprio conhecimento. Tais atividades podem envolver a confecção de jornais, músicas, peças teatrais, caricaturas etc. Para isto, faz-se necessário que a didática seja entendida como parte do conhecimento escolar, uma interligação entre a teoria e a prática. Por fim, deve-se ressaltar a importância com que todas as questões expostas nesta aula devam ser tratadas durante sua formação como futuro professor, para que você possa fortalecer sua identidade político-pedagógica ainda durante seu curso de formação inicial. Ao entrar em sala de aula, adote posturas mais condizentes com a busca de uma educação progressiva, democrática e multicultural. CEDERJ 31 AULA 2 ATIVIDADE FINAL História na Educação 1 | Estudar História por quê? INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, estudaremos a história do ensino de História. Veremos como o ensino de História foi introduzido no Brasil, no século XIX; como ele se relacionou à ideologia positivista e militar; como seus objetivos se transformaram através dos tempos e, finalmente, como o conhecimento histórico escolar se afirmou como campo de pesquisa e conhecimento a partir da década de 1980. Até lá! . 32 CEDERJ AULA História e memória 3 Meta da aula objetivos Definir os conceitos de História e memória. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar o significado dos conceitos de memória e memória coletiva. • Identificar a importância da memória na construção das identidades coletivas. • Relacionar memória, identidades coletivas e conhecimento histórico. • Reconhecer a importância da memória e das identidades coletivas para o ensino de História. História na Educação 1 | História e memória Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem. (Maurice Halbwachs, A memória coletiva) INTRODUÇÃO Hoje, ninguém mais diz que o Brasil é um país sem memória. Fala-se em memória de tudo: memória do movimento estudantil, memória operária, memória da mulher, do negro, da cidade, do bairro, da empresa, da família. Mas o que é exatamente memória? São as nossas lembranças e as de nossos vizinhos, de nossa família? O que vale a pena guardar dessas recordações? Como saber o que é importante para o futuro? Como ensinar os nossos alunos a valorizar nosso passado e nossas lembranças? O objetivo desta aula é apresentar os significados atuais da palavra “memória”. Ao relacioná-lo com o conceito de História, pretendemos demonstrar o quanto a memória é importante para a formação da identidade individual e coletiva de nossos alunos e para o ensino de História nas escolas. O QUE É MEMÓRIA O que é memória? Normalmente, associamos memória àquilo que lembramos sobre o passado, ou seja, memória é a capacidade que nós, seres humanos, temos de aprender, armazenar e recordar uma informação. Ela tanto pode ser vivida (memória de experiências pessoais), quanto transmitida por parentes, amigos, professores etc. (memória de experiências de outros e/ou coletivas). Mas o que, exatamente, nós lembramos sobre o passado? Certamente, não lembramos de tudo o que nos aconteceu. Por exemplo: você não se lembra de tudo o que aconteceu na sua infância, certo? Provavelmente, você se lembra de alguns fatos que, por diversos motivos, foram marcantes em sua vida. Quantas vezes um cheiro de bolo quentinho nos leva subitamente de volta às casas de nossas avós? Muitas vezes, pessoas que viveram o mesmo acontecimento têm recordações diferentes e mesmo conflitantes a respeito dele, principalmente no caso de episódios trágicos. É comum que irmãos 34 CEDERJ 3 tenham memórias distintas de um determinado fato vivido quando AULA eram crianças. Ou mesmo que um deles se lembre de algo que seja completamente desconhecido para o outro. É por isso que a memória não é um depósito de tudo o que aconteceu, como se fosse uma caixinha em nosso cérebro que contivesse toda a nossa vida. Nossa memória é seletiva. Lembramos algumas coisas e esquecemos outras. Às vezes lembramos de fatos que nem aconteceram conosco – nos contaram – e esquecemos do que fizemos na semana passada. Não pretendemos, nesta aula, abordar todos os aspectos da construção da memória; eles dizem respeito a outros campos do saber, como a Psicologia e a Neurologia. O que nos interessa é refletir sobre a importância da memória para o conhecimento histórico. Nesse sentido, nossa atenção está voltada especificamente para a chamada memória coletiva, ou memória social, que é o conjunto de lembranças e referências culturais comuns a um grupo. Mas qual é a importância de nossas lembranças? Ora, nossas recordações, sejam elas individuais, familiares ou coletivas, são justamente a expressão de nosso lugar no mundo. ATIVIDADE 1. Para verificar como a memória é seletiva e diferente de pessoa para pessoa, você pode fazer uma experiência, a qual também pode ser realizada em sala de aula, com seus alunos. Assista a um jogo de futebol com várias pessoas. Não conte a elas, de início, seus planos de realizar esta atividade, para que não pensem em registrar o jogo por escrito enquanto o vêem. Alguns dias após o jogo, peça que descrevam o que viram. Compare com recortes de jornal sobre o mesmo episódio. RESPOSTA COMENTADA Ao ler as diversas descrições do jogo, você terá, certamente, uma gama de recordações muito diferentes sobre essa experiência. Enquanto uma pessoa irá ressaltar, por exemplo, a genialidade das jogadas de determinado jogador, outra dirá que finalmente conheceu sua cara-metade, sentada por acaso ao seu lado na arquibancada. Cada um se lembrará daquilo que foi mais importante para si durante o jogo. Mesmo os aspectos que seriam, a princípio, objetivos a respeito do jogo talvez sejam lembrados de forma diferente: alguém poderá dizer que o jogo começou às quatro da tarde, ao passo que outro poderá jurar de pés juntos que o início foi às quatro e meia. CEDERJ 35 História na Educação 1 | História e memória A MEMÓRIA COLETIVA E AS IDENTIDADES Segundo Maurice Halbwachs, a memória coletiva é constituída de vários pontos de referência importantes para a coletividade à qual pertencemos. Essa coletividade pode ser uma família, uma cidade, um povo, uma nação. E esses pontos de referência podem ser situações (nem sempre vividas por nós mesmos, mas contadas pela tradição oral do grupo), monumentos, paisagens, músicas, comida. Mas são eles que constituem a base de nossa identidade, de nosso sentimento de pertencimento a um grupo. ! A expressão “memória coletiva” foi cunhada pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945), autor dos livros Memória e sociedade e Memória coletiva, estudioso das relações entre Psicologia e Sociologia e pioneiro na investigação das condições sociais da memorização. É a memória coletiva que define o que é comum a um grupo e, portanto, aquilo que o diferencia dos demais. Ao compartilhar determinada memória coletiva, uma pessoa legitima e reforça seus laços de pertencimento a esse grupo. Por isso, a memória é o suporte fundamental da identidade. Por meio da memória, as pessoas buscam salvar o passado do esquecimento, edificando o presente e colaborando para a formação da identidade individual e coletiva. Ao partilhar sentimentos sobre monumentos como pirâmides, vestígios arqueológicos e catedrais da Idade Média, reforçamos nossos sentimentos de pertencimento ao próprio arcabouço cultural da humanidade. Por gostarmos de comida picante, por exemplo, identificamo-nos com uma determinada cultura, como a mexicana; ao falarmos uma língua, que aprendemos de nossos pais, que, por sua vez, a aprenderam com seus pais, demonstramos fazer parte de um grupo. Da mesma forma, as referências coletivas são partilhadas por lembranças de natureza sensorial: barulhos, cheiros, cores. Experimente perguntar aos habitantes da região da Normandia em 1944, testemunhas do desembarque das tropas americanas na França durante a Segunda Guerra Mundial, qual foi a data exata da chegada do exército americano. 36 CEDERJ 3 Provavelmente, ninguém saberá responder. Mas todos se lembrarão do AULA ronco dos aviões, do choro das crianças, do medo que sentiram; irão se lembrar do cheiros de explosivos, enxofre e fósforo (POLLACK, 1989). Isso é memória coletiva. Isso é partilhar lembranças. ATIVIDADE 2. Para verificar o aprendizado dos conceitos de memória e identidade, leia um trecho do poema “Confidência do Itabirano”, do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. A seguir, escreva um pequeno texto, de cerca de dez linhas, discutindo a relação entre memória e a construção da identidade. Se você quiser ler o poema na íntegra, é muito fácil! Acesse http://www.sitedeliteratura.com/Poesias/cda05.htm Confidência de Itabirano Alguns anos vivi em Itabira Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. (Carlos Drummond de Andrade) ________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ ________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA No poema “Confidência de Itabirano”, Drummond nos revela, por meio de seu próprio exemplo, a forte relação entre a memória e a identidade individual. O lugar de nascimento da pessoa e seus primeiros anos de vida são, no caso do texto em questão, referenciados como a base de sua identidade. Nesse caso particular, portanto, é o lugar que dá suporte e sentido às lembranças. Esse lugar, no entanto, não é físico; a Itabira da qual Drummond CEDERJ 37 História na Educação 1 | História e memória sentia saudades não é a de 1940, quando ele escreveu o texto. Itabira é a cidade de seu passado, sua infância, de que ele se lembra não como realmente era, mas como ela ficou gravada em sua memória afetiva. A memória, portanto, é essencial na formação de nossas identidades, sejam estas individuais ou coletivas. Nós somos o que lembramos. Conservar memória é manter o passado vivo. Se um grupo deixa de existir, ou deixa de ter memória, o passado morre. Ele deixa de fazer parte do presente. Não é à toa que, hoje, esforça-se tanto por preservar memórias. Como já afirmou Michel Pollack, (...)a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade (...). Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum. (p. 9). Essa preocupação em torno da manutenção da memória comum pode ser percebida por meio dos esforços para a preservação do patrimônio cultural. O que significa lutar pela recuperação de casarios antigos, criar centros de memória, instalar núcleos de documentação e pesquisa e se dedicar a projetos de revitalização de sítios históricos? Significa ter em mente que, caso esses ícones da identidade desapareçam, a memória sobre eles desaparece também. Por que tanta preocupação em salvar as línguas dos povos indígenas que habitam o Brasil? Porque se sabe que, no momento em que elas deixarem de fazer parte da memória dos grupos indígenas, deixarão de existir. Da mesma forma, por que é tão importante reformar praças e museus como, por exemplo, o Museu da República, no Rio de Janeiro? Porque ele foi palco de um dos acontecimentos mais importantes da memória política coletiva dos brasileiros: o suicídio de Getulio Vargas. Manter essa memória é reforçar os laços identitários entre todos os brasileiros. 38 CEDERJ AULA 3 MEMÓRIA E O ENSINO DE HISTÓRIA Agora que você já sabe o que é memória, o que é memória coletiva e sua relação com a formação e manutenção das identidades contemporâneas, deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com história e com o ensino desta disciplina. Na verdade, as relações entre memória e história são muito importantes. Durante muito tempo uma das principais funções da História era justamente ser guardiã da memória de um grupo. Em certos casos, ainda é assim: quando, por exemplo, criamos um centro de pesquisa histórica sobre a imigração italiana no Brasil, estamos contribuindo para o fortalecimento da identidade de um grupo (os imigrantes italianos) por meio da preservação de sua memória. Da mesma forma, ao estabelecer que um dos objetivos do ensino de História é contribuir para a formação de cidadãos brasileiros, estamos contribuindo para o reforço da identidade brasileira – por meio da construção positiva de elementos de memória. Mas será que é apenas isso? Será que a História deve ser apenas guardiã da memória? Afinal de contas, como você viu, a memória, apesar de ter o passado como matéria-prima, tem o presente como referência. É preciso deixar claro que a memória é uma construção do presente, na medida em que ela serve para legitimar existências de grupos da mesma forma que é usada para reforçar posições políticas. Por exemplo: um grupo étnico como o dos judeus se mantém coeso com base na memória coletiva de episódios como, dentre outros, o Holocausto. Outro exemplo: um movimento separatista como o ETA (Pátria Basca e Liberdade) fundamenta suas ações e intenções políticas separatistas por meio de um discurso que afirma ser o País Basco de natureza e cultura diferentes da Espanha, país do qual formalmente faz parte. Para o historiador Eric Hobsbawm, é função da História tratar a memória de forma crítica. O que ele quer dizer com isso? Quer dizer que, apesar da importância da memória e do reforço das identidades particulares, sejam elas familiares, étnicas ou nacionais, o conhecimento histórico deve aspirar à universalidade. Seguindo esse raciocínio, por que, por exemplo, devemos estudar o Holocausto? Porque o Holocausto – o extermínio de seis milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra CEDERJ 39 História na Educação 1 | História e memória Mundial – foi um atentado contra a comunidade judaica ou porque ele, ao atingir os judeus, acertou a Humanidade como um todo? Hobsbawm defende que, apesar da importância do assunto para os judeus, ele é primordial por ser universal: toda a Humanidade foi atingida. Da mesma forma que toda a Humanidade é atingida com a guerra civil no Sudão e com a fome em tantos países do mundo. “Não basta a história de identidade”, diz Hobsbawm. Com isso, ele está afirmando que as identidades, sejam elas quais forem, são fundamentais. A perpetuação das memórias também. Mas, mais importante do que as lembranças e as recordações que fundamentam nossas identidades é o fato de pertencermos, todos, ao grande grupo da Humanidade. Um bom professor deve sempre ter em mente, mesmo se estiver trabalhando com crianças de pouca idade, que uma de suas funções sociais mais prementes é despertar no aluno o sentimento de tolerância. As aulas de História se prestam muito bem a essa função. Tolerância para com o pensamento alheio, a cultura do outro, a religião do outro. Para entender isso, nada como começar com aquilo que nos faz iguais, para, a partir daí, pensar no que nos faz diferentes. RESUMO A memória é a seleção de lembranças sobre o nosso passado. A memória coletiva é o conjunto de lembranças e referências culturais comuns a determinado grupo, seja ele uma família, uma etnia ou uma nação. Portanto, através da memória coletiva define-se a identidade deste grupo. A manutenção da memória desses grupos, através da História, é importante para a sua própria perpetuação. Ao mesmo tempo, a História também é importante para a realização da crítica ao primado da memória, impedindo que a história das identidades se sobreponha à história da Humanidade. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Nas próximas aulas, estudaremos o conceito de tempo. Você já viu, nas aulas anteriores, que a História é o estudo da ação dos homens no tempo. Viu também, 40 CEDERJ 3 nesta aula, que a lembrança que cada pessoa tem dos tempos passados é diferente. AULA Entender o que é tempo, portanto, é central para compreender a História e, principalmente, trabalhar com ela. Até lá! SITE RECOMENDADO Museu da Pessoa: www.museudapessoa.net Museu virtual de histórias de vida, com depoimentos, fotografias, documentos, desenhos, gravações em áudio e vídeo sobre a história de vida de pessoas célebres e anônimas. CEDERJ 41 AULA O tempo histórico 1 4 Meta da aula objetivos Analisar e discutir as principais teorias sobre o tempo histórico e suas dimensões. Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: • Entender o tempo como uma criação humana. • Identificar as principais dimensões do tempo histórico. • Relacionar os conceitos de tempo, História e memória. • Analisar a importância da criação do calendário para as sociedades humanas. • Identificar o calendário como um instrumento cultural. • Diferenciar acontecimento de estrutura. História na Educação 1 | O tempo histórico 1 Nada do que foi será de novo Do jeito que já foi um dia. (...) Tudo muda o tempo todo, no mundo (...) Tudo passa, Tudo sempre passará... (Lulu Santos, Como uma onda – Zen-surfismo) INTRODUÇÃO A música de Lulu Santos nos fala da importância do tempo e de sua passagem irreversível (“...tudo passa, tudo sempre passará...”). Nesta aula, estudaremos o que é o tempo e veremos como a noção de tempo e o calendário são criações humanas. Estudaremos, especialmente, as principais dimensões do tempo e a diferença entre acontecimento e estrutura. Veremos, também, como se constitui a noção de tempo histórico e sua relação com a memória. O QUE É O TEMPO? Não há quem tenha visto um lugar a não ser em um certo tempo. Nem um certo tempo a não ser em um certo lugar (MINKONVKY, apud DI GIOVANNI, 1994, p. 40). O tempo foi e continua sendo tema de muitas e profundas reflexões por diversas civilizações e sociedades. Chineses, egípcios, incas, maias, indígenas brasileiros, sociedades rurais ou urbanas, contemporâneas ou antigas, não importa, nenhuma delas escapou dele e de alguma forma refletiram e periodizaram o tempo. E as dimensões do tempo? São múltiplas, como o tempo físico, cronológico, o tempo social, histórico, o tempo da escola, o tempo da infância, o tempo da velhice, o tempo de tantos outros tempos e espaços... Segundo NORBERT ELIAS (1989), estudando o tempo se aprendem NORBERT ELIAS Sociólogo falecido em 1990, escreveu vários livros. Nesta aula, nos basearemos em diversas idéias contidas em Sobre o tempo, Editora Jorge Zahar, 1998. algumas coisas sobre a Humanidade e sobre nós mesmos, coisas que antes não eram compreendidas. Não se pode ver o tempo, nem sentilo, cheirá-lo, saboreá-lo. Para alguns, o tempo se diferencia de outros objetos naturais por sua qualidade de não ser perceptível. Sendo assim, Elias indaga: Como medir algo que os sentidos não podem perceber? Ele argumenta que os relógios medem o tempo, mas não medem a noção da percepção do tempo; medem algo concreto como uma jornada de trabalho, um eclipse da lua etc. 44 CEDERJ 4 Sendo assim, o tempo tem um caráter instrumental, pois toda AULA sociedade tem necessidade de um calendário. Por exemplo, imagine um indivíduo que vive em uma sociedade em que não há calendário, portanto não há contagem do tempo. Logo, ele terá dificuldade em saber sua idade, concorda? Para entender o tempo, é necessário uma idéia básica: não podemos separar homem e Natureza e sim, entender o homem na Natureza. O datar – “determinar o tempo”– não se pode entender se partimos da idéia básica de um mundo dividido, nem mesmo só em sujeito e objeto. Pressupõe, por um lado, processos físicos, intervenha ou não o homem para modelá-los; e por outro, indivíduos capazes de fazer uma síntese reflexiva, de ver no conjunto o que não é simultâneo mas sucessivo (ELIAS, 1989, p. 18). Elias afirma que se reflete sobre o tempo, mas não se sabe direito do que se trata. Afirma que o tempo não existe em si. Ele é criado, é um símbolo social, resultado de um longo processo de aprendizagem. Ninguém inventa o conceito de tempo por si só, o indivíduo o aprende desde sua infância, assim como a instituição social do tempo, que lhe está unida e lhe é indissociável. A contagem do tempo é um meio elaborado pelos homens para se orientarem; logo, é uma invenção humana. Portanto, se não houvesse homens e seres vivos no mundo, não haveria tempo, tampouco, calendários e relógios. Nas sociedades mais adiantadas, os relógios se encontram entre os dispositivos mais notáveis para representar o tempo. Cabe lembrar, segundo Elias (Id., p., 23), que os relógios não são o tempo. (...) o tempo é, como se vê, uma síntese simbólica de alto nível, que pode auxiliar a relacionar posições na sucessão de fenômenos físicos naturais, da vida social e da vida individual (Id., p. 26). Não resta dúvida de que o tempo é um símbolo de orientação dos homens. Uma coisa mais que há a dizer: quando os símbolos no curso do desenvolvimento têm adquirido um altíssimo grau de adequação com a realidade, os homens enfrentam uma dificuldade especial para distinguir entre símbolo e realidade (Id., p. 33). CEDERJ 45 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 A sensibilidade para o tempo é um sintoma de um processo civilizador. Os autocontroles dos membros de sociedades primitivas são menos uniformes do que aqueles de sociedades altamente industrializadas. Os calendários e os relógios testemunham o caráter simbólico do tempo. Por isso, o estudo dos símbolos sociais é imprescindível para entender o problema do tempo. O tempo, assim como outros símbolos sociais, desempenha simultaneamente várias funções, tais como a orientação, a regulação da conduta e da sensibilidade humana. Com relação às duas últimas funções, mesclam-se a regulação externa e a auto-regulação do indivíduo. Ainda segundo Elias (id.), o tempo expressa as intenções dos homens em determinar posições, durações de intervalos, ritmos de transformações etc., para servir a sua própria orientação. Não há dúvida de que a discussão apresentada por este autor nos traz luzes e subsídios teóricos sobre como pensar a categoria tempo enquanto invenção humana no desenrolar da História. ATIVIDADE 1. No início desta aula registramos como meta e objetivo a importância do estudo do tempo para o entendimento da História. Explique o que você entendeu por tempo. Por que podemos afirmar que o tempo é inventado? Analise a importância do calendário frente a isso. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A noção de tempo é uma criação humana. O tempo, ou seja, o dia e a noite, é fruto da Natureza, mas todo o resto – a divisão do tempo em horas, dias, semanas, meses, anos, séculos – é fruto da criação do homem. O dia clareia e anoitece, e só. Todo o resto é invenção humana. Norbert Elias chega a dizer que a noção de tempo é a maior invenção do homem. O calendário é, então, a forma que o homem inventou para tentar domesticar o tempo. Por meio deste, as diferentes sociedades se organizam e organizam suas populações, daí termos diferentes calendários no mundo, como o judaico, o cristão, o muçulmano etc. 46 CEDERJ AULA 4 CONFIGURANDO O MOSAICO TEÓRICO SOBRE A NOÇÃO DE TEMPO HISTÓRICO Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza. Ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega ela era vidência e êxtase (BOSI, 1979, p. 89). Os historiadores que nos trazem elucidações e análises fundamentais para o entendimento do conceito de tempo histórico, de estrutura, de processo histórico e de memória são, principalmente, Braudel e Le Goff. Para se entender a História, é fundamental a análise, a priori, sobre o que é o tempo histórico, a diferenciação entre o tempo breve ou curto e o tempo de longa duração, a conceituação de estrutura e conjuntura, dentre outros, para podermos, então, penetrar no drama da História. Precisamos apreender os tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que são passado, mas também estão presentes na nossa vida social. Fernand Braudel (1986), famoso historiador europeu, mostra-nos que o tempo se impõe como categoria central a todas as Ciências do Homem, logo, indubitavelmente, à História. Sendo assim, os estudos de Braudel sobre Os tempos da História tornaram-se material precioso de análise para a ciência histórica em geral. A história, dialética da duração, não é, por acaso à sua maneira, a explicação do social em toda a sua realidade e, portanto, também do atual? A sua lição vale neste aspecto como precaução contra o acontecimento: não pensar apenas no tempo breve, não acreditar que só os setores que fazem ruído são os mais autênticos, também os há silenciosos. Mas valerá a pena recordá-lo? (1978, p. 37). Assim sendo, Braudel fala-nos do tempo curto, da medida dos indivíduos, da vida cotidiana, de nossas ilusões, de nossas rápidas tomadas de consciência. Para ele, este seria o tempo do cronista, do jornalista. Portanto, há um tempo curto em todas as formas de vida econômica, social, literária, institucional, religiosa e mesmo geográfica e política: CEDERJ 47 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história tradicional atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habilitou-se há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto (1978, p. 44). Encontramos ainda, segundo Braudel, a histórica conjuntural baseada em ciclos e interciclos: Aparece uma nova forma de narrativa histórica, digamos o “recitativo” da conjuntura, do ciclo, até mesmo do “interciclo”, que propõe à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século e, no limite extremo, o meio século do ciclo clássico de Kondratieff (Id., p. 47). Braudel analisa ainda a história de longa ou mesmo de longuíssima duração, ou seja, a tendência secular. A ESTRUTURA muitas vezes está ligada à história econômica, às estabilidades econômicas (por exemplo, o predomínio das atividades agrícolas). Ela é caracterizada por uma estabilidade e uma permanência relativas. Já conjuntura se opõe ao conceito de estrutura e está mais ligada a movimento. Por ESTRUTURA, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é, sem dúvida, articulação, arquitetura, porém, mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações que atravancam a história, incomodam-se, portanto, comandam-lhe o escoamento (...) (Id., p. 49). Logo, percebemos que essas durações estão interligadas umas às outras e que a fragmentação das mesmas é uma criação humana. Em contato com outras ciências sociais, o historiador tende hoje a distinguir diferentes durações históricas. Existe um renascer do interesse pelo evento, embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta conduziu alguns historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto mediante o diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da existência de uma história “quase imóvel”. Mas pode existir uma história imóvel? E que relações tem a história com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? E não existirá também um movimento mais amplo de “recusa da história”? (LE GOFF, 1990, p. 8). 48 CEDERJ AULA 4 ATIVIDADES 2. Podemos perceber que o tempo possui diversas dimensões. Caracterize-as segundo o pensamento do historiador Braudel. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O tempo possui três dimensões importantes, segundo Braudel; são elas: o tempo curto, que é o tempo dos acontecimentos, do nosso dia-a-dia, do cotidiano etc.; o tempo de média duração, que diz respeito aos ciclos, ou interciclos históricos, e que se refere às décadas, no máximo a cinqüenta anos; por fim, o tempo de longa duração, ou longuíssima duração, que se refere aos séculos ou aos milênios, esse tempo secular ou milenar cuja passagem, às vezes, nos parece imperceptível. 3. Dando continuidade à questão anterior, tente exemplificar cada uma dessas dimensões do tempo histórico formulando “manchetes de jornal” sobre cada uma delas. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Tempo de curta duração: “O PREFEITO DA CIDADE INAUGUROU UMA NOVA PRAÇA NA ZONA OESTE.” Aqui, podemos perceber um simples acontecimento da vida cotidiana de uma cidade qualquer, vivido por qualquer morador da cidade como um fato. Tempo de média duração: “BRASIL ESTABELECE CONVÊNIO COM FIRMA MULTINACIONAL PARA EXPLORAÇÃO DE ESTANHO ATÉ 2030.” CEDERJ 49 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 Nesta manchete, podemos observar algo que vai durar mais tempo, mas que não passa de algumas décadas, não passa de meio século. Atinge as nossas vidas, mas às vezes não chegamos a vê-lo ocorrer em toda a sua dimensão, mas podemos até vê-lo... Tempo de longa duração: “OS BRASILEIROS CONTINUAM SE CASANDO NA IGREJA CATÓLICA.” Na longa duração, observamos o tempo das instituições como o casamento, o poder e influência da Igreja católica na vida dos brasileiros e do mundo etc. A partir deste ponto de nossa aula, abordaremos um outro pensador chamado Koselleck, que nos diz que o contexto de um acontecimento pode ampliar-se no que é anterior e posterior, porém isto está sempre aderido ao curso do tempo. Clareando a afirmação anterior, podemos dizer que a própria inter-subjetividade do contexto de um acontecimento está inserida numa série temporal. Cabe lembrar que é necessário diferenciar estruturas e acontecimentos, pois ambos possuem diversas extensões temporais no movimento histórico. Concebe-se, assim, estrutura como sendo aqueles contextos que não afloram no decurso estrito dos acontecimentos que já se tinham experimentado. Logo, as estruturas indicam maior continuidade, trocas, porém em prazos mais largos, em tempos mais longos. Os acontecimentos são produzidos ou sofridos por sujeitos determináveis. Já as estruturas são supra-individuais e inter-subjetivas. Não podem ser reduzidas a pessoas individuais e raramente a grupos determinados com exatidão. As estruturas mais ou menos permanentes são a largo prazo, condições para os possíveis acontecimentos. Entretanto, a “permanência” pode também converter-se historicamente em acontecimento. A representação das estruturas se aproxima mais da descrição; já a representação dos acontecimentos se aproxima mais da narração. Ambos os planos se relacionam mutuamente sem que um forme parte do outro. 50 CEDERJ 4 O antes e o depois dos acontecimentos são absolutamente AULA constitutivos, e a exatidão das determinações cronológicas é obviamente menos importante para poder descrever condições ou prazos longos. Além disso, Koselleck analisa as forças produtivas e as relações de produção como mutáveis a longo prazo e às vezes aos saltos, pois condicionam e originam conjuntamente o acontecimento social. ! As forças produtivas referem-se ao conjunto dos meios de produção. Estes são compostos pelos meios de trabalho e objetos de trabalho – terra, ferramentas, máquinas, matéria-prima, prédios, meios de transporte etc. – somados à força de trabalho – capacidade física e intelectual que o homem possui para o trabalho. Já as relações de produção são as que se estabelecem entre os homens no processo produtivo. Estas forças se estabelecem entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores ou produtores diretos (adaptado de FARIA et al., 1987). Em contrapartida, as formas inconscientes de pensamento podem ser guiadas por instituições ou criar suas próprias instituições, já que possibilitam ou limitam a experiência e a ação. Também, os costumes e os sistemas jurídicos regulam a médio ou longo prazo os decursos da vida social ou internacional. Para Koselleck, a história moderna não pode ser concebida senão graças à explicação recíproca dos acontecimentos mediante as estruturas e vice-versa. Seria, então, um erro dar maior importância aos acontecimentos dos que às estruturas. (...) clarear os planos temporais é uma prescrição métodica. Os acontecimentos e as estruturas são igualmente “abstratos” ou “concretos” para o conhecimento histórico, dependendo do plano temporal em que se mova. Então, estar a favor ou contra a realidade passada não é uma alternativa (KOSELLECK, 1993, p. 149). Portanto, ainda segundo Koselleck, qualquer acontecimento vive da ficção do fato, já que a realidade mesma é passado. A comprovação das fontes, por isso mesmo, exclui o que não se pode dizer, mas não diz o que se pode dizer. As dimensões temporais podem-se tematizar de forma diferente nos processos históricos e podem ocasionar, também, teorias da História que se podem diferenciar. CEDERJ 51 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 Desde a estrutura formal do tempo há que se perguntar, pelo contrário, em que plano ensina, pode ou deve ensinar a História: no plano dos contextos de ação a curto prazo e da moral referida a essas situações, para as quais a história proporciona um modelo de experiência. Ou na dimensão de acontecimentos a médio prazo, dos quais se pode extrapolar tendências do futuro. Neste caso a História informa sobre as condições do futuro possível, sem chegar a predestiná-lo. Ou a História refere-se ao plano da permanência metahistórica, que não é por isso a temporal (Id., p. 151). Outro teórico fundamental da ciência histórica é Jacques Le Goff. Particularmente seus estudos sobre o tempo e sua análise sobre a criação do calendário nas sociedades humanas nos interessam para esta aula. Matéria fundamental da história é o tempo; portanto, não é de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história. O instrumento principal da cronologia é o calendário, que vai muito além do âmbito do histórico, sendo mais que nada o quadro temporal do funcionamento da sociedade. O calendário revela o esforço realizado pelas sociedades humanas para domesticar o tempo natural (...). Hoje, a aplicação à história dos dados da filosofia, da ciência, da experiência individual e coletiva tende a introduzir, junto destes quadros mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. O tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a alimenta (LE GOFF, 1990, pp. 12-13). Para Le Goff (1989) o tempo é algo distante, mítico e poético, rebelde à inteligibilidade, ainda que afirme que a distinção entre passado e presente é essencial na concepção de tempo. Segundo o autor (1990), os hábitos de periodização da História levam a privilegiar as revoluções, guerras e mudanças de regime político; logo, privilegiam-se normalmente os acontecimentos. Em seu artigo “Calendário”, Le Goff dá importância à organização do tempo, relaciona o calendário ao tempo cósmico que regula duração e se impõe a todas as sociedades humanas. Porém, os homens captam, medem e transformam o calendário relacionando-o às suas estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais. A conquista do tempo através da medida é claramente recebida como um dos aspectos importantes do controle do universo pelo 52 CEDERJ 4 homem. De um modo não tão geral, observa-se como numa AULA sociedade a intervenção dos detentores do poder na medida do tempo é um elemento essencial do seu poder: o calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos de poder, por outro lado, apenas os detentores carismáticos do poder são senhores do calendário: reis, padres, revolucionários (Id., p. 260). O sistema dia/semana/mês/ano é comum a toda a Humanidade. O dia é a célula mínima do calendário. Porém, os sábios e governantes sentiram necessidade de dominar mais amplamente o tempo do calendário. Daí percebermos que o tempo do calendário é totalmente social e simultaneamente submetido aos ritmos do universo. Portanto, o calendário é, segundo Le Goff, um objeto científico e cultural. Nos diversos sistemas socioeconômicos e políticos, o controle do calendário torna mais fácil a manipulação de dois instrumentos essenciais do poder: o imposto, no caso do poder estatal, e os tributos, no caso do poder feudal. (...) A própria designação de “calendário” deriva do latim calendarium, que queria dizer “livro de contas”, porque os juros dos empréstimos eram pagos nas calandae, o primeiro dia dos meses romanos (LE GOFF, 1990, pp. 494). Para Le Goff, o calendário conduz a uma história cronológica dos acontecimentos. Os acontecimentos, por sua vez, agarram-se à data, ao ano e até mesmo ao mês e ao dia. O ano tornou-se portanto a medida da vida humana. Os demógrafos calculam em anos a esperança de vida. (...) O dia do aniversário natalício tornou-se uma ocorrência significativa na vida individual e familiar (Id., p. 509). O calendário sendo, então, um objeto eminentemente cultural, mistura cultura erudita e cultura popular. A reforma juliana, a reforma gregoriana, as reformas chinesas provam que uma reforma do calendário é possível e que pode fazer inegáveis progressos. Mas o calendário empenha os homens e a sociedade em todos os aspectos de sua vida e, em primeiro lugar, na sua história individual e coletiva. Uma reforma do calendário, para ser bem-sucedida, deve antes de mais respeitar a história, porque o calendário é a história (LE GOFF in ENCICLOPÉDIA, pp. 291). CEDERJ 53 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 Le Goff afirma que a História e o calendário possuem estreita ligação, tendo em vista principalmente a necessidade de datação inerente à própria História. A história e todos os atos e documentos necessitam de uma datação, “(...) põem o problema da data do início do tempo oficial. Este ponto fixo, a partir do qual se inicia a numeração dos anos, introduz no calendário um elemento linear. Este conduz a idéia de evolução positiva ou negativa: progresso ou decadência. O ponto fixo é a era, que é também o sistema de datação do tempo a partir de uma era dada e finalmente do próprio tempo. As eras são em geral acontecimentos considerados como fundadores, criadores, com um valor mais ou menos mágico. Até os revolucionários franceses consideravam o início da nova era que queriam instaurar, um ‘talismã’”. Tais acontecimentos são às vezes míticos, outras vezes históricos (LE GOFF, 1990, p. 522). ATIVIDADE 4. Explique o pensamento do historiador Jacques Le Goff quando afirma que o “calendário é um objeto cultural”. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Para Le Goff, o calendário é um objeto cultural, pois é algo criado pelos homens e, dependendo da cultura, diferente em seu funcionamento. Por isso, temos diversos calendários em diferentes sociedades, como a judaica, a muçulmana, a cristã etc. 54 CEDERJ 4 AULA RESUMO Nesta aula, você pôde estudar o tempo, tentar entendê-lo como objeto cultural e criação humana, variando, portanto, de civilização para civilização. Percebeu as diferentes dimensões temporais, ou seja, o tempo curto (o tempo que nós vivemos), o tempo médio (ligado a uma duração de décadas, de no máximo 50 anos) e o tempo longo (ligado às estruturas, aos séculos e milênios). Estudou também a diferença entre acontecimento, o fato e estrutura, que está associada ao tempo lento, a uma certa permanência. E, por fim, estudou a importância da criação do calendário, como um objeto cultural e social, uma tentativa de os homens tentarem “domesticar” o tempo segundo o historiador Le Goff. ATIVIDADE FINAL Pense na estrutura fundiária brasileira através da História do Brasil. Dê exemplos de acontecimentos e estruturas históricas que envolvam a questão da propriedade da terra em nosso país em diferentes dimensões do tempo histórico. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A terra é propriedade privada desde o tempo colonial, ou seja, desde a divisão da América portuguesa (o Brasil Colônia) em capitanias hereditárias e sesmarias a terra foi privatizada. Portanto, a propriedade da terra é uma estrutura de longa duração no Brasil. Já o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) surgiu dessa forma nos anos 1980; logo, pertence a um tempo de média duração, existe há mais ou menos duas décadas, por enquanto; se ele atravessar séculos, se tornará de longa duração. Já qualquer medida do atual governo em “assentar tantas famílias em quatro anos” está ligada às ações, acontecimentos e medidas do governo Lula, portanto, pertence a um tempo de curta duração, o tempo que vivemos, o tempo do imediato. CEDERJ 55 História na Educação 1 | O tempo histórico 1 INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, continuaremos com o tema do tempo histórico. Então, estudaremos uma teoria sobre o tempo globalizado, o tempo fundido ao espaço, o Tempo-Mundo e o Espaço-Mundo. Também veremos como se dá a construção da noção de tempo histórico em crianças e adolescentes e seus principais teóricos. Até lá! 56 CEDERJ AULA O tempo histórico 2 5 Meta da aula objetivos Analisar a noção de tempo e espaço globalizado e suas dimensões. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Explicar a presença de tempos hegemônicos e não-hegemônicos no cotidiano. • Relacionar tempo e espaço na era da globalização. • Entender o espaço como algo socialmente transformado pelo tempo. Pré-requisito Para melhor compreender os conteúdos desta aula, você deverá rever os conceitos da Aula 4. História na Educação 1 | O tempo histórico 2 Tempo Rei Não me iludo Tudo permanecerá do jeito que tem sido Transcorrendo, transformando, Tempo e espaço navegando todos os sentidos (...) (“Tempo Rei”, Gilberto Gil) INTRODUÇÃO A canção de Gilberto Gil, “Tempo Rei”, nos fala da passagem do tempo em nossas vidas (“Tempo e espaço navegando todos os sentidos”). Nesta aula, veremos como espaço e tempo se fundem, num tempo globalizado, e perceberemos como o espaço vai sendo modificado com o decorrer do tempo. CONTINUANDO A CONSTRUÇÃO DO MOSAICO TEÓRICO MILTON SANTOS Foi um dos mais renomados geógrafos brasileiros. Foi professor titular de Geografia Humana na Universidade de São Paulo e teve seu trabalho reconhecido em diversas partes do mundo. Dentre os temas de seus estudos, estava a problemática da urbanização dos países pobres, do chamado Terceiro Mundo, e a teoria e a metodologia geográficas, sobre as quais publicou diversos livros e artigos. Na busca de uma noção de tempo histórico que ultrapasse a clássica concepção de tempo analisada por Braudel e Le Goff, nos deparamos com uma noção de tempo e espaço da era da globalização desenvolvida por MILTON SANTOS (1997). Estamos estudando esse autor porque ele tenta entender como fica a questão do espaço e do tempo hoje em dia, ou seja, sob os efeitos da GLOBALIZAÇÃO. Esse professor e pesquisador se interessa em estudar a questão da globalização, especificamente a globalização do espaço nos dias de hoje. Para isso, acredita que a construção da realidade espacial tenha dependência estreita da técnica. Para ele, o espaço geográfico, que é chamado de Meio Técnico-científico, é a resposta geográfica ao processo GLOBALIZAÇÃO Milton Santos diz que a globalização constitui o estágio supremo da internacionalização, a amplificação em “sistemamundo” de todos os lugares e de todos os indivíduos, embora em graus diversos. Nesse sentido, com a unificação do planeta, a Terra torna-se um só e único “mundo”, e assiste-se a uma refundição da “totalidade-terra”. 58 CEDERJ de globalização. Nesse sentido, o autor estuda a questão do tempo hoje em dia, ou seja, o que é o tempo nesse processo de globalização. Afirma que vivemos a sensação de um presente que passa muito rápido, “quase fugindo de nós”, e, diz que a aceleração contemporânea é fruto de acelerações concomitantes, superpostas, por isso, temos tal sensação. A aceleração contemporânea impôs novos ritmos ao deslocamento dos corpos (por exemplo, o uso do avião), e ao transporte das idéias (por exemplo, o uso da internet) etc., também acabou acrescentando novos itens à História como: a explosão demográfica, a explosão do consumo, 5 a explosão urbana, o aumento do número de objetos e do arsenal de AULA palavras devido ao uso de novos materiais e de novas formas de energia na vida dos homens. Além disso, Santos (1997) afirma que há um relógio mundial, isto é, um tempo universal, instrumento de medida hegemônico, soberano. Para ele, a dimensão mundial sempre é determinada pelo mercado: o mercado econômico, os interesses econômicos das multinacionais, das instituições supranacionais, das organizações internacionais, dos grandes empresários e banqueiros determinam as ações nas sociedades. Esse tempo universal não respeita os tempos de cada indivíduo, ou de cada comunidade, por isso é despótico, ou seja, autoritário, e gera temporalidades hierárquicas, conflitantes muitas vezes. Isso é o que Milton Santos chama de Tempo-Mundo. Este é determinado por interesses econômicos e políticos. As temporalidades hegemônicas, ou seja, soberanas, “de quem manda”, são determinadas pelas ações dos agentes da economia, da política e da cultura, da sociedade da nossa época e que a distingue de outras. Já o tempo não-hegemônico ocorre em grupos e indivíduos que, embora vivam no mesmo tempo físico, possuem ritmos diferentes, tempos diferentes etc. Quanto ao espaço, ele também se adapta às novas transformações. Cabe afirmar que para Santos (1997) o espaço é dinâmico e unitário, pois reúne materialidade e ação humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos naturais ou fabricados e de sistemas de ações deliberadas ou não. A cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras, modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente (p. 49). O espaço é que reúne a todos, com suas diferentes possibilidades de usos diferenciados do território e do tempo. Por isso, não há espaço sem tempo, nem tempo sem espaço e sem homem. Essas noções se combinam e aparecem juntas porque o Homem vive no universo. As transformações atuais do espaço geográfico são determinadas pelo fenômeno de globalização, a qual gera a mundialização do espaço geográfico, cujas principais características são: a transformação dos territórios nacionais em espaços nacionais da economia internacional; o aumento das especializações na produção no nível do espaço; a concentração da produção em unidades menores; o papel da organização e o dos processos de regulação na constituição das regiões etc. CEDERJ 59 História na Educação 1 | O tempo histórico 2 Há lugares privilegiados, onde se instalam indústrias, gerando riquezas, empregos etc.; logo, esses espaços passam a ser hegemônicos, ou seja, são lugares onde se instalam as forças que regulam a ação em outros lugares, são lugares mais ricos e privilegiados, daí possuem força para mandar nos lugares mais pobres. Imagine. por exemplo, os países pobres e ricos. Quem manda em quem? A região Sul e Sudeste e o resto do Brasil. Quem toma a maioria das decisões no nosso país? Sabemos que são os países ricos e as regiões mais ricas de um país, como o Sudeste e o Sul do Brasil, que determinam as ações hegemônicas, ou seja, soberanas sobre as outras. As leis do mercado econômico ganham importância e mandam mais do que muitos Estados, fazendo com que alguns governos se tornem impotentes frente ao poder das grandes empresas multinacionais. A esfera natural é crescentemente substituída por uma esfera técnica, na cidade e no campo. O espaço se globaliza, mas não é mundial como um todo. Na verdade, quem se globaliza são as pessoas e os lugares. Para Santos, foi a técnica que levou à unificação do espaço e do tempo em termos globais. Pautaremos nossa análise nesta aula mais diretamente no que Santos analisa sobre tempo. Ele diz que o tempo é a base indispensável para que possamos compreender o espaço, e exemplifica isso na citação abaixo: Se as ações sobre um conjunto de objetos se dessem segundo tempos iguais não haveria história: o mundo seria imóvel. Mas, o mundo é móvel, em transformação permanente --- formando uma totalidade em processo de mudança para surgir amanhã como uma nova totalidade (Id., pp. 166-167). O pesquisador declara que há tempos hegemônicos e tempos nãohegemônicos, pois grupos, instituições e indivíduos convivem juntos, mas não praticam os mesmos tempos. Existe, também, um espaço hegemônico, que é o do indivíduo ou empresa que está lá em cima e manobra o nosso tempo. Os atores hegemônicos são as empresas ou Estados poderosos. O tempo do mundo é o tempo do ator hegemônico, segundo Santos (1997) (Id, p. 184). No espaço podemos perceber diversas ações de épocas diferentes. Se vamos andando por uma rua, por exemplo, podemos observar casas e edifícios de épocas diferentes, assim como estilos de arquitetura diferenciados, usos de materiais diferentes etc. 60 CEDERJ 5 Também, ao percorrer essas ruas, ou lugares, cada um de nós AULA percorre de um jeito. Os ritmos de cada um de nós e de cada empresa são diferentes. Porém, o que chamamos de tempo universal é o tempo abrangente dos outros tempos, determinado pela força dos agentes econômicos, políticos, culturais e sociais. Esses tempos hegemônicos são geralmente o tempo das grandes organizações e o tempo dos estados. Muitas vezes há conflito entre eles, assim como há conflito dos tempos dos atores hegemônicos e dos atores não-hegemônicos ou hegemonizados, ou seja, os que não mandam. As coisas materiais e não-materiais que fluem não têm a mesma velocidade. Por exemplo, uma carta não tem a mesma velocidade de um telegrama, ou de um e-mail. Os homens não percorrem as mesmas distâncias ao mesmo tempo. ATIVIDADE 1. Sua vida, certamente, está repleta de horários, datas e prazos, não é mesmo? É a hora marcada para o médico, é o dia da votação para presidente, deputados e senadores, é a hora do seu trabalho na empresa, é a hora de tomar o chopinho no final de semana. A partir desses exemplos, explique quais estão relacionados a tempos hegemônicos ou não-hegemônicos e por quê. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O tempo hegemônico é ditado pela ordem das instituições, do sistema político e econômico em que vivemos, como é o caso da hora para trabalhar e do dia da votação; já o tempo não-hegemônico ocorre com os grupos e indivíduos, que embora vivam no mesmo tempo físico, possuem ritmos, tempos diferentes etc., como é o exemplo do chopinho no final de semana. CEDERJ 61 História na Educação 1 | O tempo histórico 2 Voltando à nossa discussão teórica, de acordo com Santos, o espaço, ou melhor, a configuração territorial apresentada em forma de paisagem ou não, é a soma de pedaços de ações passadas ou presentes. Por exemplo, o exame atento de uma avenida pode revelar diferentes construções arquitetônicas e diversas formas de ocupação do espaço. Assim, podemos encontrar nela um conjunto de casas operárias do início do século XX próximo a uma casa com estilo arquitetônico da década de 1960 que, por sua vez, encontra-se ao lado de uma escultura de arte contemporânea. Dessa maneira, podemos entender a afirmação de Santos, pois as diversas ações de tempos diferentes, refletidas no espaço arquitetônico daquela rua, configuram uma determinada paisagem feita por diversas temporalidades. Ao apresentar sua análise, ele afirma que o tempo nos permite estabelecer diversas periodizações, dependendo de nossas escalas de observação. Finalizamos essas idéias sobre como entender o tempo e espaço juntos com uma citação de Santos: Temos então, de um lado, o tempo das ações e, de outro, o tempo da materialidade. É assim que penso na associação das noções de tempo e espaço. As ações são uma possibilidade vaga ou concreta oferecida por um momento preciso da história – as ações que eu posso realizar hoje não são as mesmas que eu poderia realizar há vinte anos, as ações são datadas (Id., p. 182). ATIVIDADE 2. Obtenha uma foto da Cinelândia, no Rio de Janeiro, ou da praça principal de sua cidade. Tente mostrar, com exemplos concretos nessa paisagem, a presença de diferentes temporalizações. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 62 CEDERJ 5 AULA COMENTÁRIO A cidade possui diferentes temporalizações numa só paisagem. Segundo Santos, o espaço, ou melhor, a configuração territorial apresentada em forma de paisagem ou não é a soma de pedaços de ações passadas ou presentes. Por exemplo: se estamos numa rua da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, ou de qualquer outra cidade do estado do Rio de Janeiro, podemos perceber diferentes tipos de construções de casas e prédios, assim como de tempos diversos em que foram construídos, com propósitos e estilos diferenciados. Logo, podemos observar numa mesma paisagem o espaço marcado por diferentes tempos históricos através de construções, estilos urbanísticos etc. No caso da Cinelândia, percebemos o prédio da Biblioteca Nacional com sua arquitetura grandiosa, o Teatro Municipal, o Bar Amarelinho, o moderno prédio da Justiça e outros bem mais modernos em sua arquitetura. ! O espaço socialmente transformado pelo tempo pode ser visto quando pegamos uma foto antiga, ou várias, de um determinado lugar e analisamos o que mudou (mudanças) e o que permaneceu (permanências) na paisagem desse território. Por exemplo, existem duas publicações do IplanRio sobre os Arcos da Carioca (Arcos da Lapa no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro) e da Praça XV (na estação das barcas, no centro do Rio de Janeiro), que mostram várias gravuras de diferentes séculos desses lugares sob o mesmo ângulo. Assim, ao analisá-las podemos perceber todas as construções novas, os prédios que foram derrubados, o que permaneceu de natureza naquele lugar etc. Também podemos fazer o mesmo trabalho se temos uma foto de nossa cidade (ou da praça principal de nossa cidade) de um ou dois séculos atrás e outra, atual. Com essas imagens, podemos desenvolver o mesmo trabalho identificando mudanças e permanências. CONCLUSÃO Entendemos que o objetivo da educação histórica é compreender mudanças e permanências, continuidades e descontinuidades, para que o aluno aprenda a captar e valorizar a diversidade e participe de forma mais crítica da construção da História. A preocupação com a construção, com a historicidade dos conceitos e com a contextualização temporal faz parte do procedimento histórico. CEDERJ 63 História na Educação 1 | O tempo histórico 2 Sendo assim, é fundamental no estudo e ensino da História que tenhamos entendido como ocorre a fusão desse tempo e espaço na época da globalização. Como podemos perceber em nossas vidas, em nosso cotidiano, há tempos hegemônicos e tempos não-hegemônicos. Nesses tempos hegemônicos nos deparamos com o poder do capital, do mercado econômico, das empresas multinacionais etc., determinando a vida dos indivíduos, os horários etc. Já os tempos não-hegemônicos se referem ao ritmo da vida das pessoas e comunidades, sem tanto determinismo das regras econômicas ou estatais. Portanto, um dos desafios do procedimento histórico em sala de aula é ensinar o domínio e a compreensão dos critérios de periodização histórica das múltiplas temporalidades das sociedades, tornando efetiva a aprendizagem da cronologia, além de trazer, para os dias de hoje, o entendimento da complexidade das temporalidades atuais no processo de globalização, onde espaço e tempo se fundem. RESUMO A cidade é a maior expressão da fusão do tempo e do espaço na época contemporânea. Devido ao processo de globalização no mundo atual, podemos perceber, também, como há tempos hegemônicos e não-hegemônicos, segundo Santos. Os tempos hegemônicos são determinados pelo mercado econômico ou pelos Estados. Uma paisagem é depositária de diferentes temporalidades em sua arquitetura ou urbanização etc. Por exemplo, podemos identificar diferentes épocas históricas numa mesma rua, ou lugar. Daí a importância de, em sala de aula, trabalharmos exemplos com imagens ou gravuras para que o aluno perceba essas diferentes temporalizações, contextualizando-as num atual processo de globalização. 64 CEDERJ AULA 5 ATIVIDADE FINAL Um professor mostra em sala de aula fotos do século XVIII de uma parte de sua cidade e outra foto atual, do mesmo lugar, sob o mesmo ângulo. Como você explicaria a questão do tempo e do espaço para seus alunos? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O professor deve diferenciar as paisagens antigas e atuais, identificando as mudanças e permanências nessa paisagem, as migalhas de tempos antigos registradas na arquitetura do tempo atual etc., as permanências existentes na foto mais nova e aquilo que já acabou, ou mudou. Assim, você deve chamar atenção para as ausências na foto antiga, como por exemplo, a falta da imagem de um carro. Deve mandar os alunos observarem a paisagem como um espaço socialmente transformado pelo tempo. Por exemplo: mostre que nas fotos antigas não havia tantas construções de casas, prédios ou ruas como nas fotos atuais. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, estudaremos como ocorre a construção da noção de tempo histórico na escola, principalmente na perspectiva de Piaget. Além disso, veremos como a noção espacial na criança se forma anteriormente à temporal. Também estudaremos mais detalhadamente como é importante que os alunos entendam o que é sucessão, duração e simultaneidade para o raciocínio histórico. Até lá! CEDERJ 65 AULA A noção de tempo em crianças e adolescentes 6 Meta da aula objetivos Apresentar como ocorre a construção da noção de tempo em crianças e adolescentes. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar as diferentes etapas do desenvolvimento infantil na construção da noção de tempo, segundo Piaget. • Analisar a importância da compreensão de algumas das principais dimensões temporais – sucessão, duração e simultaneidade – para o raciocínio histórico. Pré-requisitos Para melhor compreender os conteúdos desta aula, você deverá rever os conceitos sobre tempo e suas características das Aulas 4 e 5, tendo em vista que estes temas estão profundamente interligados. História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes INTRODUÇÃO Nesta aula, você estudará como ocorre a construção da noção de tempo em crianças e adolescentes. Você verá o que Piaget nos diz sobre as diferentes etapas do desenvolvimento infantil na construção dessa noção em crianças e adolescentes. Além disso, analisará a importância do domínio dessas noções temporais (sucessão, duração e simultaneidade) pela criança, para que, posteriormente, se desenvolva o raciocínio histórico propriamente dito. ENTENDENDO A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE TEMPO EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Piaget escreveu um livro todo dedicado à noção de tempo em crianças. Nele, escreve sobre a importância, para um indivíduo de compreender o tempo; esta compreensão seria uma possibilidade de libertar-se do “presente”. O entendimento dessa temporalidade, tanto para Piaget quanto para outros educadores, não é um dado natural e sim, uma construção. ! Jean Piaget (1896-1980) foi um pensador suíço de quem, com certeza, você já ouviu falar nas aulas de Fundamentos. Mas, vamos relembrar! Embora não fosse pedagogo, muito influenciou a Pedagogia do século XX. Suas principais obras são sobre a psicologia genética, que investiga o desenvolvimento cognitivo da criança desde o nascimento até a adolescência. Ele descreve a construção do real na criança nas fases do processo do desenvolvimento mental. Os estudos de Piaget são fundamentais para este tema, de modo especial os trabalhos que realizou sobre o desenvolvimento da inteligência e a gênese do conhecimento humano. Piaget analisa e procura entender como se dá o desenvolvimento da inteligência da criança, desde o período pré-operatório até a formação do pensamento abstrato, no qual o autor demonstra a complexidade da formação da noção de tempo no pensamento infantil. Maria Lúcia Aranha (1996) afirma que Piaget caracteriza esses estágios evolutivos da seguinte forma: Os quatro estágios (sensório-motor, intuitivo, das operações concretas e das operações abstratas) representam o desenvolvimento mental (inteligência e afetividade) desde o nascimento até a adolescência: a inteligência evolui da simples motricidade do 68 CEDERJ 6 bebê até o pensamento abstrato do adolescente; a afetividade AULA parte do egocentrismo infantil até atingir a reciprocidade e cooperação, típicas da vida adulta; a consciência moral resulta de uma evolução que parte da anomia (ausência de leis), passa pela heteronomia (aceitação da norma externa) até atingir a autonomia ou capacidade de autodeterminação, que indica a superação da moral infantil (ARANHA, 1996, p.185). Você deve estar se perguntando que estágios do desenvolvimento infantil são esses mencionados na citação. Vejamos! O estágio sensório-motor está ligado às primeiras experiências da criança de quando ela ainda era bebê. O tempo só existe enquanto o bebê estiver ocupado numa atividade, por exemplo mamando, engatinhando etc. Não existe antes nem depois para o bebê; é como se houvesse sempre um presente contínuo. Já o estágio intuitivo ou pré-operacional se caracteriza pelo fato de as primeiras intuições temporais serem centradas sobre alguma relação privilegiada, ligada ao egocentrismo. Cada movimento é percebido num tempo particular. Os momentos sucessivos do tempo ainda não se relacionam entre si. Para calcular o tempo, a criança se baseia na percepção espacial, fazendo associações do tipo: é mais velho quem é mais alto; correu mais quem demorou mais tempo. A criança ainda não coordena a duração e a sucessão; acaba agindo por tentativas de acerto e erro. Esses estágios que descrevemos anteriormente ocorrem até os nove e dez anos aproximadamente; a partir daí temos o estágio operatório, onde a criança passa a dominar o conjunto das relações de sucessão, simultaneidade e duração. A gênese do tempo operatório revela claramente a ligação entre o egocentrismo e a reversibilidade, numa relação inversa, ou seja, quanto mais a criança vence o primeiro, mais adquire a segunda. (ANTUNES et al., 1993, p.82). Ao entendermos esse funcionamento da mente infantil, podemos constatar o quanto é importante dinamizarmos o ensino das séries iniciais, para que a criança tenha a oportunidade de vivenciar experiências envolvendo as dimensões de sucessão, duração e de simultaneidade, para que a noção de continuidade do tempo possa ser melhor construída. Ainda segundo Piaget, a idéia de tempo tem por base “uma apreensão afetiva do mesmo”. Assim sendo, a criança confunde inicialmente o tempo psicológico com o tempo físico, e o fruto desse CEDERJ 69 História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes esforço se mede pelo paradoxal: “quanto mais rápido = mais tempo” (BATTRO, 1976, p. 203). Logo, quanto mais devagar, menos tempo. O tempo se confunde com a duração psicológica pertencentes às atitudes de expectativa, esforço e satisfação, ou seja, à atividade do próprio indivíduo. Como já falamos, Piaget afirma que a concepção de tempo não é absolutamente inata ao ser humano: ela é construída. Esta noção se desenvolve na criança por intermédio de experiências vividas de causa e efeito e, portanto, de sucessão. ATIVIDADE 1. Explique o que Piaget quis dizer quando nos falou que a idéia de tempo tem por base uma apreensão afetiva do mesmo. Dê um exemplo disso em sala de aula. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O tempo, para Piaget, está ligado à nossa afetividade e à nossa subjetividade. Assim, se tivermos prazer no que estamos fazendo, acharemos que o tempo passará mais rápido, e teremos a impressão de que ele será mais lento ao realizarmos uma tarefa sem termos vontade de cumpri-la. Logo, vemos que o tempo psicológico se confunde com o tempo físico na criança. Percebemos isso durante as atividades de aula que passamos para os alunos. Por exemplo: se fazemos um jogo, que é uma atividade lúdica, os alunos acham que o tempo passa rápido. Por outro lado, se vamos ler um texto e explicá-lo, a percepção deles, em geral, é de que a aula demora mais para acabar. Continuando nossa discussão teórica, ainda sobre Piaget, este nos afirma que a noção operatória de tempo está ligada simultaneamente com as de movimento e velocidade. O tempo operatório se caracteriza por ser um tempo homogêneo, contínuo e uniforme, pois corresponde a uma coordenação dos movimentos, e não apenas a uma ordenação própria de um movimento isolado. 70 CEDERJ 6 (...) existe um tempo operatório que consiste em relações de AULA sucessão e de duração, fundadas em operações análogas às operações lógicas (PIAGET, S/D, p.12). Piaget acredita que a duração e a extensão do tempo vão se construindo progressivamente através de um sistema de relação que os indivíduos fazem com o mundo. Desde o período sensório-motor se elaboram os processos cognitivos, indispensáveis à tomada de consciência do tempo. O tempo constitui com o espaço um todo inseparável. O tempo, para Piaget, está relacionado à memória ou a um processo causal complexo. A memória é uma reconstituição do passado. Mesmo na memória, o tempo está ligado à causalidade. Sendo assim, para captar o tempo, é necessário estabelecerem-se operações de ordem causal; logo, a ordem temporal tem caráter operatório. A forma mais elementar de o homem perceber o tempo é a organização temporal sensório-motora, desde o nascimento até a aparição da linguagem. No período sensório-motor não há ainda o esquema de um tempo homogêneo, ou seja, um tempo comum a todos os fenômenos. O progresso das noções temporais na criança, segundo Piaget, se dá em função da própria linguagem. É por isto que vemos crianças, por volta dos 4-5 anos, custarem a reconstituir uma série temporal simples no plano dos signos (e mesmo dos desenhos), e, no entanto, serem capazes de percebê-la e manejá-la praticamente sem dificuldade (id, p. 295). Aos cinco anos, a criança já percebe um “tempo local”, um tempo que ainda não é geral e ainda se confunde com a ordem espacial. É um tempo imediatista, sem velocidades. A criança até os sete-oito anos, após ter adotado uma ordem de seriação (em geral, a primeira que lhe vem à mente), tem grande dificuldade em adaptar uma nova organização a esta nova ordem. Ela ainda não consegue raciocinar sobre diversas possibilidades ao mesmo tempo e não dissocia as relações de sucessão temporal da sucessão espacial. Desde os oito anos, aproximadamente, a criança começa a reconstruir a ordem real e irreversível dos acontecimentos, devido à REVERSIBILIDADE operatória alcançada por sua mente. Percebemos, então, que a noção de tempo é uma reconstrução, uma questão de raciocínio e não de tempo! Somente aos sete-oito anos ou aos nove-dez anos, REVERSIBILIDADE Termo piagetiano referente à operação que deixa de ter um sentido unidirecional. A reversibilidade seria a capacidade de voltar, de retornar ao ponto de partida. Aparece, portanto, como uma propriedade das ações do sujeito, possível de se exercerem em pensamento ou interiormente. a criança realiza o término da noção operatória do tempo. CEDERJ 71 História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes Pelos nove-dez anos, a noção de tempo da criança é a de compreensão do conjunto das relações de simultaneidade, sucessão e intervalo. A criança dificilmente reconstitui a ordem de sucessão de uma seqüência de acontecimentos, mesmo que simples. O passado não pode ser resgatado, mas as relações temporais a esse passado podem ser reconstituídas; assim sendo, as relações temporais são reversíveis. O tempo do próprio pensamento é um tempo operatório qualitativo, ao passo que o tempo do relógio é um tempo operatório métrico, ou seja, que tem como ser medido, já o do pensamento não é passível de medição. A percepção do tempo supõe, totalmente, a intervenção de mecanismos análogos, semelhantes, referentes à inteligência da sucessão e da simultaneidade. Para percebermos a simultaneidade temos que reduzir ao mínimo a duração do deslocamento. Mesmo admitindo a simultaneidade da partida e da chegada, a criança não conclui pela igualdade das durações. Do ponto de vista métrico, as crianças avaliarão os caminhos percorridos pela ordem de sucessão espacial dos pontos de chegada, e não pela distância entre os pontos de partida e de chegada. Do ponto de vista qualitativo, elas admitirão que o caminho de ida é maior do que o de volta, que a subida é mais longa do que a descida etc. Em suma, o movimento é concebido egocentricamente, em função da ação própria e intencional, o que equivale a dizer que ele se caracteriza por uma centração privilegiada no ponto de chegada (id, p. 140). Para a criança mais jovem, o tempo físico é, segundo Piaget, igual a um tempo subjetivo projetado nas coisas, ou seja, um tempo egocêntrico. Antes dos sete-oito anos, os discursos infantis ligam, com efeito, os acontecimentos mediante vínculos essencialmente egocêntricos, isto é, entremeados do ponto de vista do interesse atual, mais do que da ordem real do tempo. Nesta fase, a criança, em geral, não compreende facilmente uma seriação de imagens, mesmo que simples. Por exemplo, a criança de dois a quatro anos, para contar um passeio ou outra coisa, estabelece um amontoado de detalhes justapostos, cada um se associa ao outro por pares ou pequenas seqüências, mas a ordem geral escapa à nossa mente. 72 CEDERJ 6 A ordem feita pela criança não é dedutiva, cronológica ou causal, AULA porém se cristaliza como se fosse a única possível. A seriação dos acontecimentos e a ordem de sucessão supõem operações reversíveis, tanto progressivas quanto regressivas; por isso, a criança só estabelece este tipo de raciocínio aos sete-oito anos, devido à falta de reversibilidade operatória na etapa anterior. Segundo Piaget (s/d), a noção de tempo surge e se desenvolve através de uma interiorização gradativa na criança, das experiências de causa e efeito vividas; logo, de sucessão. Sendo assim, a criança não percebe o tempo social, histórico, cronológico. O desenvolvimento desta noção está ligado à maturidade e experiências das crianças, só se concretizará por volta dos 10/12 anos. Primeiro, a criança deve superar o tempo pessoal, subjetivo, e dominar o tempo contínuo, objetivo e social. Somente depois, ela pode penetrar no tempo histórico. O tempo racional possui três atributos fundamentais: sua homogeneidade, sua continuidade e sua uniformidade. Este é o tempo do relógio. Percebemos então que, para Piaget, a noção de tempo é construída por meio do desenvolvimento, da maturidade e da vivência da criança. Primeiramente, ela percebe o tempo local, pessoal e subjetivo. Somente por volta dos nove-dez anos, a criança percebe a simultaneidade, a sucessão e a duração dos acontecimentos. Essas noções são fundamentais para o entendimento da noção de tempo histórico, que será apreendida a partir dos 10-12 anos. ATIVIDADE 2. Imagine e descreva uma atividade que você, como professor das séries iniciais, possa fazer com seus alunos em sala para tornar mais concreta a vivência da sua noção temporal de sucessão. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ CEDERJ 73 História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Uma atividade muito conhecida e eficaz é o trabalho com as linhas de tempo da própria história de vida da criança. Você pode optar por trabalhar com uma linha de tempo que retrate os acontecimentos mais marcantes na história de vida de cada aluno. Normalmente, trabalha-se com retratos ou desenhos que os alunos devem organizar seqüencialmente na linha de tempo, nomeando cada imagem. Cada aluno se conscientizará da sua própria história. Além disso, você começará a trabalhar com ele a noção de sucessão de fatos e acontecimentos, o que, em seguida, permitirá fazer uma comparação com a história das sociedades. Assim como a história pessoal dos alunos, a história das sociedades possui uma seqüência de acontecimentos e fatos. Também é importante mostrar que enquanto um dos seus alunos fazia a primeira comunhão, por exemplo, o outro entrava numa escolinha de futebol, e assim por diante. Ao fazer este paralelo, estamos mostrando que há acontecimentos simultâneos, noção fundamental para a compreensão de conjunturas simultâneas no ensino de História. A IMPORTÂNCIA DOS CONCEITOS DE SUCESSÃO, DURAÇÃO E SIMULTANEIDADE PARA O ENSINO DE HISTÓRIA A compreensão do conceito de sucessão proporciona ao indivíduo o entendimento da cronologia, ou seja, a sucessão dos acontecimentos e épocas históricas. A interiorização do conceito de simultaneidade, pela criança, proporciona o entendimento dos múltiplos acontecimentos e/ou conjunturas simultâneas inerentes ao estudo da História. Já a apreensão do conceito de duração nos permite a compreensão das épocas históricas, que possuem um início, um intervalo de tempo e um fim. Toda época histórica caracteriza-se por determinados aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos comuns. Daí, podermos determinar seu início e seu fim, aproximadamente, quando tais características se modificam. 74 CEDERJ AULA 6 CONCLUSÃO Compreender o tempo é essencialmente dar provas de reversibilidade. Nas sociedades, a distinção entre presente e passado (e futuro) implica essa escalada na memória e essa libertação do presente que pressupõem a educação e, para além disso, a instituição duma memória coletiva, a par da memória individual. Com efeito, a grande diferença é que a criança ⎯ não obstante as pressões do ambiente exterior ⎯ forma em grande parte a sua memória pessoal, enquanto que a memória social histórica recebe os seus dados da tradição e do ensino, aproximando-se porém do passado coletivo (...) (LE GOFF, in Einaudi, V. 1, p. 194-5). O trecho anterior do historiador Le Goff nos “fala” da importância de compreender o tempo, que é essencialmente dar provas de reversibilidade; logo nos remete a uma das grandes contribuições de Piaget, que foi exatamente provar que a reversibilidade temporal é uma construção. Portanto, podemos constatar o quanto, desde as séries iniciais, o ensino de História tem papel fundamental a desempenhar, já que é por meio da tradição e do ensino que a criança vai formar sua memória social histórica. Daí, a importância de o professor de História conhecer as principais dimensões do tempo histórico, para trabalhar as diferentes temporalidades em sala de aula. O trabalho do professor deve estar centrado nas quatro séries iniciais, principalmente na passagem do tempo intuitivo ao operatório. Também é fundamental que o professor conheça o pensamento de Piaget, que nos mostrou as diferentes etapas da construção do real na criança e, particularmente, a construção da noção de tempo. Essas noções são elaboradas no decorrer de sua vida e dependem de experiências culturais. Como pudemos estudar e constatar, a noção de tempo é a mais difícil e abstrata para a criança. A criança passa pelo estágio sensóriomotor e pelo intuitivo para somente alcançar a noção operatória do tempo por volta dos nove-dez anos. CEDERJ 75 História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes RESUMO Para ensinar, é importante conhecer as etapas do desenvolvimento cognitivo da criança. Particularmente para o professor de História, é fundamental que ele entenda como se dá a construção da noção de tempo em crianças e adolescentes. Para isto, o pensamento de Piaget e seus estudos é uma importante ferramenta. Para este pensador, a criança só finaliza a construção da noção operatória de tempo por volta dos nove-dez anos e a noção de tempo histórico por volta dos dez-doze anos. As noções temporais são construções. Nenhum ser humano nasce com a perspectiva temporal; a reversibilidade temporal é construída. Sabemos que, para estudar o passado, é importante dominar-se as principais características do tempo: sucessão, duração e simultaneidade. Compreendendo a noção de sucessão ou ordenação, o aluno entenderá a cronologia na História, ou seja, a sucessão de fatos; compreendendo a noção de duração, ele entenderá as diferentes épocas históricas; por fim, alcançando a noção de simultaneidade, ele compreenderá as conjunturas simultâneas, paralelas, em diferentes espaços, mas no mesmo tempo histórico. ATIVIDADE FINAL (Atividade parcialmente baseada na proposta encontrada no livro de Schmidt & Cainelli, 2004, p.85-6) Texto 1 Entrevistador (E) – Ivan, você pode contar pra mim a história do Descobrimento do Brasil, o que você sabe? Ivan – Ah, é o Pedro Álvares Cabral, estava navegando no mar. Era barco à vela. Daí o vento, o vento estava para um lado... depois o vento foi para o outro. Ele estava indo descobrir outro país, não sei qual é. Aí o vento bateu para o outro lado e ele foi para o Brasil e quando ele chegou no Brasil só tinha índio, não tinha nenhuma pessoa assim, só índio. 76 CEDERJ 6 AULA E – Quando isso aconteceu? I – Ah, eu não sei. E – Em 1500. Está bem? I – Quando aconteceu o descobrimento do Brasil? 1500. E – Seu pai era vivo quando isso aconteceu? I – Não. E – Por quê? I – Ah, porque isso era muito antigamente, nem acho que meu avô existia. E – O que é muito antigamente? I – Ah, faz muitos anos, faz muitos anos que isso aconteceu. E – Quanto você acha muitos anos? I – Faz 400 e alguns anos. E – 400 é muito tempo? I – É. E – Seu avô era vivo na época do Descobrimento do Brasil? I – Meu avô? Acho... talvez sim. E – Por que você acha que sim? I – Porque meu avô faz muito tempo que ele nasceu e que ele viveu. E – E seu bisavô era vivo na época do Descobrimento do Brasil? I – Meu bisavô era. E – Por quê? I – Porque realmente faz muito tempo que ele nasceu e que ele viveu e também faz muito tempo que aconteceu isso, o Descobrimento. OLIVEIRA, Sandra Regina de. A noção de tempo histórico na criança: um estudo sobre a noção do passado, as idéias espontâneas relativas à história da civilização e a relatividade dos conhecimentos e julgamentos históricos em crianças de 7 a 10 anos. Marília, 2000. p.121 (Dissertação de mestrado – Universidade do Estado de São Paulo). Com base na leitura do depoimento acima, responda: CEDERJ 77 História na Educação 1 | A noção de tempo em crianças e adolescentes Quais são os elementos da temporalidade histórica da criança presentes no texto da entrevista? Como a criança aborda o passado? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Percebe-se, na resposta da criança, uma indefinição das diferentes dimensões do tempo, o tempo curto e o tempo longo – explicado nas duas aulas anteriores (4 e 5). Para a criança, antigamente é o mesmo tempo do bisavô, do avô, talvez, e do Descobrimento do Brasil. Por outro lado, ela apresenta a noção operatória de sucessão, pois sabe que o pai é mais velho, depois o avô e, por fim, o bisavô é o mais velho de todos. Logo, é o bisavô o mais próximo do tempo do Descobrimento. Mas, ela ainda não distingue a diferenciação do tempo histórico secular (medida própria da História) do tempo curto (imediato e do nosso cotidiano). Cabe lembrar que, como foi dito no nosso texto anterior, desde os oito anos, a criança começa a reconstruir a ordem real e irreversível dos acontecimentos, devido à reversibilidade operatória alcançada por sua mente; no entanto, para Piaget, ela só vai compreender o tempo histórico por volta dos dez-doze anos. A autora da entrevista analisada não cita a idade da criança (Ivan), mas no título de sua tese podemos verificar que ela estuda crianças de sete a dez anos. Logo, Ivan ainda não teria a noção histórica de tempo estruturada de fato, apenas estaria construindo as relações operatórias do tempo, sem dominá-las totalmente. Não demonstra dominar ainda a dimensão da duração e da simultaneidade. 78 CEDERJ AULA 6 LEITURA RECOMENDADA O livro Estudos Sociais: Teoria e Prática de Aracy do Rego Antunes, Heloísa Fesch Menandro e Tomoko Iyda Paganelli, que está nas nossas referências, é muito importante para orientar o trabalho de professores das quatro séries iniciais na área de História e Geografia. É um livro feito por professoras para professores e apresenta tanto questões teóricas pertinentes quanto questões metodológicas, como fazer, que propostas utilizar etc. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, estudaremos como se dá a construção da noção de tempo histórico na escola. Veremos que metodologias podem facilitar a construção da noção de tempo histórico em sala de aula e o que nos dizem alguns especialistas. CEDERJ 79 AULA Construindo a noção de espaço e tempo na escola 7 Meta da aula objetivos Analisar a construção da noção de espaço e tempo na escola, particularmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Analisar a possibilidade do ensino de História nas séries iniciais. • Compreender as diferentes etapas da construção da noção de espaço e de tempo na escola. • Comparar e analisar as reflexões de diferentes autores sobre a construção da noção de tempo histórico na escola. • Entender o espaço como algo transformado socialmente pelo tempo. • Compreender os diferentes usos sociais do espaço. • Identificar propostas metodológicas que facilitem a construção da noção de espaço e tempo na sala de aula. Pré-requisitos Para melhor compreender os conteúdos desta aula, você deverá rever os conceitos das Aulas 4, 5 e, principalmente, da Aula 6, tendo em vista que esses temas estão profundamente interligados. Relembre o que Piaget, Braudel, Le Goff e Milton Santos nos falam sobre o tempo. História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola INTRODUÇÃO Nesta aula, estudaremos como se dá a construção da noção de espaço e de tempo em crianças e adolescentes na escola, segundo diferentes autores. Além disso, estudaremos que metodologias podem facilitar a construção da noção de espaço e tempo em sala de aula. É POSSÍVEL ENSINAR HISTÓRIA ANTES DOS 10-12 ANOS? De fato, parece ser difícil admitir que a História tenha um caráter mais abstrato do que outras disciplinas constantes do currículo do Ensino Básico. A necessidade de dominar conceitos abstratos, como tempo e espaço, usar linguagem específica ou vulgar com significações diferentes do contexto quotidiano do aluno, levanta ao professor problemas de adequação, por vezes difíceis (FELGUEIRAS, 1994, p. 40). Será possível ensinar História antes do pensamento formal se dar por completo? Concordamos com Felgueiras quando afirma que, numa perspectiva histórica mais humana, que procure tornar o pensamento dos alunos mais independente e refletido e onde se usem métodos mais coerentes com esta postura, os resultados podem ser diferentes. Ainda segundo Felgueiras, a noção de tempo só é aprendida de fato por volta dos 13 anos, e apenas por parte dos adolescentes. Portanto, nas séries iniciais, há que se ter muito cuidado ao trabalhar e exigir dos alunos noções temporais. Mesmo na 5ª série de escolas regulares de classe média ou alta, os alunos têm, em média, 10-11 anos. Decorre daí o fato de, muitas vezes, esbarrarmos em tantas dificuldades para a compreensão abstrata de tempo na escola e para o entendimento da História. A cronologia e a periodização apresentam maior dificuldade de apreensão por parte dos alunos, nos sistemas de periodização, mas a idéia de uma coerência e da sucessão dos períodos, fatos e conseqüências, marcam as noções de tempo e história nas escolas. Assim sendo, essa definição aritmética com um tempo linear da ciência histórica constitui um equívoco e um atraso na construção do tempo na escola de educação básica. Elza Nadai e Circe Bittencourt (1988) são autoras fundamentais relacionadas à reflexão sobre ensino de História. Elas tentam pensar possibilidades de ampliar a atuação do professor de História em relação às dimensões temporais e apresentam como sugestão para quando 82 CEDERJ 7 iniciarmos o trabalho sobre as possibilidades concretas de os alunos AULA compreenderem o tempo histórico na 5a série, informarmo-nos sobre como o aluno pensa o tempo. Entendemos que isto também poderia ser feito com alunos menores, de 1a a 4a séries. Afirmam que mais importante do que a faixa etária dos alunos na verificação da maior aprendizagem sobre a localização do tempo é o trabalho da escola. As autoras reafirmam a possibilidade real de se ensinar a noção de tempo histórico a alunos com 10-11 anos, como podemos observar no trecho a seguir: A pesquisa realizada é limitada quanto às variáveis com que trabalhou, mas reforça a convicção das possibilidades do ensino de história a partir das séries iniciais do 1o grau. Os alunos percebem as durações, a simultaneidade, a sucessão, assim como as permanências e mudanças, independentemente de saber, com exatidão, a localização nos séculos (Id, p. 86). Sabemos que os conceitos de tempo e espaço não estão entre as preocupações da maioria dos professores. Muitas vezes, o tempo acaba sendo tratado de forma linear, sempre confundido com a ordenação cronológica. Logo, muitos professores ainda vinculam a noção de tempo, quase sempre, ao tempo físico (hora, mês, ano), geralmente ao estudo dos meses, dias da semana, ou ao clima. A reversibilidade temporal é uma percepção abstrata e difícil, mesmo para os alunos das séries finais do 1o ciclo do Ensino Fundamental, pois falta-lhe o domínio das medidas de tempo e também de espaço. Em virtude disso, é fundamental relacionarmos tais noções com o conhecimento que a criança já possui de tempo e espaço; além disso, será útil conhecermos os níveis operatórios determinados por Piaget. Entendemos, também, que a noção de tempo histórico pode ser aprendida pelos alunos antes dos 10-12, anos caso se estabeleçam atividades lúdicas em sala de aula que permitam ao educando vivenciar o conhecimento, como apresentaremos no final desta aula. CEDERJ 83 História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola ORGANIZANDO AS DIMENSÕES TEMPORAIS NA SALA DE AULA Devemos fazer os alunos perceberem que o conceito de tempo apresenta duas dimensões fundamentais: o tempo físico e o tempo histórico e social. Como já estudamos na Aula 6, o tempo físico nos faz perceber o tempo como um continuum, englobando as noções de ordenação, duração e simultaneidade, para se entender a relação antes/depois. Por meio desse aprendizado importante, podemos perceber toda a contagem do tempo como algo contínuo e infinito (calendários, ciclos das estações etc.). A noção de duração é construída a partir de uma situação na qual é percebido o intervalo de tempo entre o início e o fim de uma atividade. Isso permite o entendimento das fases, épocas e períodos históricos. Já a compreensão da simultaneidade leva a uma percepção melhor dos contextos históricos, das conjunturas internas e externas como estudamos na Aula 6, você se lembra? Por outro lado, o conceito de tempo histórico e social engloba esses contextos históricos citados, nos quais cada sociedade imprime à sua época características próprias a partir de suas relações sociais. Você já viu, também, que a época histórica comporta aspectos políticos, sociais, ideológicos, econômicos e culturais próprios, ou seja, expressa a maneira de viver de um povo ou de vários povos. Nesse sentido, ao estudá-la e entendê-la, percebemos as mudanças e permanências numa sociedade. O TRABALHO NA SALA DE AULA... E nossos alunos, sejam crianças ou adolescentes, como vivenciam e percebem esse espaço-tempo em nossa cidade, em nossas escolas, em nossas aulas de História? Como percebem esse espaço transformado socialmente pelo tempo? Quais são suas mudanças e permanências? Como ordenam os acontecimentos? Como percebem o que é simultâneo? Já afirmamos várias vezes, nessas últimas aulas sobre tempo histórico, que a noção da reversibilidade em relação à noção de tempo é algo fundamental para o entendimento dos processos históricos. Mas, e quando o aluno não consegue resolver essas questões? 84 CEDERJ 7 Partindo do pressuposto de que espaço e tempo formam um todo AULA inseparável ao tratarmos das questões de tempo, primeiramente temos de nos certificar se o aluno já adquiriu as noções de espaço. Lembre-se de que Piaget afirma que, primeiro, a criança adquire as noções espaciais, para em seguida adquirir as temporais. DESENVOLVENDO AS NOÇÕES ESPACIAIS NA ESCOLA Para desenvolver as noções espaciais, é importante que o professor conheça as etapas de construção do conceito de espaço. Ao entrar na escola com 6-7 anos, a criança já conhece alguma coisa sobre localização espacial. É importante que na escola ela possa ampliar essas noções. Na escola a criança começa a trabalhar com relações espaciais e estabelecer reciprocidade no período dos 7 aos 11-12 anos em etapas sucessivas. As primeiras noções de espaço – próximo, longe, dentro, fora, em cima, embaixo – são adquiridas por meio do tato, da visão e dos próprios movimentos das pessoas. As relações topológicas são as de vizinhança, de ordem espacial, de dentro-fora, de contínuo. Essas relações não se alteram numa transformação da forma. São as primeiras a serem construídas pelas crianças. Em seguida, principalmente com o desenvolvimento da linguagem, começa a ser construída a noção de espaço representativo. Nessa, a criança consegue compreender as ações das pessoas sobre o espaço e tem condições de representá-lo, falando sobre ele, desenhando-o etc. Mais tarde, consegue localizar-se, coordenando diferentes pontos de vista. Nesse momento, se percebe à direita ou à esquerda de alguém ou de algum objeto. As relações espaciais projetivas (direita, esquerda) demarcam um primeiro nível de alfabetismo espacial. Essas relações variam segundo o ponto de vista do observador ou as referências adotadas. Inicialmente, a criança tem a si própria como ponto de referência. As relações espaciais projetivas de reversibilidade são mais complexas e exigem maior abstração da criança. A noção da reversibilidade em relação à noção de tempo é também algo fundamental para o entendimento dos processos históricos. CEDERJ 85 História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola Por fim, as relações espaciais euclidianas ocorrem quando a criança localiza objetos ou pessoas, considerando um sistema de referência fixo, e usa medidas de distância. Este raciocínio é mais complexo e, em geral, é atingido pelas crianças aos 9-10 anos. A construção da noção de localização espacial inclui operar com todas essas relações espaciais: topológicas (vizinhança, ordem espacial, dentro/fora, contínuo), projetivas (em cima, embaixo, na frente, atrás, direita e esquerda) e euclidianas (localização de objetos num sistema de referências fixo – coordenadas geográficas) a partir de uma e/ou várias referências. Para que todas essas noções espaciais possam ser desenvolvidas em sala de aula, o professor deve utilizar desenhos feitos pelos alunos, gravuras, mapas e plantas de espaços conhecidos. O mapa, por exemplo, é um instrumento muito comum, usado na escola para orientar, localizar e informar. O mapa é, portanto, uma representação gráfica, ou seja, um desenho do mundo real, que reproduz a realidade a partir de símbolos. Somente após essa etapa – a construção da noção de localização espacial pelo uso do mapa –, o aluno se transforma num usuário de mapas. Passa, então, a ler e interpretar mapas elaborados por outras pessoas, a ler e interpretar símbolos criados pelos outros, torna-se, enfim, um mapeador. A fim de que o aluno, progressivamente, adquira as noções básicas de representação, – tais como legenda, escala, limites e fronteiras –, deverão ser feitas muitas atividades de criação de mapas e plantas de espaços conhecidos. ATIVIDADE 1. Imagine como o professor poderia trabalhar atividades lúdicas em sala de aula para desenvolver as noções espaciais das crianças: topológicas, projetivas e euclidianas. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ 86 CEDERJ 7 AULA ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Relações topológicas: você poderia fazer em sala de aula jogos, como O Coelho na Toca, em que você trabalha com a noção de que há sempre um número menor de tocas e um número maior de crianças para entrar nelas. Se você não conhece essa brincadeira, utilize outro jogo em que você trabalhe as noções de dentro e fora, por exemplo. Relações projetivas e euclidianas podem ser desenvolvidas em jogos como A Busca do Tesouro. A brincadeira consiste em achar um tesouro escondido seguindo um trajeto previamente determinado por pistas, que trabalhem noções de perto, longe, à esquerda, à direita etc. Nesse jogo, a criança trabalha com as três noções espaciais explicadas no nosso texto. Seguindo as pistas (entre, perto, longe, dentro, ao lado), ela trabalha as relações topológicas. Mas, quando você dificulta o trajeto e utiliza à frente, à direita, por exemplo, ela terá de lidar com relações espaciais projetivas. E quando você utiliza medidas como dar tantos passos, por exemplo, a criança terá de operar com relações euclidianas. O ESPAÇO TRANSFORMADO PELO TEMPO Paralelamente à percepção da organização espacial ocorre a identificação das relações sociais que estruturam o espaço ao longo do tempo. Essa estruturação nos mostra como cada sociedade imprime à sua época características próprias, permitindo a análise das permanências e mudanças. A percepção de permanências e mudanças demarca um primeiro nível de percepção espaço-temporal. A compreensão do espaço através do tempo passa também pelo entendimento de sua organização, isto é, pelo reconhecimento dos diferentes usos sociais do espaço e de sua transformação através do tempo – como formas de organização CEDERJ 87 História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola espaço-temporal ancoradas na própria estrutura da sociedade. Com efeito, numa sociedade que se organiza na base de relações assimétricas entre grupos e classes, encontramos uma organização do espaço que responde à existência diferenciada de tais grupos sociais. Esse princípio classificador do espaço vigorou em tempos passados e ainda vigora na atual utilização dos espaços públicos. Por exemplo, na Assembléia dos Estados Gerais, no Antigo Regime na França, a posição nas ordens ou estamentos – clero, nobreza e Terceiro Estado – era especificamente determinada. Também as cidades exibem as marcas dessas contradições e da divisão social do espaço, considerando-se as restritas áreas que contam com água, esgoto, asfalto e transporte, em contraste com as regiões carentes desses elementos. Para que o cidadão possa situar-se dentro da rede de relações sociais locais, regionais e, até mesmo, nacionais e internacionais, precisará compreender não só essa organização, como também seu papel nessas relações. Nesse sentido, ser alfabetizado, na noção de espaço, significa poder transformar o caos da realidade num complexo inteligível. ATIVIDADE 2. Esse princípio classificador do espaço vigorou em tempos passados e ainda vigora na atual utilização dos espaços públicos. Dê um exemplo atual, no qual possamos perceber esta afirmação. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Você pode ter pensado em locais relacionados à prática de esportes e logo se lembrou dos estádios de futebol. Estes locais, por oferecerem maior ou menor conforto e visibilidade, demarcam socialmente os grupos ou classes que freqüentam as cadeiras numeradas, as arquibancadas, as laterais e os fundos. 88 CEDERJ AULA 7 NOÇÕES SOBRE RELAÇÃO SOCIOESPAÇO-TEMPORAL A percepção de permanências e mudanças demonstra as relações socioespaço-temporais. Além disso, já abordamos anteriormente o uso social do espaço e de suas transformações através do tempo como formas de organização espaço-temporal relacionadas à existência de grupos sociais diferenciados, demarcando um segundo nível de alfabetismo que inclui a estruturação do espaço em sua dimensão social (socioespaço-temporal). NOÇÕES SOBRE TEMPO Paralelamente ao que foi dito anteriomente, a noção de tempo – categoria que se desenvolve muito articulada à de espaço – é construída mais lentamente, já que é mais abstrata. O conceito de tempo apresenta duas dimensões fundamentais: o tempo físico e o tempo histórico-social. Você já viu que, segundo Piaget, a criança deve superar o tempo pessoal, subjetivo, e dominar o tempo contínuo, objetivo e social, para, posteriormente, poder penetrar no tempo histórico. Sendo assim, ela deve adquirir, inicialmente, a noção de tempo físico, que a faz perceber o tempo como um continuum, que tem um antes e um depois, englobando as noções de ordenação, duração e simultaneidade. Por intermédio desse aprendizado importante, pode perceber a contagem do tempo dos calendários, ciclos das estações etc., como algo contínuo e infinito. Essa noção operatória do tempo (compreensão do conjunto das relações de sucessão, duração e simultaneidade), que envolve um conceito de tempo homogêneo, contínuo e uniforme, é algo da qual a criança se apropria por volta dos 7/8 anos ou 9/10 anos. O tempo histórico-social, por sua vez, envolve um primeiro nível relacionado ao tempo físico, que nos leva à elaboração de cronologia, contemplado por meio de noções de ordenação e de simultaneidade. Segundo Piaget, após a aquisição da noção de tempo físico, a criança constrói a noção de tempo histórico-social, por volta dos 10-12 anos, evidenciando-se aí uma transição e um amadurecimento da idéia abstrata de tempo para a concepção de tempo histórico. O entendimento do tempo histórico e social refere-se aos contextos de época, ou seja, ao tempo como fruto da construção social daquilo que, a cada momento, as sociedades humanas imprimem à época em que CEDERJ 89 História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola vivem, a partir de suas relações sociais. Seu entendimento possibilitará a compreensão das diferenças e semelhanças, permanências e mudanças no decorrer do tempo. Ao atingir essa fase, nosso aluno demonstra uma alfabetização temporal bem mais avançada. Como você já estudou, o tempo curto é aquele, segundo Braudel, relativo à vida cotidiana, daí ser mais fácil de ser apreendido pelos alunos. ATIVIDADE 3. Pense como você poderia trabalhar em sala de aula os conceitos de tempo curto e tempo longo. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Na sala de aula, o professor pode, por exemplo, mostrar quatro fotografias, duas delas com cenas bem contemporâneas e duas com cenas antigas (cenas da escravidão, por exemplo), e pedir que os alunos identifiquem-nas com duas outras gravuras de uma cidade nos dias de hoje e da mesma cidade antigamente. CONCLUSÃO Concordamos que é possível ensinar História para crianças. Basta então que pensemos em metodologias adequadas para desenvolver tais noções espaço-temporais na escola. É necessário que o professor observe como os alunos expressam conceitos ou idéias sobre o tempo/espaço em seus variados aspectos. A partir daí, a organização de várias atividades poderá instigar uma percepção mais completa. Nesse caso, é importante criar, com freqüência, situações para colocá-los em contato com a reconstituição do passado. Mostrar gravuras antigas, estimular relatos orais de pessoas que viveram em outras épocas, chamar a atenção sobre as coisas que ainda existem no seu meio e que pertencem ao passado são maneiras de o aluno compreender as diferenças entre uma época e outra. 90 CEDERJ 7 Muitas vezes, eles até constatam essas diferenças, mas não as AULA relacionam com as mudanças provocadas por novas demandas que surgem com o tempo. Isso, contudo, pode ser superado por meio de atividades que ajudem os alunos a refletir sobre o que mudou (mudanças) e o que ainda existe no espaço e no tempo (permanências) em que eles vivem. Compreender a si mesmo como ser social num tempo e num espaço determinados é poder entender-se como parte de um grupo, ao mesmo tempo único e diverso, regulado por direitos e deveres que constituem o tecido da cidadania. No Brasil, o exercício desses direitos é ainda precário, e apenas nos últimos anos estamos descobrindo que cidadania não implica apenas a obrigação de votar, e sim a responsabilidade mediante vários sentidos da vida em sociedade. ATIVIDADE FINAL Imagine um professor trabalhando em sala as gravuras de uma cidade antigamente (a Lapa do século XVII) e de uma atual, (Lapa de hoje) identificando a seqüência das épocas com seus alunos. Explique que aspectos conceituais são relevantes para ele trabalhar com seus alunos e, desse modo, ampliar essa alfabetização espaço-temporal. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ CEDERJ 91 História na Educação 1 | Construindo a noção de espaço e tempo na escola RESPOSTA COMENTADA É preciso observar se seus alunos fazem essa relação de seqüência a partir do que existe nas gravuras, identificando, por exemplo, os bondes como elemento do passado e os automóveis como uma característica do presente. A aquisição dessas noções só é possível quando o sujeito é capaz de fazer abstrações quanto à duração temporal, isto é, quando percebe que o antes e o depois fazem parte de um tempo contínuo, e que cada um desses momentos tem suas próprias características. Desse modo, se observarmos que o aluno não consegue ordenar corretamente as gravuras antigas e atuais, poderemos fazer um trabalho intenso com atividades que o levem a ordenar fatos de seu cotidiano, como as histórias narradas, os deslocamentos feitos, os principais fatos de sua vida que ocorreram em diferentes épocas e muitas outras situações criadas pelo grupo. Sendo assim, comparando a gravura mais antiga com a mais nova, os alunos poderão identificar as mudanças e permanências nesse local, além de observarem, é claro, como o espaço se transformou socialmente através do tempo. RESUMO É possível ensinar História para crianças antes do pensamento formal se dar por completo. Daí, para que isso seja atingido, é fundamental preocuparmo-nos com a metodologia a ser utilizada em sala de aula. É fundamental, também, que o professor entenda as etapas da construção das noções espaciais e temporais para estabelecer objetivos teóricos e metodológicos claros em sala de aula com seus alunos, dependendo da faixa etária dos mesmos. A criança começa a operar com relações espaciais fazendo inversões e reciprocidades ao longo do período de 7 a 11-12 anos, em etapas sucessivas. É importante que a criança consiga pensar o espaço para saber organizar-se nele além de entender que nele é possível ver representada a transformação social do tempo e as marcas socioeconômicas de sua ocupação. Analisando os espaços cotidianos, a criança pode compreender melhor outros espaços mais distantes territorial e temporalmente. Já as noções temporais se estabelecem depois das espaciais. Trabalhando as noções de sucessão, duração e simultaneidade, você estará facilitando o domínio operatório da noção de tempo de seus alunos. O aluno por volta dos 10-12 anos já consegue dominar tais noções. Em seguida, então, podem ser trabalhadas as dimensões do tempo histórico, o curto e o longo. 92 CEDERJ AULA 7 INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, estudaremos o percurso do ensino de História no Brasil desde sua implantação como disciplina escolar até os dias de hoje. CEDERJ 93 AULA Caminhos da História ensinada 1 8 Meta da aula objetivos Analisar a trajetória do ensino de História no Brasil até a década de 1960. Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: • Contextualizar a origem da inclusão de História como disciplina escolar no ensino básico na Europa e no Brasil. • Identificar e analisar as mudanças e permanências no ensino de História, desde sua implantação no Império até a década de 1960. • Analisar a importância da influência da filosofia positivista na educação brasileira republicana. • Reconhecer a importância do papel do Estado Novo nas discussões educacionais no ensino de História. História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 INTRODUÇÃO O ensino de História, assim como toda a Educação e a sociedade em que vivemos, enfrenta uma crise paradigmática que tem afetado a vida do ser humano em inúmeros aspectos. Esta crise do ensino em geral resulta de descompassos existentes entre as múltiplas e diferenciadas demandas sociais e a incapacidade da instituição escolar de atendê-las ou de responder definitivamente, de maneira coerente, a elas. Sabemos que, dentre as mazelas do ensino de História hoje, podemos destacar: a “decoreba”, o conhecimento pronto e acabado e as outras práticas tradicionais. Analisaremos nesta aula a trajetória do ensino de História desde que esta disciplina foi introduzida nos currículos brasileiros a partir de 1838, suas mudanças e permanências, em relação aos temas selecionados e aos conteúdos e metodologias utilizadas até a década de 1960. ! O título desta aula foi retirado do nome dado ao livro Caminhos da História ensinada, de Selva Guimarães Fonseca, Editora Papirus, 1993. A ORIGEM DA DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA ESCOLA A origem da História como disciplina autônoma na escola deu-se no LAICIZAÇÃO século XIX, na França, no cerne dos movimentos de LAICIZAÇÃO da sociedade Significa “tornar laico, leigo, civil, secular”. Na época da Revolução Francesa, movimento que desejava separar a organização estatal do poder religioso ou eclesiástico; o Estado passa a não ter mais religião. Por exemplo, os revolucionários franceses lutavam por um ensino público e laico, ou seja, não-religioso. e de constituição das nações modernas. Apareceu, então, no contexto das transformações revolucionárias francesas, na luta da burguesia pela educação pública, gratuita, leiga e obrigatória. No século XIX, tivemos o predomínio do POSITIVISMO na Ciência dando um novo sentido à História, que passa a ser vista como uma ciência, com método científico e adotando as linguagens das Ciências Naturais. Nesse tipo de concepção de ensino de História valorizam-se os fatos históricos, as datas (a cronologia) e os heróis. Busca-se uma O POSITIVISMO, caso você não se lembre – (já estudado em Fundamentos da Educação 2, Volume 1, p. 51), é a “doutrina criada por Augusto Comte que considera a Ciência o saber mais importante da humanidade; por isso valoriza o princípio da formação científica na educação”. verdade única na interpretação e análise dos fatos históricos. Ainda no século XIX, a História evoluiu das dificuldades iniciais, no campo pedagógico, em se conceber um consenso de programa, objeto e método da História da civilização para a tendência de se valorizar a História da Europa como a história da civilização. Isso significa que o estudo de História só valorizava a Europa, desconsiderando os demais continentes e suas peculiaridades. 96 CEDERJ 8 No Brasil, a criação da disciplina de História no currículo ocorreu AULA na primeira metade do século XIX, quando foi implantada no Colégio Pedro II, na 6ª série, em 1838. Diversas tendências historiográficas e concepções de História sustentaram tal disciplina. Sob a influência do pensamento liberal francês e no bojo do movimento regencial, estruturou-se o Colégio Pedro II, que foi, no Império, o estabelecimento padrão de ensino secundário, status que manteve durante a República. Assim, o modelo francês foi adotado e, desde o início, a base do ensino de História centrou-se nas traduções de compêndios franceses. No Brasil, a constituição da História como matéria de pleno direito ocorreu no interior dos mesmos movimentos de organização do discurso laicizado sobre a história universal, discurso no qual a organização escolar foi um espaço importante das disputas então travadas, entre o poder religioso e o avanço do poder laico, civil (NADAI, 1992-93, p. 145). Inicialmente, como já dissemos, a História estudada no país foi a História da Europa ocidental, apresentada como a verdadeira história da civilização. Esse ensino estava apoiado no tripé História da Europa, periodização política e ênfase explicativa centrada no personagem. Estas características são fortes marcas do ensino tradicional. A partir de 1860, as escolas primárias e secundárias começaram a, sistematicamente, incluir em seus programas a História do Brasil. Esta tinha um papel secundário, de apêndice, e por isso ficava relegada aos últimos anos do ginásio, com um número reduzido de aulas, sem estrutura própria, sendo apenas ensinadas biografias de homens ilustres, datas e batalhas. O número crescente de compêndios de história do Brasil editados, sobretudo a partir da década de sessenta do século XIX, comprova a incorporação dessa área do conhecimento histórico na cultura escolar do período, tanto para as escolas secundárias quanto para o ensino elementar (BITTENCOURT, 1992-93, p. 209). CEDERJ 97 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 ATIVIDADE 1. Identifique e explique o principal objetivo para a introdução da disciplina História na escola. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A História foi introduzida no currículo escolar do Colégio Pedro II tendo como objetivo principal a formação do cidadão, do homem cívico que se identificasse com a pátria, a nação. Cabe lembrar que foi no século XIX, a partir de 1822 – com o processo de independência do Brasil –, que se deu a formação de nosso Estado Nacional. Reforça-se a “idéia” de nação brasileira, de identidade nacional num país onde havia inúmeras diferenças regionais, assim como distâncias territoriais continentais a serem vencidas etc. Sem dúvida nenhuma, o estudo da História poderia facilitar a formação dessa identidade nacional. O ENSINO DE HISTÓRIA NO PERÍODO REPUBLICANO ATÉ A DÉCADA DE 1960 Após a proclamação da República brasileira, os processos de identificação com a História da Europa foram aprofundados. Estava presente a preocupação com o reforço da nacionalidade e da nação. Por isso, estudava-se, com a denominação “Educação cívica e moral da Pátria”, a biografia de brasileiros célebres, além de notícias históricas do Brasil Colônia e Império e a História da proclamação da República. A aceitação da História como disciplina curricular nos ginásios oficiais de São Paulo não foi pacífica. Questionava-se, devido à influência positivista, se a História era ciência ou não. Inicialmente, preferiu-se não adotá-la como disciplina escolar no estado de São Paulo. Esta acabou por ser incorporada em 1895, como nos mostra o artigo 5o do Primeiro Regulamento dos Ginásios do Estado (Decreto 293, de 22/5/1895). 98 CEDERJ 8 Ao analisarmos esse regulamento, percebemos que integravam o plano AULA proposto tanto História Universal quanto História do Brasil, sendo que a carga desta última era mínima. Na década de 1920, a Escola Nova, particularmente com JOHN JOHN DEWEY DEWEY, avaliou que a História deveria se ocupar prioritariamente (1859 – 1952) das sociedades contemporâneas. A crítica sobre o conteúdo incidiu Filósofo da Educação estudado por você em Fundamentos 2 (Volume 1, p. 55). Vamos relembrar: John Dewey era norte-americano, representante do movimento Escola Nova. Sua obra defende uma educação baseada na ação e na experiência, buscando uma educação para a democracia. Foi professor de Filosofia e Pedagogia na Universidade de Chicago e depois lecionou na Universidade de Colúmbia, em Nova York. principalmente em dois pontos: na seleção da história política e de sua correspondente cronologia para subsidiar os programas de ensino e na relação entre nacionalismo e militarismo. A ênfase da crítica desses educadores progressistas estava na metodologia da memorização excessiva, na passividade do aluno, na periodização política e na abordagem factual. Somente em 1934 foram tomadas medidas concretas para a inovação do ensino em geral e no de História em particular. Houve, no Brasil, a instalação dos primeiros cursos universitários para a formação do professor secundário. Com a criação da universidade em São Paulo e depois no Rio de Janeiro (Universidade do Brasil), vieram para cá muitos cientistas estrangeiros. ! Dos cientistas estrangeiros que vieram para o Brasil na década de 1930, nos campos de História e Geografia houve a contribuição principalmente de cientistas franceses, como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Claude Lévi-Strauss, dentre outros, que auxiliaram a delimitar os métodos e objetos de estudo das Ciências Sociais. O método é o caminho que se utiliza para chegar ao conhecimento. ATIVIDADE 2. Explique como a Escola Nova contribuiu com sua crítica para o ensino de História. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ CEDERJ 99 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 RESPOSTA COMENTADA John Dewey fez críticas afirmando que a História deveria estudar as sociedades contemporâneas. Mas seus maiores ataques recaíram sobre a metodologia usada. Era contra a excessiva memorização utilizada para gravar nomes e datas (infelizmente ainda usado em diversas escolas brasileiras), a periodização política, a valorização apenas da História factual (não se estudava a História como processo permeado por diversos fatores determinantes, ou seja, políticos, econômicos, sociais e culturais) e a passividade do aluno. Continuando a nossa aula sobre o período republicano, podemos perceber que a concepção de que a disciplina História tinha a responsabilidade de formar os cidadãos ganha força, como demonstram as diretrizes da Lei de Educação de 1931 e 1961, bem como os programas que passaram a ser utilizados pelas escolas. O objetivo dos principais conteúdos de História do Brasil era a constituição e formação da nacionalidade, com seus heróis e marcos históricos, sendo a pátria a personagem principal dessas narrativas. No governo de Getulio Vargas foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, e, a partir dele, passaram a ser expedidos os programas e as instruções metodológicas para o ensino. No entanto, com a ditadura de Vargas (1937-45), o projeto de centralização do ensino e de uniformização nacional ganhou relevância e nunca mais foi suprimido. Por exemplo, no currículo dos ginásios do estado de São Paulo, o estudo de História do Brasil dava-se do 1o até o 6o ano e não era diferente do de História Geral. Seguia a cronologia política, abrangendo desde as descobertas marítimas e geográficas dos portugueses e espanhóis nos séculos XV até a idéia republicana no Brasil. Foi dado à História um lugar específico, ou seja, procuravam expressar nas representações as idéias de nação e de cidadão embasadas na identidade comum de seus variados grupos étnicos e classes sociais constitutivos da nacionalidade brasileira. O fio condutor do processo histórico era o colonizador português e, depois, o imigrante europeu e as contribuições paritárias de africanos e indígenas. Criou-se, assim, a idéia de nação como resultante da colaboração de europeus, africanos e indígenas. Negou-se a condição 100 C E D E R J 8 de país colonizado, bem como as diferenças nas condições de trabalho AULA e de posição em face da colonização das diversas etnias. Os “silêncios” nos programas escolares – ou seja, o que não está explícito, nem escrito, a ideologia que perpassa as entrelinhas –, assim como o “falado” – ou seja, o que está explícito, o que está nos programas, na lei, em normas, ou regulamentos –, foram determinados pelas idéias de nação, de cidadão e de pátria que se pretendiam legitimar pela escola. O discurso histórico enfatizava a “harmoniosa” contribuição de brancos, negros e índios. Valorizou-se o passado na medida em que este podia legitimar o discurso do presente. Por isso, podemos entender o tratamento dado à escravidão do africano, por exemplo. Valorizou-se a sujeição pacífica do africano ao regime escravo; já em relação à escravização indígena percebem-se os “silêncios”, ou seja, o não-falado, o intencionalmente esquecido, assim como em relação à sua resistência à conquista colonial. Outro exemplo são as representações mostrando a ocupação portuguesa do território como um espaço natural, vazio, não como conquista. A América e a África foram praticamente esquecidas do currículo na maior parte do período, apesar de críticas feitas por historiadores. Somente a partir de 1950 introduziu-se História da América no currículo do ginásio. ATIVIDADE 3. Dê um exemplo de como a escola serviu, por meios do ensino de História, para camuflar as lutas de classe, os movimentos de resistência popular etc., na história da sociedade brasileira. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Na escola, nas aulas de História, estudava-se a formação da nação brasileira como resultado da união das três raças – branca, índígena e negra –, como se isso tivesse ocorrido em igualdade de forças. Silenciava-se, por exemplo, sobre a questão da exploração do branco C E D E R J 101 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 colonizador; não se falava da conquista colonial, só se falava do papel do negro no sistema escravocrata, camuflando-se a questão do racismo e do preconceito até os dias de hoje; não se abordava o extermínio indígena e a tomada de suas terras originais. Continuando nossa caminhada teórica, a periodização era pautada numa cronologia eminentemente política e marcada por tempos uniformes, sucessivos e regulares. Identificava-se o tempo histórico com a cronologia; portanto, inexistiam, nesse tipo de História estudada, rupturas e descontinuidades nos processos históricos, tudo parecia muito linear e seqüencial. A mudança histórica era analisada só pelo viés político. Ensinava-se que o movimento histórico, ou seja, a História propriamente dita, era realizado apenas pelo indivíduo e não por grupos sociais ou classes. A República cuidou da formação da galeria dos heróis nacionais, pela instituição tanto de feriados e festas cívicas quanto pela seleção dos personagens a serem cultuados. Nessa corrente teórica, a História é identificada somente com o passado, negando-se sua qualidade de representação do real. Havia uma forte influência do positivismo. O conceito de fato histórico, a neutralidade e objetividade do historiador/professor ao tratar do social, o papel do herói na construção da Pátria, a utilização do método positivo permearam tanto o ensino quanto a produção histórica (NADAI, 1992-93, p.152). ATIVIDADE 4. Explique como o Positivismo influenciou a História e o ensino de História no século XIX e parte do século XX. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 102 C E D E R J 8 AULA RESPOSTA COMENTADA A História passa a ser reconhecida como ciência no século XIX, porém, sendo igualada em método às Ciências Naturais. Por exemplo, o fato histórico era visto como verdade única, não havendo diversas interpretações possíveis. Haveria uma neutralidade na análise do historiador. Foram valorizados ao máximo determinados heróis da pátria, como Tiradentes, D. Pedro I, Deodoro da Fonseca, entre outros. Em contrapartida, silenciou-se sobre os movimentos e os heróis populares. Prestigiava-se a ordem, o personagem como o que faz a História, e não o coletivo, os movimentos, as resistências. A História é identificada apenas com o passado, sendo, portanto, relegado o estudo do presente. O sujeito comum não era visto como alguém que é sujeito e produtor de História. Durante as décadas de 1950 e 1960, uma renovação atinge a escola secundária direcionada para o aprimoramento dos fundamentos científicos e do papel formador e crítico da disciplina, ou seja, para sua contribuição na formação de um pensamento crítico e conscientizador sobre os indivíduos. No entanto, o discurso ainda era direcionado para ser um discurso explicador, unívoco, generalista, totalizador e europocêntrico, ou seja, tudo se explicava de forma bem genérica, totalizante e através da visão e história européia, com os “olhos” de europeu. A acelerada urbanização e industrialização minou as bases do ensino secundário elitista e propedêutico e atuou no sentido de sua generalização, enquanto aspiração para diversos setores das camadas médias urbanas e populares. Na década de 1960, esses problemas se acirraram e se tornaram agudas as contradições entre uma escola secundária mais popular no acesso e uma proposta de ensino elitista e propedêutica, que cumpria o objetivo de legitimar uma minoria que conseguia ultrapassar os obstáculos. Após o golpe militar de 1964, o ensino de História permaneceu marcado pelas características do ensino tradicional, valorizando, portanto, os fatos e datas, a “decoreba”, a História da Europa, a cronologia e a periodização política. C E D E R J 103 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 CONCLUSÃO Você viu, nesta aula, que o objetivo do ensino tradicional é formar o indivíduo para a pátria, auxiliando na construção da nação e da nacionalidade. Negam-se os conflitos na formação da sociedade brasileira, compreende-se que o Brasil é fruto da união das três raças: branca, indígena e negra. Na perspectiva tradicional, o professor é visto como o transmissor da verdade pronta e acabada. O aluno é apenas o receptor desse conhecimento histórico verdadeiro. A organização do conteúdo prioriza a forma linear, a periodização política e as fontes escritas. O método é formal e abstrato, não havendo a preocupação em se desenvolver um espírito crítico. Há o predomínio do “ponto”, do questionário, da memorização, dos testes objetivos. Já a avaliação do ensino tradicional é classificatória, privilegiam-se os resultados e tem-se como base a memorização das informações. Diversas das características citadas anteriormente associam-se com o ensino tradicional em geral, não só com o ensino de História tradicional. Sabemos que essas características continuaram a existir após o golpe militar de 1964, sendo que, lamentavelmente, muitas delas ainda estão bem presentes em alguns contextos brasileiros até os dias atuais. RESUMO O ensino de História foi introduzido no Brasil desde o século XIX, no Colégio Pedro II. Mesmo após a proclamação da República, diversas caraterísticas permanecem no ensino de História, como, por exemplo, a influência do Positivismo. Dewey apresenta diversas críticas ao ensino de História. Vargas centraliza e de alguma forma uniformiza o ensino de História no Brasil. Mas só nos anos 1950 e 1960, devido a diferentes contextos históricos, surge a necessidade de mudanças nos programas escolares. Apesar dos inúmeros acontecimentos, esse ensino foi marcado hegemonicamente pela valorização da História européia e pelo que chamamos ensino tradicional. A visão de ciência nesse ensino tradicional apresenta a preocupação com o estudos dos fatos, nomes e datas. Dá ênfase à História política e à ação dos heróis. 104 C E D E R J AULA 8 ATIVIDADE FINAL Imagine dois professores dando aula de História sobre a Independência do Brasil. O primeiro deles valoriza em suas aulas escrever no quadro, falar de heróis e datas. Nesta aula, os alunos prestam muita atenção ao que o professor diz e anotam tudo no caderno. Já o segundo professor estabelece um diálogo com a turma sobre o tema, pergunta o que eles já sabem sobre isso, lê textos sobre o assunto em sala e explica como se desenrolou esse processo histórico. Ao final de sua aula, o professor 2 fixa o conhecimento mandando os alunos fazerem uma caricatura sobre o tema da aula. Identifique que modelos pedagógicos foram apresentados para você nesse exemplo. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O professor de História número 1 tem uma forte influência do Positivismo; portanto sua aula valoriza a figura do herói, a “decoreba”, a passividade do aluno, e o tempo histórico é associado à cronologia, à linearidade etc. Os alunos não são vistos como autores sequer de sua própria história. Portanto, podemos imaginar uma aula sobre a Independência do Brasil, onde se valorizaria a figura de D. Pedro I, o grito do Ipiranga etc. O aluno é visto como um depositário de informações de datas e nomes que vão se acumulando. O professor número 2 é diferente, trabalha numa perspectiva crítica, por isso vai abordar a Independência do Brasil como processo; vai trabalhar a questão histórica desde a vinda da família real portuguesa para o Brasil devido ao bloqueio continental; vai identificar as mudanças e permanências que ocorreram com a Independência, ou seja, será trabalhada a noção de que, embora o Brasil tenha se tornado politicamente independente, permaneceu dependente economicamente da Inglaterra, assim como, também, permaneceram a escravidão e o latifúndio; não será dada ênfase à história pessoal de D. Pedro I. C E D E R J 105 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 1 LEITURA RECOMENDADA Caso você tenha se interessado muito pelo tema, recomendamos a leitura de Caminhos da História ensinada, de Selva Guimarães Fonseca, Editora Papirus, 1993, no qual a autora faz uma análise detalhada do ensino de História, principalmente da década de 1950 em diante. MOMENTO PIPOCA Recomendamos que você assista a alguns filmes que tratam de temas históricos abordados nesta aula, como Getulio Vargas (1974), de Ana Carolina, h documentário baseado em filmes do Departamento de Imprensa e Propaganda d (DIP), criado no primeiro governo de Getulio Vargas; Memórias do cárcere, de ( Nelson Pereira dos Santos (1984), reprodução cinematográfica do livro homônimo N de d Graciliano Ramos que remete ao período em que o escritor esteve preso (1936-1937) devido às suas ligações com a Aliança Nacional Libertadora; ( Os anos J K – uma trajetória política (1980), de Sílvio Tendler, documentário sobre a história política do Brasil de 1945 à década de 1970, à luz da carreira do ex-presidente Juscelino Kubitschek; Jango (1984), de Sílvio Tendler, documentário sobre a carreira política do ex-presidente brasileiro João Goulart. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, daremos continuidade ao estudo da história do ensino de História. Veremos como este se transformou em Estudos Sociais a partir da década de 1970 e finalmente como o conhecimento histórico escolar se afirmou como campo de pesquisa e conhecimento a partir da década de 1980, além de analisarmos as questões que permeiam o ensino de História hoje. Até lá! 106 C E D E R J AULA Caminhos da História ensinada 2 9 Meta da aula objetivos Analisar a trajetória do ensino de História no Brasil da década de 1970 aos dias atuais. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar e analisar as mudanças e permanências no ensino de História nas décadas de 1970, 1980 e 1990. • Explicar os motivos da criação dos Estudos Sociais com a Lei 5.692/71. • Analisar a trajetória e as mudanças ocorridas no ensino de História nos dias atuais. Pré-requisito Para melhor compreender os conteúdos desta aula, você deverá rever os conceitos da Aula 8: Caminhos da História Ensinada 1. História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 INTRODUÇÃO Dando continuidade à Aula 8 – Caminhos da História Ensinada 1 –, primeiramente vamos abordar a trajetória do ensino de História durante o período da ditadura militar a partir da criação da Lei 5.692/71, que implantou os Estudos Sociais. Além disso, analisaremos o caminho percorrido pelo ensino de História no contexto da redemocratização do país na década de 1980, assim como as mudanças efetivas durante a década de 1990. Também refletiremos sobre as principais questões que permeiam o ensino de História hoje. O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DA LEI 5.692/71 ATÉ A REDEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS – A DÉCADA DE 1980 Após o golpe militar de 1964, a sociedade brasileira viveu inúmeras formas de repressão político-militar e controle feitos, dentre outros, pela censura e perseguição aos partidos políticos de esquerda, aos militantes, aos meios de comunicação, aos intelectuais, professores e alunos universitários e até a alunos secundaristas, considerados “subversivos” ao sistema. Naquele momento de ditadura implantada no nosso país, os governos militares atuaram de várias formas sobre a Educação, como, por exemplo, estabelecendo o controle sobre os conteúdos a serem ensinados na disciplina de História, relacionando-os, sobretudo, à ideologia implantada, utilizando o ensino a serviço do regime ditatorial que propunha a formação de cidadãos dóceis, obedientes e ordeiros. ! Durante vinte anos, o Brasil viveu os chamados “anos de chumbo”, quando os brasileiros sofreram o arbítrio dos governos militares e a ausência do estado de direito. Tal governo se estabeleceu com o golpe militar de 1964 e perdurou até 1984, com o último general presidente da República no Brasil, João Baptista de Oliveira Figueiredo. A Lei 5.692/71 oficializou o ensino de Estudos Sociais nas escolas brasileiras. Segundo essa lei, os conteúdos específicos de História passaram a ser destinados somente aos alunos do antigo 2o Grau. Logo, você pode perceber que, como a maioria da população brasileira não conclui o Ensino Fundamental até hoje, a forma encontrada para sonegar as informações históricas e a formação de uma consciência mais crítica foi deixada para poucos, ou seja, só para aqueles que conseguissem chegar ao Ensino Médio. Estes teriam aulas de História propriamente dita. 108 C E D E R J 9 No entanto, a concepção e os conteúdos de História continuavam AULA atrelados às concepções tradicionais. A visão de ciência dos Estudos Sociais privilegiava a interdisciplinaridade das ciências sociais (História, Geografia, Antropologia e Sociologia). Já o papel do ensino era de integração do educando em um meio cada vez mais amplo. Valorizava-se o estudo da História do presente. Preocupava-se com a formação de cidadãos para uma sociedade industrializada em desenvolvimento. Nos Estudos Sociais, o aluno era visto como o centro do ensino, e o professor, como facilitador da aprendizagem. A relação baseava-se na vigilância do aluno pelo professor. Também houve, nesta época, a fragilização do conteúdo específico da História. Valorizou-se a aprendizagem baseada no desenvolvimento de atividades. Nos livros didáticos predominavam as ilustrações, havendo uma simplificação do conhecimento histórico. Os currículos eram organizados em “círculos concêntricos”: família, escola, bairro, cidade, país e mundo. O método era baseado no ensino por atividades, dando-se ênfase à pesquisa e ao trabalho em grupo. Já a avaliação era baseada em objetivos previamente propostos, considerando-se o processo e não o conteúdo. ! Sobre a época da ditadura militar no Brasil, recomendamos que você assista aos filmes nacionais Pra frente Brasil e O que é isso companheiro. ATIVIDADE 1. Como você relacionaria a implantação dos Estudos Sociais aos interesses dos governos militares? _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ ________________________________________________________ C E D E R J 109 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 RESPOSTA COMENTADA Os Estudos Sociais fragilizaram o conteúdo de História tendo em vista que abordavam Geografia, Antropologia, Sociologia e a própria História numa disciplina só. Na prática, o que acontecia era que o professor de Geografia que desse aula de Estudos Sociais tendia a dar mais Geografia e o de História, mais História. Não se tinha interesse político em desenvolver o pensamento crítico, autônomo e sim, indivíduos obedientes, não questionadores da situação política e econômica em geral do país, da censura, da falta de democracia em geral na sociedade etc. Assim, a função do ensino era integrar o educando em um meio cada vez mais amplo, valorizando a História do presente, evitando o estudo do passado pelo passado. Com isso, não se buscava estudar as raízes históricas dos problemas sociais etc. Por exemplo, não se estudava a origem da concentração de terras no Brasil desde as divisões em capitanias hereditárias e as doações de sesmarias somente para homens ligados, no primeiro caso (capitanias hereditárias) ao trono português, no segundo caso (sesmarias) com relações estreitas com os proprietários de terras (donatários). Voltando à nossa discussão teórica, na década de 1980, com a “abertura política” do país, surgiram novas propostas curriculares em todos os estados da Federação. Houve uma readequação de currículos. Havia propostas variadas, algumas eram inovadoras e outras, conservadoras. Essas discussões giravam, principalmente, sobre as novas concepções que deveriam servir de referência para os conteúdos e as metodologias de ensino. O grande marco dessas reformulações concentrou-se em realocar professores e alunos como sujeitos da História e da produção do conhecimento histórico, enfrentando a forma tradicional de ensino trabalhada na maioria das escolas brasileiras, centrada na figura do professor transmissor e do aluno, receptor passivo do conhecimento histórico. Combatia-se o ensino positivista, factual, de memorização e descontextualizado. Deu-se uma retomada do ensino crítico de História, centrado em temáticas relacionadas com o cotidiano do aluno, seu trabalho e sua historicidade. Muitos congressos, simpósios e encontros foram feitos com a temática do ensino de História. A História ensinada nas escolas e 110 C E D E R J 9 universidades brasileiras foi objeto de debates e estudos – campo de AULA pesquisa de teses, dissertações e publicações, como livros e artigos especializados. Questionavam-se os currículos de História, as metodologias de ensino, os livros didáticos e as finalidades de seu ensino. Além disso, também fizeram parte dessas discussões as questões epistemológicas do conhecimento no ensino de História e a problemática da reprodução do conhecimento histórico para a escola de educação básica. Discussões foram sendo organizadas com a perspectiva de entender a disciplina História de forma autônoma. Travou-se uma luta, também, na década de 1980, em universidades, associações e entidades profissionais, com o objetivo de combater a proposta de Estudos Sociais – identificada com os interesses da ditadura militar brasileira. Paralelamente, havia-se permitido a formação de um perfil de professor de História formado em cursos de graduação curta ou plena, além de cursos de Estudos Sociais, curtos ou plenos. ATIVIDADE 2. Pense na questão do racismo no Brasil. Mostre por meio de exemplos como você poderia dar uma aula valorizando o cotidiano do aluno e mostrando que o preconceito de cor existe atualmente e que é muito anterior ao momento que ele vive. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Primeiro, você pode perguntar quem na turma não é branco. Você perceberá que diversos alunos terão dificuldade de se assumir como negros, mulatos ou pardos, o que já demonstra o preconceito interiorizado. Em seguida, pergunte quem já sofreu preconceito em algum lugar a que tenha ido. Vários terão coisas para contar. Por fim, reflita com seus alunos sobre a origem do preconceito de C E D E R J 111 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 cor, ou seja: os negros eram os escravos até o final do século XIX no Brasil, eles não eram considerados gente, eram vistos como mercadorias, objetos de seus donos. Logo, após menos de dois séculos de libertação dos escravos, ainda nos deparamos com o preconceito racial interiorizado nas elites e na população em geral. Daí a importância de discutirmos essas questões mais claramente, enfrentando o preconceito, no lugar de encobri-lo. ! Há diversos filmes que abordam a temática da escravidão, como Quilombo (1984), de Cacá Diegues, filme nacional com Toni Tornado, que aborda a vida e a luta dos habitantes do quilombo dos Palmares, símbolo da resistência à escravidão no Brasil, durante o século XVI; Xica da Silva (1978), também de Cacá Diegues, que mostra a vida de uma escrava, que se tornou amante de alto funcionário da Coroa e passa a viver como uma grande dama. O ENSINO DE HISTÓRIA NA DÉCADA DE 1990 E AS QUESTÕES ATUAIS A década de 1990 trouxe, dentre outros fatores, uma crise de paradigmas que atingiram diversos ramos do conhecimento, logo, também, a Educação, a História etc. Surge, então, a possibilidade de novos paradigmas teóricos, ou seja, novos modelos teóricos. Os currículos de História foram alterados para se tentar responder com maior adequação aos temas contemporâneos. Passa-se a estudar a História como a História de todos os homens, não só dos heróis. Incluem-se novas contribuições historiográficas: História econômica, cultural e social. Fazem-se análises do processo histórico e da experiência dos sujeitos da História. Há a incorporação dos novos temas e objetos da História, como a História das mulheres, a das crianças e a dos movimentos sociais, como podemos verificar na citação abaixo. Nada do que é humano será agora alheio ao historiador. Daí a multiplicação de estudos sobre a cultura, os sentimentos, as idéias, as mentalidades, o imaginário, o cotidiano. E também sobre instituições e fenômenos sociais antes considerados de pequena importância, se não irrelevantes, como o casamento, a família, organizações políticas e profissionais, igrejas, etnias, a doença, a velhice, a infância, a educação, as festas e rituais, os movimentos populares (CARVALHO, 1998, p. 454). 112 C E D E R J 9 Nesse período mapearam-se as questões sobre o ensino de História, AULA que, segundo Nadai, (1992-1993), são: 1) Aceitação da existência de um saber escolar, que não é nem justaposição, nem simplificação de produção acadêmica. 2) O domínio da História universal, como era tratada, acabou-se. A diversidade e a diferença foram privilegiadas tanto nos temas quanto na abordagem do conteúdo. A História tem sido temática, ou seja, valorizam-se os processos em determinadas temáticas e a diversidade cultural, em oposição à história cronológica, que valorizava somente os heróis e as datas. 3) Os conteúdos e os métodos passam a ser entendidos em conjunto; valoriza-se mais ensinar a pensar do que ensinar grandes quantidades de conteúdo, por exemplo: pretende-se que o aluno entenda Expansão Marítima e Comercial Européia (Grandes Navegações, como era chamada nos currículos tradicionais) como processo, ou seja, o objetivo é que o aluno compreenda quais os interesses dos europeus ao se lançarem ao mar, o que eles conseguiram etc., em oposição aos pormenores das viagens, às datas ou caminhos percorridos. 4) Superação da dicotomia ensino e pesquisa, ou seja, o professor deve fazer de sua sala de aula um lugar de pesquisa, de produção de conhecimento, de investigação. 5) Compreensão de que alunos e professores são sujeitos da História, esta vista como movimento social e memória; melhor explicando, que tanto professores quanto alunos participem da vida em sociedade por intermédio de ações, opções etc., sentindo-se “fazedores” da História. 6) Uso de fontes variadas e múltiplas para resgatar discursos múltiplos sobre temas específicos. Fazer emergir o diálogo da História oficial com a memória social, porque a História oficial não dá conta de todo o conteúdo da História, o professor pode usar, também, outras fontes, como romances, relatos orais, músicas etc. As reformulações curriculares atuais colocam em xeque o que é ensino na escola e na universidade, tendo em vista o “real mundo do trabalho”, bem como a formação para a cidadania. As mudanças curriculares devem atender a uma articulação entre os fundamentos conceituais históricos, provenientes da ciência C E D E R J 113 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 de referência, e as transformações pelas quais a sociedade tem passado, em especial as que se referem às novas gerações (...). Diversidade cultural, problemas de identidade social e questões sobre as formas de apreensão e domínio das informações impostas pelos jovens formados pela mídia, com novas perspectivas e formas de comunicação, têm provocado mudanças no ato de conhecer e aprender o social (BITTENCOURT, 1992-3, p. 135). Paralelamente à necessidade de adequação de currículos ao mundo contemporâneo, surgiu também a defesa de uma referência curricular global para todos os brasileiros. A Lei 9.394, de 20/12/1996, determina ser competência da União, do Distrito Federal e dos municípios o estabelecimento de novas diretrizes para a organização dos currículos e seu conteúdo mínimo. Em 1997, a Secretaria de Educação Fundamental do MEC propôs os PCN para o 1o e o 2o ciclos da escola fundamental. Já em 1998, saíram os PCN para o 3o e 4o ciclos. A intenção dos defensores não era produzir um currículo único para todo o país, mas, sim, referências em conteúdos e metodologias de ensino. Os PCN na área de História tinham como proposta fundamental a modificação da estrutura dos conteúdos apresentados até então, como propostas curriculares oficiais. A idéia básica era a transformação dos conteúdos organizados de forma linear em eixos temáticos. Mais adiante, posteriormente estudaremos melhor os PCN de História. Segundo o documento do MEC, o termo parâmetro curricular visa comunicar a idéia de que, ao mesmo tempo em que se pressupõem e se respeitam as diversidades regionais, culturais e políticas existentes no país, possam ser construídas referências nacionais que sejam capazes de dizer quais os “pontos comuns” que caracterizam o fenômeno educativo em todas as regiões brasileiras (Brasil, apud SCHIMIDT; CAINELLI, 2004, p. 14). A experiência de usar a organização do currículo por eixos temáticos já havia sido feita antes, particularmente no estado de São Paulo, na década de 1980. A principal justificativa dos autores dos PCN era superar o ensino da História baseado na cronologia. Propunham-se também, novas perspectivas historiográficas como metodologia de ensino – o trabalho com linguagens culturais, como cinema, música, fotografia etc., além do trabalho com documentos escritos. 114 C E D E R J 9 Duas das principais contribuições dos PCN foram a ênfase nas AULA inovações metodológicas e o afinco na busca de novos caminhos para a avaliação. Era proposto, também, um trabalho menos expositivo e mais participativo em que o professor desempenha o papel de um mediador. A avaliação deve ser vista como um trabalho contínuo, privilegiando a aprendizagem como processo e não como produto para ser medido na prova. Por fim, nas tendências pedagógicas atuais, a avaliação procura ser diagnóstica, processual, formativa. Busca, portanto, o crescimento do aluno, e não sua classificação e exclusão. O modelo tradicional de ensino de História acabou se tornando hegemônico, e ainda existe em muitas escolas pelo Brasil afora. Por isso, até hoje os temas mais debatidos pelos estudiosos, cujo objeto de pesquisa é o ensino de História, são: a condição reprodutivista do ensino de História nas escolas e a problemática do livro didático. Enfim, cabe a nós aproveitarmos todas as contribuições das tendências atuais e mudarmos este quadro no ensino de História. A proposta de História dos PCN foi duramente criticada pelos docentes das universidades e, particularmente, pelos professores e pesquisadores da Associação Nacional de História (ANPUH), anteriormente denominada Associação Nacional de Professores Universitários de História, o que deu origem à sigla que permaneceu. ! Tanto a ANPUH quanto diversos professores de História e historiadores se colocaram contra os PCN por inúmeras razões, dentre elas porque estes foram implantados num “caldo” de reformas neoliberais desastrosas para o Brasil. Uma das principais reclamações entre o professorado é que os PCN foram construídos e implantados de “cima para baixo”, os professores não teriam sido ouvidos, nem participado democraticamente de sua elaboração, apenas alguns professores convidados pelo governo etc. A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio (HOBSBAWM, 1995, p. 13). C E D E R J 115 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 CONCLUSÃO Com certeza é inegável a importância da escola, mais precisamente do ensino de História, na formação da identidade nacional. A visão de ciência no ensino de História nas tendências atuais baseia-se na História como a História de todos os homens, e não somente dos heróis. Há a incorporação dos novos temas e objetos da História, como a História das mulheres, a das crianças e a dos movimentos sociais. O papel do ensino é contribuir para a construção da cidadania. Procura-se apreender uma pluralidade de memórias, e não somente a memória nacional. Preocupa-se com as finalidades do ensino da História no mundo contemporâneo. Realizam-se novas possibilidades de organização curricular para o ensino da História, como a História temática e o ensino por conceitos. Há uma valorização do conteúdo e de visões plurais e críticas da História, assim como a incorporação de novas produções de historiadores. ATIVIDADE FINAL Imagine que você vai montar uma aula de História. Faça um plano de aula sobre a época do Brasil pré-colonial, por exemplo, e demonstre que você entendeu o significado e as características das tendências atuais no ensino de História. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ 116 C E D E R J 9 RESPOSTA COMENTADA AULA Sua aula sobre o Brasil pré-colonial, ou qualquer outro tema, deve valorizar o saber do aluno, sua experiência de vida, seu cotidiano por meio de falas, bate-papos, estimulando o aluno a dialogar com a turma e o professor. Esta aula deve partir desse ponto para que então, sob a orientação do professor, o aluno adquira novos conceitos e competências; mais importante do que o aluno estudar muito conteúdo é a aquisição dos conceitos históricos básicos e de determinadas habilidades e competências. O professor se coloca como mediador entre o aluno e o conhecimento, valoriza-se a História temática (por exemplo, o trabalho no Brasil Colônia, os movimentos de resistência ao capitalismo no século XIX etc.) e a aprendizagem de conceitos (por exemplo, escravidão, trabalho compulsório, Brasil Colônia, monocultura, latifúndio já capitalismo, burguesia, proletariado, socialismo utópico, socialismo científico, anarco-sindicalismo etc. Você pode trabalhar com documentos em sala de aula, ou até mesmo passar um filme sobre o tema. Por exemplo, você pode exibir para seus alunos o filme Hans Staden, no qual são mostradas várias facetas das sociedades indígenas brasileiras daquela época, dos encontros e desencontros com os estrangeiros e portugueses, os rituais de canibalismo de algumas tribos indígenas brasileiras etc. Em seguida, trabalhe os conceitos apresentados no filme e um texto básico que analise o conteúdo do tema. MOMENTO PIPOCA O filme Hans Staden (1999), de Luiz Alberto Pereira, é uma produção nacional e o mais indicado para alunos a partir do 2o ciclo do Ensino Fundan mental ou Ensino Médio, tendo em vista as cenas mais violentas de canibalismo m que apresenta. Ele retrata a trajetória de um aventureiro alemão que escapou q de ser devorado pelos índios tupinambás em 1554. Outra opção para alunos d mais novos é o filme Como era gostoso o meu francês (1972), de Nelson Pem rreira dos Santos, que retrata a vida de um negociante francês que naufragou nas costas brasileiras em meados do século XVI, estabelecendo relações com uma tribo de antropófagos. C E D E R J 117 História na Educação 1 | Caminhos da História ensinada 2 RESUMO A História foi substituída no currículo brasileiro do antigo 1o grau pelos Estudos Sociais, com a Lei 5.692/71. O papel do ensino de Estudos Sociais, nesse momento, estava comprometido com os interesses da ditadura militar e a formação do cidadão obediente e ordeiro. Já na década de 1980, com a redemocratização da sociedade e a volta de inúmeros exilados, constatamos o retorno dos debates educacionais, as pesquisas e trabalhos nessa área, as reformulações curriculares em diversos lugares do Brasil. Buscava-se então, uma História e um ensino da mesma mais crítico e engajado. Aluno e professor são sujeitos e fazedores de sua própria História. Já na década de 1980, temos como marco a criação dos PCN e a geração das reformulações nos currículos de História. O governo afirma, então, que não quer um currículo único, mas diretrizes curriculares para todo o país. Na década anterior e atualmente passa-se a privilegiar a História temática e o ensino de conceitos, as diferentes linguagens, o uso da informática no ensino, o uso dos documentos históricos em sala de aula, a valorização de diferentes visões críticas da História etc. Dando continuidade à década de 1990, percebemos nas tendências atuais a seqüência de vários desses investimentos, inclusive dos PCN, que vigoram até hoje como parâmetros curriculares oficiais para todo o país. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, daremos continuidade ao nosso trabalho. Estudaremos o que é o tempo histórico, quais suas principais características etc. Você verá como se dá a construção da noção de tempo histórico em crianças e adolescentes, tendo em vista que esse é um dos conceitos básicos para o ensino de História, para o entendimento da História propriamente dita. Até lá! 118 C E D E R J AULA 10 Síntese Meta da aula objetivo Apresentar uma síntese do primeiro volume da disciplina História na Educação 1 Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de compreender os conceitos de História, Memória, Tempo e Espaço. Pré-requisito Para entender esta aula, é imprescindível que você tenha lido as nove aulas anteriores. História na Educação 1 | Síntese INTRODUÇÃO Caro aluno, você acaba de chegar ao final da primeira parte da disciplina História na Educação 1. Embora suponhamos que este caminho tenha sido percorrido com alguma dificuldade – e nunca é demais lembrar que, sem desafios, não há aprendizado –, esperamos também que ele tenha sido prazeroso. É importante, agora, que você pare um pouco e reflita sobre o que aprendeu e, principalmente, se aprendeu tudo o que deveria. Fazemos esta aula-síntese por isso: para que você possa certificar-se de seu aprendizado e ter tempo de voltar atrás, se for o caso. Nesta aula, faremos uma revisão dos conceitos, temas e conteúdos abordados nas aulas anteriores. Aproveite também para reler as atividades realizadas e refazer aquelas que considerar mais importantes. Para que seu estudo seja mais proveitoso, aí vão algumas dicas de como você pode tirar o máximo proveito de seu tempo de estudo. PREPARE-SE PARA ESTUDAR! Lembre-se: ninguém estuda por você! A aprendizagem é uma atividade pessoal, baseada na necessidade e na motivação de cada um. Para que esta revisão dê certo, portanto, e para que estes hábitos de estudo sejam realmente incorporados em sua rotina, pense sobre as ponderações a seguir. Em primeiro lugar, tenha em mente que o tempo é sempre escasso. Não importa quanto tempo você tenha para estudar, ele será sempre pouco diante das necessidades. Por isso, tente utilizá-lo de forma racional. Na hora de estudar, não desperdice minutos e energia com atividades não relacionadas ao estudo! Quer um exemplo? Mantenha o telefone longe de você. Se estiver estudando em um computador ligado à internet, evite checar o e-mail ou entrar em chats e outros programas de conversas em tempo real. A conversa pode ficar para depois. Quando for estudar, planeje sempre seu tempo disponível e a atividade a realizar naquelas horas. Seja realista ao planejar suas atividades! Não planeje uma quantidade muito grande, que seja de realização impossível; isto só lhe trará frustração. Da mesma forma, planeje uma quantidade suficiente de atividades para preencher todo o tempo. Se você se acostumar a acabar suas atividades sempre antes do fim do tempo, é hora de adicionar mais tarefas. E lembre-se: planejamento é feito para ser cumprido, não para ser apenas planejado! 120 C E D E R J 10 Além do planejamento, você deve levar em consideração outros AULA fatores. Busque dormir pelo menos oito horas por noite. Estudar com sono exige o dobro de esforço. Quando for estudar, evite comer: isso distrai a atenção e atrapalha a digestão. Mas também não estude com fome! Lembra-se do conselho da vovó, de que “saco vazio não pára em pé”? Pois é: saco vazio não pára sentado também. Coma primeiro e estude depois. Por falar em sentar-se: estudar exige um local apropriado. Mesmo que seja difícil para você, tente construir um local de estudo adequado. Uma boa mesa, uma cadeira confortável e uma iluminação adequada melhoram muito seu rendimento. Faça intervalos ao longo do estudo, estique as pernas e os braços, relaxe um pouco. Se você estiver desconcentrado, estas atividades melhorarão sua concentração. Por último: de nada adianta ficar horas e horas estudando sem parar. É melhor estudar pouco e bem do que muito e mal. Agora que você já está preparado para iniciar seus estudos, passemos à revisão dos conceitos e conteúdos desta parte inicial da disciplina. HISTÓRIA E MEMÓRIA Na primeira aula, nos dedicamos a estudar o significado da História. Você viu que História é o campo do conhecimento que trabalha com o estudo dos homens e o estudo do tempo. Caracteriza-se, como disse o historiador Marc Bloch, justamente pelo “estudo dos homens no tempo”. Assim, o objeto da História não é simplesmente estudar o passado, como muitos pensam, mas estudar as várias formas de organização social em várias épocas, o que inclui até a nossa própria época. Este estudo é orientado por nossas preocupações, ou seja, pelos interesses que temos no presente. É justamente esta conexão com o presente que faz o ensino de História ser tão importante hoje em dia, já que ele deve contribuir para a formação de um ser humano reflexivo e crítico, como você aprendeu na Aula 2. Outro objeto fundamental da História, abordado na terceira aula, é a sua relação com a memória. Você estudou que a memória, tanto individual quanto coletiva, é a seleção de lembranças sobre o nosso passado. Por isso, é a memória que, ao fazer uso do passado, C E D E R J 121 História na Educação 1 | Síntese fornece-nos elementos para a construção de nossas identidades. Mas estas memórias e as identidades por meio delas construídas só serão bem compreendidas se o aluno for capaz de entender o movimento da História, ou seja, as mudanças, as permanências e, principalmente, a diversidade. Estes foram os temas vistos nas aulas subseqüentes. Valorizar a diversidade é fundamental para a formação do cidadão, já que é através dela que aprendemos a respeitar a cultura, a religião e os modos de vida daqueles que são diferentes de nós. Valorizar o diferente é exercitar a tolerância. Cidadãos mais tolerantes são seres humanos mais compreensivos, menos violentos, capazes de viver em sociedades mais harmoniosas. Até aqui, você viu as funções básicas da História e da sua inclusão entre as disciplinas ensinadas na escola. Queremos, com o ensino de História, formar cidadãos, ajudar na formação de pessoas críticas e tolerantes, entender a construção das identidades e das memórias coletivas. Mas, para que estes objetivos sejam alcançados, é preciso que entendamos o principal conceito utilizados pelos historiadores: o Tempo. O TEMPO Um dos desafios do ensino de História é mostrar como as sociedades movimentam-se através de múltiplas temporalidades, e não por meio de um percurso único percorrido por todas as civilizações. Assim, o estudo das cronologias e dos ritmos das sociedades devem obedecer à lógica de cada uma delas. Atualmente, no decorrer do processo de globalização, os ritmos de funcionamento de cada sociedade são extremamente diferentes e desiguais, uma vez que cada uma se insere de forma diferente neste processo. Assim, cada sociedade vive um tempo diferente, já que elas têm ritmos de desenvolvimento distintos. Este conceito é tão importante quanto difícil de ser transmitido aos alunos de pouca idade. Afinal, para que os alunos possam entender que as sociedades têm diferentes formas de composição, diferentes ritmos e diferentes maneiras de inserção no mundo contemporâneo, é preciso, antes, que eles entendam o próprio conceito de Tempo. Mas mesmo este conceito de Tempo é de difícil compreensão para nossos alunos! Afinal, imagine o que é, para uma criança de cerca de dez anos, pensar em processos históricos que envolvam séculos! Por isso é tão importante, nas aulas de História, levar em conta a idade em que as crianças são capazes de entender o conceito de Tempo. 122 C E D E R J 10 Segundo Piaget, o conceito de Tempo só é compreensível para AULA crianças por volta dos dez anos. Para o autor, somente a partir dessa idade elas seriam capazes de dominar as principais características do conceito: sucessão, duração e simultaneidade. Compreendendo a noção de sucessão ou ordenação, o aluno entenderá a cronologia na História, ou seja, a sucessão de fatos; compreendendo a noção de duração, ele entenderá as diferentes épocas históricas; por fim, alcançando a noção de simultaneidade, ele compreenderá as conjunturas simultâneas, paralelas, em diferentes espaços, mas no mesmo tempo histórico. Se apenas em torno dos dez anos a criança apreende o conceito de Tempo, será possível ensinar História nos primeiros anos do Ensino Fundamental? Acreditamos que sim! Mas esta tarefa não é fácil. É importante que a criança comece a refletir sobre o Tempo e o Espaço por meio de atividades concretas e próximas de seu cotidiano, para poder compreender melhor outros espaços mais distantes territorialmente e temporalmente. A HISTÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA Nem sempre o ensino de História nutriu preocupações com a compreensão de conceitos, como os enunciados anteriormente. Quando foi introduzido no Brasil, no século XIX, o ensino de História tinha como intenção básica fazer com que o aluno soubesse datas, fatos e nomes considerados importantes da política do país. Com o amadurecimento da democracia brasileira, o aprofundamento dos debates no campo da Educação acerca da importância da aprendizagem dos conceitos e o vislumbre da necessidade de respeito ao processo cognitivo dos alunos, foram introduzidas mudanças importantes na maneira de ensinar História, que resultaram na maneira como encaramos esta disciplina hoje em dia. Atualmente, o ensino de História caracteriza-se pelo privilégio à História temática, ao ensino de conceitos, ao uso de diferentes linguagens e meios de comunicação, à utilização de documentos históricos em sala de aula, à valorização da subjetividade. Com isso, acreditamos na formação de um aluno crítico e consciente, sujeito de sua própria História, consciente da historicidade de sua época e de sua sociedade, tolerante para com as culturas diferentes, leitor atento de um mundo cheio de informações. C E D E R J 123 História na Educação 1 | Síntese INFORMAÇÕES SOBRE AS PRÓXIMAS AULAS No próximo módulo, continuaremos a estudar alguns conceitos importantes para o ensino e a aprendizagem da História, como Cultura e Trabalho. Além disso, partindo para uma perspectiva mais prática, veremos como os historiadores lidam com os documentos, sua matéria-prima básica, analisando suas possibilidades de uso em sala de aula. Por fim, exploraremos as metodologias de trabalho dos historiadores, também com o objetivo de aplicá-las no Ensino Fundamental. 124 C E D E R J 11 AULA A cultura como objeto de estudo da história Meta da aula objetivos Demonstrar que a cultura se constitui objeto de estudo da História a partir da influência da Antropologia no início do século XX. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Reconhecer a existência de uma multiplicidade de definições, historicamente construídas, para o termo cultura. • Identificar o conceito mais geral de cultura aplicado nas Ciências Humanas e, em especial, na História. Pré-requisitos Esta aula fará referência, direta e indireta, aos conteúdos de diversas aulas anteriores; contudo, merecem atenção especial os saberes trabalhados na Aula 1 que situam a Escola dos Annalles. História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história INTRODUÇÃO A cultura passou a ser considerada temática de estudo científico no final do século XIX. Os primeiros trabalhos de pesquisa datam da década de 1870 e estão relacionados com a constituição da Antropologia como ciência. EDWARD BURNETT TYLOR (1832-1917) É considerado o fundador da Antropologia britânica. Em 1883, foi o primeiro titular da disciplina Antropologia da Inglaterra, na Universidade de Oxford. Escreveu Pesquisas sobre a história antiga da humanidade (1865) e Cultura primitiva (1871). É nesse contexto que a primeira proposta de definição conceitual do termo pode ser encontrada. Em 1871, EDWARD TYLOR, na obra Cultura primitiva, afirmava que cultura é este todo complexo que inclui o conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (TYLOR Apud LARAIA, 1999, p. 25). Os historiadores, entretanto, só se dedicaram a este tema no século XX, especialmente a partir da Escola dos Annalles. Os fundadores da revista dos Annales, Bloch e Febvre, tinham como objetivo construir uma história problematizadora da sociedade (história-problema), em oposição à história tradicional narrativa, predominante desde o final do século XIX. Essa história tradicional, criticada pelos historiadores franceses, estava preocupada com fatos singulares de caráter político, diplomático e militar. ! A história tradicional narrativa também é chamada história historicizante ou história événementielle. Já como a proposta por Bloch e Febvre é chamada história nova. Foi com o objetivo, portanto, de construir uma história-problema e uma história não apenas política que os historiadores dos Annales defenderam o diálogo com as demais Ciências Humanas – a Antropologia, a Psicologia, a Lingüística, a Geografia, a Economia e a Sociologia. PETER BURKE Renomado historiador da Universidade de Cambridge, Inglaterra, trabalha com História Cultural. No Brasil, tem publicado vários livros, dentre os quais pode-se destacar A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989); História e teoria social; Uma história social do conhecimento e O que é História Cultural? 126 C E D E R J Foi esse diálogo que transformou a cultura em objeto de estudo da própria História e alimentou uma discussão sobre o próprio conceito de cultura. OS DIFERENTES SIGNIFICADOS DA PALAVRA CULTURA A cultura se tornou objeto de estudo científico, apenas há dois séculos, mas a palavra é antiga; ao longo do tempo ela vem construindo vários significados. Mesmo no contexto científico, seu conceito é múltiplo. É nesse sentido que PETER BURKE afirma que “cultura é um conceito com uma embaraçosa gama de definições” (2002, p. 165). 11 Se você fizer uma rápida consulta em qualquer dicionário da AULA Língua Portuguesa, com certeza encontrará no verbete cultura diferentes acepções para essa palavra. Podemos destacar três grupos de significados mais relevantes. As primeiras definições identificaram a palavra com a ação e as maneiras de cultivar a terra; o terreno cultivado e a criação de certos animais. Em um segundo grupo de significados, você deve ter encontrado cultura com sentido de conjunto de conhecimentos adquiridos ou instrução; sua associação com as diferentes manifestações artísticas. Por fim, encontra-se uma conceituação mais ampla, em que cultura é o conjunto de características humanas que não são inatas – isto é, não naturais, não nascem com o homem –, cujo surgimento e transformação ocorrem através da cooperação e comunicação dos indivíduos em sociedade. Com certeza você já percebeu que o emprego usual da palavra, aquele utilizado no senso comum por nós, é o que associa cultura a conhecimento. Também foi possível para você reconhecer que, certamente, essa não é a definição empregada no contexto das Ciências Humanas, especialmente no da História. Essa multiplicidade de sentidos tem uma explicação: as palavras também possuem história; portanto, percebemos que seus significados se alteram, se ampliam, se transformam ao logo do tempo. UMA BREVE ANÁLISE DA ETIMOLOGIA DA PALAVRA CULTURA Segundo Chauí (2000), a palavra cultura é oriunda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar. O termo significava, portanto, o cuidado dispensado ao campo e ao gado. Nos A ciência que investiga as origens das palavras e sua evolução histórica é a ETIMOLOGIA. São, portanto, os dicionários etimológicos aqueles que registram as origens e a evolução dos termos. fins do século XIII, aparece no francês para designar uma parcela de terra cultivada. No início do século XVI, a palavra já significava a ação de cultivar a terra. Na segunda metade desse mesmo século, a expressão era empregada no sentido figurado, como o trabalho de desenvolver uma habilidade. Somente no século XVIII, com o Iluminismo, a palavra cultura passou a ser empregada predominantemente com o sentido de formação, educação, ação de instruir e estado de ser instruído. Cultura é a soma C E D E R J 127 História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade ao longo de sua história. Nesse sentido, a palavra, no século XVIII, associa-se às “idéias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no centro do pensamento da época” (CUCHE, 1999, p. 21). Coube, como já mencionamos, a uma nova ciência do século XIX – a Antropologia – aprofundar o debate conceitual do termo, influenciando outras Ciências Humanas, como a História, no século XX, como você verá ainda nesta aula. ATIVIDADE 1. Elabore uma frase para cada significado de cultura identificado, a partir do exemplo dado. Significado 1 Ação e maneiras de cultivar a terra, o terreno cultivado, a criação de certos animais. ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ Significado 2 Conhecimentos adquiridos, instrução, manifestações artísticas. ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ Significado 3 Conjunto de criações humanas, fruto da cooperação e comunicação dos indivíduos em sociedade. ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O objetivo desta atividade é você perceber que a palavra cultura possui diferentes significados. Trabalhamos aqui com três significados básicos, que podem ser exemplificados, respectivamente, pelas frases: “Essas terras são pouco férteis, por isso a cultura aqui é tão difícil”; “A cultura dessa estudante impressiona!” e “Os europeus encontraram nas Américas imensa diversidade de cultura”. No âmbito do ensino, algumas percepções e princípios sobre a dinâmica da cultura precisam ser trabalhados desde cedo. Vejamos alguns! 128 C E D E R J inventada, transformada e recriada ao longo tempo, construindo o resultado da interação dos indivíduos como membros de um grupo. Nesse sentido, a cultura é histórica. O próprio Taylor foi um dos primeiros a ter essa compreensão de sua dimensão coletiva e adquirida. Homem de seu tempo, entretanto, não percebeu o caráter múltiplo das manifestações culturais, por isso propôs uma linha de evolução cultural das sociedades, uma escala de civilização (vida selvagem, bárbara e civilizada). Essa ótica E V O L U C I O N I S TA traduzia uma perspectiva E T N O C Ê N T R I C A , típica do final do século XIX. Nesse sentido, a cultura européia era entendida como a mais desenvolvida, servindo de referência para a análise das demais existentes no mundo. A dimensão histórica da cultura foi ressaltada por FRANZ BOAS, em reação à visão evolucionista de Tylor. Para ele, de acordo com o processo histórico vivido pela comunidade, cada cultura segue seus próprios caminhos, portanto, não existe a cultura, mas culturas. O desenvolvimento dessa percepção histórica da cultura, nas séries iniciais, perpassa a vivência constante de situações culturais diversas de grupo para grupo e de tempo para tempo. Assim, o desenvolvimento de atividades deve confrontar hábitos, costumes, crenças, culinária, enfim, valores do grupo a que pertence a criança com os de outros grupos. Alunos cujas famílias possuem origens regionais diferentes podem apresentar hábitos alimentares diversos. Neste contexto, propiciam-se Nas ciências sociais, foi um princípio diretor proposto para a interpretação dos fatos sociais, consubstanciado no conceito de evolução, que se popularizou no meio científico no final do século XIX, principalmente entre 1860 e 1890, quando grande parte das obras evolucionistas foi publicada. Visava à descoberta e à exposição das seqüências ou estágios de crescimento sociocultural humano desde suas formas originais até os tempos atuais, considerados pontos máximos do progresso humano (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 1987, p. 444). A palavra ETNOCENTRISMO foi criada pelo sociólogo norte-americano Willian G. Summer, em 1906. Quando um grupo coloca os seus valores no centro do conjunto de valores produzidos pela humanidade, julgando os valores dos demais grupos a partir dos seus, considerados superiores, melhores, mais desenvolvidos, temos uma manifestação do etnocentrismo. condições de aprendizado em que a cultura é associada à criação coletiva ao longo do tempo. FRANZ BOAS (1858-1942) Estudou Física, Matemática e Geografia em universidades da Alemanha. Em uma expedição geográfica (1883/4), constatou a importância da cultura na organização social, passando a dedicar-se à Antropologia. Em 1886, foi para os EUA e acabou naturalizando-se norteamericano. Ensinou na Universidade de Colúmbia de 1899 a 1942. Entre suas obras estão A mente do homem primitivo (1911) e Antropologia e vida moderna (1928). C E D E R J 129 11 EVOLUCIONISMO AULA A cultura é fruto de um processo social. É continuamente História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história ATIVIDADE 2. A música de Onildo de Almeida, “A feira de Caruaru” ilustra a diversidade cultural na descrição que faz da famosa variedade de produtos à venda na feira popular da cidade de Caruaru. A partir do trecho selecionado: A feira de Caruaru faz gosto a gente ver De tudo que há no mundo nela tem pra vender (...) Tem massa de mandioca castanha assada, tem ovo cru (...) Pirão mexido qui nem angu Mubia de tamborete Feita de tronco de mulungu (...) Boneca de Vitalino Qui são conhecido inté no su De tudo que há no mundo Tem na feira de Caruaru. a. MARQUE de azul os traços culturais comuns também à sua região, e de vermelho, aqueles que você desconhece. b. IDENTIFIQUE, em verde, exemplos do artifício utilizado pelo autor para marcar traços de linguagem da sociedade retratada. c. SUBLINHE de preto os versos da composição que, através do exagero, exaltam, valorizam a criação cultural – a feira. RESPOSTA COMENTADA Na questão a você reconhecerá frutas, objetos, práticas também da sua região, mas perceberá que algumas citações são completamente sem significado para você. Sua resposta vai depender da sua origem familiar e da região do estado que você habita. Já na questão b é fácil perceber as passagens em que o regionalismo está demarcado. O autor traz para a música a linguagem coloquial, o regionalismo por meio de expressões como mubia, aqui, inté, su etc. Por fim, analisemos a questão c. A valorização da cultura regional se faz presente na música por meio do exagero presente nos versos “A feira de Caruaru/Faz gosto a gente ver/De tudo que há no mundo/Nela tem pra vender”. Obviamente, tudo que há no mundo não pode ser comprado na feira da cidade de Caruaru, mas lá se encontra tudo que é de interesse da sociedade local. 130 C E D E R J 11 Outro princípio importante a ser trabalhado nas séries iniciais é AULA o de cultura como processo de transmissão. Ninguém nasce com ela, mas a apreende no convívio social. A capacidade de produzir cultura é uma característica humana. O comportamento de nossa espécie não é dado naturalmente, é ensinado pela comunidade. A cultura diferencia os homens de outros animais, pois o capacita a interferir na natureza. Nesse sentido, as diferenças existentes entre os grupos são próprias da multiplicidade de relações e criações que as sociedades desenvolveram ao longo do tempo. Franz Boas já afirmava que “a diferença fundamental entre os grupos humanos é de ordem cultural e não racial” (CUCHE, 1999, p. 40). Essa crença o levou a ser um dos primeiros cientistas sociais a abandonar o conceito de raça para explicar o comportamento humano! Foi Alfred Kroeber (1876-1960), um discípulo de Boas, quem registrou em seus trabalhos a relação determinante entre cultura e comportamento do homem, opondo-se a explicações que remetiam à herança genética. Kroeber defendeu que a capacidade do homem de produzir cultura permitiu o rompimento da espécie com obstáculos do ambiente natural. Nesse contexto, a sobrevivência humana passou a depender dos conhecimentos acumulados, do seu aprendizado, da sua socialização. Esse caráter acumulativo é outra importante dimensão da cultura que precisa ser trabalhada no ensino. A aquisição da posição ereta, o desenvolvimento das habilidades manuais finas e o crescimento do cérebro – mudanças de caráter biológico – foram marcantes para o desenvolvimento da espécie humana; contudo, o surgimento da linguagem, segundo os estudiosos, foi o fator fundamental para as conquistas evolutivas da espécie. Para isso, contribuiu a capacidade de simbolizar, de abstrair, de aprender não mais na presença do objeto, mas sobre o objeto. O conhecimento não precisa ser apreendido a partir de situações concretas; mas a partir daquilo que se fala sobre este objeto. O sujeito, a partir do pensamento interior verbalizado, nos mecanismos de imaginação e de associação, pode, agora, conhecer o mundo. No contexto das séries iniciais, é fundamental, portanto, trabalhar com os conhecimentos adquiridos pela criança no seu processo de socialização. Ela deve relacionar o que aprende em casa, na escola, C E D E R J 131 História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história no clube com um processo de divulgação de cultura do seu grupo e, conseqüentemente, entender que se ela estivesse em outro grupo, em outro lugar, estaria aprendendo outras coisas. A fantasia pode nos ajudar! A história de Mogli ou de Tarzan são bons pontos de partida para discussão. Retirados do convívio do seu grupo quando crianças, criados em outros ambientes com animais, essas personagens aprenderam a se comportar de forma diversa da humana. Exatamente porque a transmissão da cultura se faz em sociedade, tanto Mogli como Tarzan são “animalizados”. ATIVIDADE 3. Observe a ilustração rupestre abaixo: A capacidade do homem de se comunicar em sociedade está intimamente ligada ao crescimento de sua capacidade de produzir cultura. Como as ilustrações rupestres podem comprovar essa afirmativa? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 132 C E D E R J 11 A linguagem permitiu que os homens se comunicassem, transformassem a natureza em cooperação e transmitissem seus saberes. Nesse sentido, a linguagem favoreceu a produção de cultura e sua transmissão. A arte rupestre registrava para o grupo manifestações religiosas, práticas cotidianas e vivências sociais diversas. Transmitia para o coletivo sua cultura. Outras práticas, como a dos contadores de história, em sociedades sem linguagem escrita têm esse mesmo papel. A memória visual e oral foi decisiva para a construção da identidade do grupo. CONCLUSÃO Coube ao Culturalismo norte-americano – de que Boas e Kroeber são nomes destacados – negar a possibilidade de valorizar uma determinada cultura como a melhor das manifestações culturais. Todos os sistemas culturais possuem sua própria coerência. Não há, portanto, culturas selvagens, bárbaras e civilizadas! Há culturas, todas com idêntico valor! A Antropologia cultural norte-americana esclareceu, também, que a cultura interpreta e transforma a natureza; isto é, mesmo as funções vitais são tratadas culturalmente. Não se senta, come ou anda da mesma forma em todas as culturas. A escola norte-americana ressaltou, ainda, a importância da educação no processo de divulgação e diferenciação cultural. Implementou uma visão de cultura como “um conjunto organizado de elementos interdependentes” (CUCHE, 1999, p. 93). Essa busca da Antropologia norte-americana está associada à sua heterogeneidade cultural. Os estudos americanos procuram – em um país de imigrantes, indígenas e negros – situar o lugar da diversidade na unidade. A perspectiva norte-americana ganhou relevância e se impôs à Antropologia estruturalista de LÉVI-STRAUSS que influenciou, somente em um primeiro momento, os historiadores franceses dos Annalles, especialmente Braudel. Podemos dizer, portanto, que diferentes antropologias e diferentes conceituações de cultura influenciaram os historiadores do século XX. A História das Mentalidades e a História Cultural são herdeiras, por exemplo, CLAUDE LÉVI-STRAUSS Procura o invariável nos seus estudos culturais, isto é, busca “os materiais culturais sempre idênticos de uma cultura para outra” (CUCHE, 1999, p. 97). Sua perspectiva de estudo é conhecida como Antropologia estrutural, pois tem por objeto os elementos culturais universais de toda a sociedade humana. da aproximação da História com a Antropologia cultural do EUA. C E D E R J 133 AULA RESPOSTA COMENTADA História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história RESUMO A cultura é expressão da capacidade criativa do homem, como membro de uma coletividade. É o resultado de sua ação transformadora, sua interferência em tudo aquilo que é naturalmente dado. Cultura é, assim, a natureza transformada, tanto no sentido material quanto imaterial, pois incorpora criações concretas ( por exemplo, a roda) e não concretas (exemplo: os valores morais). Nesse sentido, a cultura só pode ser entendida como processo histórico e, como tal, é objeto de estudo da história também. No contexto geral do ensino contemporâneo, o debate de questões culturais é de máxima importância, pois permite propiciar situações de aprendizagem para compreender, introjetar e aceitar a diversidade social existente no mundo. ATIVIDADE FINAL Na Índia, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, foram descobertas vivendo no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929. Não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente semelhante àquele de seus irmãos lobos. Elas caminhavam de quatro, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos. Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre, comiam e bebiam como os animais, lançando a cabeça para frente e lambendo os líquidos. Na instituição onde foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e ruidosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choraram ou riram. Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizandose lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco antes de morrer só tinha um vocabulário de cinqüenta palavras. Atitudes afetivas foram aparecendo aos poucos. Ela chorou pela primeira vez por 134 C E D E R J 11 ocasião da morte de Amala e se apegou lentamente às pessoas que cuidaram AULA dela e às outras crianças com as quais conviveu. A sua inteligência permitiulhe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e depois por palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples.” (REYRNOND, p. 25-26) A partir da leitura do texto, responda: a. A cultura é socialmente produzida e apreendida. Como a história das meninaslobo pode contribuir para a compreensão dessa afirmativa? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ b. O texto permite observarmos que até mesmo as manifestações da emoção não são naturais. Que passagem da história comprova o caráter cultural das manifestações emocionais humanas? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ c. A inteligência é identificada como fator importante na socialização de Kamala. Por quê? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Amala e Kamala sobreviveram em meio de lobos; logo, não conviveram com outros homens. Aprenderam a se comportar como lobos, evidenciando que o comportamento humano é aprendido socialmente. Não sabiam chorar e rir! Mesmo a emoção é trabalhada pelo coletivo. Cada grupo possui suas maneiras peculiares de manifestar dor e alegria. Contudo, graças à inteligência, Kamala desenvolveu junto com o grupo que conviveu, maneiras de se comunicar, que facilitaram o seu penoso processo de socialização. C E D E R J 135 História na Educação 1 | A cultura como objeto de estudo da história LEITURAS RECOMENDADAS LARAIA, Roque de Barros. Cultura. Um conceito antropológico. 12.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. Trata-se de obra clássica de introdução ao conceito de cultura. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999. Apresenta o desenvolvimento do conceito de cultura na Antropologia e na Sociologia. MOMENTO PIPOCA M Alguns filmes merecem serem assistidos sob a perspectiva da reflexão ssobre a cultura. Destaco: • A guerra do fogo, de Jean-Jacques Arhaud (1981) – narra a busca pelo fogo de um grupo pré-histórico, que em sua missão encontra diversas p comunidades, com culturas diferentes. c • Inimigo meu, de Wolfgang Petersen (1985) – filme de ficção, no qual, em e função de um acidente espacial, dois indivíduos de espécies diferentes, e inimigas, são forçados a conviver, transformando suas visões preconceituosas. Em ambos os filmes a linguagem aparece como fator fundamental de conhecimento simbólico do mundo. Os clássicos Mogli e Tarzan não podem ser esquecidos por aqueles que pretendem atuar no Ensino Fundamental. 136 C E D E R J 12 AULA Cultura, identidade e educação Meta da aula objetivos Explicar a importância da questão da identidade na atualidade. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Caracterizar a globalização; • Contextualizar a questão da identidade no mundo globalizado; • Relacionar cultura, construção de identidade e Educação. Pré-requisitos Esta aula fará referência à Aula 11, sendo de especial relevância sua compreensão do significado de cultura. A leitura do conteúdo da Aula 3 – Multiculturalismo e políticas afirmativas – da disciplina Fundamentos da Educação 3 (Volume 1 – Módulo 1) será útil para a contextualização da questão da Pluralidade Cultural no âmbito da Educação. História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação Diferença e identidade, igualdade e justiça, relativismo e universa- INTRODUÇÃO lismo, racionalismo e subjetividade, cidadania, ética, direito... estes termos nos são familiares. São as categorias mesmas do projeto moderno em seu conjunto que estão passando por uma crise. Mais que um desafio social e político, mais que um desafio teórico e filosófico, trata-se de um verdadeiro desafio de civilização que nos é lançado pelo multiculturalismo (SEMPRINI, 1999, p. 173). A preocupação com a pluralidade cultural é um fenômeno recente. Como já estudamos, o multiculturalismo se originou nos EUA, especialmente a partir da década de 1960, ganhando força nas décadas seguintes com a globalização, o neoliberalismo e com a fragmentação do bloco comunista. Ao colocar em discussão os direitos das minorias e a questão da identidade, o multiculturalismo desestabilizou a visão monocultural, pois constatou, no contexto sociocultural de qualquer grupo, a existência da diversidade, da subjetividade, da relatividade. No atual contexto mundial, globalizado, no qual diferentes culturas se encontram e se confrontam cotidianamente, no qual a desigualdade social se aprofunda e amplia, o aprendizado da diversidade tornou-se fundamental para a formação de qualquer cidadão. Assim, é preciso trazer para agenda escolar a riqueza da multiplicidade cultural como traço fundamental da realização de nossa humanidade, o que perpassa pela discussão da construção da identidade na atualidade. GLOBALIZAÇÃO E IDENTIDADE No início da década de 1970, a incapacidade de os produtos industriais dos EUA concorrerem com os de outros países industrializados provocou uma recessão econômica e, conseqüentemente, inflação e desvalorização monetária. A desvalorização do dólar – moeda base das transações comerciais mundiais – promoveu uma grave crise cambial, que afetou todo o mundo. Paralelamente, em 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), interferindo na estabilidade mundial, implementou uma política de valorização do preço do petróleo, principal fonte enérgica do sistema produtivo e dos mecanismos de transporte contemporâneos. 138 C E D E R J anunciassem nas décadas anteriores, a ação conjunta da desestabilização cambial e do aumento do barril do petróleo gerou uma importante retração da produção e do comércio, estimulando transformações no sistema produtivo capitalista (reestruturação produtiva). As principais características destas mudanças que se processaram ao longo da década de 1970 e 1980 foram: • a grande evolução tecnológica, da qual a robótica é o símbolo máximo; No final do século XIX, Frederick W. Taylor desenvolveu o taylorismo: uma dinâmica de organização científica do trabalho, baseada na mecanização da produção, na definição de tarefas pormenorizadas do processo produtivo, na seleção e treinamento criteriosos dos operários, na separação entre concepção e realização do trabalho (executivos X operários) e na implementação de programas de incentivo salarial por produtividade. No início do século seguinte, Henry Ford, sem abandonar as idéias de Taylor, desenvolveu a produção padronizada e a linha de montagem, criando o sistema conhecido como fordismo. TOYOTISMO • a expansão de novos ramos industriais como a informática e as telecomunicações; • a adoção do TOYOTISMO no sistema produtivo fabril em detrimento Nas últimas décadas do século XX, os princípios de integração e da flexibilidade, implementados por Taiichi Ohno, na Toyota, generalizaram-se, fruto do processo de reestruturação produtiva. Em função da alta tecnologia aplicada à produção, cujo ritmo está rigidamente associado à demanda e às rápidas alterações no processo produtivo, o toyotismo ou ohnoísmo defende uma organização do trabalho em grupo, uma autonomia maior, participação, polivalência e qualificação do trabalhador. do TAYLORISMO/FORDISMO; C E D E R J 139 12 T AY L O R I S M O E FORDISMO AULA Embora os indícios de uma crise política e econômica mundial já se História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação • o processo de terceirização, na qual empresas contratam outras como prestadoras de certos serviços, a fim de reduzir custos e ampliar o lucro. ! A Riocell, empresa de celulose do Rio Grande do Sul, por exemplo, possuía 3,6 mil funcionários em 1989. Três anos depois, após passar por um processo de “modernização”, restavam 1,1 mil funcionários. As empresas terceirizadas absorveram 1,7 mil pessoas. Observe que o processo de terceirização eliminou 800 empregos!!! As conseqüências dessas mudanças você conhece muito bem! Os produtos e o ambiente da empresa industrial se transformaram. As relações entre as empresas se multiplicaram com fusões e com a terceirizaDIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO Distribuição mundial hierarquizada dos diferentes tipos de atividades. Na atualidade, os países centrais dominam a área de concepção do produto, marketing, comercialização, administração, pesquisa, tecnologia e aplicação financeira, enquanto os países periféricos ficam com a área de produção. Está superada aquela divisão internacional do trabalho tradicional, na qual os países ricos eram os produtores de industrializados e os países pobres, de matérias-primas e alimentos. 140 C E D E R J ção, aumentando a concentração de capital. Com isso, uma nova DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO se consolidou, o setor de serviços cresceu, as relações de trabalho se flexibilizaram e o desemprego ampliou-se, assim como novas relações de trabalho surgiram e o subemprego se alastrou. Você deve estar se perguntando: o que esse processo tem a ver com a nossa aula sobre identidade? Tudo! Profundas mudanças se deram na concepção de produção do conhecimento. Inúmeras culturas travaram uma aproximação nunca antes vivenciada. Conflitos locais, regionais e planetários se intensificaram. Princípios e valores consolidados foram profundamente atingidos. As mudanças das últimas décadas contribuíram para a constituição de uma crise de identidade no contexto das sociedades ocidentais que não pode ser negligenciada pela escola. A reflexão e revisão dos princípios e os valores consolidados na modernidade são fundamentais para o futuro das sociedades contemporâneas. Esse é o desafio civilizador que temos que enfrentar! 12 AULA ATIVIDADE 1. Observe a tabela. Evolução da distribuição dos empregos por setor econômico em anos (em %) BRASIL AGROPECUÁRIA INDÚSTRIA SERVIÇOS Anos 40 66,7 12,8 20,5 Anos 70 30,8 27,5 41,7 Anos 90 20,9 19,6 59,5 EUA AGROPECUÁRIA INDÚSTRIA SERVIÇOS Anos 40 28,9 32,9 38,2 Anos 70 4,6 33,0 62,4 Anos 90 3,5 24,7 71,8 Fonte: Adaptado de POCHMANN, 2001, p.58-59. A distribuição do emprego por setor econômico no Brasil e nos EUA para o período de 1940-1990 apresenta um padrão de evolução. Identifique esse padrão para cada setor econômico. Agropecuária: _________________________________________________________________ Indústria: _________________________________________________________________ Serviços: _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Houve para o setor da agropecuária uma redução progressiva e acentuada. No caso da indústria, o avanço do emprego na década de 1970 foi seguida por uma retração, enquanto o setor de serviço teve uma ampliação acentuada. C E D E R J 141 História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação CULTURA, IDENTIDADE E EDUCAÇÃO Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença é preciso explicar como ela é ativamente produzida. A diversidade biológica pode ser um produto da natureza; o mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. A diversidade cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em vez disso, o ponto final de um processo conduzido por operações de diferenciação (SILVA, 2003, p. 100). A compreensão da cultura a partir do final do século XIX como realização humana e histórica foi fundamental para o processo de percepção de que as diferenças entre os homens são resultado da sua (inter)ação com seus semelhantes e com a natureza. Essa percepção favoreceu a rejeição da concepção racial das diferenças entre os homens e tornou a diversidade um elemento indissociável da própria realização de criação do homem. A relação entre cultura e identidade, portanto, é indiscutível, já que esta última é o conjunto de elementos relativamente sistematizados e internalizados no nosso processo de socialização. Reconhecemo-nos como idênticos a uns e, conseqüentemente, diversos de outros, e não seria possível pensar esta relação dissociada do processo cultural. É na cultura que encontramos práticas, valores, saberes, princípios com os quais nos identificamos, nos filiamos. É no contexto da produção social que os elos, os elementos culturais se configuram como matrizes de nosso reconhecimento. Nesse sentido, a identidade de cada um de nós está sempre em construção, já que interagem com as transformações vivenciadas no contexto social, responsáveis pela infinita produção de cultura. Nas palavras de Woodward, a “cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade” (2003, pp. 18-19). A identidade se constrói sempre na alteridade. A união do que é idêntico, análogo, semelhante se faz em um processo de diferenciação, no qual o referencial é sempre o outro, o diverso. Quando nos identificamos como brasileiros, sempre o fazemos tendo como contraponto o que entendemos como argentinos, franceses, alemães etc. Pensar um mundo sem a diversidade é, portanto, impossível! 142 C E D E R J 12 A escola, tradicionalmente, tem assumido o papel de homogenei- AULA zação social e cultural que privilegia a visão ocidental de mundo. Essa visão é essencialmente etnocêntrica, privilegia papel do homem branco europeu como agente civilizador. Essa identidade centrada e unitária, conhecida como cartesiana, não responde às indagações, às necessidades e aos problemas da contemporaneidade. Nessa perspectiva, na qual a razão, a consciência e a ação são plenamente identificáveis e estáveis, quer no indivíduo, quer na sociedade, não há espaço para a diversidade, o conflito, a divergência e a contradição, típicas do mundo globalizado. Vivemos no mundo em que a identidade é fragmentada, múltipla e contraditória, refletindo a descontinuidade, a ruptura e o deslocamento típico da “realidade” globalizada. Para elucidar a questão da identidade fragmentada, Hall (2001, pp. 18-20) nos dá um bom exemplo. Em 1991, Bush indicou Clarence Thomas, um juiz negro de visão política conservadora, para a Suprema Corte. Nesse caso, a questão da multiplicidade de identidades já se apresentava. Homens brancos conservadores apoiariam a indicação do juiz negro conservador? De que condição afinal os primeiros se pronunciariam? Afinados com a condição de serem brancos ou com a condição de serem conservadores? Por outro lado, homens negros, tradicionalmente envolvidos com a orientação da política liberal, apoiariam Thomas por ele ser negro ou o rejeitariam por ele ser conservador? Contudo, o conflito de identidade se tornou ainda mais complexo! Durante as audiências no Senado para aprovar sua indicação, Thomas foi acusado de assédio sexual por uma ex-colega, Anita Hill, também negra. Os homens brancos e negros, liberais e conservadores, posicionaram-se de acordo com o aspecto identitário que preponderava dentro de si. As mulheres negras e brancas oscilaram entre a sua identidade étnica, a de gênero e a política. Assim, se a questão de gênero prevalecia, as feministas se opuseram ao juiz independentemente de sua identidade étnica. O exemplo é rico! Evidencia que nossa identidade não é una e estável como anteriormente se acreditava! C E D E R J 143 História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação Como a escola pode se inserir nessa discussão e contribuir para a construção de outros caminhos? Em uma perspectiva multicultural, segundo Sacristán, os objetivos a serem perseguidos pela educação são claros: desenvolver uma empatia para com o outro, o diferente; conhecer as razões dos conflitos entre os homens em todos os níveis (contexto pessoal, nacional e internacional); comprometer-se com o combate aos preconceitos e à discriminação; promover a internalização de normas e de valores numa perspectiva plural; propiciar a percepção da interdependência entre os homens e as sociedades. Os fundamentos dessa perspectiva são a integração e o respeito aos segmentos sociais excluídos e às outras culturas (2001, pp. 92-93). Sacristán identifica quatro pontos de ação para a implementação desses fundamentos e objetivos: 1. a formação dos professores; 2. o planejamento dos currículos; 3. a produção de materiais apropriados; 4. a análise e a revisão crítica das práticas vigentes (2001, p. 107). Somente com essa transformação integrada será possível, conforme defende Silva, aproximar “a diferença do múltiplo e não do diverso”: Tal como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre um processo, uma operação, uma ação. A diversidade é estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é uma máquina de produzir diferença – diferenças que são irredutíveis à identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multiplicidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversidade é um dado – da natureza e da cultura. A multiplicidade é um movimento. A diversidade reafirma o idêntico. A multiplicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com o idêntico (2003, pp. 100-101). Não basta promovermos na educação a tolerância e o respeito em relação à diversidade cultural para que haja a aceitação do diverso. É preciso tratar a identidade e a diferença como questão política, como produção social, histórica. 144 C E D E R J 12 AULA ATIVIDADE 2. Leia atentamente o conjunto de palavras. SEGURANÇA PROGRESSO INSTABILIDADE INJUSTIÇA REALIZAÇÃO CONFIANÇA ESTABILIDADE JUSTIÇA INSEGURANÇA COMPREENSÃO CRISE EQUILÍBRIO Transcreva quatro palavras do conjunto apresentado que se relacionem com o contexto socioeconômico da globalização. RESPOSTA COMENTADA Os sentimentos de instabilidade e de insegurança atormentam todos nós na atualidade. Eles não são fruto de problemas individuais, mas da globalização, processo histórico que encobre uma grave crise do sistema capitalista. Nesse contexto globalizado, no qual a competitividade e a concentração de renda aumentam, há como percebermos uma ampliação das injustiças. CONCLUSÃO A globalização aprofundou a necessidade de a Educação trazer para sua pauta de debate a questão da identidade e da cultura. É nesse contexto que diversas reformas curriculares trataram do tema e que, no caso brasileiro, a pluralidade cultural constituiu-se tema transversal dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Em vez de isolar ou de compartimentar o ensino e a aprendizagem, a abordagem transversal propõe que as diferentes áreas já existentes contemplem os objetivos e conteúdos de temas de relevância social. Já que é necessário recorrer a conjuntos de conhecimentos de diferentes áreas, os temas devem ser trabalhados de forma contínua e integrada por todas as áreas, deve impregnar todo o currículo. A transversalidade é, ela própria, um exemplo dos novos tempos, das novas necessidades. Rompe com a concepção compartimentada do saber que caracteriza a escola tradicional. Evidencia a intenção de formar indivíduos autônomos e críticos, capazes de associar saberes C E D E R J 145 História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação e agirem no dia-a-dia, lidando com a complexidade e a mutabilidade dos valores e das relações sociais, políticas e econômicas. Investe na preparação para a mudança, em vez da permanência; na subversão, e não na passividade. Fiquemos, para finalizar, com a reflexão de Veiga-neto. Se a Pós-modernidade é um tempo de melancolia frente aos fracassos do projeto moderno, se “sentimos” que esse nosso tempo é de fragmentação e estilhaçamento, é porque o horizonte prometido não passava de promessa. É auto-engano pensar que perdemos as estabilidades e homogeneidades modernas, pois não se pode perder o que nunca se teve. Se perdemos algo, foi, sem dúvida, a ilusão: e isso deve ser festejado (1999, p. 9). Embora o momento seja de crise, romper com a ilusão possibilita a ampliação do conhecimento e a inovação, o que precisa ser sempre comemorado. ATIVIDADE FINAL O noticiário brasileiro, em julho de 2005, deu destaque à CPI dos Correios e do Mensalão. As informações jornalísticas detalham as investigações sobre as denúncias de envolvimento de membros do Partido dos Trabalhadores e de congressistas em práticas ilegais de financiamento de campanha e de venda de apoio político ao governo (mensalão). Essa crise pode ser analisada sob a ótica da identidade? Justifique. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Claro que essa crise política se traduz também em uma crise de identidade. Ela fica mais clara no contexto dos militantes de “esquerda”, que se vêem divididos na defesa ou no ataque ao PT diante dos indícios fortes de rompimento com valores éticos que se confundem com sua própria história. O dilema abala os mitos e os referenciais. Coloca em discussão e dúvida os crimes que foram cometidos por pessoas e/ou instituições. 146 C E D E R J 12 AULA RESUMO A relevância da questão cultural e identitária no mundo contemporâneo é inegável. A constatação da multiplicidade como um traço do exercício da nossa humanidade fragiliza o entendimento tradicional de “normalidade”. Permite aceitarmos que o homem, como sujeito histórico, está sempre transformando e construindo as relações com seus semelhantes e a natureza. Nesse sentido, observamos que a “realidade” é mutável, depende dos referenciais que utilizamos para idealizá-la; logo, inúmeras identidades interagem e se confrontam em nosso dia-a-dia. É fundamental que a escola traga essa perspectiva para seu interior, para o processo educativo, a fim de contribuir com a formação de cidadãos conscientes das descontinuidades e rupturas típicas do mundo contemporâneo. INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, você aprenderá a importância do documento para a construção da História. LEITURAS RECOMENDADAS Estas são leituras obrigatórias para pensar a identidade na atualidade: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 5a ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. Texto sintético que apresenta as mudanças produzidas pela globalização no mundo e no Brasil. LACERDA, Antônia Corrêa. O impacto da globalização na economia brasileira. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1999. C E D E R J 147 História na Educação 1 | Cultura, identidade e educação Coletânea fundamental para discutir currículo e multiculturalismo. SILVA, Tomaz Tadeu e MOREIRA, Antonio Flávio (org.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 148 C E D E R J 13 AULA História e documento Meta da aula objetivos Definir o significado do conceito de documento para a História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar o significado do conceito de documento para a História. • Reconhecer os vários tipos e formatos de documentos existentes. • Identificar a relação entre a elaboração de um documento e o contexto histórico em que foi produzido. História na Educação 1 | História e documento “Sem documento não há história.” (Langlois & Seignobos) INTRODUÇÃO Você já parou para pensar em como o documento está presente em todos os aspectos de nossas vidas? Ninguém sai de casa sem um documento, seja ele a carteira de identidade, a carteira de motorista ou o cartão do banco. Para tudo, existe um documento. Ao nascermos, recebemos o primeiro de uma série de muitos documentos: a certidão de nascimento. A morte também é documentada, através das certidões de óbito; afinal, a Previdência Social não pode pagar pensão para quem já não está mais neste mundo, não é? Você já ouviu falar nas pessoas que precisam comparecer aos postos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para provar que estão vivas? Seja para receber o benefício do INSS, seja para matricular o filho na escola, todos precisamos, em algum momento de nossas vidas, comprovar a nossa existência por meio de um documento. Para além de uma obrigatoriedade, o documento é uma espécie de salvoconduto que nos abre inúmeras portas na vida cotidiana. Imagine uma pessoa sem carteira de trabalho, CPF (número no cadastro de pessoa física), título de eleitor e certificado de reservista: nem emprego ela arranjaria. O documento é, então, uma comprovação de quem somos na sociedade em que vivemos: da certidão de nascimento à certidão de óbito, passando pela certidão de casamento, carteira de motorista, título de eleitor, cartão de crédito, todos esses papéis são provas que definem quem somos. Mas os documentos não são apenas obrigações impostas pelo Estado a todos os cidadãos; nós também fabricamos nossos próprios documentos: nossas cartas, poemas, retratos também são documentos de nossas vidas, à medida que são testemunhos de quem somos. Imagine se, daqui a muitos e muitos anos, alguém for escrever a história de sua vida. Para isso, ela precisará não apenas dos seus documentos pessoais, mas de todos os vestígios relativos à sua existência: cartas, fotografias, diários, lembranças de pessoas com quem conviveu etc. Da mesma forma, nem todos os documentos são individuais; há documentos coletivos, como os jornais, os programas de televisão etc. Assim, documento é tudo aquilo de onde podemos extrair informações sobre uma pessoa, uma coletividade, uma sociedade. O objetivo desta aula é, justamente, mostrar como os vários tipos de documentos são usados pelos historiadores para construir a História. Nas aulas seguintes, iremos explorar também as possibilidades de uso destes documentos em sala de aula. 150 C E D E R J 13 AULA O QUE É DOCUMENTO PARA A HISTÓRIA? Quando o historiador estuda um assunto, qual é a sua matériaprima? São os documentos, isto é, são os vestígios do passado. Vestígio é tudo aquilo que sobrou de uma determinada época, de forma voluntária ou não. Como definiu Henry Rousso (1996, p. 90), “vestígio é a marca de alguma coisa que foi, que passou, e deixou apenas o sinal de sua passagem”. Por exemplo: imagine-se abrindo, por acaso, uma gaveta de uma cômoda antiga e encontrando, lá dentro, um par de óculos antigos, de aro de tartaruga, e uma folha de um jornal datado de 1915. Você acabou de deparar com dois vestígios de uma época distante. Alguém, um dia, guardou o jornal e os óculos dentro da gaveta. Por quê? Não sabemos. Mas sabemos que quem os guardou não o estava fazendo para deixar seus objetos para a posteridade. Provavelmente, estava apenas guardando para ler depois. A pessoa não devia imaginar que, após tantos anos, alguém abriria sua gaveta e descobriria suas coisas. Em contrapartida, também podemos fabricar vestígios justamente porque queremos que sejamos lembrados no futuro. Diários, testamentos, álbuns de fotografias, por exemplo, são documentos elaborados propositadamente para que sirvam como lembranças do passado. Um dos exemplos mais famosos da História do Brasil – de documento feito para ser sempre lembrado – é a carta-testamento de Getulio Vargas. Nela, pouco antes de se suicidar, ele expõe ao povo brasileiro os motivos pelos quais resolveu deixar a presidência da República ao acabar com a própria vida. Sua frase final demonstra bem o que ele pretendia: “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História” (Rio de Janeiro, 23/8/54 – Getulio Vargas). C E D E R J 151 História na Educação 1 | História e documento ATIVIDADE 1. Leia o trecho a seguir, reproduzido da canção “Futuros Amantes”, de Chico Buarque de Hollanda: E quem sabe, então O Rio será Alguma cidade submersa Os escafandristas virão Explorar sua casa Seu quarto, suas coisas Sua alma, desvãos Sábios em vão Tentarão decifrar O eco de antigas palavras Fragmentos de cartas, poemas Mentiras, retratos Vestígios de estranha civilização... A partir da leitura, responda: a. Quais foram os documentos citados pelo poeta? ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ b. Como ele descreveu, na letra da música, o trabalho do historiador? ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Chico Buarque mostrou, de forma poética, que casas, objetos, cartas, poemas, retratos são “vestígios de estranha civilização”, ou seja, são sobras do passado que podem ser usadas para compreender uma sociedade. Ele descreve, também de forma poética, o trabalho do historiador de duas formas: primeiro, ele é o “escafandrista” que busca os vestígios do passado na cidade submersa. No momento seguinte, ele é o sábio que tenta decifrar, ou melhor, compreender uma sociedade por meio dos vestígios encontrados. 152 C E D E R J 13 A esta altura, você já percebeu que todos os vestígios do passado, AULA sejam eles voluntários ou não, são passíveis de análise histórica. No fundo, qualquer coisa, seja ela um texto, um objeto, uma fotografia, uma estátua ou uma cadeira velha são vestígios do passado. Mas nem todos estes objetos são documentos. O que transforma o vestígio em documento (ou, se utilizarmos a linguagem historiográfica, em fonte) é justamente o uso que dele é feito pelo historiador, ou seja, à medida que o historiador escolhe um vestígio para analisá-lo, extraindo informações sobre uma determinada época, ele passa a ser um documento. Por exemplo: suponhamos que você tenha, no armário da sua cozinha, um liquidificador fabricado em 1968. Até hoje, seu liquidificador é apenas um eletrodoméstico antigo, um vestígio de uma época em que eles ainda eram feitos para durar muito tempo. Mas, se você resolver estudar a história da industrialização brasileira na década de 1960, este liquidificador lhe será muito útil. De objeto com pouco ou nenhum uso, ele passará a ser um documento histórico. Portanto, o documento (ou a fonte) é uma testemunha direta do que aconteceu no passado. Ele pode ser de inúmeros tipos: registros escritos, imagens, relatos orais, achados arqueológicos, objetos, construções, dentre outros. Como vestígio de uma época, ele foi elaborado, de forma voluntária ou não, pelos sujeitos históricos que viveram em determinada época. Mas seu uso para análise, por parte de um historiador, é sempre proposital. Como você viu, podemos considerar como documentos todos os registros de uma sociedade que permanecem no tempo. No entanto, você perceberá que também são documentos aqueles registros que, embora não sejam escritos, fazem parte da memória da sociedade a que pertencem. Nesse sentido, os relatos orais (cantigas, poemas, histórias, lendas, entrevistas, memórias...), embora sujeitos a muitas transformações — vovó dizia: “quem conta um conto, aumenta um ponto” —, são ricas fontes de análise, pois podem mostrar a maneira como uma sociedade pensa sobre si própria, como pensa seus mitos e sua origem. Recapitulando: são considerados documentos os registros escritos (como sua certidão de nascimento, por exemplo), mas também outras formas de registrar a vida (as fotos que recordam seu nascimento ou seus primeiros meses de vida, as histórias que os mais velhos contam a respeito das coisas fantasticamente inteligentes que você fazia quando C E D E R J 153 História na Educação 1 | História e documento era apenas um bebê — como acertar a colherada de sopinha na boca depois de 35.217 tentativas frustradas!). Também são documentos os achados arqueológicos que nos permitem compreender técnicas que sociedades do passado utilizavam para organizar-se. Lembre-se dos sambaquis, que até hoje despertam a curiosidade dos estudiosos e sustentam algumas hipóteses sobre o nosso passado. Como nossos antepassados sepultavam seus mortos? Cada sociedade, ao tratar dos corpos de seus mortos, demonstra informações essenciais para que possamos compreendê-las. Vejamos nós, brasileiros de hoje em dia mesmo: quando morre uma criancinha, enterramos em um pequeno caixão branco; muitas vezes deixamos alguns dos pertences da criança ao lado do corpo, como uma chupeta ou um brinquedo muito querido. Que significados têm estes gestos? Como um historiador do futuro poderia interpretar este ritual? Em primeiro lugar, o caixão branco é o símbolo de que estamos enterrando um “anjinho”. Herdamos esta idéia de nossa colonização européia, carregada da tradição religiosa cristã, herdada, por sua vez, dos antepassados romanos. Percebeu como é possível desvendar atitudes comuns do dia-a-dia que sequer suspeitávamos que pudessem nos levar tão longe? Vejamos mais um exemplo para corroborar nossa argumentação: imagine que você esteja interessado em investigar as condições de vida dos escravos brasileiros no século XVIII. Para realizar sua pesquisa, você precisa saber como esses escravos se alimentavam, como se vestiam, que tipo de moradia protegia-os da chuva e do frio, que tipo de relações estabeleciam com os homens livres, qual era sua expectativa de vida, seus costumes religiosos, como eram tratadas suas crianças. Para responder a estas perguntas, você pode recorrer a uma série de fontes. Por exemplo, para responder à pergunta “Como se alimentavam?”, você pode escolher utilizar as seguintes fontes: a relação dos itens de produtos agrícolas produzidos nas fazendas para uso interno; a relação dos mesmos itens produzidos e comercializados por pequenos produtores estabelecidos na região, dentre outras. Além disso, você pode usar também alguns relatos das enfermidades que mais atingiam a população escrava. A partir deles, você pode extrair informações sobre a adequação da alimentação, indagar se na dieta dos cativos faltava algum nutriente; enfim, você pode fazer muitas perguntas e procurar respostas para todas elas! 154 C E D E R J 13 AULA ATIVIDADE 2. Leia o texto a seguir, escrito pelo historiador Henry Rousso: Chamaremos de fontes todos os vestígios do passado que os homens e o tempo conservaram, voluntariamente ou não – sejam eles originais ou reconstituídos, minerais, escritos, sonoros, fotográficos, audiovisuais, ou até mesmo, daqui para a frente, ‘virtuais’ (contanto, nesse caso, que tenham sido gravados em uma memória) –, e que o historiador, de maneira consciente, deliberada e justificável, decide erigir em elementos comprobatórios da informação, a fim de reconstituir uma seqüência particular do passado, de analisá-la ou de restituí-la a seus contemporâneos sob a forma de uma narrativa (...). Um testemunho colhido ou um documento conservado só deixam de ser vestígios do passado para se tornarem ‘fontes históricas’ no momento em que um observador decide erigi-los como tais. Toda fonte é uma fonte ‘inventada’ (...). Nenhum documento jamais falou por si só (...). Existe um abismo entre aquilo que o autor de um documento pôde ou quis dizer, a realidade que esse documento exprime e a interpretação que os historiadores que se sucederão em sua leitura farão mais tarde: é um abismo irremediável, que deve estar sempre presente na consciência, pois assinala a distância irredutível que nos separa do passado, essa ‘terra estrangeira’. O trabalho do historiador é por definição uma operação seletiva, que depende do que foi efetivamente conservado, depende da sua capacidade pessoal e se inscreve num contexto particular (ROUSSO, 1996, p. 86). Após a leitura, comente a afirmação: “toda fonte é uma ‘fonte inventada’”. _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Com esta frase, Henry Rousso resume o argumento do trecho reproduzido acima: ele quer demonstrar que, ao escolher um vestígio para análise e transformá-lo em documento (ou fonte), o historiador “inventa” a fonte, ou seja, é ele quem cria a fonte. Por isso, é importante que você compreenda que a fonte não existe por si só. Enquanto não for utilizada por um historiador, ela é um vestígio, um rastro do passado. Ao ser selecionada e analisada, ela vira um documento. É por isso que o autor afirma que “o trabalho do historiador é por definição uma operação seletiva”: é ele quem deve buscar o vestígio, transformá-lo em documento, compreender as informações trazidas na fonte e analisá-las. C E D E R J 155 História na Educação 1 | História e documento ONDE ESTÁ O DOCUMENTO? Depois desta discussão sobre o conceito de documento, você deve estar se perguntando onde estão os documentos e como podemos chegar até eles. É claro que, como você viu anteriormente, já que o documento pode ser qualquer vestígio do passado que estejamos estudando, ele também pode estar localizado em qualquer lugar: por exemplo, nas casas das pessoas comuns, nas fotos que guardamos para mostrar às pessoas de que gostamos, nas agendas de adolescentes que selecionam e registram o que acontece nas novelas. Mas o lugar, por excelência, onde encontramos documentos é o arquivo. Diferentemente de lugares como a cômoda e o baú velho – nos quais, às vezes, podemos ter a sorte de encontrar documentos que nos interessem –, a principal característica do arquivo é que ele foi feito justamente para isto: guardar vestígios do passado. Ao fazê-lo, ou seja, ao transformar um conjunto de vestígios em uma coleção, que será armazenada, catalogada e colocada à disposição do público, o arquivo transforma os vestígios em documentos. Por isso, ao consultarmos um arquivo, devemos sempre ter em mente que os documentos lá depositados são aqueles que, por alguma razão, foram armazenados por alguém, organizados, classificados e guardados antes de terem sido disponibilizados para consulta. Portanto, ao estudarmos um assunto e consultarmos documentos relativos a ele, precisamos saber não apenas o conteúdo do documento – ou seja, aquilo que podemos apreender a partir de sua análise –, mas a história de sua constituição como tal. Precisamos saber por que eles foram guardados, por quem, quando foram arquivados e quais foram os critérios usados para sua catalogação. Você deve estar se perguntando por que isto é tão importante, se o nosso interesse é apenas ler um simples documento. Isto é importante justamente para não nos enganarmos, achando que aqueles documentos encontrados referem-se a todas as informações existentes sobre o assunto. É fundamental termos sempre em mente que estamos consultando aquilo que restou – e que, para cada documento encontrado, tantos outros nunca o serão, tantos outros foram destruídos. Vejamos um exemplo para corroborar nossa argumentação. Digamos que estejamos interessados em fazer uma pesquisa sobre um 156 C E D E R J 13 famoso jornalista que tenha trabalhado no jornal Correio da Manhã. No AULA Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, há uma coleção intitulada Correio da Manhã, onde podem ser encontradas, dentre outros documentos, matérias escritas por ele. Ao consultarmos a coleção, encontraremos a seguinte descrição: Fundo/Coleção: Correio da Manhã Código: PH Natureza Jurídica: Privada Datas-limite: 1930 a 1974 Histórico: O jornal carioca, diário e matutino, criado em 15/6/1901, por Edmundo Bittencourt e extinto em 8/7/1974. Foi durante grande parte de sua existência um dos principais órgãos da imprensa brasileira, destacando-se como um jornal independente, de tradição legalista e oposicionista, durante diversos momentos da vida política do país. A documentação foi doada em 1982, por Fernando Gasparian, que a adquiriu através de leilão, em 1975. O acervo cobre o período de administração de três diretores: Paulo Bittencourt, Niomar Moniz e Maurício Nunes de Alencar. Este fundo/coleção recebeu anteriormente o código AP 52. Conteúdo: A documentação textual, composta de recortes de jornais, manuscritos e publicações, permanece com a organização recebida originalmente, em dossiês temáticos, como por exemplo: recortes de jornais e manuscritos referentes a matérias de jornais sobre abastecimento, Amazônia, animais (proteção), aviões, bíblia, Brasília (fundação), classe média, crimes (trânsito), doenças (parasitoses intestinais), economia, espaço (Sol), Europa Ocidental (conflitos sociais), favela Babilônia, futebol na União Soviética, Grécia (história), greves (Brasil), habitação (1970), Hungria (operários-políticos), imóveis da União, independência da mulher, indústria siderúrgica, insônia, jardinagem, justiça (Supremo Tribunal Federal), literatura (prêmios), logradouros (estrada Grajaú-Jacarepaguá), mapa geológico do Brasil, minérios, navegação (segurança), negros, Observatório Nacional, C E D E R J 157 História na Educação 1 | História e documento óleos vegetais (exportação), ornitologia (Museu de Ornitologia-Campinas), poesia (Espanha), radioamadorismo, tapeçaria, seqüestro de embaixadores, repressão policial, presos políticos e outros, biografias de políticos, escritores, poetas etc. Os dossiês de presos políticos trazem como curiosidade, principalmente no período de 1968-1969, as cópias das fichas criminais do DOPS, com dados sobre os mesmos, tais como codinome e organismos aos quais teriam pertencido. Os registros visuais são constituídos por ampliações fotográficas de vários formatos, negativos, charges, ilustrações, cartazes, cartões-postais e desenhos originais e retratam cenas da vida nacional e internacional, resultado das coberturas jornalísticas diárias do jornal. Estão agrupados em dossiês onomásticos ou temáticos. Os documentos cartográficos retratam o Brasil, alguns países europeus e mapas rodoviários (sic). Fonte: Arquivo Nacional (2005). Através do histórico e do conteúdo, será possível ver, por exemplo, que, embora o jornal tenha sido criado em 1901, esta coleção abarca documentos apenas a partir de 1930. Ela não serve, portanto, para pesquisas sobre o período que vai de 1901 a 1930. Da mesma forma, podemos perceber que a organização em dossiês temáticos foi feita no próprio jornal, não no arquivo. Isto significa que, se algum artigo ou tema tiver sido propositadamente suprimido, isto aconteceu ainda no jornal, antes de a coleção ser doada para o Arquivo. Percebeu como é importante saber quais as condições de criação das coleções? São elas que permitirão ao pesquisador entender como um documento foi preservado, o que certamente o ajudará a entender melhor não só o contexto histórico de sua produção, mas também a época em que ele foi catalogado. 158 C E D E R J 13 3. O texto a seguir refere-se à coleção de documentos da Delegacia Especial de Segurança Política e Social – a polícia política –, localizada no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Após ler as informações que se seguem, descreva as características desta coleção, analisando seu processo de constituição, os tipos de documentos nela abarcados e as possibilidades de pesquisa existentes a partir de seu acervo. ÁREA DE IDENTIFICAÇÃO Código de Referência BR APERJ CDP DESPS Título Delegacia Especial de Segurança Política e Social Data(s) 1905 a 1944 Datas de produção Nível de Descrição Fundo 24,50 metros lineares ou 1.038 de documentos textuais 10 cartazes Dimensão e Suporte 41 cartões-postais 7 desenhos 1.379 fotografias de documentos iconográficos 9 mapas C E D E R J 159 AULA ATIVIDADE História na Educação 1 | História e documento ÁREA DE CONTEXTUALIZAÇÃO 160 C E D E R J Nome(s) do(s) Produtor(es) BRASIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Polícia Civil do Distrito Federal. Delegacia Especial de Segurança Política e Social. História Administrativa / Biografia A função de polícia política no Rio de Janeiro foi estabelecida pelo Decreto nº 3.610, de 14 de abril de 1900, atribuindo ao chefe de Polícia do Distrito Federal a competência privativa de polícia política. O Decreto nº 6.440, de 30 de março de 1907, criou o Corpo de Investigações e Segurança Pública com a finalidade de prevenção, investigação e vigilância policial. O Decreto Legislativo nº 4.003, de 7 de janeiro de 1920, regulamentado pelo Decreto nº 14.079, de 25 de fevereiro de 1920, organizou a Inspetoria de Investigação e Segurança Pública, criando a Seção de Ordem Social e Segurança Pública com a competência de vigiar anarquistas e agilizar a expulsão de estrangeiros. O Decreto nº 15.848, de 20 de novembro de 1922, criou a 4ª Delegacia Auxiliar, com as seções de Ordem Política e Social e de Arquivo e Informações, entre outras. O Decreto nº 22.332, de 10 de janeiro de 1933, instituiu a Delegacia Especial de Segurança Política e Social, com a função única de polícia política, exercida principalmente pelas Seções de Ordem Política, e de Ordem Social, além do Arquivo Geral. O Decretolei nº 6.378, de 28 de março de 1944, reestruturou os serviços da Polícia Civil do Distrito Federal, extinguindo a Delegacia Especial e criando a Divisão de Polícia Política e Social, subordinada ao Departamento Federal de Segurança Pública. 13 Procedência Recolhido da Polícia Federal do Rio de Janeiro em 1992, de acordo com a Lei nº 2.027, de 29 de julho de 1992. ÁREA DE CONTEÚDO E ESTRUTURA Âmbito e Conteúdo Reúne as seguintes séries: Censura Postal; Correspondência; Documentos Fotográficos; Dossiês; Fichas Funcionais; Inquéritos; Livro-caixa hospitalar; Livro de Registro de Fichas; Livros de Registro de Protocolo; Livros de Protocolo de Remessa; Mapas de Detidos; Prontuários; Registros de identificação e Relatórios. Destacam-se as séries Dossiês, Inquéritos e Prontuários, que contêm informações sobre as atividades de integralistas, comunistas, espionagem alemã e italiana durante a 2ª Guerra Mundial. Os relatórios informam sobre a estrutura e a atuação da Polícia Política. Sistema de Arranjo Organizado por tipo documental em 14 séries, ordenados cronologicamente. Os panfletos e folhetos foram catalogados de acordo com as normas de referência bibliográfica da ABNT, de 2000. C E D E R J 161 AULA História Arquivística Os documentos desse fundo integravam o arquivo inativo do último órgão de polícia política, o Departamento Geral de Investigações Especiais, inexistindo instrumentos de recuperação das suas informações. Esse fundo herdou documentos produzidos por órgãos antecessores, principalmente da 4ª Delegacia Auxiliar. Durante a Revolução de 1930, parcela de documentos da 4ª Delegacia foi destruída, quando da invasão ao prédio da Polícia. O Departamento Geral das Investigações Especiais realizou avaliação e eliminação do acervo da Polícia Política, não se conhecendo sua interferência nos documentos da Delegacia Especial. Este fundo foi identificado, organizado e descrito por diversas equipes da Coordenação de Documentação Permanente do APERJ, de 1996 a 2001. História na Educação 1 | História e documento ÁREA DE CONDIÇÕES DE ACESSO E USO Condições de Acesso A Lei nº 2.331, de 5 de outubro de 1994, dispõe sobre a desclassificação dos documentos e a responsabilidade de funcionários e usuários sobre a divulgação e o uso das informações contidas em documentos públicos. O Decreto Federal nº 2.134, de 24 de janeiro de 1997, estabelece que os documentos contendo informações sobre vida privada, honra e intimidade devem ser abertos no prazo de 100 anos, a partir de sua data de produção. O APERJ dispõe de Comissão Permanente de Acesso. Condições de Reprodução A reprodução é permitida mediante autorização do APERJ. Idioma Português, inglês, francês, alemão, italiano, russo e línguas eslavas. Características Físicas e Requisitos Técnicos Muitos documentos apresentam acidez e fragilidade no suporte. Fotografias com manchas. Na série Prontuários, alguns documentos sofreram perda no suporte e na informação. Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (2005). __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ 162 C E D E R J 13 Nesta coleção, foram arquivados documentos textuais, cartazes, cartões-postais, desenhos, fotografias e mapas referentes à Delegacia Especial de Segurança Política e Social, encarregada da polícia política do governo Vargas entre os anos de 1933 e 1944. É importante dizer que a coleção herdou documentos produzidos em instituições anteriores, uma vez que ela é composta de documentos produzidos desde 1905. Parte desta documentação foi destruída durante a Revolução de 1930 e, mais tarde, por membros do Departamento Geral das Investigações Especiais. A coleção, portanto, não abarca a totalidade da documentação produzida pela polícia política no período contemplado; ela é constituída por documentos remanescentes. Qualquer pesquisa a respeito do assunto, portanto, deverá levar em conta esta característica da coleção. Mesmo assim, como o demonstram as várias séries (assuntos) nas quais as fontes foram catalogadas (como Censura Postal, Inquéritos, Mapas de Detidos etc.), esta coleção permite a realização de pesquisas sobre vários temas, como censura, espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, movimento comunista, integralismo etc. Na aula de hoje, você viu que um arquivo nunca traz a documentação completa de um determinado assunto. Ele é resultado de uma seleção prévia, que inclui a catalogação e organização do material, para que possa ser pesquisado por outros. Da mesma forma, vimos que, para que um vestígio do passado seja transformado em documento, é necessário que ele seja selecionado, por um historiador, com um fim específico: o da análise, da interpretação do passado. Concluindo: o documento só existe a partir do momento em que é selecionado por alguém para cumprir a função específica de guardar algum fato do passado. Uma carta escrita por uma senhora de escravos no século XIX, antes de ser escolhida para uma análise sobre a vida privada naquele período, é apenas uma carta. Após a seleção, ela passa a ser um documento. Por isso, não é exagero dizer que o documento é o guardião do passado; como disseram Langlois & Seignobos, sem eles, não há história. C E D E R J 163 AULA RESPOSTA COMENTADA História na Educação 1 | História e documento ATIVIDADE FINAL Procure, em sua casa, vestígios do passado. Como você selecionaria e organizaria estes vestígios, de forma a transformá-los em documentos? Que temas você poderia pesquisar a partir dos documentos encontrados e selecionados? ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ 164 C E D E R J 13 RESPOSTA COMENTADA AULA Nesta atividade, o objetivo é que você procure qualquer sinal do passado que haja em sua casa. Podem ser fotos, jornais antigos, cartas, cadernos de receitas etc. Para transformar estes objetos em documentos, é preciso que você os selecione, organizando-os. Por exemplo, as fotos de sua infância organizadas em álbuns podem servir para documentar a sua história, a de sua família, ou mesmo a de sua cidade ou a da classe social à qual você pertence. Por meio de cadernos de receitas, você pode pesquisar os hábitos alimentares de um determinado grupo. Para isso, será necessário ver a quem pertenciam os cadernos, quando foram escritos etc. Esta atividade também pode ser realizada no ambiente escolar. Os alunos podem ser incentivados a buscar vestígios do passado na escola, realizando uma reflexão tanto sobre as possibilidades de pesquisa que os documentos encontrados abrem quanto sobre a necessidade de preservação da memória daquela instituição. RESUMO Documentos são todos os vestígios do passado selecionados por historiadores especificamente com o fim de analisar determinado período ou determinada sociedade. Qualquer objeto é passível de uso, dependendo do objetivo da análise. Embora qualquer vestígio, localizado em qualquer lugar, possa ser transformado em documento, o local por excelência onde são guardados os documentos são os arquivos, já que eles são criados exclusivamente para este fim. Mesmo assim é importante lembrar que os arquivos não encerram a totalidade da documentação sobre um determinado assunto ou de uma determinada instituição, já que a própria constituição de uma coleção de documentos decorre de uma seleção prévia. C E D E R J 165 História na Educação 1 | História e documento INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Nas próximas aulas, entraremos em contato com os vários tipos de documentos usados por historiadores, refletindo sobre os seus possíveis usos em sala de aula. A seguir, abordaremos a metodologia de desenvolvimento de pesquisas em sala de aula, por meio da exposição do método de realização de pesquisas em História. SITES RECOMENDADOS Arquivo Nacional – www.arquivonacional.gov.br O Arquivo Nacional contém documentos escritos, mapas, discos, fotografias e filmes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além de arquivos privados de pessoas físicas e jurídicas, desde o período colonial até a década de 1980. No site, podem ser encontradas informações gerais sobre a consulta aos documentos, as visitas guiadas, as publicações, dentre outras. No próprio site, também podem ser consultados alguns instrumentos de pesquisa e visualizados alguns documentos. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – www.aperj.rj.gov.br O Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro reúne documentos textuais, além de mapas, plantas, fotografias, filmes, fitas de áudio, fitas de vídeo e microfilmes do século XVIII aos dias de hoje. Sua principal função é guardar, preservar e organizar os documentos do Poder Executivo Estadual. No site, podem ser encontradas informações sobre o acervo, a biblioteca, horários de consulta e publicações. No próprio site, também podem ser consultados alguns documentos do século XIX, como os registros paroquiais de terras. 166 C E D E R J 14 AULA Documentos textuais Meta da aula objetivos Apresentar as fontes textuais e sua metodologia de uso nas aulas de História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Definir fontes textuais. • Identificar a importância das fontes textuais para o conhecimento histórico. • Aplicar fontes textuais em aulas de História. Pré-requisito Para melhor compreender o conteúdo desta aula, você deverá rever os conceitos de documento apresentados na Aula 13. História na Educação 1 | Documentos textuais INTRODUÇÃO Na última aula, você aprendeu que documento, para os historiadores, é qualquer vestígio do passado; não importa se ele é oral, escrito, virtual, se é um móvel, um papel ou um par de óculos. Documento é tudo aquilo que o historiador usa para analisar o passado – é a sua porta de entrada para um tempo diferente. Entretanto, apesar de, hoje em dia, os documentos serem de vários tipos, durante muito tempo os principais documentos de trabalho do historiador foram os documentos textuais, ou seja, os documentos escritos. Estamos falando, aqui, de leis, discursos, processos, relatos de batalhas, cartas, jornais etc. A grande maioria dos arquivos existentes ainda guarda apenas documentos textuais, e por isso é tão importante que o historiador saiba trabalhar com eles. Da mesma forma, ao trabalhar com documentos em sala de aula, muitas vezes o professor se deparará com documentos escritos, embora os orais e os imagéticos tenham mais apelo para alunos, principalmente os mais jovens. Saber trabalhar com documentos escritos é importante para que o aluno adquira o hábito da leitura e compreensão de textos, tarefa comum a várias disciplinas do Ensino Básico. Por isso, o objetivo desta aula é apresentar alguns tipos de documentos textuais, apresentando possibilidades de uso destes documentos em sala de aula. O QUE SÃO FONTES TEXTUAIS? O século XIX foi uma época de grande desenvolvimento das chamadas ciências naturais, como a Física e a Química. Muitos historiadores consideravam, na época, que também a História deveria ser considerada uma ciência. Para isso, deveriam usar métodos de trabalho rigorosos e fontes de informação fidedignas, para que fosse possível conhecer os fatos como eles realmente aconteceram. Na época, considerava-se que a única maneira de se chegar a estes acontecimentos seria por meio de documentos, como os relatos de batalhas, os discursos de governantes, as leis, dentre outros. Dessa forma, considerava-se que os únicos documentos confiáveis seriam os escritos e oficiais. Isto fez com que os primeiros estudos de historiadores profissionais, datados do início do século XX, fossem baseados apenas em documentos deste tipo. Na década de 1930, após a crítica a esta interpretação da História, feita por Marc Bloch e Lucien Febvre (que você estudou na Aula 1), 168 C E D E R J 14 o conceito de documento, inclusive de documento textual, sofreu AULA profundas modificações. A partir de então, o interesse dos historiadores se desviou da história estritamente política para a história econômica, social e, na década de 1970, cultural. Com a ampliação dos interesses e dos temas dos historiadores, os documentos por eles utilizados também se diversificaram. Por exemplo, para analisar os hábitos alimentares da sociedade francesa às vésperas da Revolução Francesa, no século XVIII, um historiador estudou os cardápios dos restaurantes existentes em Paris naquela época. Para estudar os padrões de riqueza, também no século XVIII, de famílias camponesas da Itália, outro historiador resolveu de moradores daquela região. INVENTÁRIO E descobriu, além dos bens e dívidas daqueles indivíduos, outras POST-MORTEM informações incríveis, como as descrições dos móveis das casas onde É o documento que contém a relação dos bens deixados por alguém que morreu, descritos de forma minuciosa e com os valores correspondentes. pesquisar os INVENTÁRIOS POST-MORTEM viviam, dos livros que possuíam em suas bibliotecas, da louça que guardavam em suas cozinhas, dos lençóis que tinham em suas camas. A partir desses exemplos, você conseguiu perceber como um único documento pode trazer informações novas sobre uma época? Talvez você nem soubesse que no século XVIII os ricos já dormiam em lençóis! Hoje em dia, portanto, da mesma forma que qualquer vestígio do passado pode ser considerado uma fonte de informação (um documento) para o historiador, qualquer vestígio escrito pode e deve ser usado como um documento para um estudo histórico. ATIVIDADE 1. Nesta atividade, você lerá trechos de uma carta escrita em 1848 pelo pintor francês Edouard Manet (1832-1883), quando de sua viagem ao Rio de Janeiro a bordo do navio Havre et Guadaloupe. A partir da leitura, escreva um pequeno texto, indicando que elementos podem ser importantes para a análise histórica. “Do porto do Rio de Janeiro Querida mamãe, Contei-te na minha última carta que tínhamos chegado ao Rio de Janeiro. A baía, como disse, é encantadora. Tivemos, enfim, condições de apreciá-la devidamente, C E D E R J 169 História na Educação 1 | Documentos textuais pois pudemos desembarcar no domingo seguinte. (...) No domingo após a missa, (...) desembarquei em companhia do senhor Jules Lacarrière, um rapaz da minha idade. Ele conduziu-me à residência de sua mãe, uma modista da rua do Ouvidor, que possui uma pequena casa de campo, bem brasileira, a cinco minutos da cidade. Almocei e jantei em companhia de sua família, que é formada pelo filho mais velho, por um rapazote e por uma filha de 13 anos. Fui recebido por todos de braços abertos. Melhor, impossível! Após o almoço, eu e meu novo amigo saímos para percorrer a cidade, que é de tamanho considerável, mas conta com ruas muito estreitas. Para um europeu com um mínimo de senso artístico, o Rio de Janeiro tem um aspecto bastante peculiar. Pelas ruas vêem-se somente negros e negras, pois os brasileiros saem pouco, e as brasileiras, menos ainda. As mulheres podem ser vistas somente quando vão à missa ou depois do jantar, ao entardecer, quando aparecem em suas janelas. Nessas ocasiões, é possível olhá-las sem nenhum impedimento. Durante o dia, ao contrário, se por acaso alguma delas é avistada na janela e percebe que está sendo observada, imediatamente se retira. Neste país, todos os negros são escravos e têm um aspecto embrutecido. O poder que os brancos exercem sobre eles é extraordinário. Tive a oportunidade de visitar um mercado de escravos: espetáculo bastante revoltante para nós. Os negros vestem, em geral, uma calça e, por vezes, uma blusa curta de pano grosseiro, não lhes sendo permitido, dada a sua condição de escravos, o uso de sapatos. As negras andam nuas da cintura para cima, portando algumas vezes um lenço atado ao pescoço, que cai sobre o peito. Em geral são feias, ainda que tenha visto algumas bem bonitas. A maioria se arruma com muito gosto: umas usam turbantes, outras arranjam os cabelos crespos com muita arte e todas vestem umas saias decoradas com enormes folhos. As brasileiras são, em geral, muito bonitas. Seus olhos e cabelos são magnificamente negros. Todas penteiam-se à chinesa, saem às ruas descobertas e, tal como nas colônias espanholas, vestem-se com uma roupa muito leve, que não estamos acostumados a ver. As mulheres aqui nunca saem sós, mas sempre acompanhadas de suas negras ou de seus filhos, já que se casam com 14 anos ou menos. Visitei várias igrejas. Nenhuma delas é comparável às nossas: são cobertas de dourado e totalmente iluminadas, mas sem qualquer gosto. Há, na cidade, diversos conventos, entre os quais um convento italiano, onde os religiosos usam capuz e uma longa barba. Nesta cidade, utiliza-se somente papel-moeda ou moedas de cobre, e tudo é terrivelmente caro. As brasileiras do Rio fazem-se transportar em palanquins, mas há também carros e ônibus puxados por mulas, que aqui fazem as vezes dos cavalos. Ia me esquecendo de comentar que o palácio do imperador é um verdadeiro casebre, bastante mesquinho. De resto, o governante quase não ocupa esse prédio, preferindo 170 C E D E R J 14 distância da cidade. (...) Adeus, querida mamãe. Encerro esta carta, pois vai partir um paquete inglês. Abraço-te ternamente, assim como a papai, meus irmãos, a vovó, a Jules etc. Manda lembranças minhas a titia, a Edmond e a Marie. Teu filho respeitoso, Edouard Manet. (MANET, 2002, p. 54). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Nesta atividade, não há uma resposta considerada correta. O objetivo é que você perceba a riqueza das cartas como fonte histórica. Na carta reproduzida, alguns dos elementos que podem ser destacados como interessantes para a análise histórica são a visão que, no século XIX, um jovem francês tem do Rio de Janeiro; as características da cidade do Rio de Janeiro, principalmente do centro, no século XIX; as vestimentas e costumes de homens e mulheres; a escravidão; as igrejas etc. Note que estes temas são apenas alguns exemplos. Você pode ter listado outros igualmente corretos. O importante é que você compreenda as várias possibilidades de análise histórica a partir deste documento. FONTES TEXTUAIS NA ESCOLA Uma das razões pelas quais ensinamos História é para que os alunos consigam pensar na maneira como outras pessoas viviam em diferentes épocas. Colocar-se no lugar do outro, tentar entender como o outro pensa, o que vê e o que sente é o primeiro caminho para aprendermos a ser tolerantes. Neste sentido, o uso de documentos de época pode ser particularmente útil, uma vez que, por meio de sua leitura, o aluno pode se familiarizar com uma realidade distante. C E D E R J 171 AULA antes residir num castelo de nome São Cristóvão, situado a pouca História na Educação 1 | Documentos textuais Até a década de 1970, os documentos eram utilizados em sala de aula como mera ilustração do conteúdo abordado. Por exemplo, a carta de Pero Vaz de Caminha era sempre usada para ilustrar as aulas sobre o Descobrimento do Brasil. Embora os alunos costumassem ler trechos da carta, ela não era usada como parte do processo de aprendizagem. O documento era usado após a exposição do conteúdo, como forma de fixação do conteúdo e comprovação da veracidade das informações fornecidas pelo professor. Desde as mudanças ocorridas no ensino de História nas escolas – você pode recapitulá-las na Aula 8 –, os documentos vêm sendo usados em sala de aula de forma diferente. Em vez de ser mera ilustração do conteúdo visto em sala de aula, ele deve servir como parte integrante daquilo que está sendo ensinado, para que o aluno consiga entender o sentido de estar lendo aquele texto. Por exemplo, ao estudar o Descobrimento do Brasil, por que um aluno deveria ler a carta escrita por Pero Vaz de Caminha? Ele deve ler a carta de Caminha não apenas para ilustrar uma aula expositiva, mas dentro de um contexto em que o documento vai ajudá-lo a entender melhor as circunstâncias do Descobrimento do Brasil. Para que o documento possa efetivamente ser utilizado no processo de aprendizagem de seus alunos, é importante que você também aprenda a interrogar um documento, questionando-se, por exemplo, sobre a época e as circunstâncias em que foi escrito, seu autor e a quem ele era dirigido. Não é à toa que a carta do escrivão Pero Vaz de Caminha foi chamada pelo historiador Capistrano de Abreu de “a certidão de nascimento” do Brasil. Ela foi escrita logo após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, entre 26 de abril e 10 de maio de 1500, e foi imediatamente enviada ao rei. Para ler a carta na íntegra, acesse http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html. 172 C E D E R J 14 2. Você lerá a seguir trechos de uma reportagem, publicada na revista Nova Escola, na qual é relatada a experiência realizada no Colégio Estadual Professor Alcide Jubé, em Goiás. A partir da descrição da pesquisa com documentos feita por alunos da escola, analise a importância do uso de documentos para o ensino de História nas escolas, ressaltando como seu uso pode ser mais aprofundado do que “apenas para ilustrar a aula”, como enfatizou Jaime Pinsky no trecho reproduzido a seguir. Direto da Fonte Existem duas maneiras de compreender um episódio. A mais comum é ler a história que alguém escreveu. A outra é ir atrás das pistas e construir a própria versão. Encontrar indícios, ver o que ninguém enxergou, ler nas entrelinhas... Quem não gosta desse trabalho de detetive? A aula de História é o terreno ideal para bancar o Sherlock Holmes. Existem inúmeros livros, cartas, diários, códigos, monumentos e fotografias que ajudam a desvendar os enigmas da humanidade. “Esses vestígios trazem uma riqueza enorme de informações”, diz Jaime Pinsky, que há trinta anos publicou no Brasil uma das primeiras coletâneas de documentos voltadas ao público escolar. “Na maioria dos casos, porém, eles são usados apenas para ilustrar a aula.” Pinsky acredita que a principal vantagem de ir direto às fontes primárias é que elas estimulam os próprios estudantes a criar um olhar sobre os fatos livre de qualquer filtragem. (...) Lidando diretamente com os documentos, os jovens estão livres para fazer leituras e construir versões. Você talvez se pergunte como é possível trabalhar dessa forma se não há uma biblioteca boa na sua cidade. É simples. Basta olhar em volta e lembrar que, quando se fala em documentos, não se trata apenas de papéis. Existem por aí discursos, filmes, artesanatos, roupas e até edifícios que têm muito a revelar sobre as sociedades que os produziram. Nesse ponto, os alunos do Colégio Estadual Professor Alcide Jubé, na cidade de Goiás, são privilegiados. Têm bem ao lado da escola um verdadeiro documento a céu aberto. No município, patrimônio cultural da humanidade, cada casa, cada porta, cada paralelepípedo das ruas conta um pedacinho de história. Foi para valorizar esse patrimônio que eles criaram no ano passado o projeto “Goiás conta seus cantos e encantos”. O tema escolhido pela 8a série foi a Praça Tasso de Camargo — conhecida como Praça do Coreto. Remexendo no Arquivo Municipal, os estudantes encontraram a ata de criação, o projeto de lei que a batizou e uma reportagem de 1943 anunciando uma reforma, além de muitas fotos antigas. Com isso, tiveram acesso a informações que não existiam nos livros: descobriram que a praça foi construída para acabar com um depósito de lixo que estava surgindo no local, C E D E R J 173 AULA ATIVIDADE História na Educação 1 | Documentos textuais numa época em que nascia no país uma preocupação ambiental. Viram também que a remodelação dos jardins teve forte influência inglesa. “Manuseando os papéis antigos eles se sentiram como se tivessem a História nas próprias mãos” (...). Fonte: Ramalho (2002). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A importância do uso de documentos no estudo da História pode ser exemplificada por meio da atividade citada na reportagem que você acabou de ler. No caso do projeto “Goiás conta seus cantos e encantos”, realizado pela 8a série do Colégio Estadual Professor Alcide Jubé, os alunos puderam recuperar uma história pouco conhecida, através da busca por documentos a respeito da Praça Tasso de Camargo. É importante ressaltar que, como enfatizou Jaime Pinsky, neste caso, o uso de documentos históricos não foi uma ilustração de uma aula dada na escola, mas sim o resultado de uma pesquisa feita pelos alunos. Isto significa que a leitura destes documentos, para os alunos, terão um significado concreto, já que eles serão uma resposta às suas perguntas sobre a história daquele local. Além disso, os alunos puderam experimentar o uso de diversos tipos de documentos, aprendendo que, apesar de ser muito importante, não é apenas o documento escrito que contém informações sobre o passado, mas também os monumentos, as praças, as fotografias etc. Agora que você já viu como um exemplo de como se pode trabalhar com documentos escritos em sala de aula, vale a pena seguir algumas dicas de como programar atividades para seus alunos: • em primeiro lugar, nunca use muito material, principalmente com crianças de pouca idade; 174 C E D E R J 14 • tenha cuidado em selecionar textos que elas sejam capazes de AULA ler, ainda que precisem usar o dicionário (hábito, aliás, que é importante fomentar); • não deixe de contextualizar o documento, fornecendo aos alunos informações sobre seu autor, a época em que foi escrito etc.; • tente sempre relacionar o documento com a realidade dos alunos, fazendo comparações que permitam a compreensão do texto; • respeite e aproveite as contribuições trazidas por seus alunos. Você vai se surpreender com a capacidade dos seus alunos de enriquecer as suas interpretações. Se você conseguir acostumá-los a fazerem estas operações, estará de parabéns! Terá ensinado uma das atividades mais importantes da análise de documentos na escola, que é, justamente, a sua crítica. E terá conseguido fazer com que seus alunos apreendam uma das características fundamentais desta disciplina: que o conteúdo de História é formado, no fundo, pelas interpretações e críticas dos mais diversos documentos. ATIVIDADE FINAL Nesta atividade, apresentamos uma página do jornal O Universal, datado de 1836. A partir da análise do jornal, elabore uma atividade para ser realizada em sala de aula. Fonte: Santos (1836). C E D E R J 175 História na Educação 1 | Documentos textuais ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Esta atividade não tem uma resposta específica. Trata-se de colocar em prática todos os conceitos e procedimentos abordados ao longo da aula. A experiência de elaborar e realizar uma atividade com jornais é importante para que você, futuro professor, possa sentir como o contato com um documento pode ajudar seus alunos a familiarizarem-se com uma determinada sociedade. Neste caso, trata-se de um jornal editado em Ouro Preto, cidade de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX, que traz um anúncio de fuga de um escravo. É importante que, na atividade, você ressalte para o aluno as diferenças mostradas pelo jornal entre a sociedade brasileira daquela época e a contemporânea, sendo a principal delas a existência da escravidão. Você também deve deixar claro que anúncios como este, que hoje podem (e devem!) chocar seus leitores, eram comuns naquela época. Assim, a atividade criada por você permitirá que o aluno comece a compreender um tempo diferente do seu através de um caso concreto, além de proporcionar a realização de uma observação apurada e de comparações entre diferentes épocas. 176 C E D E R J 14 AULA RESUMO Os documentos são todos os vestígios usados pelo historiador para conhecer o passado. Boa parte dos documentos utilizados por historiadores e professores são escritos, isto é, são cartas, notícias de jornal, leis, cardápios de restaurante etc. Nas aulas de História, é importante que o professor use documentos, tanto para aguçar a curiosidade do aluno quanto para familiarizá-lo com uma época diferente da sua. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Nas próximas aulas, analisaremos vários tipos de fontes orais, refletindo sobre seus usos por historiadores e suas possibilidades de análise na escola. SITE RECOMENDADO http://novaescola.abril.com.br/ed/150_mar02/html/historia.htm No site da revista Nossa Escola, você pode encontrar, na íntegra, a matéria sobre o uso de documentos em aulas de História, intitulada “Direto da Fonte”, que você leu parcialmente na Atividade 2. C E D E R J 177 15 AULA Documentos orais Meta da aula objetivos Apresentar as fontes orais e sua metodologia de uso nas aulas de História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Definir fontes orais. • Identificar a importância das fontes orais para o conhecimento histórico. • Aplicar fontes orais em aulas de História. Pré-requisitos Para melhor compreender os conteúdos desta aula, você deverá rever os conceitos de memória (Aula 3) e documento (Aula 13). História na Educação 1 | Documentos orais INTRODUÇÃO Quem conta um conto aumenta um ponto. Existem três verdades: a minha, a sua e a que de fato é. O povo aumenta, mas não inventa. (Ditos populares) Como podemos descrever o prazer de ouvir uma boa história? Desde crianças, ouvimos histórias em casa, na escola, na rua. São histórias contadas – e muitas vezes repetidas – por nossos pais, histórias de nossas famílias. Algumas são histórias assustadoras sobre bruxas e fantasmas, que repetimos para os outros. O hábito de contar histórias é tão antigo que nem sabemos quando começou. Sabemos que, antes de desenvolver a escrita, os homens transmitiam suas crenças, mitos, costumes e valores através de histórias, contadas de pais para filhos, de anciãos para jovens. Era assim que o conhecimento acumulado pelas gerações era preservado pela comunidade. Com o advento da escrita e a progressiva alfabetização das sociedades, a importância da transmissão oral do conhecimento das comunidades foi diminuindo. Mesmo assim, o hábito de contar histórias, tanto inventadas quanto de nossas próprias vidas, continua existindo. No caso da História, os relatos orais são extremamente importantes. Eles dão um colorido especial ao passado, contando detalhes de acontecimentos sobre os quais temos apenas idéias gerais. Ouvindo uma pessoa falar, temos contato com as emoções, reações e observações vividas em uma época distante. Por exemplo: quando estudamos o processo de urbanização do Rio de Janeiro, não é interessante ouvir o que alguém que viveu a época tem para contar? É justamente esse fascínio do vivido que torna as fontes orais tão importantes para o estudo da História. Ao mesmo tempo, ouvir uma descrição de um acontecimento por alguém que o vivenciou pode ser extremamente estimulante para o ensino de História, fomentando nos alunos o desejo de conhecer mais sobre determinado tema. O objetivo desta aula, portanto, é mostrar a importância das fontes orais tanto para o conhecimento histórico quanto para o ensino da História nas escolas. 180 C E D E R J 15 AULA O QUE SÃO FONTES ORAIS? Você já viu, em aulas anteriores, que não são apenas os documentos escritos que podem fornecer informações sobre o passado. Documentos orais também constituem uma boa forma de conhecermos uma determinada época. Mas o que são exatamente documentos orais (ou fontes orais)? As fontes orais são todos os documentos que se utilizam da oralidade, ou seja, da fala. Um programa de rádio, por exemplo, é uma fonte oral. O discurso de um presidente da República, também. Até uma música pode ser considerada uma fonte oral. Mas as fontes orais mais utilizadas são as histórias de vida, ou seja, as narrativas que as pessoas fazem de si próprias, de suas vidas e dos acontecimentos que mais ficaram marcados em suas memórias. Essas histórias de vida podem ser produzidas a partir da própria vontade do indivíduo, sem a intenção necessária de constituição de um objeto de pesquisa – por exemplo, quando alguém resolve gravar um vídeo caseiro com o relato de sua vida – ou a partir de entrevistas de história oral. As entrevistas de história oral têm como característica serem produzidas a partir do interesse de um pesquisador, que procura o entrevistado e lhe faz perguntas, geralmente sobre a sua própria vida ou sobre o acontecimento que deseja estudar. Um exemplo para demonstrar melhor o argumento: Lucíola de Jesus, mais conhecida como Vó Lucíola, de 104 anos, foi entrevistada pelo projeto Favela Tem Memória. Como ela é uma das primeiras moradoras do Morro da Mangueira – chegou lá com apenas um ano de idade, quando no morro só havia duas casas além da sua –, seu depoimento versou sobre, além da própria vida, as transformações pelas quais a favela passou ao longo do tempo. Se o depoimento não fosse organizado por um entrevistador interessado no estudo da história das favelas do Rio de Janeiro, talvez o assunto nem fosse mencionado. Se a própria Vó Lucíola resolvesse gravar uma narrativa de sua história, talvez enfatizasse mais o fato de ter sido parteira de boa parte dos moradores da Mangueira do que o de ter sido uma das primeiras pessoas a habitar aquela comunidade. C E D E R J 181 História na Educação 1 | Documentos orais ! O projeto Favela Tem Memória faz parte do Portal Viva Favela, uma iniciativa do Viva Rio, organização não-governamental dedicada ao desenvolvimento de campanhas de paz e projetos sociais em áreas como direitos humanos, segurança, educação etc. O site do projeto pretende valorizar as lembranças dos moradores mais velhos das favelas, resgatando experiências individuais e coletivas. Se você quiser ler a entrevista de Vó Lucíola e conhecer mais o projeto, basta acessar http://www.favelatemmemoria.com.br . A entrevista de história de vida, portanto, é diferente do depoimento comum, porque ela é realizada a partir dos interesses do entrevistador e a partir de uma metodologia específica: a história oral. AS HISTÓRIAS DE VIDA E O CONHECIMENTO HISTÓRICO Recentemente, os relatos orais vêm sendo muito utilizados por historiadores porque são fontes privilegiadas para se conhecer aspectos do passado aos quais dificilmente temos acesso, como, por exemplo, o cotidiano, a vida privada e os sentimentos, principalmente de grupos que deixam poucos documentos escritos, como os escravos, os operários, dentre outros. Mais do que isso, os relatos orais permitem que se analisem processos históricos a partir de trajetórias de vida individuais. Assim, o relato oral é importante não só porque ele aguça a curiosidade do pesquisador, mas porque permite que se conheçam aspectos antes desconhecidos acerca de um determinado acontecimento ou processo histórico. Um exemplo: um tema bastante estudado da História do Brasil é a abolição da escravidão. Até pouco tempo atrás, a abolição era analisada principalmente a partir dos pontos de vista político e econômico, relacionando-a com a Proclamação da República. Recentemente, graças a um projeto de história oral, outros aspectos da abolição da escravidão podem ser estudados. Desde 1994, pesquisadoras da UFF e da UFRJ vêm desenvolvendo o projeto Memória do Cativeiro, com entrevistas com descendentes de escravos falando sobre suas experiências após o fim da escravidão no Brasil. A recuperação da experiência e da memória do cativeiro – que é, ao mesmo tempo, individual e coletiva – seria impensável sem a realização de entrevistas. 182 C E D E R J 15 1. Leia, a seguir, trechos da entrevista realizada em 1995 por Ana Maria Lugão Rios, professora da UFRJ, com Zeferina do Nascimento, moradora de Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro. Após a leitura, identifique os aspectos citados pela entrevistada que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre a escravidão no Brasil. Zeferina do Nascimento Paraíba do Sul – Estado do Rio de Janeiro. Entrevista feita em 15 de maio de 1995. A – Ana Maria, Z – Zeferina. A – A senhora pode falar o nome todo. Z – Zeferina do Nascimento. A – Tá certo. A senhora se incomoda de dizer a idade, D. Zeferina? Z – 66 anos. A – A senhora chegou a conhecer seus avós, D. Zeferina? Z – Conheci uns, outros não. (...) A – Mas os avós da senhora não pegaram o cativeiro, não? Z – Não, já foi ventre... livre. Meu avô por parte de mãe já entrou no ventre livre e agora a vovó também. A – Por parte de mãe? Z – De mãe. Agora, já por parte de pai, já veio vendido da Bahia pra cá. (...) A – A vó da senhora é que não pegou [a ventre livre]? Z – Ela foi escrava. A vovó veio pra cá vendida. A – Veio da Bahia? Z – É, e meu avô por parte de pai veio da África. E a vovó veio da Bahia. A – Esses por parte de pai? Z – É, por parte de pai. E agora essa por parte de mãe veio também da Bahia. (...) A – Bom, a senhora não era nascida, claro, mas a senhora chegou a ouvir os pais da senhora, os avós da senhora? Z – O pai eu conheci muito, avó também conheci, mas eles contavam história. A – E eles falavam alguma coisa de quando acabou o cativeiro, como é que foi? Z – Contava quando acabou o cativeiro, o dono lá bateu o sino, chamou eles tudo pra roda, aí quando chegou no terreirão aí gritou: “De hoje em diante vocês é senhor do seu destino, vocês não precisa trabalhar pra mim, trabalha pra quem vocês quiser...” E voltou pra dentro de casa chorando e eles como bobo ficaram imaginando o que tinha acontecido com o senhor, porque eles não sabiam por que ele chorava. Como que ia ser pra alimentar aqueles meninos tudo lá. Aí depois que tornou a explicar, o capataz dele C E D E R J 183 AULA ATIVIDADE História na Educação 1 | Documentos orais explicou, mandou eles trabalhar. Não trabalhou lá muito tempo, mas querendo que o patrão desse alimento. Aí depois foi explicando, explicando que eles entenderam que podia trabalhar pra outro. Aí foi trabalhar pra fora, ou já começou a entender, aí já veio os filhos e foi indo e já foi saindo pra trabalhar pra fora. A – Mas os avós da senhora ficaram lá em São José? Z – Ficaram, só esse avô, pai da mamãe, que o filho dele veio buscar ele, que achou que lá (em Nova Iguaçu) tava dando muito bem, porque a laranja tava dando muito dinheiro, porque aqui ganhava pouquinho (...) Fonte: Laboratório (2005). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Neste trecho da entrevista, Zeferina narra os acontecimentos da época da abolição a partir da perspectiva do senhor, que teria chamado seus escravos, libertado a todos e dito que eles só precisariam continuar a trabalhar para ele se quisessem, e a partir da perspectiva do escravo que, uma vez liberto, poderia vir a trabalhar em outro lugar. Os detalhes que ela menciona, da forma como lhe foram contados por seus familiares, só podem ser conhecidos a partir de relatos orais e/ou biográficos, como o trecho em que ela afirma que o senhor estaria chorando ao dar a notícia da abolição para seus escravos. Daí a importância e a utilidade das narrativas orais para o conhecimento da História, mesmo em se tratando de episódios bastante conhecidos e estudados. FONTES ORAIS NA ESCOLA A esta altura, você já percebeu que o uso das fontes orais torna o estudo da História muito concreto e próximo, pois facilita “a apreensão do passado pelas gerações futuras e a compreensão das experiências 184 C E D E R J 15 vividas por outros”, como foi ressaltado no site do CPDOC. Por este AULA motivo, a introdução de pesquisas com entrevistas é tão importante para o aluno, principalmente no caso dos primeiros anos do Ensino Fundamental, quando a necessidade de concretizar os estudos de História é tão premente. Você deve estar se perguntando, no entanto, como podemos fazer para introduzir o trabalho com história oral na escola. Uma boa maneira é através do estudo da história da comunidade onde a escola está localizada e na qual, provavelmente, a maioria de seus alunos mora. Os alunos podem trabalhar em grupos, procurando os moradores mais idosos da região e preparando a entrevista. Note que a própria preparação da entrevista exige um conhecimento prévio dos alunos a respeito do bairro, ou seja, os alunos devem fazer uma pequena pesquisa sobre sua comunidade para saberem o que devem perguntar aos mais velhos. Por exemplo, se naquela região havia fábricas, as perguntas podem ser dirigidas para as formas de trabalho as relações entre patrões e empregados etc.; se naquela comunidade há muitos descendentes de imigrantes, as perguntas podem ser dirigidas a este assunto. O que importa, neste caso, é que as entrevistas sirvam de porta de entrada para que os alunos conheçam melhor o seu passado. ATIVIDADE 2. Reproduzimos a seguir trechos de uma reportagem publicada na revista Nova Escola, na qual é relatada a experiência realizada na Escola Municipal Therezinha Pimentel, em São Paulo. A partir do depoimento concedido pela avó de uma das alunas, analise a importância do uso de fontes orais para o ensino de História nas escolas. O bairro e a cidade, segundo os moradores Foi difícil para a Escola Municipal Therezinha Pimentel, em Santos (SP), encontrar informações sobre o bairro onde está instalada. “Parecia que a história não tinha subido o morro”, brinca a professora Marta Ramos Cabette. Mas um convite para que dona Maria Alexandre Fernandes visitasse a turma abriu a todos uma janela para o passado. Avó de uma aluna, dona Maria, de 68 anos, é bordadeira desde os sete. “Aprendi o ofício com minha mãe, uma imigrante que trabalhava dia e noite para sustentar a casa.” Além de descrever sua arte para a garotada, ela falou sobre a chegada e a vida dos portugueses que ocuparam o bairro no começo do século XX. C E D E R J 185 História na Educação 1 | Documentos orais Assim como o condutor de bondes José, a bordadeira Maria também faz parte da história do morro São Bento. “A classe ficou muito curiosa para saber como eram e o que faziam as crianças daqui antigamente”, conta a professora Marta. “Mas todos aprenderam mais do que os costumes de uma época. Descobriram que o bairro em que moram tem história, da qual eles participam”, completa. Trabalhos como esse provocam os estudantes a refletir sobre o fato de fazerem parte da história de sua família, da escola e da comunidade em que vivem e, aos poucos, perceber sua inserção no país e no mundo (...). Projetos como o realizado pela professora Marta podem resgatar até mesmo a história de toda uma cidade. Na Escola Municipal Isaías Cândido Rodrigues, no distrito de Guassussê, a 400 quilômetros de Fortaleza, cerca de 300 estudantes de 5a a 8a série resgataram os primórdios de Conceição do Buraco, município alagado em 1960, depois que uma chuva de inverno muito forte derrubou a parede do açude de Orós. Os alunos, em conjunto com os educadores, entrevistaram idosos para levantar detalhes do acidente e informações sobre a vida da localidade antigamente. A tarefa não foi fácil, já que falar sobre o assunto era relembrar a tragédia. O resultado da pesquisa rendeu ótimos ganchos para o trabalho com os temas curriculares, mas teve uma importância ainda maior para a comunidade. “Com as informações transcritas e reunidas, nossa escola produziu o primeiro documento histórico de Guassussê”, comemora a professora Geane Pereira. Fonte: novembro de 2003. Para acessar a reportagem na íntegra, acesse http://novaescola.abril.com.br/indeex.htm?es/167_nov03/html/ repcapa2. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA A importância do uso de fontes orais no estudo da História pode ser exemplificada através dos dois exemplos citados na reportagem anterior. Nos dois casos, as comunidades em questão praticamente não tinham documentos a respeito de suas histórias. A partir do trabalho realizado pelos alunos, pode-se recuperar o passado desses lugares, não só contribuindo para trazer a comunidade para dentro da escola, mas também levar a escola para a comunidade, já que 186 C E D E R J 15 de então, para a preservação das identidades e da memória de seus habitantes. Para os alunos, além da experiência de realizar uma pesquisa histórica, o trabalho com os habitantes das comunidades em que vivem permite que eles entendam muito mais suas próprias origens, as características locais e os problemas que enfrentam. É desta forma que se pode chegar ao tão falado aprendizado do exercício da cidadania. ATIVIDADE FINAL Agora que você já leu sobre as várias fontes orais, sua importância para o conhecimento histórico e suas possibilidades de uso em sala de aula, é hora de realizar seu próprio projeto de pesquisa com base em relatos orais. Como os alunos da Escola Municipal Therezinha Pimentel, você também vai estudar a comunidade onde vive, usando a metodologia da história oral. Para isso, proceda aos passos a seguir. Atenção: esta atividade lhe exigirá bastante tempo, sendo recomendado que você a divida de acordo com as etapas a seguir. 1. Informe-se sobre a comunidade onde vive. Você pode se informar por meio de livros sobre o assunto ou indo a arquivos, bibliotecas, centros de memória etc. 2. Procure uma pessoa idosa que se disponha a lhe conceder a entrevista. 3. Elabore a entrevista com base nos conhecimentos que você adquiriu sobre a sua comunidade. Dirija as perguntas para os temas de seu maior interesse, como, por exemplo, trabalho e religião. Você pode optar por fazer perguntas pessoais a seu entrevistado, se a trajetória de vida dele lhe interessar em particular. Se não, pode fazer perguntas mais relacionadas a características específicas da comunidade ou a acontecimentos importantes. 4. Realize a entrevista. Para isso, você precisará de bastante tempo, além de um gravador e fitas cassete ou de uma filmadora. 5. Transcreva a entrevista gravada para o papel, exatamente da forma como ela foi realizada. C E D E R J 187 AULA os documentos produzidos pela pesquisa escolar servirão, a partir História na Educação 1 | Documentos orais 6. Escreva um texto sobre a sua comunidade, ressaltando os aspectos que você passou a conhecer a partir da entrevista realizada. Enfatize, também, as possibilidades de uso dessa entrevista por seus futuros alunos. COMENTÁRIO Esta atividade não tem uma resposta específica. Trata-se de colocar em prática todos os conceitos e procedimentos abordados ao longo da aula. A experiência de elaborar e realizar uma entrevista é importante para que o futuro professor possa sentir, ele próprio, como uma história de vida pode contribuir para o seu maior conhecimento sobre uma determinada realidade. Ao se familiarizar com esses procedimentos, ele pode planejar melhor a realização de atividades como esta para seus alunos no futuro. RESUMO Documentos orais são discursos, descrições de acontecimentos e de histórias de vida, a partir dos quais historiadores analisam aspectos geralmente pouco conhecidos de uma sociedade, acontecimento ou processo histórico. Por intermédio deles, a História ganha concretude, principalmente porque tais documentos permitem a análise a partir de trajetórias individuais. O uso de documentos ou fontes orais na escola é estimulante, pois aguça o interesse do aluno para questões concretas e para a realidade que o cerca. INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA Nas próximas aulas, analisaremos vários tipos de imagens, refletindo sobre seus usos por historiadores e suas possibilidades de análise na escola. 188 C E D E R J 15 N Narradores de Javé (2003), de Eliane Caffé. Neste filme, os habitantes do vilarejo de Javé, ao serem comunicados da inunN dação da localidade para a construção de uma usina hidroelétrica, resolvem d preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos p de sua história, para demonstrar a importância da cidade e salvá-la da destruid çção. O filme mostra como os relatos orais variam de indivíduo para indivíduo e como são importantes para a construção das identidades comunitárias e da memória coletiva. d SITES RECOMENDADOS www.cpdoc.gov.br Portal do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, pioneiro no estudo de história oral no Brasil; possui entrevistas e textos sobre o assunto. www.museudapessoa.com.br Museu virtual de histórias de vida, com depoimentos, fotografias, documentos, desenhos, gravações em áudio e vídeo sobre a história de vida de pessoas célebres e anônimas. www.historia.uff.br/labhoi Site do Laboratório de História Oral e Iconografia do Departamento de História da UFF, possui informações sobre projetos de história oral, entrevistas e textos para download. http://www.cpdoc.fgv.br/abho Site da Associação Brasileira de História Oral. http://www.fflch.usp.br/dh/neho Site do Núcleo de Estudos em História Oral da USP. http://www.fiocruz.br/coc/depho1.html Site do Programa de História Oral da Casa de Oswaldo Cruz, que contém acervos sobre luta contra o câncer, tuberculose e sobre saúde pública no Brasil, dentre outros. C E D E R J 189 AULA MOMENTO PIPOCA M História na Educação 1 | Documentos orais http://www.favelatemmemoria.com.br O site do projeto Favela tem Memória, parte da ONG Viva Rio, destina-se a contribuir para a construção das memórias das favelas no Rio de Janeiro, através da valorização da lembrança dos moradores mais velhos e do resgate das experiências coletivas de participação política, associativa ou religiosa. 190 C E D E R J 16 AULA Documentos visuais Meta da aula objetivos Apresentar as fontes visuais e sua metodologia de uso nas aulas de História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Definir fontes visuais. • Identificar a importância das fontes visuais para o conhecimento histórico. • Aplicar fontes visuais em aulas de História. História na Educação 1 | Documentos visuais A moldura deste retrato Em vão prende seus personagens. Estão ali voluntariamente, Saberiam – se preciso – voar. (Retrato de família/Carlos Drummond de Andrade) INTRODUÇÃO Não é de hoje que as imagens fascinam os homens. Quem nunca se perdeu, olhando uma foto antiga ou contemplando um quadro? Também não é de hoje que os historiadores usam documentos visuais para realizar análises históricas. Desde que Marc Bloch e Lucien Febvre, os fundadores dos Annales (assunto visto por você, na Aula 1 desta disciplina), conclamaram seus colegas a saírem de seus gabinetes e farejarem a “carne humana” onde quer que ela estivesse, historiadores começaram a usar pinturas, desenhos, fotografias, filmes e o que mais conseguissem imaginar para desvendar o passado. Assim como você trabalhou com os documentos escritos e orais nas aulas anteriores, esperamos que, nesta aula, reflita sobre algumas possibilidades de uso das imagens para a análise histórica, explorando suas possibilidades de aplicação em aulas de História. O QUE SÃO FONTES VISUAIS? Em primeiro lugar, devemos ter em mente que a imagem, ou seja, a representação visual, seja ela de que tipo for, é sempre uma recriação da realidade. Ela nunca mostra a realidade como é – ou como foi, no caso de imagens que retratam o passado. Aquilo que nós vemos quando olhamos uma foto ou um quadro é sempre uma representação da realidade, tal como foi vista por seu autor. Mesmo a foto, que, em princípio, é uma descrição fiel da realidade, mostra apenas uma parte desta realidade, já que a máquina não capta tudo o que o olho vê. Além disso, uma foto pode ser montada, ou seja, uma fotografia pode ser resultado de uma colagem de outras fotografias combinadas entre si. Neste caso, ela se aproxima de representações artísticas como a pintura e o desenho, nas quais o resultado é fruto da imaginação do autor, e não necessariamente da fidelidade à realidade. A fotografia Os trinta valérios, de 1901, de autoria de Valério Vieira, é um exemplo famoso de fotomontagem. A fotografia retrata um concerto a que uma pequena platéia assistiu. Valério insere sua própria 192 C E D E R J 16 imagem na fotografia, reproduzindo sua figura em todos os membros da AULA audiência, além dos músicos, do garçom e até dos retratos pendurados na parede e do busto sobre um móvel. Se você contar, vai achar mesmo trinta Valérios retratados na fotografia! Figura 16.1: Os trinta Valérios, fotomontagem de Valério Vieira, 1901. Portanto, para que uma imagem se transforme em uma fonte visual, é preciso interrogá-la. Isso significa que é preciso saber quem é seu autor, quando ela foi produzida, com que objetivos, quem são os personagens que figuram nela, quais recursos foram utilizados na sua fabricação, e daí por diante. Ao obter estas informações, você será capaz de ler a imagem. Ler uma imagem é bem diferente de ver uma imagem, assim como ler um texto é diferente de olhar as palavras. Ler uma imagem quer dizer entender o seu significado. No caso da História, ler uma imagem do passado significa tentar entender o que esta imagem significava na época em que foi composta. ATIVIDADE 1. Observe a imagem a seguir. Trata-se de um cartão postal do início do século XX, que retrata a Universidade de Havana, em Cuba. Faça uma breve análise da imagem, refletindo sobre a importância dos cartões-postais como meio de comunicação no período compreendido entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX. Indique também as informações de que você sentiu falta, para realizar uma análise completa. C E D E R J 193 História na Educação 1 | Documentos visuais Figura 16.2: Cartão-postal da Universidade de Havana, Cuba. . ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Na resposta a esta questão, é importante que você observe a intenção do autor do cartão-postal em retratar um aspecto considerado, na época, moderno da cidade de Havana. Como todo cartão-postal, este também tem como objetivo ressaltar os aspectos positivos e pitorescos das cidades e destinos turísticos em geral, já que, nessa época, as imagens veiculadas pelos cartões-postais eram uma das principais formas de propaganda de um determinado local. Este cartão-postal, portanto, ao enfatizar uma construção moderna de Havana, pretende transmitir a idéia de que a cidade como um todo é moderna, com edificações grandiosas. Para melhor analisar esta imagem, no entanto, você precisaria de mais alguns elementos, como a data e o local em que o cartão foi produzido (repare que, na parte superior do cartão, a referência ao local vem escrita em inglês), por exemplo. Seria interessante também, para completar a análise da fonte, que você pudesse observar o verso do cartão, para descobrir se ele foi utilizado como correspondência, quem o usou, o que escreveu, a quem remeteu, e daí por diante. 194 C E D E R J 16 Uma das vantagens do uso de fontes visuais na escola é que, geralmente, não é necessário criar motivações para além do próprio material. Se nem sempre os alunos se interessam por um texto escrito, quase sempre eles prestam atenção a uma imagem. O problema disso, por outro lado, está em que, como os alunos hoje em dia são submetidos a uma enxurrada de imagens na televisão, nos jornais, nos outdoors e – por que não? – também na escola, às vezes é difícil fazer com que eles se interessem por aquela imagem específica que o professor traz para a sala de aula. Para bem usar uma imagem, ou um conjunto de imagens, é preciso, portanto, que você, futuro professor, consiga demonstrar para o aluno que, através das imagens, ele pode mergulhar em diferentes épocas, espaços e culturas; é preciso que você desperte nele a emoção que é poder ver um outro tempo, seja por meio de uma fotografia, de um mapa ou de um quadro. Por exemplo, na capa do livro paradidático A escravidão no Brasil, os autores Douglas Libby e Eduardo França Paiva reproduziram a aquarela Venda em Recife, de J.M. Rugendas, pintada no início do século XIX. Ao observar esta imagem, você pode conduzir seus alunos a uma exploração sobre o cotidiano, o universo cultural e as relações sociais da escravidão urbana no Brasil Colônia. Figura 16.3: Venda em Recife, J.M. Rugendas. C E D E R J 195 AULA FONTES VISUAIS NA ESCOLA História na Educação 1 | Documentos visuais Da mesma forma, as imagens podem ser usadas nas aulas de História como uma forma de possibilitar a apreensão do conceito de passagem do tempo, de difícil compreensão para crianças de pouca idade. Por exemplo: você pode pedir aos seus alunos que montem álbuns de fotografias de suas famílias; neles, seus alunos poderão identificar os personagens das fotos e a época em que foram tiradas. Eles serão levados a organizar as fotos, selecionando-as e agrupando-as de acordo com a época em que foram criadas. Aliás, uma boa idéia é pedir que os alunos façam linhas do tempo com imagens. Com a sua ajuda, eles perceberão como o próprio aspecto das imagens muda com o tempo, passando, por exemplo, de preto-e-brancas para coloridas. ATIVIDADE 2. Reproduzimos, a seguir, trechos do artigo “Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa”, de Paulo Knauss, no qual o autor relata sua experiência com o uso de imagens em sala de aula. A partir da leitura, analise a importância do uso de fontes visuais para o ensino de História nas escolas. “Para não ficarmos somente no reino da abstração, trago um exemplo construído em minha prática docente, em torno de um campo clássico da historiografia: a expansão marítima e comercial. De início, o problema: a Expansão Marítima e Comercial, ou seja, a construção da percepção européia do planeta, baseada na exploração colonial (...). O ponto de partida é uma obviedade do senso comum: ‘Você já viu o sol nascer?’. Creio que quase todos nós com rapidez diríamos que sim. Mas sei também que todos nós sabemos, nos dias de hoje, que é a Terra que gira em torno do Sol e não o contrário, o que significa dizer que o que vemos não corresponde aos fatos. Cabe indicar aos alunos que isso é um problema histórico, pois havia um tempo em que os homens – ocidentais, ao menos – não admitiam a hipótese do movimento da Terra (...). Aí temos o gancho para a utilização de documentos de época. Por exemplo: contamos com cartas celestes dos séculos XV e XVI que nos mostram como o céu percebido do ponto de vista do hemisfério norte era bem conhecido dos europeus, enquanto o do sul era vazio de anotações. Sabemos também que a cartografia do planeta foi um processo duradouro, que vai no mínimo de Colombo, em 1492, até 196 C E D E R J 16 – e assim o movimento da Expansão Marítima Comercial ganha contornos cronológicos (...) O mapa-múndi é outra possibilidade de documentos históricos. A oportunidade nos coloca a chance de desenharmos os trajetos das grandes navegações e suas datações para caracterizarmos o movimento e notarmos a marcha cartográfica. Ao mesmo tempo, localizamos as partes que compõem a representação usual do mundo. “Qual parte cabe no Brasil?”, “Quem gosta de ficar por baixo?”, “... e no canto, ainda por cima?”. Ora, se o mundo é redondo, se o espaço é vazio e não tem “em cima” nem “embaixo”, se a bola não tem meio – por que à Europa cabe ficar por cima e no centro, na nossa representação cartográfica? Os trajetos das grandes navegações e seu ponto de partida comum – o continente europeu – demonstram que a construção do mapa do mundo, ou simplesmente da imagem do mundo, é uma construção cultural européia ocidental. Eis a questão, que tem como referência o Atlas de Mercator – mas que não era a única proposta possível, como nos indica a existência do Globo de Marini, que representa o mundo de cabeça para baixo, segundo os padrões vigentes, sem falar na carta de Da Vinci, que representa o mundo fragmentado em fatias, tendo o pólo norte como elo (KNAUSS, 2001, pp. 35-37). Figura 16.4: Atlas de Mercator (1633). _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ C E D E R J 197 AULA o capitão Cook, em 1770, quando mapeia o continente australiano História na Educação 1 | Documentos visuais _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _______________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Você pode perceber a importância do uso de fontes visuais nas aulas de História por meio do exemplo citado anteriormente. Neste trecho, o autor demonstra como a análise de um mapa é importante para a compreensão de um conteúdo específico, a expansão marítima e comercial. Ao mesmo tempo, ele mostra que o mapa é um documento que pode ser usado também nas discussões sobre relações de poder, mesmo com alunos de pouca idade, ao refletir sobre a relação entre a representação gráfica (os países que estão em cima e embaixo, as áreas que estão no centro e aquelas que aparecem na periferia) e o poder destes países. CONCLUSÃO Ao longo desta aula, você viu, por meio de exemplos e atividades, como as imagens podem ser usadas de forma a enriquecer as aulas de História. Mais do que isso, as imagens podem ser usadas como pontos de partida para verdadeiras investigações sobre outras épocas, ao estimular que o aluno adentre e conheça um universo que, a princípio, lhe é estranho. Ao proceder desta maneira, ampliando os horizontes e instigando a observação de seus alunos, você pode contribuir decisivamente para a formação de sujeitos atentos ao mundo que os cercam. ATIVIDADE FINAL Reproduzimos, a seguir, algumas fotografias do quebra-quebra das barcas (Revolta da Cantareira), revolta popular ocorrida na cidade de Niterói em 1959. Na ocasião, 500 trabalhadores entraram em greve por razões salariais. A manifestação deflagrou grande insatisfação popular: os usuários depredaram 198 C E D E R J Manhã; atualmente estão depositadas no Arquivo Nacional e reproduzidas no site do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) do Departamento de História da UFF (www.historia.uff.br/labhoi), onde você pode acessar a coleção completa de fotografias. A partir da observação das imagens a seguir, elabore uma atividade para ser realizada em sala de aula. Nesta atividade, você deverá estimular seu aluno a contextualizar as imagens e analisar seu significado, de forma a que sua observação permita uma melhor compreensão daquela realidade. O público se encaminha para barcas de carga que o levará a Niterói – Greve de barcas outubro 1959 – 8/10/1959 População sofreu depois das filas – 9/10/1959 Navios da Marinha transportando o público p/ Niterói – 8/10/1959 Depois das filas extensas o povo enfrentava... – 9/10/1959 C E D E R J 199 16 AULA e incendiaram barcas e estações. As fotos são do acervo do Jornal Correio da História na Educação 1 | Documentos visuais RESPOSTA COMENTADA Esta atividade não tem uma resposta única. Trata-se de colocar em prática todos os conceitos e procedimentos abordados ao longo da aula. A experiência de elaborar e realizar uma atividade é importante para que o futuro professor possa sentir, ele próprio, como um conjunto de imagens pode contribuir para o seu maior conhecimento sobre uma determinada realidade. Ao se familiarizar com estes procedimentos, ele pode planejar melhor a realização de atividades como esta no futuro, para seus alunos. No entanto, no caso desta atividade, é importante que você inclua os seguintes procedimentos: • Linha do tempo: os alunos devem ser instados a organizar as fotos cronologicamente; • Interpretação: depois de observar as imagens e interpretar seu sentido, os alunos devem entrar em contato com os acontecimentos relativos à Revolta da Cantareira, para que possam contextualizá-las adequadamente; • Contraste entre fontes: o professor deve apresentar as matérias do jornal Correio da Manhã onde as fotos foram publicadas, para contrastálas com as imagens; • Observações de época: os alunos devem ser estimulados a analisar as características de época vislumbradas nas fotografias, não necessariamente relacionadas ao evento principal (a Revolta da Cantareira), como a forma de as pessoas se vestirem, seus cortes de cabelo etc., para, a partir daí, entender melhor os costumes daquela época. RESUMO Fontes visuais são imagens, tais como fotografias, pinturas, mapas e cartões-postais, utilizadas para análise de uma situação, realidade ou época específica. Ao serem utilizadas em sala de aula, as fontes visuais podem ser bastante estimulantes no ensino de História, contribuindo para a apreensão de conceitos importantes e para a formação de indivíduos críticos e observadores. 200 C E D E R J 16 Na próxima aula, analisaremos vários tipos de filmes refletindo sobre seus usos por historiadores e suas possibilidades de análise na escola. SITE RECOMENDADO LABHOI – www.historia.uff.br/labhoi Contém diversas coleções de imagens, principalmente fotografias, e textos de alunos e docentes do Departamento de História da UFF com reflexões sobre elas. C E D E R J 201 AULA INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA 17 AULA Cinema e história Meta da aula objetivos Apresentar as fontes cinematográficas e sua metodologia de uso nas aulas de História. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Definir fontes cinematográficas. • Identificar a importância das fontes cinematográficas para o conhecimento histórico. • Aplicar fontes cinematográficas em aulas de História. História na Educação 1 | Cinema e história O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História. Marc Ferro INTRODUÇÃO No mundo de hoje, é comum escutarmos que o cinema e a televisão superaram os livros. Não seria impossível encontrar alguém que defendesse o fim das aulas convencionais, que seriam substituídas por sessões de cinema e apresentação de programas de televisão. Na verdade, a idéia não é tão Tanto o TELECURSO quanto o TV ESCOLA são projetos de educação a distância veiculados pela televisão. Enquanto este último destinase à capacitação, atualização e aperfeiçoamento de professores do Ensino Fundamental e Médio da rede pública, o primeiro é um método de ensino supletivo para alunos do Ensino Fundamental e Médio. radical assim. Projetos como o TELECURSO e o TV ESCOLA há um bom tempo transmitem conhecimento através da televisão. No caso das aulas de História, muitos professores aproveitam o gosto dos alunos pelo cinema para passar a discutir filmes históricos. Apesar das amplas possibilidades de análise e aplicação que a televisão permite em sala de aula, é no cinema que vamos concentrar esta aula. Com a expansão das locadoras, muitos filmes, antes acessíveis apenas nas grandes cidades, agora podem ser vistos por uma ampla gama de espectadores, inclusive nas escolas. Por isso, assim como você trabalhou, nas últimas aulas, com vários tipos de documentos diferentes, esperamos que, nesta aula, reflita sobre algumas possibilidades de uso do cinema para a análise histórica, explorando suas possibilidades de aplicação em aulas. O QUE SÃO FONTES CINEMATOGRÁFICAS? Assim como entrevistas, objetos, cartas e mapas, o filme também é um documento, uma vez que é um vestígio do passado. Mas, assim como você viu na Aula 16 as imagens estáticas, é preciso saber que o filme também é uma representação, ou melhor, uma recriação da realidade. Mesmo o documentário – que, por princípio, tem um compromisso com a realidade – nunca mostra a realidade exatamente como ela é, mas sim como é interpretada por seu autor, em uma determinada época, de acordo com as condições disponíveis de produção artística. Desde meados da década de 1970, o filme vem sendo considerado um importante testemunho da sociedade que o produziu, na medida em que expressa idéias vigentes daquela época. Na Aula 13, você viu que documentos, ou fontes, são todos os vestígios do passado selecionados por historiadores especificamente com o fim de analisar determinado período ou determinada sociedade; no caso do filme, para que ele seja 204 C E D E R J 17 de quando ele foi produzido. Por exemplo, um filme brasileiro feito na década de 1960, por CINEMA NOVO cineastas ligados ao movimento CINEMA NOVO, certamente expressará as Iniciado na década de 1960, o Cinema Novo foi um movimento brasileiro que ressaltava a importância do autor. Com o lema “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha, autores de filmes como Vidas secas (1963), Os fuzis (1964) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), respectivamente, propunham a elaboração de filmes voltados para a denúncia da realidade brasileira. idéias da esquerda brasileira, contrárias, naquele momento, à ditadura militar que então se instaurava no país. Em alguns casos, é bem fácil perceber a relação do filme com a época em que foi produzido, como, por exemplo, Cidade de Deus (Brasil, 2002), no qual o cotidiano do bairro homônimo, no Rio de Janeiro, é retratado de forma realista. Mas toda produção cinematográfica, assim como qualquer outra expressão de uma sociedade, pode ser considerada como um documento, mesmo quando a relação entre o filme e a época de sua produção não é evidente. ATIVIDADE 1. Leia as informações a seguir sobre o filme Carandiru (Brasil, 2003). A partir da leitura, explique como este filme pode ser considerado um testemunho do presente. Embora não seja necessário assistir ao filme para realizar a atividade – ele encontra-se disponível para aluguel em locadoras –, seu rendimento será melhor se você puder assistir a ele. Para saber ainda mais sobre o filme ou assistir ao trailer, você pode consultar o site: http://carandiru.globo.com. Carandiru Um filme de Hector Babenco. Baseado no livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Produção e direção: Hector Babenco. Co-produtores: Flavio R. Tambellini e Fabiano Gullane. Produtor Associado: Daniel Filho. Roteiro: Victor Navas, Fernando Bonassi, Hector Babenco. Direção de Fotografia: Walter Carvalho A.B.C. Direção de Arte: Clóvis Bueno. Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Ivan de Almeida, Ailton Graça, Maria Luisa Mendonça, Aída Leiner, Rodrigo Santoro, Gero Camilo, Lázaro Ramos, Caio Blat, Wagner Moura, Julia Ianina, Sabrina Greve, C E D E R J 205 AULA um documento, temos de considerá-lo um vestígio de sua época, ou seja, História na Educação 1 | Cinema e história Floriano Peixoto, Ricardo Blat, Vanessa Gerbelli, Leona Cavalli, Milhem Cortaz, Dionisio Neto, Antonio Grassi, Enrique Diaz, Robson Nunes, André Ceccato, Bukassa, Sabotage, Rita Cadillac. Sinopse Numa cela da Casa de Detenção de São Paulo, o popular Carandiru, dois detentos (Lula e Peixeira) se enfrentam num acerto de contas. O clima é tenso. Outro detento, Nego Preto, espécie de “juiz” para desavenças internas, soluciona o caso em tempo de dar “boas-vindas” ao médico, recém-chegado e disposto a realizar trabalho de prevenção à AIDS na penitenciária. O médico depara-se, no maior presídio da América Latina, com problemas gravíssimos: superlotação, instalações precárias, doenças como tuberculose, leptospirose, caquexia, além de pré-epidemia de AIDS. Os encarcerados lamentam, além da falta de assistência médica, da falta de assistência jurídica. O Carandiru, com seus mais de sete mil detentos, constitui-se em grande desafio para o doutor recém-chegado. Mas bastam alguns meses de convivência para que ele perceba algo que o transformará: mesmo vivendo situações-limite, os internos não são figuras demoníacas. No convívio com os presos que visitam seu improvisado consultório, o médico testemunha solidariedade, organização e, acima de tudo, grande disposição de viver. Oncologista famoso, habituado à mais sofisticada tecnologia médica, o doutor terá de praticar sua medicina à moda antiga, com estetoscópio, sensibilidade e muita conversa. O trabalho começa a apresentar resultados, e o médico ganha o respeito da coletividade. Com o respeito, vêm os segredos. As consultas vão além das doenças, pois os detentos começam a narrar histórias de vida. Os encontros na enfermaria transformam-se em “janelas” para o mundo do crime. A narrativa do filme arma-se como um quebra-cabeça. Uma história encaixa-se na outra para formar painel realista da tragédia brasileira. Com o médico, o espectador acompanha os movimentos cotidianos dos presos, até a eclosão – em dois de outubro de 1992 – do mais terrível abalo da história da Casa de Detenção de São Paulo: o massacre do Carandiru. A idéia Carandiru, de Hector Babenco, é um painel sobre a realidade dos detentos no maior complexo penitenciário da América Latina. O filme se baseia no livro Estação Carandiru, do médico cancerologista Drauzio Varella, um fenômeno editorial que já vendeu 350 mil cópias. No livro, Drauzio conta histórias dos presos, que ouviu trabalhando como médico voluntário na Casa de Detenção de São Paulo, ao longo de 13 anos. Antes de publicar o livro, Drauzio costumava contar essas histórias para 206 C E D E R J 17 AULA seu amigo Hector Babenco, que então era seu paciente e que o incentivou a colocar os casos no papel. “Ele me alimentava semanalmente com suas histórias. Naquele momento eu era um convalescente, mas também um ouvinte privilegiado. O que motivou a fazer o filme foi o fascínio que essas histórias me despertam.” A história do Carandiru A história do complexo do Carandiru – da qual fazia parte a Casa de Detenção, palco do livro e do filme – começa em 1904. E, mesmo um século atrás, já nasce com uma história de superlotação carcerária. Naquela época, a maioria das cadeias ficava embaixo dos casarões públicos, mas eram poucas vagas para muitos crimes. O governo estadual decidiu, então, construir um grande presídio e fez concurso público para a criação da Penitenciária do Estado. O escritório do arquiteto Ramos de Azevedo, o mesmo do Teatro Municipal, ganhou a concorrência. O local escolhido foi o Carandiru, uma parte praticamente deserta da cidade na época, charco do rio Tietê e região de Mata Atlântica (até hoje, o Carandiru tem 55 mil m2 de mata original). A Penitenciária do Estado foi inaugurada em 1920, como um instituto de regeneração para recuperar os presos. A Casa de Detenção, como diz o seu nome, foi construída para receber presos aguardando tramitação de julgamento. Mas, desde o ano de 1975, ela começou a receber também condenados e ganhou o apelido de “depósito de gente”. O processo de construção obedecia à seguinte ordem: quando superlotava um pavilhão, construía-se outro. Quando o último foi construído em 1978, a superlotação estourou – coincidindo com a explosão populacional do Brasil nos anos 70. As grandes rebeliões da Detenção começaram em 1982. Dez anos depois, aconteceu a maior tragédia da Detenção, com o massacre de 111 presos pela PM. Em 2000, ela foi o centro da megarrebelião de 27 mil presos em 29 cidades do país. Esses dois eventos foram determinantes para a desativação do presídio. Quem comprou a briga da desativação foi o governo Mario Covas, mas falava-se na desativação da Detenção há mais de 20 anos, quando o último pavilhão foi inaugurado. No dia 16 de janeiro de 2003, Geraldo Alckmin, sucessor de Covas, apertou os botões que ativaram a implosão de três pavilhões do Casa de Detenção, um evento que determina o início de uma nova era para o local.” Fonte: Site do filme Carandiru: http://carandiru.globo.com. C E D E R J 207 História na Educação 1 | Cinema e história ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ COMENTÁRIO Esta atividade consiste na realização da análise do filme Carandiru, considerando-o como um testemunho da época em que foi produzido. Na resposta, é importante que você destaque a intenção do filme de retratar o cotidiano dos detentos do presídio do Carandiru, de forma a descortinar, para o espectador, os antecedentes da grande rebelião de 1992, que levaram ao episódio conhecido como “o massacre do Carandiru”. Para além da história específica deste presídio e da intenção de chamar a atenção para as condições de vida dos presos, o filme também é um documento, ou testemunho, do presente, já que foi feito justamente no ano em que o presídio foi implodido. Não só a sua realização mas o interesse que ele despertou na sociedade demonstram a atualidade de suas questões. Agora que você já viu que todo filme pode ser um documento na medida em que pode ser analisado historicamente, é hora de aprofundar a análise do filme histórico, ou seja, aquele que tem como tema principal um fato histórico, situando sua narrativa no passado. Filmes históricos podem ser usados como documentos de uma época (quando eles foram feitos e como representação do passado (da época que eles retratam). Vejamos, como exemplo, o filme norteamericano Nascimento de uma nação, de 1915, do diretor David W. Griffith. Por meio da história de duas famílias, o filme aborda o período conhecido como Reconstrução (1866-1877), logo depois da abolição da escravidão nos Estados Unidos, quando foram feitos esforços no sentido de integrar os ex-escravos à sociedade americana. No filme, o diretor mostra essa época como se tivesse sido um período de “agonia”, no qual homens negros ingratos e corruptos teriam aterrorizado brancos 208 C E D E R J 17 indefesos e suas mulheres, ridicularizando seus antigos donos no sul AULA dos Estados Unidos. Desta forma, o filme é uma representação do passado, ou seja, ele descreve um determinado período da história dos Estados Unidos a partir do ponto de vista de seu autor. Ao construir uma determinada narrativa sobre esse período, o diretor não esconde sua opinião, demonstrando grande preconceito em relação aos negros, compartilhado por muitos de seus compatriotas, inclusive por Woodrow Wilson, na época, presidente da República. Neste sentido, este filme também é um testemunho sobre 1915, mostrando que, mesmo tantos anos depois da abolição da escravidão, o preconceito contra os negros nos Estados Unidos ainda estava longe de acabar. Portanto, pode-se dizer que os filmes históricos sejam duplamente documentos, já que permitem análises de dois períodos: o tempo em que foram produzidos e o tempo retratado por eles. Como definiu o historiador MARC FERRO, um dos maiores especialistas na relação entre cinema e história, é possível fazer a leitura histórica do filme e a leitura cinematográfica da história. No primeiro caso, o filme é visto como um documento da época em que foi produzido; no segundo, ele é analisado Marc Ferro (1924-) O historiador francês pioneiro na análise entre cinema e história. Além de ter publicado livros como A história vigiada e Cinema e história, é autor de alguns filmes sobre a Revolução Russa e a história da medicina (La Grande Guerre, 1964; Lénine par Lénine, 1970; Une histoire de la médicine, 1980). Hoje, além de dar aulas na Universidade de Paris, produz e apresenta semanalmente o programa História paralela na televisão francesa (TV5), em que discute História e atualidades fazendo uso de imagens. como um discurso sobre o passado. ATIVIDADE 2. Leia o texto a seguir, referente ao filme Memórias do cárcere (1983), de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, no qual o escritor narra sua experiência na prisão em 1936. Nesse ano, ele foi preso, acusado de ter participado da Intentona Comunista, levante que aconteceu ao mesmo tempo em várias cidades do país. Embora não tenha tido qualquer chance de sucesso, o movimento foi usado como justificativa para a implantação do Estado Novo, regime autoritário estabelecido por Vargas em 1937. A partir do texto, discorra sobre as possibilidades de análise deste filme, tanto da perspectiva do período que retrata quanto da época em que foi produzido. Embora o ideal seja que você, além de ler o texto, também veja o filme – que encontra-se disponível em locadoras –, isto não é necessário para que você responda à questão. (...) encontramos na leitura cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos uma sintonia com o ‘sentido histórico’ tal como percebido e preservado por Graciliano na escrita de suas memórias (...). O Graciliano do filme é um escritor que, embora C E D E R J 209 História na Educação 1 | Cinema e história no epicentro da trama, parece guardar certa distância crítica dos acontecimentos que o envolvem e que têm como pano de fundo a mobilização política da Aliança Nacional Libertadora (ANL), as relações entre e ANL e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), e entre o PCB, o tenentismo, e outras correntes de esquerda, como a anarquista. Nelson Pereira dos Santos se vale da figura física de Graciliano Ramos, na magnífica interpretação de Carlos Vereza, para demarcar esse distanciamento. E o faz sem prejuízo de um sentimento empático com o idealismo, a utopia e o sofrimento dos revolucionários de 1935, o que lhe permite alcançar uma dimensão compreensiva profunda e aguda do drama histórico vivenciado por aqueles prisioneiros políticos e situar-se na perspectiva daqueles anos. (...) O cineasta afirma ter se sentido mais livre ao fazer o filme do que Graciliano Ramos quando escreveu o livro, pelo fato de não ter vivido 1935/1936. Por isso a sua escolha em evitar traçar um retrato biográfico de Graciliano e garantir, para o seu filme, um caráter ficcional, evitando, segundo suas palavras, o ‘documentário de época’. Consciente de que o cinema como obra de arte não tem nenhum compromisso com uma suposta verdade de tipo histórica, o filme de Nelson Pereira dos Santos declaradamente não tem nenhum compromisso com o que poderia ser considerado a verdade de Graciliano Ramos (...). Daí (...) a manutenção dos nomes verdadeiros de alguns personagens de carne e osso, tais como os de Heloísa, mulher de Graciliano, o do advogado Sobral Pinto, o de Olga Benário e Luís Carlos Prestes, ao lado da substituição de outros nomes, como os da dra. Nise da Silveira, Agildo Barata, Rodofo Guioldi, Cascardo, Sisson e vários outros de tanta expressão nos episódios em questão, por nomes fictícios ou nenhum nome. Também o fim do filme com a saída de Graciliano da Colônia Correcional rumo à liberdade, quando no livro o autor sai da Colônia para retornar à Casa de Correção. Na vida real, o último capítulo do livro, que certamente falaria da sua libertação da prisão, não foi escrito: a morte do autor impediu o término das memórias. (...) A opção de construir uma metáfora da prisão põe de novo em consonância o escritor e o cineasta, que adaptou a sua obra. Tal como o escritor, também o cineasta, do Brasil de 1983, então nos estertores de uma opressiva ditadura militar, escolhe, seleciona entre as memórias do escritor aquelas que por se conservarem, crescerem, se associarem, são capazes de, postas em cena, criar um vínculo de solidariedade entre o passado 210 C E D E R J 17 RESPOSTA COMENTADA Nesta atividade, é importante que você ressalte as duas possibilidades de análise do filme, ou melhor, o filme como documento da época em que foi produzido (1983), e o filme como representação sobre um período histórico (1936). No primeiro caso, é importante ressaltar o trecho do texto em que a autora faz menção ao fato de o diretor de Memórias do cárcere ter querido encenar uma “metáfora da prisão”, justamente quando a ditadura militar brasileira se findava. Ao abordar o cotidiano da prisão de 1936, Nelson Pereira dos Santos referia-se, ao mesmo tempo, às condições políticas do Brasil de 1983. No segundo caso, o texto mostra como Nelson Pereira dos Santos não seguiu fielmente os acontecimentos, construindo uma interpretação própria sobre a relação de Graciliano Ramos com a política da época. Isto quer dizer que o filme, em vez de ser um relato histórico, é uma interpretação sobre um período da História do Brasil. FONTES CINEMATOGRÁFICAS NA ESCOLA Como você viu no início da aula, a idéia de usar filmes em sala de aula é muito sedutora, tanto para alunos quanto para professores. Afinal, cinema é mesmo a maior diversão. No caso do filme histórico, principalmente nas aulas de História, o filme é muito útil para divulgação C E D E R J 211 AULA e o presente. De fato a metáfora da prisão, ou da sociedade como prisão, reatualiza ficcionalmente com felicidade, e sem descaracterizá-lo, o cenário da prisão desenhado na narrativa de Graciliano. Seja no navio-prisão, no Pavilhão dos Primários, na Colônia Correcional da Ilha Grande, ou na Casa de Correção, o drama de um país marcado por brutais desigualdades sociais e pelo poder insensível das elites continua a ser encenado enquanto o filme é rodado” (DUTRA, 2001, pp. 155-158). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ História na Educação 1 | Cinema e história e sensibilização dos alunos em relação ao conhecimento histórico. Mas é preciso tomar cuidado ao explorar o filme como recurso pedagógico. Caso não haja uma atividade claramente planejada, a aula acaba virando uma “sessão pipoca”. A utilização de filme na escola vale a pena quando está inserida em uma unidade mais ampla, sem substituir o professor mas, ao mesmo tempo, sem ser apenas uma ilustração do que foi dito em sala de aula. Por exemplo, se, em uma aula sobre o descobrimento da América, o professor resolver substituir sua exposição pelo filme 1492, a conquista do paraíso (EUA, 1992), que narra a chegada de Colombo ao continente americano, dificilmente o aluno terá uma experiência positiva de aprendizado, já que ele não aprenderá nem com o professor (que terá deixado de dar algumas aulas), nem com o filme, já que não terá as informações suficientes que o façam entender as seqüências e caracterizações históricas. Assim, a utilização de filme só tem sentido quando supõe a intervenção do professor, tanto real, quando ele interrompe ou edita o filme para explicar trechos a seus alunos, quanto por meio de atividades, quando orienta a visão do filme a partir de uma série de atividades relacionadas a ele. ATIVIDADE 3. Reproduzimos, a seguir, trechos do artigo “Filme na aula de História: diversão ou hora de aprender?”, publicado no site da revista Nova Escola em maio de 2005. Nele, uma professora de História relata sua experiência com o uso de filmes em sala de aula. A partir da leitura, analise a importância do uso de fontes cinematográficas para o ensino de História nas escolas. Há tempos a professora de História Maria Aparecida Pinho Cabral de Medeiros, do Colégio Augusto Laranja, em São Paulo, tem um olhar crítico e atento às possibilidades de uso dos filmes. No ano passado, durante um trimestre, o tema de suas aulas na 7ª série foi a Idade Média. Para começar, Cida, como é conhecida na escola, utilizou o quadro-negro e seus conhecimentos teóricos sobre o assunto para explicar esse período. Mas era preciso uma estratégia de ensino para aumentar o interesse da turma pelas aulas. Os estudantes pesquisaram na internet, mas ao assistir ao filme de aventura Coração de cavaleiro, de Brian Helgeland, conheceram mais a fundo como se davam as relações entre o clero, a nobreza e os camponeses. “Os alunos ficaram impressionados com os tra- 212 C E D E R J 17 impressão e esse conhecimento só são possíveis com o cinema”, conta Cida. Para exibir o filme, que tem 132 minutos, foi preciso que outros professores cedessem suas aulas para a professora. Mas o projeto não parou por aí. Leitura e produção de textos foram explorados em Língua Portuguesa quando os alunos tiveram que produzir contos de cavalaria. Será que um nobre poderia se casar com uma camponesa? Por quê? O que aconteceria com um cavaleiro que discutisse com um padre? Essas questões foram levantadas e pesquisadas em livros para a construção das histórias (Fonte: Revista Nova Escola, maio de 2005). ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Você pode perceber a importância do uso de fontes cinematográficas nas aulas de História por meio do exemplo citado anteriormente. Nesse trecho, a professora demonstra como a análise de um filme é importante para a compreensão de um conteúdo específico, a Idade Média. Ao mesmo tempo, ela mostra que a adoção de um filme como recurso pedagógico possibilita a abordagem interdisciplinar, já que ele se presta também à elaboração de atividades na disciplina Língua Portuguesa. CONCLUSÃO Ao longo desta aula, você viu, através de exemplos e atividades, como os filmes podem ser usados de forma a enriquecer as aulas de História. Por meio da fotografia e das imagens em geral, o filme, principalmente o de temática histórica, proporciona uma efetiva aproximação com um universo que lhe é distante. Nesse sentido, é importante que o aluno tenha consciência de que o filme é sempre uma representação da realidade, tanto para estimulá-lo a conhecê-la melhor quanto para incentivá-lo a olhar para os filmes de forma crítica, sem tomar sua narrativa como expressão fiel da verdade. C E D E R J 213 AULA jes medievais e descobriram a dureza da vida naquela época. Essa História na Educação 1 | Cinema e história Ao usar filmes em aulas de História, portanto, você estará elaborando aulas mais interessantes e contribuindo para que seus alunos sejam capazes de exercer a crítica não apenas nos filmes históricos, mas em qualquer filme. ATIVIDADE FINAL Para realizar esta atividade, é preciso que você tenha tempo para ver um filme. Pode ser qualquer um, tanto o chamado filme histórico quanto um filme transmitido na televisão. O objetivo é que você, a partir da observação do filme, elabore uma atividade para ser realizada em sala de aula. Nesta atividade, você deverá estimular seu aluno a contextualizar a narrativa e a analisar seu significado, de forma que sua observação permita uma compreensão melhor daquela realidade, mesmo que a “realidade” à qual o filme se refira seja a do tempo presente. COMENTÁRIO Esta atividade não tem uma resposta única. Trata-se de colocar em prática todos os conceitos e procedimentos abordados ao longo da aula. A experiência de elaborar e realizar uma atividade é importante para que você, futuro professor, possa sentir como um filme pode contribuir para o seu maior conhecimento sobre uma determinada realidade. Ao se familiarizar com esses procedimentos, você pode planejar melhor a realização de atividades como esta no futuro, para seus alunos. Por exemplo, um filme pode ser usado para fixar um conteúdo já visto ou para iniciar uma discussão ou um tema novo. Em qualquer dos casos, você deve seguir alguns procedimentos, como os seguintes: – assista ao filme mais de uma vez antes de decidir passá-lo para a sua turma; decida se é preciso passar o filme inteiro ou se será possível selecionar algumas partes. Veja se o filme é apropriado para a faixa etária de seus alunos; – deixe claro para os seus alunos quais são os objetivos da transmissão do filme, para que eles não confundam a aula com uma sessão de pura diversão; – antes de passar um filme, distribua sempre um roteiro de perguntas ou de observação a seus alunos; isto os ajudará a se concentrarem melhor nos temas que você pretende abordar em sua aula; – sempre deixe claro para a sua turma que o filme não é a realidade, mas uma representação sobre ela. 214 C E D E R J 17 AULA RESUMO Fontes cinematográficas são filmes quaisquer, como comédias, dramas, documentários, históricos, biográficos, dentre outros, utilizados por um analista para melhor conhecer uma determinada realidade. No caso do filme com temática histórica, ele é tanto uma representação sobre uma época quanto produto do período em que foi feito. Ao serem utilizadas em sala de aula, as fontes cinematográficas podem ser bastante estimulantes para o ensino de História, já que permitem uma aproximação entre os alunos e o conteúdo dificilmente alcançável por meio de outros recursos. INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA A partir da próxima aula, daremos atenção aos métodos de trabalho do historiador e suas possibilidades de uso na escola, de forma que o professor possa demonstrar, na prática, como é construído o conhecimento histórico. SITES RECOMENDADOS Nas Fronteiras entre Ciência e História http://www.comciencia.br/especial/cinema/cine04.htm Site com textos informativos sobre a relação entre cinema e História, além de entrevista com o historiador Marc Ferro, um dos maiores especialistas no assunto. Filme na aula de História: diversão ou hora de aprender? http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0182/aberto/mt_67469.shtml Site da revista Nova Escola, com a reportagem “Filme na aula de História: diversão ou hora de aprender?” (maio de 2005) e indicação de dez filmes para explorar conteúdos de História da 5ª à 8ª série. C E D E R J 215 História na Educação 1 | Cinema e história TV Escola www.mec.gov.br/seed/tvescola/ Site da TV Escola, com informações sobre a estrutura e programação. Telecurso http://www.telecurso2000.org.br/tele2k/scripts/home.asp Site do Telecurso. É Tudo Verdade http://www.itsalltrue.com.br/2005/index.htm Site dedicado à cultura do documentário na América Latina, com mecanismo de busca de filmes. Adoro Cinema http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/default.asp Site dedicado a filmes, com catálogo e comentários. MOMENTO PIPOCA F Filmografi a Em uma aula sobre cinema, é difícil fazer indicações, justamente pela quantidaE de de filmes passíveis de utilização em sala de aula. Optei por listar somente os d filmes citados durante a aula e não aproveitados em atividades. Para dicas de utilização de filmes em sala de aula, recomendo a consulta aos livros Passado u imperfeito: a história no cinema, que analisa filmes hollywoodianos, e A História im vvai ao cinema, com comentários críticos sobre vinte filmes brasileiros. Cidade de Deus (Brasil, 2002, 135 minutos) Drama Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: Bráulio Mantovani, baseado em romance de Paulo Lins. Produção: Walter Salles. Música: Antônio Pinto e Ed Côrtes. Fotografia: César Charlone. Direção de Arte: Tulé Peake. 216 C E D E R J 17 Buscapé (Alexandre Rodrigues) é um jovem pobre, negro e muito sensível, que cresce em um universo de muita violência. Buscapé vive na Cidade de Deus, favela carioca conhecida por ser um dos locais mais violentos da cidade. Amedrontado com a possibilidade de se tornar um bandido, Buscapé acaba sendo salvo de seu destino por causa de seu talento como fotógrafo, o qual permite que siga carreira na profissão. É através de seu olhar atrás da câmera que Buscapé analisa o dia-a-dia da favela em que vive, onde a violência aparenta ser infinita. Fonte: www.cidadededeus.com.br O nascimento de uma nação (The Birth of a Nation, EUA, 1915, 187 minutos) Drama Direção: D.W. Griffith. Roteiro: D.W. Griffith e Frank E. Woods. Produção: D.W. Griffith. Música: Joseph Carl Breil e D.W. Griffith. Fotografia: G.W. Bitzer. Figurino: Robert Godstein. Sinopse Dois irmãos da família Stoneman visitam os Cameron em Piedmont, Carolina do Sul. Essa amizade é afetada pela Guerra Civil, pois os Cameron se alistam no Exército Confederado enquanto os Stoneman se unem às forças da União. São retratadas as conseqüências da guerra na vida dessas duas famílias e as conexões com os principiais acontecimentos históricos, como o crescimento da Guerra da Secessão, o assassinato de Lincoln e o nascimento da Ku Klux Klan. Fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/ nascimentode-uma-nacao/nascimento-de-uma-nacao.htm#Sinopse 1492, a conquista do paraíso (1492: Conquest of Paradise, EUA Inglaterra – França – Espanha, 1992, 155 minutos) Drama Direção: Ridley Scott Roteiro: Roselyne Bosch. Produção: Alain Goldman e Ridley Scott. Música: Vangelis. Fotografia: Adrien Biddle. Desenho de Produção: Norris Spencer. Direção de Arte: Martin Hitchcock, Antonio Patón, Kevin Phipps e Luke Scott. Figurino: Charles Knode e Barbara Rutter. C E D E R J 217 AULA Sinopse História na Educação 1 | Cinema e história Sinopse Vinte anos da vida de Colombo, desde quando se convenceu de que o mundo era redondo, passando pelo empenho em conseguir apoio financeiro da Coroa espanhola para sua expedição, o descobrimento em si da América, o desastroso comportamento que os europeus tiveram com os habitantes do Novo Mundo e a luta de Colombo para colonizar um continente que ele descobriu por acaso, além de sua decadência na velhice. Fonte: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/1492/ 1492.htm#Sinopse 218 C E D E R J 18 AULA História e pesquisa Meta da aula objetivos Apresentar a metodologia de investigação histórica. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Identificar as etapas da investigação histórica. • Reconhecer o método de investigação histórica. História na Educação 1 | História e pesquisa INTRODUÇÃO Se alguém lhe perguntasse quanto um historiador e um detetive têm em comum, o que você responderia? Se a resposta foi “muito”, acertou. Mas se você, ao contrário, respondeu “nada!”, não se espante. De fato, o que historiadores e detetives compartilham é o método de trabalho. O objetivo desta aula é mostrar justamente isso. E também demonstrar como o ensino de História pode ser interessante e divertido, se incorporar às aulas atividades que evidenciem a metodologia de trabalho do historiador. COMO SOLUCIONAR OS MISTÉRIOS HISTÓRICOS (OU AS ETAPAS DA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA) Para começar, você certamente sabe o que faz um detetive: investiga um mistério. Ele procura informações sobre o ocorrido, busca pistas, formula hipóteses e aponta uma solução, caso consiga. E o historiador? Ora, o historiador faz a mesma coisa! Vejamos: para realizar uma pesquisa, ele sempre parte de um problema, de uma dúvida. A dúvida e a curiosidade são os motores de qualquer investigação, seja ela policial, histórica ou científica. No caso da História, a dúvida pode ser “Quais foram as circunstâncias da morte de Marco Aurélio, imperador romano?”, “O que os governos de Getulio Vargas, presidente do Brasil, e Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos na mesma época, tinham em comum?”, ou mesmo “O que comiam os franceses às vésperas da Revolução Francesa?”. Perceba que não é o tema em si que nos interessa. Quando um historiador começa a pesquisar um assunto, o que, no fundo, ele está fazendo? Ele está tentando fornecer uma resposta a uma dúvida, ou seja, ele está tentando solucionar um mistério. A solução desse mistério geralmente parte do interesse pessoal do pesquisador, que muitas vezes é originado de sua experiência. Se pesquisar é uma atividade difícil, já pensou como seria para se dedicar a um assunto do qual você não goste? Nem tente, porque não vai dar certo. Uma boa pesquisa exige algum grau de empatia entre o sujeito e seu objeto, ou melhor, entre o pesquisador e o tema de sua pesquisa. Além de seu próprio interesse, a escolha do tema também é justificada pela originalidade e relevância. Isto quer dizer que, geralmente, não basta que um historiador diga que vai estudar um determinado tema por causa de suas próprias dúvidas e questões; ele precisa justificar sua escolha explicando por que o estudo daquele assunto é importante. 220 C E D E R J 18 Depois de escolhido o tema, o pesquisador deve informar-se AULA sobre o que foi escrito a respeito. Por mais que esteja convencido da originalidade da sua abordagem, ignorar o que outros escreveram antes de você é como tentar inventar a roda pela segunda vez. Só depois de conhecer outros estudos é que será possível acabar de construir seu problema, definindo exatamente o que você vai estudar, ou seja, o que você precisa analisar para responder à sua questão. A etapa seguinte é quando você começa a desvendar seu problema. Como? Procurando fontes, classificando-as, analisando-as e interpretando-as. Este é o momento mais difícil e importante de sua investigação. É quando você, a partir de sua pesquisa, formulará hipóteses, buscando fornecer respostas ao problema que originou sua investigação. A qualidade de sua pesquisa dependerá sobretudo da verossimilidade de suas respostas. ATIVIDADE 1. O texto a seguir foi escrito por Laura de Mello e Souza, uma das primeiras historiadoras brasileiras a introduzir, por meio de estudos sobre as práticas de feitiçaria no período colonial, a chamada História das Mentalidades no Brasil. A partir da leitura do texto, identifique as etapas da pesquisa percorridas pela autora. (...) a feitiçaria no Brasil durante os séculos XVI, XVII e XVIII não suscitou, até hoje, nenhuma pesquisa. E isto não ocorreu por falta de fontes: as práticas mágicas e a feitiçaria propriamente dita foram motivo de preocupação para as autoridades coloniais civis e para as eclesiásticas, e houve casos apurados pelas Visitações do Santo Ofício ao Brasil que seguiram para Portugal e lá foram julgados pelo Tribunal da Inquisição. Quando pensei que poderia pelo menos iniciar o percurso no sentido de sanar esta lacuna, tinha em vista um trabalho sobre a feitiçaria dos tempos coloniais com base nos processos dos réus brasileiros. Procurava, desta forma, alargar os estudos que vinha desenvolvendo sobre as camadas socialmente desclassificadas e sobre a articulação dos aparelhos de poder no Brasil colonial. Já na época da elaboração de Desclassificados do ouro, minha dissertação de mestrado, chamara-me a atenção a presença marcante de feiticeiras e feiticeiros negros entre a população pobre e marginalizada das C E D E R J 221 História na Educação 1 | História e pesquisa Minas, que as Devassas Eclesiásticas retrataram em suas práticas cotidianas freqüentemente impregnadas de magismo e bruxaria. Naquela ocasião, acreditava que a feitiçaria exercida por esses homens pobres – livres, escravos e libertos – apresentava elementos predominantemente africanos. (...) O aprofundamento da leitura de obras específicas permitiu-me entretanto perceber que muitos dos casos presentes nas Devassas, e até então tidos por mim como testemunhos da persistência de práticas africanas, diziam respeito a um substrato comum também à feitiçaria européia. (...) Surgia assim um novo problema: a especificidade da religião vivida pela população colonial, eivada de reminiscências folclóricas européias e paulatinamente colorida pelas contribuições culturais de negros e índios. (...) O caminho que levou do sabbat europeu ao calundu colonial foi longo e largo: estendeu-se por três séculos e abrangeu os núcleos economicamente mais pujantes. O objeto de estudo impôs, assim, a periodização e a circunscrição regional – se é que se pode falar em circunscrever quando se tenta dar conta de área geográfica tão ampla. Este trabalho trata da feitiçaria, das práticas mágicas e da religiosidade popular no Brasil colonial dos séculos XVI, XVII e XVIII, abarcando as regiões da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Grão-Pará, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Caberiam ainda duas palavras sobre a pesquisa documental. Ela assentou-se basicamente nas Visitações, Devassas Eclesiásticas e Processos de réus brasileiros existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Afirmar que li todos os processos brasileiros de feitiçaria seria faltar com a verdade e correr o risco de ser desmentida por todo pesquisador que já tenha trabalhado neste Arquivo, onde vigora um sistema classificatório muito precário, pelo menos no que diz respeito à documentação inquisitorial. Sendo assim, consultei o maior número de processos que todos estes entraves puderam permitir. Muitos ainda devem estar esperando novos investigadores, o que é altamente estimulante e reforça a idéia de que não existe História nem pesquisa definitivas (MELLO E SOUZA, 1986, pp. 15-8). RESPOSTA COMENTADA Neste trecho, Laura de Mello e Souza narra o processo que a levou a definir sua pesquisa, desde seu interesse pelo tema até o início da investigação. Ela explica que seu interesse pelo tema da feitiçaria começou quando, ao estudar outro assunto, deparou-se com “a presença marcante de feiticeiras e feiticeiros negros entre a população pobre e marginalizada das Minas”. A pesquisadora observou que, apesar da grande preocupação das autoridades 222 C E D E R J 18 havia sido objeto de qualquer estudo. Por isso, para sanar esta lacuna no conhecimento sobre a História do Brasil, ela resolveu estudar o assunto, elaborando a hipótese inicial de que a feitiçaria no Brasil tinha origens basicamente africanas. A partir de então, a autora buscou informar-se melhor sobre sua questão, aprofundando a “leitura de obras específicas”. Ao lê-las, a autora percebeu que sua hipótese inicial não era correta, ou seja, que a feitiçaria no Brasil não era originária apenas da África, mas sim de um conjunto de tradições, incluindo a européia e a indígena. Foi a partir da elaboração desta segunda hipótese que Laura de Mello e Souza conseguiu efetivamente formular seu problema: Qual era “a especificidade da religião vivida pela população colonial”? Para responder, ela definiu melhor seu objeto, estabelecendo que estudaria as regiões da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Grão-Pará, Maranhão, Minas Gerais e Rio de Janeiro nos séculos XVI, XVII e XVIII, buscando informações nos documentos das Visitações, Devassas Eclesiásticas e Processos de réus brasileiros depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. HISTORIADOR, O DETETIVE DO PASSADO Conseguiu perceber como as etapas percorridas pelo historiador são as mesmas realizadas pelo detetive? Ao realizar uma pesquisa, a primeira providência tomada pelo historiador é ler a bibliografia disponível sobre o assunto, que é exatamente o que o detetive faz ao procurar informar-se sobre um caso. Depois, o detetive pega sua lupa e sai a procurar pistas. E o historiador? Faz o mesmo. Dependendo do tipo de pesquisa que está fazendo, vai buscar as fontes, ou seja, as informações para sua pesquisa, em arquivos, jornais, cartas, objetos esquecidos no armário. Como você viu na Aula 13, o historiador sai à cata de documentos, os vestígios do passado. Da mesma forma que, às vezes, um fio de cabelo encontrado em uma almofada é a chave que possibilita a solução de um crime, as anotações da agenda de um ministro brasileiro do século XIX podem servir para elucidar muitas tramas políticas ainda desconhecidas! C E D E R J 223 AULA coloniais portuguesas com este tema, a feitiçaria no Brasil nunca História na Educação 1 | História e pesquisa Não é à toa que as evidências encontradas pelo historiador e pelo detetive em suas investigações são conhecidas pelo mesmo nome: provas. O historiador busca provas para explicar determinado fenômeno histórico da mesma forma que o detetive busca provas para elucidar um mistério. Ambos constroem hipóteses, isto é, possibilidades de respostas para suas perguntas. E, após verificar a consistência de suas explicações, ambos tentam apresentar uma resposta satisfatória para O italiano C A R L O G I N Z B U R G (1939- ), um dos maiores historiadores da atualidade, é professor da Universidade da Califórnia e tem obras traduzidas em 15 idiomas. Para desenvolver temas como a cultura popular, a história da arte e a literatura, Ginzburg aplica o paradigma indiciário, um método de pesquisa baseado na observação dos detalhes. Seu livro mais famoso é O queijo e os vermes, baseado na história de Menocchio. seus mistérios. A diferença é que o historiador não acusa ninguém nem aponta culpados. Como você pode perceber, o vestígio é um dos elementos centrais para a pesquisa histórica. Foi atentando para a sua importância que o historiador CARLO GINZBURG formulou o paradigma indiciário, ou seja, a metodologia de trabalho com base em indícios. Para ele, o historiador, assim como o detetive e até o médico, guia-se pelos indícios – que muitas vezes passam despercebidos a olhos desatentos – para conhecer melhor uma outra época ou uma outra sociedade. Foi assim, por exemplo, quando ele encontrou, em um arquivo no norte da Itália, o processo criminal de Menocchio, um desconhecido herege do século XVI. Usando o documento para reconstituir sua vida e suas crenças, o historiador fez um estudo sobre a Inquisição, a cultura popular e a religião da época. ATIVIDADE 2. O texto a seguir foi escrito pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778) no século XVIII. Trata-se de Zadig ou o Destino, uma história oriental, a história de um sábio babilônio que, após perder um olho e a namorada, casa-se com uma camponesa. Depois de traído por esta, foge para o bosque e torna-se amigo e ministro do rei. Muito antes da formulação do paradigma indiciário, é este o método usado por Zadig para fazer descobertas. Após a leitura, explique por que as atitudes de Zadig exemplificam o paradigma indiciário. Ora, estando um dia a passear pelas proximidades de um bosque, acorreu-lhe [a Zadig] ao encontro um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que houvessem perdido a maior preciosidade deste mundo. – Jovem – disse-lhe o primeiro eunuco –, não viste o cão da rainha? – É uma cadela, e não um cão – respondeu Zadig discretamente. 224 C E D E R J 18 – É caçadeira, e por sinal que muito pequena – acrescentou Zadig. – Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas. – Viste-a, então? – perguntou o primeiro eunuco, esbaforido. – Não – respondeu Zadig –, nunca a vi na minha vida nem nunca soube se a rainha tinha ou não uma cadela. Ao mesmo tempo, por um ordinário capricho da sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais inquietação do que o primeiro eunuco em busca da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira acaso o cavalo do rei. É – respondeu Zadig – o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze denários. – Que direção tomou ele? Onde está? – perguntou o monteiro-mor. – Não o vi – respondeu Zadig –, nem nunca ouvi falar nele. O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no perante a assembléia do grande desterham, que o condenou ao knut e a passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha visto. Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou nos seguintes termos: “Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, vós que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro, o fulgor do diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante essa augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu. Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos C E D E R J 225 AULA – Tens razão – tornou o primeiro eunuco. História na Educação 1 | História e pesquisa amolgado por uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam tôdas a igual distância. ‘Eis aqui – considerei – um cavalo que tem um galope perfeito. A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada.’ ‘Esse cavalo – disse eu comigo – tem uma cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos.’ Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas e concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários.” Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, embora vários magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro, ordenou o rei que lhe restituíssem as quatrocentas onças de ouro a que fora multado. O escrivão, os meirinhos, os procuradores compareceram em grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação. Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser demasiado sábio, e jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que acaso houvesse testemunhado (Voltaire 2005). RESPOSTA COMENTADA Zadig utiliza-se do método indiciário, uma vez que usa indícios ou vestígios para descobrir o paradeiro da cadela da rainha e do cavalo do rei. Ele prestou atenção a detalhes como pegadas e sulcos, que passaram despercebidos àqueles que estavam procurando pelos animais, para fazer deduções a respeito deles. Como você percebeu, ele agiu tal qual um detetive. Os historiadores, ao utilizarem o método indiciário, fazem o mesmo. Prestam atenção a detalhes inusitados para descobrir aspectos pouco conhecidos de uma outra sociedade ou época. 226 C E D E R J 18 Para que você compreenda melhor as etapas da investigação histórica e o método indiciário, nada melhor do que brincar de historiador, ou melhor, de detetive. A proposta é a seguinte: você deve solucionar o mistério da morte de Tereza. Trata-se de uma ficção, mas, assim como agiria um detetive, você também deve tentar esclarecer as estranhas circunstâncias da morte de uma jovem, em uma madrugada de quarta-feira de cinzas, na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, você dispõe do relatório policial e do conteúdo da bolsa da vítima. A partir da observação destas pistas, você deve executar as seguintes tarefas: a. Esclarecer como eram sua personalidade e seus gostos, selecionando os documentos que contêm informações a este respeito. b. Enumerar as pessoas com quem Tereza tinha contato e qual era o tipo de relação que mantinham com ela. c. Esclarecer as circunstâncias de sua morte, reconstruindo, com uma linha do tempo, os movimentos de Tereza no dia em que morreu. d. Formular hipóteses sobre as possíveis causas de sua morte, apresentando provas que reforcem sua argumentação. Por fim, estabeleça as relações entre estes procedimentos e os métodos de trabalho do historiador. C E D E R J 227 AULA ATIVIDADE FINAL História na Educação 1 | História e pesquisa Pista 1: Relatório Policial 228 C E D E R J Pista 2: Documentos e papéis avulsos provavelmente pertencentes à vítima, 18 inseridos em um envelope: AULA C E D E R J 229 História na Educação 1 | História e pesquisa 230 C E D E R J 18 AULA C E D E R J 231 História na Educação 1 | História e pesquisa Fonte: Grinberg; Lagoa; Grinberg (2000, pp. 9-17). 232 C E D E R J 18 RESPOSTA COMENTADA AULA Esta atividade, que também pode ser realizada com alunos, não tem uma única resposta correta. Seu objetivo é fazer com que você, ao realizar os procedimentos de uma investigação policial, perceba as relações entre esta e o trabalho de investigação do historiador, já que, para elaborar as hipóteses sobre o mistério, você deve: - contextualizar um acontecimento por meio da realização da linha do tempo; - selecionar, classificar e analisar documentos; - utilizar a capacidade de inferir, para formular hipóteses baseadas em provas. Por fim, é importante que você reconheça que, apenas com os documentos disponibilizados na atividade é impossível chegar a uma resposta satisfatória sobre o mistério. Esta conclusão é muito importante, uma vez que o historiador, muitas vezes, também se depara com a dificuldade em responder a suas questões de pesquisa, já que não dispõe de dados suficientes para solucionar seu problema. RESUMO As pesquisas históricas originam-se de um problema histórico definido pelo pesquisador. A partir dele, tal qual um detetive, o historiador aplica o método indiciário, baseando-se em vestígios nem sempre evidentes para buscar informações, analisar documentos, formular hipóteses e tirar conclusões a respeito de seus temas de pesquisa. INFORMAÇÃO SOBRE A PRÓXIMA AULA Na próxima aula, continuaremos a abordar o tema da pesquisa histórica, desta vez aplicada à sala de aula, por meio de atividades nas quais o aluno poderá entrar em contato com o método de trabalho do historiador e com o conhecimento histórico construído com base na pesquisa. C E D E R J 233 História na Educação 1 | História e pesquisa MOMENTO PIPOCA M U Uma cidade sem passado. Produção: Michael Verhoeven. Alemanha: Globo Vídeo, 1989. 1 videocassete (92 min.) V Depois de vencer um concurso europeu de redação e ser festejada na sua D ccidade, a fictícia Pfitzing, a estudante Sonja prepara-se para um novo trabalho, ““A minha cidade natal durante o III Reich”, no qual pretende enfocar a resisttência de personalidades locais ao nazismo. Mas ela não consegue avançar ccom sua pesquisa. Testemunhas da época recusam-se a dar informações, o arquivo municipal não lhe dá acesso aos documentos e, de repente, a cidade toda parece colocar-se contra ela. Alguns anos mais tarde, Sonja retoma a pesquisa, desta vez sem se deixar intimidar. Baseado em fato acontecido em Passau (Baviera) no início dos anos 80, o filme levou o Urso de Prata de melhor diretor, da Berlinale 1990. Excelente exemplo dos percalços e etapas da pesquisa histórica. 234 C E D E R J 19 AULA História e pesquisa na sala de aula Meta da aula objetivo Apresentar as possibilidades de uso da metodologia de investigação histórica em sala de aula. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: • Aplicar o método de investigação histórica em sala de aula. História na Educação 1 | História e pesquisa na sala de aula INTRODUÇÃO Geralmente, quando um professor quer que seus alunos pesquisem algum assunto, o enunciado de sua atividade é sempre o mesmo: “Pesquisem tal tema.” E, quase sempre, o resultado apresentado pelos alunos é insatisfatório. Os trabalhos apresentados nada mais são do que cópias de livros, jornais e enciclopédias. Quando muito, são resumos daquilo que foi lido. Hoje em dia, com as facilidades de uso de mecanismos de busca na internet, muitos estudantes não se dão nem ao trabalho de escrever; com um clique, imprimem o texto pronto. Pois bem: embora alguns destes alunos sejam mesmo preguiçosos, boa parte deles, ao proceder desta forma, pensa estar agindo de maneira correta. A conclusão a que você pode chegar, então, é que estes alunos não sabem pesquisar. E por quê? Os alunos não sabem pesquisar porque a maioria dos professores também não sabe ou não tem o hábito de pesquisar. Embora esta aula não tenha como objetivo ensiná-lo a pesquisar, pretendemos, a partir dos procedimentos vistos na aula anterior, chamar a sua atenção para a importância da realização de pesquisas de História em sala de aula. PESQUISA SE FAZ NA ESCOLA? Antes de prosseguir com a reflexão sobre a pesquisa histórica, é importante atentarmos para esta pergunta: a escola é o lugar de realização de pesquisas? Explicando melhor a razão da pergunta: durante muito tempo, a universidade foi considerada o lugar da produção do conhecimento, enquanto as escolas eram responsáveis por sua reprodução. Sendo assim, cabe indagar: se pesquisar é produzir conhecimento, por que realizar pesquisas na escola? A escola é lugar de produção de conhecimento? Se você tiver em mente a cura do câncer como sinônimo de “conhecimento”, por exemplo, a resposta certamente será “não”. Mas, se, ao contrário, você entender conhecimento não como o resultado das pesquisas ditas “de ponta”, mas sim o produto de uma reflexão de natureza histórica, então a resposta será “sim”, é possível produzir conhecimento na escola. Portanto, a sala de aula também é lugar de pesquisa. No nosso caso, porém, a pesquisa que se pretende realizar é outra, assim como o nível do conhecimento produzido não é o mesmo do esperado na universidade. Na escola, espera-se que o aluno consiga refletir criticamente sobre seus objetos de estudo, de forma que, aos poucos, seja capaz de pensar com autonomia. 236 C E D E R J 19 Para isso, mais importante do que o domínio do conteúdo, AULA é fundamental que o aluno domine o processo de construção do conhecimento, ou seja, a metodologia do trabalho científico. Conseguiu perceber como a realização de pesquisas em sala de aula é importante? Se os alunos dominarem o processo de produção do conhecimento, eles podem vir a entender que o conhecimento produzido tanto na escola quanto na universidade não é a verdade absoluta, mas sim o resultado de uma pesquisa realizada por alguém. Lembra-se da discussão sobre História e Verdade, realizada na Aula 1? Nela, você viu que aquilo que conhecemos sobre um determinado fato ou processo histórico não é a verdade absoluta, mas sim a descrição sobre este acontecimento, de acordo com as informações disponíveis e com os nossos interesses e preocupações. A metodologia não varia da escola para a universidade; apenas o grau de complexidade é diferente. ATIVIDADE 1. Para aprofundar esta discussão, vejamos o que escreveram as autoras do livro O Ensino de História (revisão urgente). A partir da leitura, reflita sobre a relação entre o domínio da metodologia e a compreensão sobre o processo de produção do conhecimento histórico. É preciso garantir que o professor de história seja alguém que domine o processo de produção do conhecimento histórico, que seja alguém que saiba se relacionar com o saber histórico já produzido e que, finalmente, seja alguém capaz de encaminhar seus alunos (...) nesses mesmos caminhos da produção e da relação crítica com o saber. Em outras palavras: o professor de história precisa ser alguém que entenda de história, não no sentido de que saiba tudo o que aconteceu com a humanidade, mas que saiba como a história é produzida e que consiga ter uma visão crítica do trabalho histórico existente. (...) Para que estudar história (...)? É para fazer com que o aluno produza uma reflexão de natureza histórica; para que pratique um exercício de reflexão, que o encaminhará para outras reflexões, de natureza semelhante, em sua vida e não necessariamente só na escola (...). A solução para este problema não é, então, uma questão de se tentar uma melhor adaptação do conteúdo [produzido na universidade (...). Parece-nos necessário, possível e mesmo suficiente, para uma iniciação histórica, que um aluno do 1o grau comece sua reflexão C E D E R J 237 História na Educação 1 | História e pesquisa na sala de aula procurando explicar os ‘comos’ e os ‘porquês’ das transformações sociais, ficando atento às diferenças, às diversidades e às especificidades das diversas sociedades. (...) É também preciso que iniciemos o aluno no fato de que o conhecimento histórico é algo construído a partir de um procedimento metodológico; em outras palavras, que a história é uma construção. Isso é fundamental para o início da destruição do mito do saber acabado e da história como verdade absoluta. (...) Se, a partir de elementos levantados para o exame de uma determinada realidade histórica, os alunos fizerem algum trabalho de reflexão que os leve à produção do conhecimento (obviamente limitado) sobre essa realidade e à compreensão (obviamente simplificada) da forma como esse conhecimento foi construído, será atingida a essência de nossa proposta” (CABRINI, 1986, pp. 23-30). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O objetivo da leitura deste texto é fixar a importância do domínio da metodologia de produção do conhecimento por parte do professor e do aluno. Para ambos, conhecer o processo de produção do conhecimento histórico, mais do que uma ponte para se alcançar um determinado conteúdo, significa entender que este mesmo conteúdo é resultado de uma investigação. Quando um professor pede aos alunos que pesquisem um assunto, portanto, não adianta que ele diga simplesmente “pesquisem”. Por isso, é preciso que você, futuro professor, ensine como pesquisar. Ao agir desta forma, você estará permitindo que seu aluno adquira a autonomia necessária para pesquisar por conta própria no futuro; desta vez, quem sabe, até produzindo o chamado conhecimento “de ponta”. 238 C E D E R J 19 AULA ENSINANDO E APRENDENDO A PESQUISAR Na última aula, você viu quais são os procedimentos de pesquisa utilizados pelos historiadores. Um dos pontos mais ressaltados foi a importância do método indiciário, a partir do qual, como um detetive, o historiador busca indícios como forma de conhecer melhor uma determinada época ou sociedade. Pelas possibilidades de trabalho e pelo interesse que desperta nos alunos, a metáfora do detetive é justamente a melhor forma de se introduzir a discussão sobre metodologia de pesquisa para alunos, mesmo aqueles bastante jovens. Da mesma forma, este tipo de atividade é indicada para a familiarização com os procedimentos básicos da pesquisa histórica, também vistos na Aula 18. Para que você também se familiarize com os métodos de pesquisa do historiador, propomos, a seguir, duas atividades. Na primeira, você será convidado a agir como um historiador, elucidando um problema histórico. Na segunda, você será instado a desenvolver sua própria proposta de pesquisa para ser desenvolvida com alunos do Ensino Fundamental. ATIVIDADE 2. Descrevemos, a seguir, um curioso crime, ocorrido num fim de tarde de uma quarta-feira de novembro de 1859, quando os libertos José e Paula e os escravos João Batista e Manoel Francolino assassinaram o senhor Antonio Homem Abranches Brandão em sua casa. A partir da leitura do caso, cujo processo, de número 1277, Galeria C, Maço 139, está hoje depositado no Arquivo Nacional, elabore, em linhas gerais, uma atividade para ser desenvolvida por alunos do Ensino Fundamental. Nela, identifique claramente a questão a ser solucionada por eles, chamando atenção para os dados que seriam necessários para desenvolver plenamente hipóteses a respeito. Naquele dia, o escravo João Batista ia levando para a casa de seu senhor uma garrafa de aguardente cheia até a metade para entregá-la à sua irmã, Paula, que o esperava. Por volta das seis horas, passou por trás do cemitério da cidade, para não ser visto, e entrou pelo fundo do sobrado. Depois de dar a garrafa à Paula, ficou esperando por seu sobrinho José, filho desta, sentado em uma tábua na cozinha. Enquanto isso, Paula dava aguardente às crianças Alexandrina e Joaquim, seus filhos, e à Monica, agregada, todos escravos de Abranches Brandão. Neste dia, dormiriam na C E D E R J 239 História na Educação 1 | História e pesquisa na sala de aula cozinha, que era afastada do resto da casa, não no quarto onde estavam acostumados a ficar com a mãe. José chegou um pouco depois, entrando por dois rachões que tinha feito na cerca do quintal e, encontrando Batista, disse-lhe que fosse ficar na sala do sobrado, enquanto voltava para buscar Manoel Francolino, seu amigo e escravo de Antonio José Dias Carneiro, que havia ficado na horta. Entraram os dois, descalços, na sala; juntaram-se a Batista e aí ficaram, esperando o senhor. Após algum tempo, Paula reuniu-se a eles. Por volta das dez horas, a cidade estava em silêncio e as crianças dormiam na cozinha; Paula já estava cochilando quando avistou o senhor Abranches Brandão à entrada. Correu para a porta e, depois de avisar aos outros, postou-se em seu lugar, esperando que Abranches batesse. Depois de breve hesitação, com todas as luzes apagadas, resolveu abrir. “Onde está aquela cambada?”, Abranches foi entrando e perguntando à Paula. Esta, de um só fôlego, disse “estão todos doentes e dormindo”, bateu a porta, fechando-a. Era este o sinal convencionado: no mesmo instante, os três homens pularam em cima dele, apertando-o e segurando-o, até certificarem-se de que Antonio Homem Abranches Brandão estava bem morto. Os escravos pegaram o ouro da falecida esposa de Abranches, removeram seu corpo para fora da casa e ficaram por ali, aguardando o que estava por acontecer. Pela descrição do crime feita pelos réus, sabemos que a casa de Abranches, um sobrado, situava-se dentro da cidade. Sabemos que tem uma horta no fundo, onde, atrás da cerca, passa um córrego; que há uma porteira e um jardim separando-a da casa. Esta possui um pequeno porão, uma cozinha separada do resto dos cômodos, um quarto para Paula e seus três filhos, uma sala no andar de baixo e, pelo menos, um cômodo no andar de cima, que servia de quarto para o senhor. Sabemos também que ele possuía um sítio, onde havia abóboras, cambuquiras, café, mandioca e jabuticabas, e que lá vivia um casal de pessoas livres, Marciano de tal e Custódia. Abranches possuía aparentemente apenas um escravo adulto, que era João Batista, e três crianças, Joaquim, de dez anos, Monica, de treze, e Alexandrina, de doze, filhos de Paula. Esta, mesmo sendo liberta, continuava a viver na casa de Abranches, fazendo seu trabalho doméstico. Antonio Dias Carneiro, por exemplo, que era senhor de Manoel Francolino, possuía uma fazenda, distante um quarto de légua do centro da cidade, onde se produziam arroz e feijão com o trabalho escravo. Além disso, ele tinha uma casa na cidade, onde morava Francolino, escravo alfaiate que trabalhava para seu sustento e ainda mantinha duas crianças como aprendizes. Manoel Conrado Teixeira, o “senhor Teixeirinha”, possuía uma pequena propriedade, dentro da cidade, e não mencionou possuir escravos. Antonio José Villaça, um senhor de 60 anos, morava na cidade e também não constava possuir escravos. O mesmo se passou com Belizário Rodrigues de Vasconcellos, que possuía uma pequena propriedade nos arredores da cidade. Das vinte e duas testemunhas arroladas neste caso, apenas quatro 240 C E D E R J 19 COMENTÁRIO Não existe uma resposta específica para esta atividade. O objetivo é que, ao ler o processo criminal, o estudante seja capaz de identificar um problema histórico como, por exemplo, “qual foi a razão do crime?”. Para solucioná-lo, será preciso que o aluno investigue as condições de vida dos escravos daquela casa, sua relação com o senhor, seus hábitos etc. Processos criminais como este de Antonio Homem Abranches Brandão são uma boa forma de exemplificar o trabalho do historiador, ao mostrar de onde eles tiram informações, onde elas estão e, até, como é difícil obtê-las, aproximando-o do trabalho do detetive, que também busca pistas para construir hipóteses sobre mistérios. Mas há, ainda, outra função para o uso deste tipo de processos em sala de aula, que pode ser bastante rica para o aprendizado da história na escola: a demonstração da diversidade e da complexidade da sociedade brasileira em todos os tempos. Processos como este são importantes para demonstrar que, apesar das caracterizações gerais de uma sociedade em uma determinada época e local – das quais, muitas vezes, não temos como fugir –, a realidade não se resume a generalizações. C E D E R J 241 AULA possuíam terras. As outras tinham ocupações tipicamente urbanas, tais como sapateiro, alfaiate, negociante, porteiro da Câmara Municipal etc. Falta saber dados sobre o próprio pivô da história, Antonio Homem Abranches Brandão. Sabe-se que ele tinha um sítio, onde havia frutas e cereais. Além disso, sabe-se que Batista é o único escravo de Abranches e trabalha alugado em casa de Israel Evangelista de Souza. Os demais, três crianças, não trabalham e são sustentados por seu senhor. Não há qualquer referência de outra atividade urbana exercida por Abranches. Além disso, pelo testemunho de Paula, sabemos que ela é costureira e trabalha para fora. Ela mesma, a respeito disto, dizia que Abranches “... os alimentava bem, porém nunca os vestia”. Cada um, então, tinha que buscar meios próprios para conseguir se manter, se vestir etc. Para isso, precisavam circular pela cidade, ter contato com outros senhores, com outros escravos, com libertos; tinham certa autonomia, portanto, podendo exercer profissões diferentes e ser remunerados por elas. História na Educação 1 | História e pesquisa na sala de aula CONCLUSÃO O caso da morte de Antonio Homem Abranches Brandão, que você viu na Atividade 2, não está nos livros de História. Mas pode muito bem estar nas salas de aula. Basta, para isso, contar com alguma disposição e muita criatividade. Disposição para encontrar um bom documento e criatividade para usá-lo de forma adequada à exploração por crianças e adolescentes. Neste caso, o uso de fontes documentais como esta pode ajudar a sanar um dos principais problemas enfrentados por professores de História em todo o país: o fato de o conteúdo programático e os livros didáticos abordarem uma realidade nacional – geralmente aquela dos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília – e não fornecerem elementos para a compreensão da história local, deixando de levar em conta as enormes diversidades regionais que caracterizam o nosso país. A história da independência na Bahia e no Pará, por exemplo, é muito diferente daquela ocorrida em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a escravidão em Minas foi completamente distinta do regime de trabalho escravo existente em Pernambuco, formando, conseqüentemente, sociedades com características diversas. Uma atividade na qual os alunos são levados a comparar um texto geral sobre a escravidão com um documento de época, como este da morte de Abranches Brandão, não só serve para obter aulas mais prazerosas, mas também para a construção de um quadro mais complexo da sociedade brasileira. Vale para mostrar que, desde tempos remotos, o Brasil não era só litoral, nem nunca será. Vale para incentivar uma visita ao arquivo local – que pode ser tanto uma biblioteca, uma igreja, um tribunal, contanto que contenha documentos do período que se quer estudar –, mostrando que o trabalho do historiador, normalmente tido como enfadonho, pode ser emocionante e interessante. Serve, ainda, para mostrar a importância da preservação de documentos, para ressaltar a função social que têm os arquivos e, de quebra, para provocar um debate sobre a importância da preservação da memória em um país onde até mesmo o passado recente parece se esvair rapidamente. E vale, principalmente, como você viu ao longo desta aula e da anterior, para entender que a História é construção perene. 242 C E D E R J 19 Para reconstruir os acontecimentos do passado, o historiador deve esforçar-se para conseguir o maior número possível de provas. É provável que algumas perguntas permaneçam sem resposta, e que não se chegue à explicação satisfatória. Na metade do século XIX, o pesquisador Peter W. Lund encontrou em um abrigo de pedra, em Santana do Riacho, ao norte de Belo Horizonte, vários conjuntos de ossos de animais e seres humanos. Para explicar o achado, houve todo tipo de conjecturas. Quando teriam morrido aqueles homens? Eles teriam vivido na mesma época que aqueles animais? Teriam sido eles vítimas de um acidente ou teriam sido enterrados ali propositadamente? Estas são as questões que você deve solucionar nesta atividade, por meio das descrições e ilustrações dos achados nas grutas de pedra de Santana do Riacho. Em 1976, uma expedição de pesquisadores franceses e brasileiros iniciou um estudo científico da região de Santana do Riacho, com base nos achados arqueológicos de Lund. Foram encontrados vestígios em várias grutas diferentes. Em algumas delas, a presença contínua da ocupação humana pôde ser comprovada. Seguem os achados encontrados: 1) Em uma das grutas, foram encontrados ossos humanos em forma de corpos curvados, depositados em redes, acompanhados de colares de grãos de coloração vermelha, de noz-de-palmeira, e pequenas lanças de quartzo, como se fossem raspadeiras. Em várias outras também foram encontrados restos humanos semelhantes a esses. 2) Na maioria dessas grutas, foram encontrados também ossos de preguiças terrestres, lhamas e tatus, entre outros pequenos animais. 3) Nos solos das galerias, foram encontrados restos de vegetais, como sementes de pequi, frutos de palmáceas, cocos de lituri, nozes-de-palmeira e grãos de milho. 4) Nessa gruta, também foram encontrados vários desenhos, pintados em amarelo. A tinta parece ter sido preparada na parte sul da gruta, onde foram encontradas manchas de coloração vermelha e amarela. Fonte: Grinberg; Lagoa; Grinberg (2000, pp. 39-45). C E D E R J 243 AULA ATIVIDADE FINAL História na Educação 1 | História e pesquisa na sala de aula Com a ajuda destas pistas, complete todas as etapas dessa pesquisa, realizando os seguintes procedimentos: a) descrição das características do local onde foram feitas as escavações; b) descrição dos materiais arqueológicos encontrados; c) formulação de hipóteses sobre a natureza dos achados. ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ ____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA Ao propor esta atividade, o objetivo foi fazer com que você, futuro professor, possa vivenciar a experiência de trabalhar como um detetive, procurando dar coerência ao conjunto de fontes apresentadas e desenvolver hipóteses a respeito. É importante, neste caso, que você perceba que, apesar do número de achados e das possibilidades de elaboração de hipóteses a respeito dos rituais de sepultamento nas sociedades habitantes daquela região, muitas lacunas ainda subsistem a respeito da pré-história da região de Santana do Riacho. Neste caso, se esta atividade for executada com estudantes, é importante que eles reflitam sobre os limites da dedução histórica. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar as dificuldades da pesquisa arqueológica, que sempre trabalha com pouquíssimas evidências para elaboração de hipóteses. 244 C E D E R J 19 AULA RESUMO A pesquisa na escola é importante na medida em que possibilita a construção do conhecimento, permitindo ao aluno refletir criticamente sobre seus objetos de estudo, de forma a ser capaz de pensar com autonomia no futuro. Ao incorporar a metodologia de atuação do historiador, o aluno não só será capaz de perceber a natureza perene do conhecimento histórico, mas também de se divertir muito nas aulas de História. INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA Como a próxima aula é a última deste módulo, aproveitaremos para dar uma paradinha e rever tudo o que foi estudado nesta parte. C E D E R J 245 20 AULA Avaliação Meta da aula objetivos Avaliar os conceitos, conteúdos e procedimentos apresentados no Módulo 2 da disciplina História na Educação 1. Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de compreender: • Os conceitos de cultura e documento. • O método de investigação histórica. Pré-requisitos Para entender esta aula, é imprescindível que você tenha lido as nove aulas anteriores (Aulas 11 - 19). História na Educação 1 | Avaliação INTRODUÇÃO Chegamos mais uma vez ao final de um módulo da disciplina História na Educação 1. Novamente, esperamos que esta etapa tenha sido produtiva e que o estudo tenha lhe rendido algum trabalho e muito prazer. Para que você tenha certeza de que seu aprendizado está indo pelo caminho certo, vamos nos dedicar, nesta aula, a rever alguns dos conceitos, conteúdos e procedimentos básicos abordados nas aulas anteriores. Só que, desta vez, vamos fazer um pouco diferente do que fizemos na Aula 10, na qual você leu um resumo das aulas anteriores. Nesta aula, vamos rever todo o conteúdo deste módulo a partir de quatro atividades. Seria bom se, depois de fazê-las, você pudesse refazer aquelas atividades das aulas que considerou mais importantes e difíceis, e comparar seu rendimento de agora com o obtido da primeira vez. APROVEITANDO SEU ESTUDO Antes de começar, uma dica: releia a Aula 10, principalmente a referência às dicas de aproveitamento de seu tempo de estudo. E lembre-se: o aproveitamento do estudo deve ser medido pela qualidade do tempo que você gasta nele, não pela quantidade! Cinco horas mal estudadas valem menos do que uma hora bem estudada. Mas, você deve estar se perguntando: “Como saber se a minha hora de estudo foi bem-feita?” Uma das formas de se saber se o seu estudo rendeu bem é ver se, consultando as suas anotações, elas são suficientes para que você rememore os aspectos mais importantes daquela aula. Outra maneira de aproveitar bem seu estudo é por meio da elaboração de fichamentos. Nesta atividade, você vai aprender a elaborá-los, para organizar melhor seu estudo. Em primeiro lugar, escolha uma aula qualquer para reler. Tenha um papel e um lápis à mão. Agora, siga os seguintes passos: 1) Leia o texto todo de uma vez só, para ter uma visão do conjunto. Anote suas dúvidas em um papel. 2) Leia o texto pela segunda vez. Sublinhe as palavras desconhecidas e procure o significado no dicionário. 3) Divida o texto em partes. Dê títulos às partes. Transcreva os títulos. 248 C E D E R J 20 4) Resuma as idéias principais de cada parte. AULA 5) Escreva, no final, a conclusão do texto. 6) Para verificar se você realmente entendeu o texto, volte às suas dúvidas iniciais. Veja se sabe respondê-las. Para que seu fichamento seja útil, é importante que você o guarde em um lugar onde poderá facilmente encontrá-lo quando precisar. Assim, o ideal é que você faça as suas anotações em fichas e guarde-as em um local apropriado. Pode ser em um arquivo, um fichário ou, até mesmo, em uma caixa de sapatos. O importante é que você organize seus fichamentos de maneira que possa encontrá-los mais tarde, seja por ordem alfabética, seja por ordem de assunto. Para saber mais sobre o assunto, acesse o link da matéria “Você tem o hábito de estudar?” (MARANGON, 2003). HISTÓRIA E CULTURA A cultura é um conceito fundamental para o estudo da História. Como expressão da capacidade criativa do homem, ela é o resultado da interferência humana na natureza. A cultura pode tanto corresponder a expressões artísticas (um quadro, um livro) quanto a invenções (o telefone) ou valores. Como cada sociedade se relaciona com a natureza de uma forma específica, cada uma tem sua própria cultura. Da mesma maneira, como as expressões culturais mudam com o tempo, é importante reconhecer que as culturas têm história. As culturas devem ser entendidas, portanto, contextualizadas no tempo, no espaço e inseridas em uma sociedade específica. C E D E R J 249 História na Educação 1 | Avaliação ATIVIDADE 1. Observe o conjunto de imagens a seguir. Tente agrupá-las, circulando com lápis vermelho aquelas que correspondem ao PASSADO. Faça o mesmo, com lápis azul, com aquelas correspondentes ao PRESENTE. Agora, circule com lápis azul aquelas imagens correspondentes à SUA CULTURA. E, com lápis vermelho, as imagens que você considera que sejam de OUTRA CULTURA. Qual foi o resultado? Agora peça que duas outras pessoas façam esta mesma atividade (troque as cores, se for necessário, para não confundir-se). Qual foi o resultado? Compare o seu resultado com os das duas outras pessoas. Escreva um pequeno texto, refletindo sobre a diversidade do conceito de cultura. Figura 20.1: Tupinambás em festa canibal – ilustração do livro Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden (1557). Figura 20.2: Marc Ferrez. Menino índio de Mato Grosso (Brasil) – 1896. 250 C E D E R J 20 AULA Figura 20.3: Tóquio. http://www.neivanos.com/elmundo/ciudadesdelmundo/tokio.jpg Figura 20.4: Futebol brasileiro. http://www2.uol.com.br/espnbrasil/images/papel/pan/futebol/ ok/futebol_m_1024.jpg C E D E R J 251 História na Educação 1 | Avaliação Figura 20.5: Beisebol. www.nihonline.com.br/ esportes/08agosto/150803.asp Figura 20.6: Vassouras. http://www.achetudoeregiao.com.br/RJ/RJ.GIF/vassouras4.jpg 252 C E D E R J 20 AULA Figura 20.7: Negras depois do trabalho. www.multirio.rj.gov.br/.../ rep_escravidao.html Figura 20.8: Debret, Carnaval. http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/images/debretok.gif C E D E R J 253 História na Educação 1 | Avaliação Figura 20.9: Samurai. http://santosaikikai.com.br/conhecimento/samurai/imagens/samurai6.jpg Figura 20.10: Marc Ferrez, aqueduto da Carioca transformado em viaduto para bondes (Rio de Janeiro – Brasil), 1896. 254 C E D E R J 20 AULA Figura 20.11: Pelé. http://www.sergipe.com/balaiodenoticias/pele2.jpg Figura 20.12: Nova York. http://www.mustseenewyork.com/New-York-City-Photos/ images/broadway-new-amsterdam-thea.jpg C E D E R J 255 História na Educação 1 | Avaliação Figura 20.13: Retrato de Mona Lisa, La Gioconda – Leonardo da Vinci. 256 C E D E R J 20 RESPOSTA COMENTADA Esta atividade pode ser realizada tanto individualmente quanto em conjunto, mesmo por alunos bem jovens. Você, futuro professor, pode usá-la tanto para introduzir o conceito de cultura quanto para fixá-lo, ao final de uma unidade. Não há respostas certas ou erradas. O objetivo da atividade é chamar a sua atenção para a historicidade do conceito de cultura, mostrando como podemos associá-lo a eventos distantes de nós no tempo ou no espaço. O futebol, por exemplo, é um fenômeno cultural que perdura ao longo do tempo. Por exemplo, você pode ter considerado a imagem da cidade de Tóquio como SUA CULTURA e a do carnaval brasileiro de Debret como OUTRA CULTURA. Outra pessoa pode ter organizado as imagens de forma diferente. Isto significa que a associação de imagens com valores relativos à cultura depende da nossa identidade (que pode ser individual, nacional, religiosa etc.). Daí concluirmos que cultura não é um conceito único nem absoluto. HISTÓRIA E DOCUMENTO O conceito de documento é central para a compreensão da pesquisa histórica. Documentos, ou fontes, são vestígios do passado, selecionados por historiadores especificamente com a finalidade de analisar uma época, um lugar, uma sociedade ou um fenômeno histórico. Por isso, documentos podem ser atas, fotos, cartas, móveis, jornais, estátuas, casas etc. Qualquer vestígio do passado pode ser considerado um documento, desde que seja usado como fonte de informação para a análise histórica. C E D E R J 257 AULA ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ História na Educação 1 | Avaliação ATIVIDADES 2. Leia os dois trechos a seguir, escritos pelo historiador francês Lucien Lefebvre. Explique cada um deles. 1) Não há notícia histórica sem documentos. (...) Pois se dos fatos históricos não foram registrados documentos, ou gravados ou escritos, aqueles fatos perderam-se (LEFEBVRE, 1953 apud ANDRADE, 2004, p. 31) 2) A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. [Faz-se] com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar (...) Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do corpo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LEFEBVRE, 1953 apud ANDRADE, 2004, p. 32). ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA No primeiro texto, é importante que você enfatize o fato de o documento ser a matéria-prima fundamental para a escrita da História. Sem documentos, nada se sabe sobre o passado. Se não houver registros sobre algum acontecimento, ele se perderá no tempo. No segundo texto, você deve ressaltar que documento pode ser qualquer vestígio do passado, desde que usado pelo historiador para encontrar informações sobre eventos, locais, fatos e sociedades passadas. 3. Observe a imagem a seguir. Trata-se da bandeira do Brasil usada na Guerra do Paraguai, hoje depositada no Museu Histórico Nacional. A bandeira do Império brasileiro, instituída em 1822, foi idealizada por José Bonifácio e desenhada por Jean-Baptiste Debret. Escreva um pequeno texto, explicando como esta bandeira pode ser considerada um documento para análise histórica. 258 C E D E R J 20 AULA Figura 20.14: Bandeira do Império brasileiro. ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________ RESPOSTA COMENTADA O objetivo desta questão é mostrar que a bandeira do Império brasileiro, como qualquer vestígio do passado, também pode ser considerada um documento, desde que usada para investigação histórica. Especificamente neste caso, você pode argumentar que a bandeira pode ser importante para o estudo dos símbolos importantes na época do Império, já que representava, dentre outros símbolos, a coroa imperial e os dois principais produtos do país neste período, o café e o fumo. C E D E R J 259 História na Educação 1 | Avaliação HISTÓRIA E PESQUISA Todas as pesquisas históricas têm como ponto de partida um problema definido pelo historiador. Para solucioná-lo, ele busca vestígios onde possa encontrar informações. A partir de então, analisa documentos e formula hipóteses. Embora nem sempre o historiador tenha uma resposta objetiva sobre a questão que originou sua pesquisa, o resultado final de seu trabalho é sempre um relato a respeito de seu tema de estudo. Como novos elementos e interpretações sempre podem ser adicionados a algum tema, as conclusões das pesquisas históricas são, por natureza, transitórias. A pesquisa histórica pode ser incorporada ao cotidiano escolar na medida em que seus procedimentos evidenciam a forma como o conhecimento é construído, permitindo que os alunos reflitam criticamente sobre seus objetos de estudo. Ao incorporar a metodologia de atuação do historiador no processo de ensino-aprendizagem, o professor estará contribuindo para que seus alunos sejam capazes de, no futuro, pensar com autonomia. ATIVIDADE 4. O texto que se segue é um relato de uma experiência de pesquisa realizada pela professora Ivone Baioni Garcia, do Colégio Estadual Vicente Rijo, de Londrina. Ela propôs a seus alunos que elaborassem um Atlas do município, reunindo informações antes dispersas em várias fontes. Analise a experiência da professora e discorra sobre a importância da realização de pesquisas como esta em sala de aula. Ivone se baseou nos conteúdos curriculares de 5ª e 7ª séries para organizar o roteiro das aulas e dos passeios. Durante a fase de levantamento de informação, estimulou a consulta e análise de várias fontes como livros, fotografias, mapas e entrevistas com moradores. Assim, os alunos aprenderam a buscar e a selecionar dados, a valorizar os saberes locais e a identificar as ações humanas na sociedade e suas conseqüências. (...) Para começar, o grupo foi dividido em equipes que tinham como tarefa buscar respostas para perguntas formuladas na sala de aula. Como viviam os primeiros habitantes de Londrina? Qual o caminho que percorreram até chegar lá? Onde ficava a primeira prefeitura? Como foi construída a primeira igreja? (...) A primeira fonte de informação dos alunos foram os moradores da 260 C E D E R J 20 os alunos trouxeram, além de depoimentos, um rico material histórico, como fotografias, objetos antigos, jornais da época da colonização e livros. Depois de organizado, o material permitiu abordar as diversas etapas de crescimento e desenvolvimento da cidade, os personagens e os marcos históricos, a urbanização, os meios de transporte e o comércio local. Em seguida, informações sobre hidrografia, relevo e vegetação foram obtidas em livros e mapas encontrados em bibliotecas e museus. Todos os dados coletados foram conferidos, ao vivo e em cores, nas aulas-passeio que a turma fez pela reserva florestal, pelo rio Tibagi que corta a cidade, e pelo setor industrial. (...) Ao término da pesquisa, o grupo entrou na etapa mais delicada e trabalhosa — selecionar o material coletado, editar e conseguir apoio para a publicação. ‘Houve a contribuição de todos. O interesse foi tanto que não registramos nenhuma falta ou atraso na entrega dos trabalhos’, conta Ivone, que guarda o caderno dos estudantes como prova desse envolvimento (GARCIA, 2004). RESPOSTA COMENTADA O objetivo desta atividade é chamar a sua atenção para a utilidade da realização de pesquisas em sala de aula. No caso em questão, a turma, inclusive, elaborou um Atlas do município, que ainda não existia na região. A pesquisa histórica citada, portanto, ultrapassou os objetivos comuns deste procedimento, e foi capaz de produzir conhecimento original e útil para a sociedade como um todo. INFORMAÇÕES SOBRE AS PRÓXIMAS AULAS No próximo volume, continuaremos a estudar alguns conceitos importantes para o ensino e a aprendizagem da História, como Fato Histórico e Multiculturalismo. Além disso, você verá como os historiadores interpretam os processos históricos, tanto em geral quanto no Brasil. C E D E R J 261 AULA cidade. Pais, avós e vizinhos concederam entrevistas. Dos encontros, História na Educação 1 | Avaliação SITES RECOMENDADOS http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/159_fev03/html/profissao Artigo “Você tem o hábito de estudar?”, publicado na revista Nova Escola de fevereiro de 2003. Lá você encontrará dicas e recomendações sobre hábitos de estudo. http://novaescola.abril.com.br/index.htm?ed/170_mar04/html/projeto_ivone Artigo “Geografia e História ganham vida e a cidade, um atlas”, publicado na revista Nova Escola de março de 2004, com a íntegra da experiência apresentada na Atividade 4. 262 C E D E R J Referências História na Educação 1 Aula 1 ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Orgs.). Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2001. BLOCH, Marc, Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. BORGES, Vavy Pacheco. O que é história. São Paulo: Brasiliense, 2002. 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