A92
ID: 61116916
25-09-2015
Tiragem: 35268
Pág: 12
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,41 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
A longa espera de Vitória pela senha
A15 da Clínica de Santo António
Há quem tenha esperado mais de dez horas para poder marcar uma colonoscopia, depois de uma noite
ao relento. Esta clínica começou a distribuir senhas para a marcação do exame às 6h
BRUNO LISITA
Reportagem
Catarina Gomes
Vitória Trindade sai do meio da
multidão com um passo decidido,
rosto cansado mas sorriso nos
lábios, a pose é quase de heroína,
de quem venceu, apesar das
vicissitudes. A saída desta mulher
de 70 anos da Clínica de Santo
António, na Reboleira, parece
quase como um daqueles fins de
filmes americanos em que, no
momento do clímax, a imagem fica
mais arrastada. Ela conseguiu, ela
faz parte de um grupo especial:
o da senhas A, e todos os outros,
os da senha B, C e D, a olham com
admiração.
Há carros que abrandam a
marcha em frente desta clínica
privada nos arredores de Lisboa
— uma das poucas na região
que fazem colonoscopias com
comparticipação do Estado,
um exame que no privado pode
chegar aos 400 euros — para
ver o que aqui se passa, como
os que desaceleram para dar
uma olhadela a um acidente.
Avançam-se hipóteses mais
prováveis: “É uma greve?”, “Uma
manifestação?”, “Aconteceu
alguma coisa?”. “Não, isto é para
aquele exame”, responde um dos
que esperam.
“Aquele exame” é uma
colonoscopia. Informações do
Portal da Saúde: a colonoscopia
é utilizada para observar o
revestimento interno ou mucosa
do cólon, sendo útil para a
detecção do cancro do cólon, entre
outras patologias. Para efectuar
um rastreio de rotina do cancro do
cólon, o médico pode recomendar
a realização de uma colonoscopia
com intervalos de cinco a dez
anos. Intervalos mais curtos são
recomendados para pessoas que
tenham tido cancro.
No meio das cerca de 400
pessoas a quem foram atribuídas
as senhas para poderem marcar
colonoscopias, circulam como
que lendas, histórias. Há várias
versões sobre quem foi o primeiro
a chegar. Em cada uma das quatro
primeiras letras do alfabeto cabiam
cem números. Conta-se que a
pessoa que chegou mais cedo, a
senha A1, esteve à espera desde as
Clínica de Santo António é uma das poucas que fazem colonoscopias com comparticipação do Estado
quatro da tarde do dia anterior, há
quem diga que foi às 18h, ou às 21h,
há divergências.
Uma coisa é certa, Vitória
Trindade, ajudante de consultório
reformada, 70 anos, fez parte
desse grupo de pioneiros, ela é o
número 15, “A15”, diz com orgulho,
e ela pode dizer com segurança
que ali aportou às 22h30 do dia
anterior e que, quando chegou,
equipada para o que desse e viesse,
já havia 15 pessoas à sua frente.
Havia pessoas com sacos-cama,
uma tenda, ela aguentou a noite
vestida de kispo azul-bebé até ao
tornozelo com capuz de lã branca e
forro polar de gola alta, sentada na
cadeira de madeira e vime, estilo
alentejano, com motivos florais
azuis, que agora carrega de volta
para casa, junto com o cobertor
amarelo com lista acetinada em
laranja e a almofada verde-seco.
Deixou dois cobertores e uma
almofada para quem vai continuar
à espera. A clínica começou a
distribuir senhas para a marcação
do exame às 6h, quem chegou às
8h já não podia marcar.
Dez horas e meia depois de ali
chegar, Vitória Trindade leva na
mão a prova da sua persistência,
a colonoscopia, com sedação,
para daí a 20 dias. O exame é para
o marido, que teve cancro da
próstata há 14 anos e que agora se
queixou dos intestinos, o médico
disse-lhe que tinha de o fazer.
Conta que ele não aguentaria uma
noite daquelas. Várias das pessoas
com quem o PÚBLICO falou vão
fazer o exame porque lhes foi
detectado sangue nas fezes, um
dos sinais possíveis de alerta de
cancro do cólon e recto. Alexandra
Martins pede que tente não se ver
aquele grupo de pessoas apenas
como pessoas à espera de um
exame médico. “Isto é assassino.
As pessoas morrem disto se não
fizeram o rastreio. É preciso que
tenham a oportunidade de vir fazer
este exame, a tempo.” Ela sabe-o.
A mãe de Alexandra morreu de
cancro do intestino em 2007,
agora está a tia doente, por isso
lhe prescreveram o exame. Ela faz
parte do grupo de pessoas com
risco familiar de cancro colorrectal.
Fez um exame quando a mãe
morreu, em 2007, e diz que foi
fácil, na altura. Alexandra atribuiu
a espera que teve de passar e
tudo o que a sua vida é em 2015
ao actual Governo, talvez porque
toda a sua vida tenha mudado nos
últimos anos. O que é que faz?
Ela faz uma pausa de suspense e
começa a rir-se, por achar que é
previsível adivinhar o que faz uma
licenciada em Línguas e Literatura
variante Francês/Inglês nos tempos
que correm. “Sou operadora de
call center.” Pergunta, irónica,
se queremos saber mais. “Sou
operadora de call center e tive
37
Até ontem, esta era uma das
duas clínicas que realizavam
este tipo de exames na zona
da Grande Lisboa. A partir de
hoje, serão 37 as clínicas com
convenções com o Estado na
mesma zona (ver texto ao lado)
um burnout [também conhecido
como síndrome de exaustão]”, e
gargalha, como quem diz que mais
cliché não podia ser. “Dei aulas 15
anos.” Agora, ganha 500 euros, um
valor que já é bonificado porque
domina o francês. Esteve cerca de
um mês de baixa, voltou ao call
center. Todos os dias, ainda em
jejum, toma um antidepressivo e
um ansiolítico.
Alexandra Martins é a senha
A60. Vê-se que é nos da senha
A que há mais conversa, foram
os que tiveram mais tempo para
trocar impressões, criar laços de
camaradagem. Ela falou mais com
“um casal simpático que tinha
ao lado”, com quem tinha em
comuns gatos e o desemprego, ela
tem o Bill e eles têm dois gatos,
ela esteve desempregada e o filho
deles está agora. Mas há quem leia
a fotonovela Sabrina, o Correio
da Manhã da véspera, quem leia
Nora Roberts e o seu Sem Medo
do Destino sentada num banco de
campismo, ou até quem esteja
encostado a um muro concentrado
num calhamaço sobre cálculo de
probabilidades.
“Eu já sou da senha B”, diz,
conformado, este homem em pé.
A mantinha que envolve Joaquim
Gonçalves Machorro desde as
cinco da manhã faz lembrar o
padrão da Burberrys, bege com
lista vermelha. Este ex-maquinista
da CP de 70 anos teve cancro do
intestino há nove anos, não faz
uma colonoscopia de vigilância
há sete anos. O primeiro sítio
onde foi perguntar se podia
repetir o exame, só para ver se
ficava mais descansado, foi ao
Instituto Português de Oncologia
de Lisboa, onde fez quimioterapia.
“Disseram-me que era só para os
internados.”
Ele vem sugerindo aos médicos
do centro de saúde de Famões, em
Odivelas (arredores de Lisboa),
que talvez fosse boa ideia repetir o
exame de vigilância, mas quem o
atende não conhece a sua história,
só teve uma vez médico de família
durante dois anos mas depois foi
mandado para outro centro de
saúde. Quem o vê são os chamados
“médicos de recurso. São sempre
médicos diferentes, mostro um
exame que faço a um médico mas
já foi outro que o pediu. Às vezes
são portugueses, outras vezes
não”. Foi uma médica peruana
que lhe prescreveu a colonoscopia,
ficou admirada, “‘então o senhor
não faz uma colonoscopia há tanto
tempo!’. Só a vi uma vez. Muito
simpática. Queria mostrar-lhe os
meus exames mais antigos mas ela
já tinha desaparecido.”
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