O SACRIFÍCIO ISLÂMICO NA CONTEMPORANEIDADE1
Marta Magda Antunes Machado
Andrea Lissett Pérez Fonseca
“Oh, Senhor meu, agracia -me com o filho que figura entre os virtuosos, e lhe
anunciamos o nascimento de uma criança que seria dócil, e quando a criança
chegou à adolescência o pai lhe disse: “Oh filho meu sonhei que te degolava, o
que opinas?” “Oh meu pai fazes o que te foi ordenado. Encontrar-me-á, se Alá
quiser, entre os perseverantes”. E quando ambos aceitaram o desígnio de Alá e
Abraão preparava seu filho para o sacrifício, então o chamamos: Oh Abraão já
realizas-te a visão, em verdade, assim recompensamos os benfeitores.
Certamente que esta foi a verdadeira prova e o resgatamos com outro
sacrifício importante e fizemos Abraão passar para a posteridade, que a paz
esteja com Abraão. Assim recompensamos os benfeitores, porque foi um dos
nossos servos crentes”. (Alcorão, versículos 83-113)
Após o ataque a vários pontos estratégicos da potência norte-americana, em 11 de
setembro de 2001, o presidente Bush denuncia que um novo “mal” ameaça o mundo: o
terrorismo. E não é que isso seja novo, uma vez que diferentes, cruéis e extremas formas de
violência têm acompanhado a história da humanidade. No entanto, é radicalmente novo, como
afirma Noam CHOMSKY (2001), o fato da mudança que se dá na orientação da política
internacional, na direção de onde “apontavam as pistolas”. O novo “foco de maldade” é o
mundo islâmico. Nesse sentido, o “terrorismo” adquire rosto, identidade e inclusive pátria.
Ainda que seja sinalizado o setor radical dos “fundamentalistas”, e de organizações
internacionalmente conhecidas, como é o caso da al-Qaeda, o fantasma do “terrorismo”
passou a envolver o mundo muçulmano, criando em torno desses povos um imaginário
carregado de valores negativos – “bárbaros”, “fanáticos”, “extremistas”, “adversários da
civilização”, entre outros – que acabam por invalidá-los e condená-los diante da opinião
internacional.
Assim, não se pode esperar que os ataques dos chamados “homens-bomba”2 sejam
analisados de outra forma. Sua lógica responde ao paradigma do “terrorismo” e, junto deste,
1
Ensaio apresentado ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, como requisito parcial à
aprovação na disciplina Teoria Antropológica II. Orientadora: Professora Dra. Miriam Pillar Grossi,
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, Agosto de 2004.
2
ao conjunto de idéias negativas que se lhe associa. Os meios de comunicação dos países
ocidentais apresentam os “ataques suicidas” ou “terrorismos suicidas” usando de maneira
equivocada muitos conceitos, como por exemplo o do suicídio, que se aplicam a outros tipos
de situação e realidade; ademais, desviam “a atenção do fim dos mesmos [ataques] e do
contexto em que se produzem, para a personalidade do atacante e o truculento de sua ação”
(VELLOSO, 2002, p. 1).
Sem dúvida, um tal discurso é ideologizado, de uso político a favor de uma das partes
do conflito, que, tomando à mão seu poder simbólico – e o conseqüente controle sobre os
meios de comunicação de massa –, desqualifica o outro como “terrorista”, desconhecendo
e/ou mascarando sua própria ação diante desses povos. Nessa perspectiva, parece inteiramente
válido questionar, como o faz Agustín VELLOSO (2002), a natureza das formas de violência
que se manifestam no contexto da confrontação, mostrando os dois lados do conflito, tanto o
das ações chamadas de “terroristas”, em que se tem enquadrado os “homens-bomba”, quanto
o das agressões das potências ocidentais aos povos mulçumanos, sob as ordens de ataques
com aviões e tanques de guerra em nome de “ações militares civilizadas e sujeitas ao controle
democrático”. De fato, revisando as cifras referentes inclusive ao número de vítimas, não
resta dúvida quanto à parte que gera mais danos e mortes de inocentes no mundo hoje.
Oportuno lembrar que o preocupante dessa situação é que não só a mídia transmite a
“imagem preconceituosa” acima apontada. Ela faz parte igualmente de estudos acadêmicos,
que acabam por ratificar esse tipo de raciocínio. Discorrendo sobre o “Mundo muçulmano”,
Peter DEMANT (2004), a despeito de fazer importante contextualização histórica, com uma
abordagem abrangente acerca dos múltiplos fatores que envolvem a civilização muçulmana,
termina sendo defensor, de algum modo, da idéia de que o Islã se mostra impotente e tem
fracassado ante aos desafios dos diferentes períodos da história, em particular da
modernidade. Para o autor, o desenvolvimento de novos meios de coexistência no mundo
deveria se pautar pela democratização das formas de governo e por uma reforma islâmica que
procedesse à interpretação histórica das fontes sagradas. Por outro lado, afirma que ao
Ocidente não resta outra saída, frente ao fundamentalismo islâmico, além da luta, da
confrontação. Sua crítica mostra-se, em parte, interessante; porém, há dois grandes vazios que
2
Ao utilizar o termo “homens-bomba” não se quer esquecer que, dentre o grupo de indivíduos que figuram
nessas ações viole ntas, há também a participação de mulheres. No entanto, conforme a fala de alguns
informantes, elas apareceriam em menor número que os homens. De qualquer forma, a expressão neste estudo
quer sobretudo lembrar uma referência cunhada por aqueles que dizem “combater o terrorismo” e pela mídia que
reproduz essa idéia.
3
afloram partindo de um olhar menos “ocidentalizado”. O primeiro, pode-se assinalar, diz
respeito à ausência de questionamento por parte de Demant quanto aos modelos de opressão e
dominação ocidental vigentes no mundo moderno, o que o levaria a considerar, sob outra
ótica, a possibilidade dos islâmicos também enxergarem a luta como única saída. O segundo
limite aponta para a ausência de uma interpretação que parta do ponto de vista islâmico, desde
sua religião, sua cultura, sua identidade religiosa e política etc; o que se percebe, ao contrário,
é uma reflexão mediada pelo “modelo ocidental” como protótipo da verdadeira civilização e
do autêntico desenvolvimento.
Um outro estudo – este de menor pretensão – é o de Peter ANTES (2003), “O Islã e a
política”, que procura mostrar a “multiplicidade” da realidade do Islã, compreendendo o fator
político desde a “auto-imagem islâmica”. Nessa perspectiva, de alguma forma, Antes
privilegia uma “ciência da religião”, tentando resgatar elementos fundamentais da fé islâmica.
Daí sublinhar a permanência de um certo preconceito reducionista, o que chama de
“preconceito islamófobo” agindo na avaliação dos mulçumanos como “ameaça”. Em que pese
o esforço de indicar onde está, de fato, o perigo ameaçador – como o ódio racial e suas
conseqüências nacionais e internacionais – e de denunciar o drama do gigantesco número de
excluídos no mundo moderno, o autor parece cair num outro reducionismo: o da visão
triunfalista ocidental para propor soluções e “aprender a viver juntos”. Nesse sentido, lembra
Antes: “A ‘solução islâmica’ trabalha como uma varinha mágica para a solução de todos os
problemas, mas perde em brilho e clareza quando é chamada a dizer o que precisa ser
concretamente feito” (ANTES, 2003, p. 148). Poderia-se indagar: há alguma solução na
modernidade cujo “brilho” e “clareza” tem logrado “o que precisa ser concretamente feito”?
Parte-se de que visão de desenvolvimento e política para dizer o que precisa ser feito? Talvez
aqui estejam subsumidas, num discurso simplista, outras realidades tão ou mais complexas
que as da sociedade ocidental, como a tradição islâmica enquanto fator de identidade
religiosa, social, cultural etc. Com efeito, o problema que emerge dessas abordagens parece
ser a preexistência de posicionamentos etnocêntricos que ou sub-valorizam, ou reduzem
drasticamente, ou ainda desconhecem o contexto social e cultural do mundo muçulmano e, em
particular, a lógica que preside suas ações.
Por outro lado, não é intenção deste ensaio justificar ingenuamente as práticas de
alguns grupos mulçumanos, nem tão pouco defender suas argumentações a favor delas. Antes,
procura-se compreender esse universo complexo de significações, admitindo, como o acenou
4
Peter FRY (2004), que cabe à antropologia permitir um exercício de “iconoplastia”, i.e.,
relativizar, distanciar-se, desrespeitar os ícones dominantes. Cabe, pois, sublinhar igualmente
que não se tem a pretensão de esgotar a análise da cultura islâmica e de sua importante
tradição, até porque esse tema constitui um desafio para as ciências sociais hoje.
Efetivamente, pretende-se interpretar o fenômeno dos “homens-bomba” indagando
sobre a natureza de seus atos no mundo contemporâneo. Em outras palavras, o que faz alguém
se “sacrificar” voluntariamente? Há uma recompensa para esse sacrifício? Qual a lógica que
preside tal ação? Existe uma eficácia simbólica e social que resulte do sacrifício? Essas entre
outras questões estão na base da reflexão aqui proposta. Para pensar esses aspectos, dentre as
possibilidades teóricas consultadas, privilegia-se a perspectiva analítica desenvolvida por
Marcel MAUSS, tanto pela incursão à sua teoria sobre o sacrifício (2001), quanto à sua teoria
sobre a dádiva (2003). Em se tratando de um trabalho fundamental para este estudo,
considera-se a abordagem maussiana como base do debate que será desenvolvido. Além
disso, o diálogo com alguns autores contemporâneos – os quais dão continuidade ao debate
inaugurado por Mauss – parece sugerir novas ênfases ou re-leituras do autor do Essai sur le
don. Assim, procura-se dialogar com Márnio TEIXEIRA PINTO (1993), Pierre BOURDIEU
(1996), Maurice GODELIER (2001) e Alain CAILLÉ (2002).
Interessante observar, aqui, quanto às leituras sobre o islamismo, um grande vazio na
produção intelectual, o que desvela a carência das vozes dos próprios mulçumanos, pois a
bibliografia disponível sobre esse tema, particularmente sobre os “homens-bomba”, é bastante
reduzida, simplista, além dos limites anteriormente acenados.3 Ora, esses elementos
inicialmente inibidores de uma iniciativa para o debate provocaram a decisão de se fazer um
pequeno exercício etnográfico considerando a existência de uma “comunidade islâmica” no
município de Lages, em Santa Catarina, cujo nascimento remonta ao ano de 1978. Assim,
como equipe, realizamos uma saída a campo, conhecendo nessa cidade a primeira mesquita
inaugurada no sul do Brasil; entrevistamos um de seus fundadores, o senhor Dabus Mohamed,
imigrante libanês que chegou ao Brasil em 1953; entrevistamos também o seu filho – Abdel
Nasser –, que tem mãe brasileira. O importante contato feito com esses informantes nos levou
ao xeique da comunidade islâmica de Florianópolis – Amin. Com ele, tivemos três encontros.
3
De modo geral, pensa-se, por exemplo, no número grande de revistas e jornais de circulação nacional que
deram ênfase ao tema dos “homens-bomba”, e de outros que se relacionam a ele, à época imediatamente
posterior ao 11 de setembro, preocupando-se muito mais com a divulgação de notícias “vendáveis” em torno ao
Oriente Médio e aos mulçumanos, do que propriamente com uma análise baseada em estudos científicos.
5
Note-se que a experiência etnográfica não apenas resultou valiosa, mas se mostrou decisiva
para o início de uma abordagem mais aprofundada acerca do sentido e da lógica dos
sacrifícios vividos pelos chamados “homens-bomba”. Destarte, é necessário dizer, o
desenvolvimento da nossa reflexão tem por base a interpretação das vozes dos “nativos” à luz
da teoria maussiana. Num momento inicial, uma sucinta contextualização da comunidade
islâmica em Lages nos permitirá situar o “lugar” da nossa interlocução. Daí a possibilidade de
analisar os elementos mais relevantes das suas falas, dos seus discursos. Por fim, fica a tarefa
de tentar unir todas as pistas e suas coerências, para entender a natureza de fenômenos como:
o sentido da dádiva e da entrega total; ou melhor, o significado das oferendas e da submissão
no Islã; a continuidade e/ou a imbricação entre elementos aparentemente dicotômicos –
humano e divino; político e religioso; corpo e alma, entre outros –, assim como a lógica e a
singularidade subjacentes ao sacrifício humano.
A comunidade islâmica em terras catarinenses
Santa Catarina é um dos estados brasileiros apontados pelo historiador Peter Demant
(2004, p. 188) como lugar de concentração dos mulçumanos. Da cidade de Lages, na serra
catarinense, nos veio a possibilidade de conhecer de perto integrantes da comunidade islâmica
brasileira. Nosso primeiro contato foi com Abdel Nasser, que prontamente aceitou o convite
para nos conceder uma entrevista, deixando-nos bastante à vontade quanto às questões que
desejávamos formular; nem mesmo o aborreceu o longo tempo de conversa – cerca de duas
horas –; pelo contrário, parecia feliz de poder falar da sua tradição familiar e religiosa,
inclusive de citar o nome de seu pai como um dos fundadores da mesquita erigida na cidade.
Abdel mostra-se muito orgulhoso da sua origem mulçumana, e não esconde a admiração pela
presença do Islã e da mesquita no Brasil, especialmente no município onde vive com a
família. Essa recepção amistosa nos faz lembrar que o Islã no Brasil está representado por
uma comunidade cujo número de fiéis “supostamente chegaria a um milhão” (Id.).
Significativa representação e, mais, significativo o clima acolhedor sob o qual se deu a nossa
chegada aos locais de pesquisa. Os mulçumanos radicados no Brasil descendem, uma parte,
de escravos negros africanos e, outra parte, de imigrantes árabes, sobretudo de libaneses – que
têm no país a maior comunidade dessa descendência no mundo – e sírios (Id.). Nesse sentido,
6
é interessante perceber, na esteira do estudo de Demant, que o fenômeno da “tolerância
intercomunitária” e da “mestiçagem”4 no país empurrou esses imigrantes para uma
assimilação: “(...) aqui a sobrevivência de uma cultura islâmica específica tem que lidar com a
presença de uma cultura receptiva ‘demais’, sendo considerada por alguns ‘leviana’, em
comparação aos preceitos puritanos do islã” (Id.). Com efeito, os últimos anos foram para o
islamismo e sua comunidade brasileira momento de expansão, inclusive com o apoio
financeiro e logístico da Arábia Saudita (DEMANT, 2004, p. 188-189). Daí que nos foi
possível sentir na receptividade da comunidade islâmica essa possibilidade de convivência
pacífica entre alteridades.
Uma pergunta que nos surgiu de imediato diz respeito àquela sobre o porquê de ser o
município de Lages o local escolhido pelos imigrantes mulçumanos para viverem. Talvez
sejam oportunas algumas palavras que remontem à história5 da cidade. Sabe-se que, desde a
primeira metade do século XVI, viajantes europeus, bandeirantes paulistas e religiosos
jesuítas percorreram a serra de Santa Catarina, fazendo dessa região lugar de passagem
(QUEIROZ, 1981, p. 20). Uma nova realidade seria inaugurada com o “ciclo do ouro” –
Minas Gerais, 1700 – e as demandas do comércio daí decorrente – novas mercadorias,
transporte, alimentos etc –, colocando a serra catarinense na rota do comércio entre Rio
Grande do Sul e São Paulo. Assim, é que viriam a se fixar aí moradores de Laguna, São Paulo
e Taubaté, dentre outros, desde o ano de 1730 (COSTA, 1982, p. 34). Como caminho de
comércio, a rota dos campos serranos passaria a ser parada de tropeiros, para o trato dos
animais, ou local de permanência de alguns viajantes, que se tornariam fazendeiros em
grandes propriedades para criação de gado. Nesse contexto nasce a “Vila de Lages” no Brasil
colonial, sob as estratégias de ocupação territorial e de proteção das fronteiras; ou seja,
4
Na perspectiva da pesquisa antropológica, Roberto DA MATTA tem importante contribuição aos estudos sobre
cultura brasileira e mestiçagem. A despeito de atentar para a cuidadosa análise que o antropólogo faz acerca da
“legitimação ideológica” em torno da “fábula das três raças” – desvelando um “racismo à brasileira” –, parece
oportuno lembrar também, no âmbito da reflexão sobre a comunidade islâmica no Brasil, que a assimilação de
que fala Demant não impediu um “despertar islâmico” nos últimos anos, apontando para a possibilidade de haver
uma convivência razoável das alteridades culturais no país. Para um estudo mais aprofundado dos temas acima
referidos, ver DA MATTA, R. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Editorial Rocco, 2001; _____.
Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979;
_____. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
5
Para conhecer outros dados históricos acerca da região serrana catarinense e da cidade de Lages, ver
QUEIROZ, M. V. de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). São Paulo:
Ática, 1981; COSTA, L. O continente das Lagens: sua história e influência no sertão da terra firme.
Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1982 (v. 1, 2, 3 e 4); BLOEMER, N. M. Itinerâncias e
migrações: a reprodução social de pequenos produtores e as hidrelétricas. São Paulo: USP, 1996 (tese de
doutorado em Antropologia Social).
7
tratava-se também de objetivo geopolítico e militar (Ibid., p. 67). O povoado de “Lagens”
seria, então, fundado em 1766 por Antonio Correia Pinto de Macedo, que ergueria uma capela
sob a denominação de “Nossa Senhora dos Prazeres”.
Nessa história que se inscreve nas mudanças ocorridas no Brasil-colônia, outros
segmentos populacionais surgiriam apenas nas primeiras décadas do século XX, trazendo para
a região descendentes de alemães e italianos que migravam do sul do Estado de Santa
Catarina, a fim de desenvolverem atividades de agricultura familiar. Por volta do ano de 1940,
registra-se o início do ciclo de exploração da madeira com italianos oriundos do Rio Grande
do Sul. Assim, teria havido um aumento na população da cidade, que resultaria, por sua vez,
num estímulo ao comércio local. Os primeiros mascates (vendedores ambulantes) aparecem
em tal contexto, sendo reconhecidos pelos habitantes locais como “turcos” – termo carregado
de conotação pejorativa para definir os “negociantes espertos”; ou seja, tornou-se um sinal
diacrítico para marcar a diferença. Os “turcos” eram, na verdade, imigrantes libaneses
especialistas no mercado de tecidos e confecções. Esses estrangeiros deslocaram-se das terras
de origem no pós-guerra (1939-45) em busca de melhores condições de vida no Brasil.
Efetivamente, além da inserção no mercado local, os libaneses trouxeram para Lages a sua
religiosidade e a riqueza da tradição islâmica. Movidos pela fé no Deus único – Alá – e
obedientes à doutrina gravada no Alcorão por obra profética de Maomé, esses mulçumanos
cultivaram a prática religiosa de sua pátria e erigiram na cidade, no final da década de 1970, a
primeira mesquita no sul do país.
Uma visita à mesquita nos foi preparada pela fala entusiasmada de Abdel Nasser: “A
comunidade é pequena, com umas 30 ou 40 famílias. Meu pai foi fundador da mesquita no
ano de 1978, tem a placa de inauguração. Meu pai tentou reunir as famílias e trazer as origens
para cá, porque não tem intenções de voltar [para morar no Líbano]”. Quanto às práticas
religiosas, afirma: “A comunidade tem uma participação ativa. A gente vai, toda sexta-feira,
ao meio-dia, rezar; no final de semana, a gente também reúne as famílias, faz um almoço,
uma confraternização”. E acrescenta: “O nosso país [Líbano] é motivo de conversa, mas não
só isso; a gente vê todos os países árabes que integram o islamismo, porque a comunidade não
é só [a] do teu país de origem, só [a] dos teus parentes (...) o islamismo é o árabe”. Ora, a
entrada no lugar sagrado em que está o Alcorão indica que há uma tradição e uma fé muito
vivas na experiência cotidiana dessas famílias mulçumanas. Nas paredes, palavras escritas em
árabe lembram a profissão de fé no Deus único, fora do qual não existe qualquer outra
8
divindade. Como adverte Abdel: “(...) ela [a mesquita] não tem santo nenhum, não tem nada;
simplesmente tem orações (...) orações na parede, que são textos do Alcorão. A gente só reza
a Deus, a gente não tem santos, não tem imagens, não tem absolutamente nada (...)”. De
arquitetura muito bela, construída com alguns cuidados especiais – voltada para Meca;
marcada pelo respeito ao calendário lunar; com um formato que observa as construções nos
países de origem etc –, a mesquita é um símbolo visível da religiosidade islâmica em Lages,
ocupando uma extensa área num ponto importante da cidade.
Interessante assinalar ainda que, ao lado da mesquita, no mesmo terreno desta, há
outras construções para uso da comunidade: uma sala obituária, uma sala de aulas –
desativada desde que o xeique foi transferido para Florianópolis –, uma residência reservada
para a autoridade religiosa, e um outro lugar pequeno, uma espécie de quitinete, onde mora
um zelador da mesquita – patrício da comunidade que recebe dela ajuda para sua
sobrevivência no Brasil. Não o entrevistamos formalmente, mas foi muito curioso o fato de
nos ter acompanhado à entrada na mesquita e nos ter explicado alguns dos seus detalhes,
como as frases extraídas do Alcorão, e algumas das práticas de sua religião. Aliás,
recomendou-nos que não pegássemos o livro sagrado à mão, pois ele é de uso exclusivo
dos/das fiéis nas orações da comunidade. Enfim, talvez se possa ver na cidade de Lages,
quando da chegada dos imigrantes mulçumanos, o que o xeique afirma preferir ainda hoje no
planalto serrano: a tranqüilidade e a prosperidade.
Uma identidade religiosa: a fé islâmica
A tentativa de compreender o fenômeno dos chamados “homens-bomba” aponta para
alguns elementos recorrentes nos discursos dos mulçumanos entrevistados. De forma reiterada
e abrangente, algo que percorre suas falas parece dar o sentido efetivo das ações desses
“homens” – na verdade, conforme os informantes, muitos jovens e também muitas jovens.
Com efeito, observa-se uma clara unicidade de pensamento, de valores e de ação, que se
poderia refletir em termos de uma identidade ou um ethos islâmico. Em que pese o relevante
contato com a comunidade islâmica de Lages, precisamos admitir a ausência de informações
suficientes para desenvolver essa temática de modo mais profundo e com a conseqüente
ênfase que a ela precisaria ser dada. Por outro lado, tendo em conta a pertinência dos dados
9
obtidos para pensar essa questão contemporânea, propomos considerar certos elementos que,
a nosso ver, emergem como eixos definidores de uma “identidade islâmica”.6
Inicialmente, é possível afirmar que a base do sistema de pensamento e de ação no Islã
está formulada e gravada no Alcorão. O “livro da palavra divina” guarda a revelação do Deus
único ao profeta Maomé (570-632 d.C.). Este, segundo a tradição islâmica, grava as palavras
de Deus, decorando-as e pregando-as no decurso de sua vida. Daí o anúncio das mensagens a
seu povo e a possibilidade de serem recopiladas – parcialmente escritas – e decoradas por seus
seguidores. No entanto, a organização final do livro só foi realizada após a morte do profeta,
sendo o seu primeiro escriba, denominado Zaid Ibn Tabit, o autor dessa missão (NABHAM,
1996, p. 23). Um primeiro aspecto importante desse processo histórico em que se firma a
tradição corânica, segundo a autoridade religiosa entrevistada, o xeique Amin, diz respeito ao
fato de que o Alcorão se manteve “absolutamente fiel à revelação divina”, o que marcaria
uma profunda diferença em relação à Bíblia cristã. Nesse sentido, esclarece o xeique:
(...) [a Bíblia] não foi escrita com a mesma fidelidade e, portanto, encontrarse-iam misturadas as palavras divinas e as palavras do profeta, assim como as
interpretações dos apóstolos e as de seus seguidores. Nesse sentido, os quatro
livros que compõem a Bíblia só foram oficializados no ano 330 d.C. em
Roma, o que teria levado a uma distorção muito grande (AMIN, entrevista
agosto de 2004).
Nessa perspectiva, nota-se que o Alcorão é concebido como a própria palavra divina –
pura, inalterada, preservada enquanto mensagem de revelação divina e em sua eficácia
salvífica. Em outras palavras, o Alcorão constitui “padrão absoluto” de preceitos e condutas
6
Sem dúvida, seria necessário discutir inclusive o tema da identidade tendo em conta as análises em torno dos
conceitos que as ciências sociais têm formulado acerca dessa questão. Não obstante, ocupar-se-á, neste estudo,
mais diretamente das implicações religiosas e sociais que um tal conceito sugere. Por outro lado, do ponto de
vista da antropologia o conceito de identidade remete ao de etnia que, grosso modo, é assim descrito: “Na
linguagem científica corrente, o termo ‘etnia’ designa um conjunto lingüístico, cultural e territorial de um certo
tamanho, sendo o termo tribo geralmente reservado a grupos de menor dimensão” (BONTE;IZARD, 1992, p.
242). Para um estudo minucioso do tema, ver, por exemplo, as interessantes reflexões propostas por Richard
JENKINS, 1997, p. 9-15. Nesse estudo, o autor chama “the basic social anthropological model of ethnicity”
elementos relevantes para a análise do termo etnia. Segundo Jenkins (1997, p. 13-14), “ethnicity” diz respeito 1)
às diferenças culturais, o que leva à percepção da identidade social enquanto dialética entre semelhança e
diferença; 2) à cultura, dentro da qual ocupa lugar central; 3) à capacidade de mudança que esse “fato” tem na
cultura ou nas situações em que é produzido e reproduzido; 4) às dimensões coletiva e individual que
caracterizam uma “identidade social”, sendo externalizadas na interação social, e internalizadas na autoidentificação pessoal.
10
(ANTES, 2003, p. 137). Por essa razão deve-se total obediência ao livro sagrado. Com efeito,
assim concebido o Alcorão, não existem dúvidas quanto às mensagens a serem guardadas,
gravadas e praticadas; não existem também múltiplas interpretações do texto; portanto, não há
necessidade de mediadores. O que há é somente o encontro direto “entre criador e criatura”
(DEMANT, 2004, p. 35). Daí o papel central da “palavra divina”, que é religiosamente
observada e adorada em todas as suas dimensões, tal como o expressa o xeique Amin: “(...)
quando se lê o Alcorão, sente-se a pureza da palavra divina, inclusive os gestos e a atitude
mudam de maneira especial”. Ademais desse elemento de “pureza” que os/as fiéis apreendem
no Alcorão, a revelação divina que o livro sagrado encerra constitui a última e genuína
mensagem de Deus, pois, a despeito de reconhecer todos os profetas e messias das tradições
judaica e cristã, o islamismo acredita que Maomé é o último “inspirado” a selar a “longa série
de profetas” (ANTES, 2003, p. 38). Efetivamente, seguindo a crença dos mulçumanos, o
islamismo é a “religião autêntica e universal que, a apesar de ter sido revelada em árabe e por
meio do povo árabe, abrange a todos e dirige-se a todos” (AMIN, entrevista agosto de 2004).
Na prática, considerando o fato de ser uma religião configurada em base histórica e
universalista, o Islã tem por fundamento a crença em um só Deus, ao qual se deve submissão
total (DEMANT, 2004, p. 27). Nas palavras do xeique, é possível apreender tal significado do
próprio termo “islã”, cujo sentido profundo e abrangente indica a importância de ser
submisso a Deus. Recorrendo à mensagem corânica, Amin lembra:
“Deus quando criou os céus e a terra disse: ‘venham a mim obedientes ou
contra a vontade’. Eles responderam: ‘nós viemos submissos, obedientes ao
Senhor’ [...]”. Quando você declara que é submisso à vontade de Deus, você
tem que seguir sua vida com todos os seus sentidos, com todos os fatores da
sua vida direcionados à Deus, obedecendo a ordem de Deus e a lei de Deus
(AMIN, entrevista agosto de 2004).
Na esteira dessa reflexão, é oportuno sublinhar que, para além de uma crença ou de
uma religião no sentido estrito da palavra, o Islã – sob a compreensão da lei divina absoluta e
da submissão total a Deus – acaba por abarcar todas as esferas da vida humana. Isso significa
dizer que, ao longo dos tempos, essa religião e sua crença tornaram-se modelo de vida,
tradição guardada e transmitida de geração a geração, quer dizer, tornaram-se cultura. Assim,
é imprescindível entender a sua autoridade na condução dos diferentes âmbitos da vida dos
11
indivíduos – em todas as etapas de desenvolvimento humano e educacional – e da
coletividade; na conformação das relações entre homens e mulheres; na concepção de
família; na condução da economia, do governo, da justiça, enfim, da sociedade em seu sentido
mais general (DEMANT, 2004, p. 35). Depreende-se desse aspecto o fato de que o Islã cria,
então, um sentido de totalidade da vida, na qual as diferentes esferas – a religiosa-moral, a
social, a política, a econômica, a cultural etc – individual e coletiva aparecem entrelaçadas
numa continuidade inclusiva. Ou seja, ainda que se produza uma diferenciação fundamental
entre imanente ou humano e transcendente ou divino – tal como se verifica nas chamadas
religiões universais, i.e., Judaísmo, Cristianismo e Islamismo –, o Islã parece indicar certo
“trânsito” entre tais dimensões, compreendendo uma interação que aproxima essas ordens
distintas de coisas. Em outras palavras, seguindo as intuições de Marcel GAUCHET (1985), o
transcendente se instala também no imanente. Daí que todo movimento – o social e o
individual – é determinado pela continuidade totalizadora, na qual, embora apresentem
diferenças ontológicas, individual e social constituem um todo; ou melhor, não há unidades
dicotômicas e opostas, como no cristianismo por exemplo. Considera-se, a título de ilustração,
os opostos clássicos: céu e terra; Deus e homem [no sentido de humanidade]; corpo e alma;
matéria e espírito; indivíduo e sociedade; homem [varão] e mulher; religião e política, entre
outros. Elementos que aparecem profundamente separados e até contrapostos na sociedade
ocidental de tradição judaico-cristã. Ao contrário disso, o islamismo mantêm certa
continuidade articuladora.
Com efeito, aqui talvez se possa assinalar a importante característica da tradição
islâmica, que, a nosso ver, a torna singular dentre as demais tradições, constituindo um dos
pilares sobre o qual se funda a dinâmica social e cultural dessa religião. Por outro lado, é
preciso dizer, reconhecemos a enorme polêmica que tal afirmação suscita. De fato, é bastante
complexa a tarefa de encontrar uma categoria “clara” para explicar essa discussão. De
qualquer forma, o que se deseja enfatizar é, pois, a idéia de que, embora apresente as
categorias do que chamamos de dualismo clássico, o Islã não as desenvolve como tal.
Interessante observar ainda que, nas leituras feitas sobre o islamismo, são recorrentes as
indicações de um sentido integrador entre as diferentes esferas, sobretudo aquelas concepções
que dizem respeito à continuidade entre política e religião. Ademais, apontam para o caráter
inclusivo e abrangente dessas, por assim dizer, dimensões. Entretanto, é importante frisar, não
há uma resolução, ou uma preocupação nesse sentido, quanto às questões da lógica e do
12
funcionamento dos dualismos presentes ao interior desse sistema de pensamento. Isso nos
leva a afirmar, sem medo de leviandade, certa ambigüidade, que teria sido produzida sob o
legado do pensamento grego para o Ocidente, cultura com a qual os povos árabes tiveram
estreito contato. Basta ver que os mulçumanos se reconhecem sucessores dos princípios
religiosos – crenças, dogmas, teologia, moral etc – do judaísmo e do cristianismo. Mas, além
disso, sofrem influência do mundo ocidental e do seu processo de “desenvolvimento” e
“modernização”. Neste caso, verifica-se a noção de oposição dualista entre as mais diversas
dimensões. Ao tentar buscar na fala dos informantes o sentido mais profundo dessa questão,
percebemos os sinais de ambigüidade a que nos referimos acima, haja vista o fato de estar a
lógica do seu pensamento evidentemente sustentada pelo sentido dualista das coisas. O que
parece inequívoco neste depoimento:
(...) A dualidade está no universo, existe o bem e o mau, o homem e a mulher,
a energia positiva e negativa, o par de cada espécie, uma completa a outra. Se
não fosse assim, como a gente diferenciaria uma montanha de uma terra
plana? Porque existe essa forma alta da terra que apresenta a montanha, e, se
não fosse por ela, a gente não ia diferenciar um do outro. A gente consegue
definir o plano quando a gente tem a montanha, e consegue definir a montanha
quando a gente observa o plano” (AMIN, entrevista agosto de 2004).
Certamente, é fundamental perceber que uma coisa é ter a concepção e/ou o princípio
que sustenta essa diferenciação ontológica; e outra coisa bem distinta é que, de fato, as
dimensões “funcionem” de maneira separada e até antagônica. Daí destacar-se a singularidade
do Islã em relação ao que acontece na sociedade ocidental, cuja abismal distância entre as
diferentes esferas – corpo-humano-Estado, por um lado; e espírito-divino-religião por outro –
resulta em discursos e práticas evidentemente dualistas. Ao contrário, no islamismo procurase não perder o sentido de unicidade entre essas partes, integrando-as, de certa maneira, em
ordem a uma justaposição. Nesse sentido, chama especial atenção a forma como os
mulçumanos concebem a díade alma-corpo. Existem muitos elementos da tradição corânica,
por exemplo, que denotam um tratamento diferenciado para a questão do dualismo. Tendo em
conta, a título de reflexão, as punições prescritas pelas leis islâmicas, em que as penalidades
recaem sobre o físico-corporal, há um acento a ser destacado quanto à compreensão da
13
exigência acerca desse tipo de castigo – oportuno lembrar que o castigo cristão incide
privilegiadamente sobre a alma – que parece se esclarecer nas palavras do xeique:
Na verdade, a dualidade é uma só, não é uma dualidade separável. Entre o
corpo e alma, os estágios de relação são variáveis, uns são conscientes e outros
inconscientes. Conscientes, somente essa parte aqui, nessa vida. Após a morte,
a relação dessa alma com o corpo é uma relação diferente, não como aqui;
aqui o corpo mais domina, por isso ele precisa de comida, bebida, disso,
daquilo; a alma não precisa de nada disso. Após a morte a alma que domina.
Terminada essa fase, entra em outra, que é a fase interna, de ressurreição do
corpo e a integração da alma com o corpo, uma integração completa (...).
Enquanto punição, vamos dizer, a lei islâmica não separa, é na tese dos dois ao
mesmo tempo; no caso, por exemplo, de cortar a mão do ladrão, o que
significa? Ela tem um efeito material e um efeito educativo à própria alma
espiritual (AMIN, entrevista agosto de 20004).
Nessa perspectiva, sob a mesma lógica da continuidade e/ou articulação das
“dualidades inseparáveis”, estabelece-se uma estreita e, na maioria das vezes, inseparável
relação entre o político e o religioso. Na verdade, essa separação radical nunca existiu dentro
da comunidade islâmica, uma vez que qualquer instância social, incluindo a esfera política, se
deve reger, em princípio absoluto, pela submissão total à “palavra divina” do Alcorão. Do
mesmo modo, os conceitos de moral, ética e justiça dessa tradição estão perpassados pela
lógica religiosa da continuidade. Daí ser possível perguntar: até que ponto se pode falar da
relação entre política e religião quando, de fato, fazem parte de uma mesma realidade e
dinâmica?
Numa outra ponderação, considerando o mesmo elemento acima, pode-se pensar a
dualidade indivíduo e sociedade. Tal reflexão é permitida, na medida em que os princípios
religiosos do Islã apontam inegavelmente para o sentido do social, do coletivo e, portanto, da
solidariedade interna aos membros da comunidade islâmica, valorizando sobremaneira esse
aspecto. Como afirma Peter Antes (2003, p. 109), o ideal da educação do islã ensina os
indivíduos a priorizarem a sociedade e seus interesses. Desse modo, o indivíduo tende a
subtrair-se, sem desaparecer, mas dando lugar a uma noção do ser social, bastante afastada do
protótipo individualista da sociedade ocidental. Esse preceito – do valor social –, como muitos
outros que são considerados no Islã, mostra algo que parece bastante significativo dentro do
processo de construção dessa tradição: a inserção no mundo cultural em que se produz a
revelação – a Arábia, território habitado por tribos nômades, pastores e comerciantes, cujos
14
valores estão profundamente ancorados no vínculo familiar e comunitário, e resguardados por
princípios como a honra, ligada, por sua vez, ao controle da sexualidade feminina (DEMANT,
2004, p. ). Há, por conseguinte, uma configuração do mundo islâmico por sobre uma antiga
tradição cultural, que se perpetua através do “livro sagrado” – o Alcorão – que se mantém fiel,
como já foi observado, à revelação de Deus desde suas origens. Por outro lado, seguindo a
intuição de Clifford GEERTZ (2000, p. 107), é importante assinalar, esse conjunto de
princípios e de valores não teria “transcendência” se não estivesse ligado/unido a uma forte
prática ritual, cujos estados anímicos, cujas motivações e concepções gerais da existência se
encontram e se reforçam. Tal aspecto é fortemente confirmado na religiosidade islâmica
(DEMANT, 2004; ANTES, 2003; NABHAM, 1996), haja vista que os pilares dessa tradição
estão cimentados em práticas rituais e por meio delas: a fórmula da confissão, as orações
diárias, o jejum, a esmola e a peregrinação à Meca.
Dentre as práticas rituais, as orações ocupam lugar central na vida religiosa e
quotidiana dos mulçumanos. De acordo com o xeique Amin, elas são “uma manifestação
verbal de adoração a Deus”. E acrescenta: “As cinco orações por dia fazem com que o
muçulmano lembre da presença de Deus na sua vida, no seu trabalho, na sua profissão, em
todas as horas do dia; por isso [os mulçumanos] começam antes do nascer do sol, vão até a
hora de dormir” (AMIN, entrevista agosto de 2004). Além dessa rotina de rezas, faz-se um dia
de reunião comunitária para a oração coletiva, que acontece às sextas-feiras ao meio-dia. Por
sua vez, o mês do jejum é igualmente uma celebração coletiva em que se celebra o
recebimento do Alcorão; os fiéis se abstêm, desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, de práticas
como a relação sexual, a ingestão de bebidas e comidas etc (DEMANT, 2004, p. 27). É, pois,
um ritual fundamental para a “disciplina de auto-controle e de purificação interior” (ABDEL
NASSER, entrevista julho de 2004). Ao mesmo tempo que concorre para uma auto-disciplina,
o jejum reforça os laços comunitários, motivando durante esse período os encontros familiares
e as confraternizações, que se realizam a partir do anoitecer até a madrugada.
Com relação à esmola, ela é considerada “um dever de todo muçulmano, de ajudar os
que necessitam, como um ato de caridade”. Conforme as informações do xeique, essas
demonstrações voluntárias de caridade encontram eco também no imposto anual que o
mulçumano oferece à sua comunidade. Trata-se de uma contribuição obrigatória destinada aos
gastos e serviços da mesquita, cuja aplicação é feita de acordo com o tipo de ingressos (?) dos
fiéis (AMIN, entrevista agosto de 2004). Por outro lado, os mulçumanos observam a
15
orientação corânica referente à peregrinação ao lugar sagrado, a cidade de Meca. Mesmo que
tal observância guarde um caráter esporádico e/ou eventual, sabe-se que se trata de um ato
muito relevante para a vida religiosa dos/das fiéis. Assim, considerada como prática
obrigatória, ao menos uma vez na vida, a peregrinação é mais um grande testemunho de
submissão a Deus e às leis islâmicas. Os indivíduos que dispõem de recursos financeiros –
não só para hospedar-se na cidade, mas especialmente para deixar sua família amparada no
tempo em que estiverem em peregrinação –, devem cumprir religiosamente esse preceito.
Nesse sentido, por suas dimensões, a peregrinação adquire um inegável tom apologético
constituindo uma “assembléia universal que reúne os muçulmanos do mundo todo, de todas as
raças, de todas as cores, de todas as línguas; de todos os cantos da terra se reúnem
[mulçumanos] em um lugar só, onde adoram um Deus único” (?). Na prática, a peregrinação
revela uma forte carga sentimental e espiritual, convertendo-se numa viajem de resgate e de
reencontro com a “identidade de fé do monoteísmo”, em que se faz demonstração de crença,
de obediência e de entrega a Deus. Segundo Abdel, muitos idosos morrem em peregrinação;
mas, para eles, isso significa “um ganho na loteria”. Quando indagamos o senhor Dabus
Mohamed – pai de Abdel – sobre a sua recente experiência de ir, em peregrinação, à Meca,
prontamente confirmou emocionado o comentário de Abdel:
É outro mundo. A gente pensa que está no céu; aquela multidão de gente,
aquele povo todo, aquela mesquita maravilhosa. A gente vai lá, volta com o
coração engrandecido, a gente vem diferente de lá (DABUS, entrevista julho
de 2004).
Finalmente, pode-se observar, tanto os princípios, as normas e os valores do Islã,
quanto as suas práticas rituais e sua disciplina religiosa estão diretamente relacionadas com a
entrega a Deus. Tudo é oferenda divina, no sentido de demonstrar-se fé e submissão ao Deus
único, cuja fórmula da confissão inscreve a sua vontade como a soberana destinação de toda a
humanidade. Essa adoração permanente e total a Deus está motivada por um ideal ou uma
utopia que se estende, ao longo da vida, à experiência humana dos/das fiéis, dando-lhe
sentido, e preparando-os para a “salvação” plena – individual e coletiva –, cujo prêmio é a
justificação eterna no paraíso, na eternidade, após o dia do juízo final, junto do Deus único.
Nesse sentido a fórmula da confissão acompanha o/a fiel que, em primeiro lugar, manifesta
verbalmente a sua fé: “A crença é a base de toda a nossa visão (...). A palavra do testemunho
16
da unicidade de Deus, a palavra do testemunho de que neste universo existe um único Deus,
não existe outro Deus (...)” (AMIN, entrevista agosto de 2004).
Pensando o sacrifício e a reciprocidade na tradição islâmica: um diálogo com Mauss
O sacrifício e sua lógica da entrega total
Até o momento, tem-se buscado um caminho que tenta trazer à superfície desta
reflexão uma visão mais fidedigna dos princípios e valores da tradição islâmica, que, a nosso
ver, condicionam a experiência dos chamados “homens-bomba”. Ora, é preciso aqui
aprofundar o fenômeno descrito, ocupando-se com sua lógica e com a configuração da
totalidade de seu sentido. Para alcançar esse intento, é necessário definir, inicialmente, uma
categoria que se considera como a mais apropriada para analisar esse fenômeno. Na
introdução deste estudo, recusava-se o termo “suicida”, porque este se afastaria da natureza do
ato em questão; ou seja, entende-se que não se trata apenas de “dar morte a si próprio”, tal
como é compreendido no mundo ocidental. Há um sentido muito mais profundo, pois, além
de “dar morte a si próprio”, essa ação se realiza contra certos objetivos político-militares, o
quer dizer: sai da esfera estritamente pessoal. Por outro lado, não se pode igualmente reduzilo a um “ato terrorista”, posto que tal expressão está carregada de ideologia a serviço das
potências ocidentais, para invalidar as práticas vistas como “perigosas” para os seus
interesses; ou melhor, é um termo usado de maneira unilateral.
Para além dessas denominações – arbitrárias e parciais –, é preciso admitir, não parece
tarefa fácil a de classificar um evento dessa natureza, que foge das categorias com as quais
usualmente são analisadas as ações bélicas. Dificuldade esta que se radica, fundamentalmente,
no fato de que não se pode enquadrar esse fenômeno dentro de uma só esfera, porque ele
apresenta características não apenas de uma ação político-militar, mas se reveste
especialmente de um inegável sentido sócio-religioso. Daí a indagação: como, então,
denominar um ato dessa natureza, lidando com sua aparente ambigüidade e seu sentido
“multívoco”? A despeito de notar uma aparente ambigüidade, nas conversas com os
informantes, sobretudo, destacam-se importantes elementos indicando que o eixo dessa ação
poderia estar no campo religioso, cujo substrato fundamenta toda a vida e o pensamento da
17
comunidade islâmica. Essa idéia aparece, de algum modo, nos depoimentos recolhidos,
evidenciando claramente o sentido religioso desse ato. Ou seja,
Não, não [se] encontra violência nenhuma no Alcorão, mas ele – o “homembomba” – pensa que, dando a vida dele por uma boa causa, ele vai ganhar o
paraíso. Então, o sentido de matar é outro, é uma entrega. O suicídio para ele
não é um suicídio. É um sentido diferente de fazer tua missão e ir para o
paraíso (ABDEL NASSER, entrevista julho de 2004).
Vamos ampliar a visão desse sentido dos “homens-bomba”. Em qualquer
revolução sempre haverá uma teoria e uma filosofia por trás, certo? E essa
revolução sempre tem seus adeptos, que a teoria junta eles, une eles no mesmo
objetivo; a favor desse direito, eles conseguem se auto-dominar, sacrificar e
desprezar suas vidas em benefício do bem comum. Isso não somente referente
ao Islã, até qualquer Estado, qualquer país, qualquer exército; ele tenta formar
grupos ou células dessa natureza, para a defesa da pátria e do Estado. No
islamismo o sentido disso é diferente. Eu não quero justificar o que está
acontecendo, nem tão pouco criticar, porque isso aí é um outro assunto. Mas
nós temos uma vida e temos bens, isso que nós possuímos dessa vida. Não
posso pegar a tua vida nem também pegar seus bens, isso é um direito teu.
Isso para um muçulmano não me pertence; aliás a qualquer um ser humano,
seja muçulmano ou não, verdadeiramente não lhe pertence essas duas coisas.
Isso aí pertence a Deus. Matar uma pessoa é um crime que Deus declara no
Alcorão, que aquele que mata uma pessoa intencionalmente é como se tivesse
cometido o pecado de matar todos os humanos e ele terá um castigo [...]. Mas,
no caso, quando o assunto é defesa da sua pátria, da sua religião, da sua
dignidade e da sua fé, então você oferecerá isto com a maior gratidão e a
maior satisfação a Deus [grifo nosso] (AMIN, entrevista agosto de 2004).
Um outro aspecto que chama fortemente a atenção nos depoimentos refere-se à forma
como os informantes diferenciam a imolação dos “homens-bomba” daquela resultante de
outras práticas tomadas como semelhantes às deles – como a morte pela pátria ou por ideais
similares a estes. Para os mulçumanos, há “um sentido diferente”. E, entende-se, essa
diferença advém de uma “agregação” especial do simbólico: a “transcendência”, a busca do
“além”, fora do mundo humano, que se dinamiza e se concretiza por meio da “entrega” ou da
“oferenda de si mesmo” a Deus. Nessa perspectiva, propõe-se a noção de sacrifício para
categorizar esse ato, uma vez que ela se afigura como teoria satisfatória à compreensão dos
fenômenos a que se refere. De qualquer modo, é oportuno reconhecer, não se resolve todo o
problema levantado; pelo contrário, partindo desse novo elemento, surge uma série de
perguntas: trata-se de que tipo de sacrifício? qual a lógica interna a ele? que elementos
culturais o explicam?
18
Com efeito, a aproximação da abordagem de Marcel Mauss e de Henri Hubert (2001)
mostra-se importante para o presente estudo. Os autores propõem um interessante marco
analítico, que permite entender a “lógica” do sacrifício. Segundo os pesquisadores, embora
haja uma diversidade de rituais sacrificais, existe uma prevalência de “unidade de ação”, que
consiste em:
(...) estabelecer uma comunicação entre o mundo sagrado e o mundo profano
por intermédio de uma vítima, isto é, de uma coisa destruída no decorrer de
uma cerimônia (MAUSS e HERBERT, 2001, p. 223).
Na esteira dessa abordagem, o sacrifício cumpriria o papel de mediação entre o mundo
“sagrado” e o mundo “profano” (TEIXEIRA, 1993, p. 167), estabelecendo contato entre essas
“duas ordens de realidade” e, por conseguinte, mobilizando certas forças que são necessárias
em determinados contextos sociais. Esse seria, pois, o princípio que determina a lógica do
sacrifício. Oportuno lembrar que o seu conteúdo muda no decurso da história, passando de
uma noção mais prosaica e materialista – “obter dos deuses benefícios muito precisos” – a
uma mais espiritual, referida a fins transcendentes – “salvação das almas”, “imortalidade”
“paraíso” etc –, assim como o concebem as grandes religiões históricas (MAUSS, 2003, p.
198; CAILLÉ, 2002, p. 196).
Por sua vez, os “homens-bomba” fariam parte desse último tipo de sacrifício, que se
orientam pelos fins transcendentes. Assim, da mesma forma que atua todo sacrifício, eles
realizariam uma mediação entre o mundo profano e o sagrado. Aproximam, pois, esses dois
planos da vida. Por meio deles próprios, de sua imolação – ato intenso e contundente –, fazem
essa ponte de comunicação e interação entre as partes. Nesse sentido, eles são vítimas e
sacrificantes ao mesmo tempo; no processo de “consagração”, ambos os elementos estão
concentrados neles, à medida que mudam de natureza: de um estado profano passam ao
domínio do sagrado (MAUSS, 2003, p. 151), ingressando numa nova categoria: a dos
mártires. Esse protótipo seria, então, algo com que o coletivo estabelece formas de
identificação e/ou projeção partindo de suas próprias carências e necessidades. Nessa
condição singular eles adquirem poder – o poder dado pelo “sagrado” e o “transcendente” –,
que transmitem e irradiam ao mundo profano. Aí se radica sua força e “eficácia simbólica”.
19
Reciprocidade: a dimensão da troca
Em se considerando os elementos abordados até o momento, efetivamente, é possível
inferir, quanto ao rito sacrifical, que esse fenômeno comporta uma necessária dinâmica de
entrega e retribuição, de mobilização de forças e tributos, cuja dimensão da troca permite
certa inflexão na presente análise. De fato, a sugestão de Marcel Mauss, desde a época em
que foi escrita a teoria sobre o sacrifício, no ano de 1899, aponta para os elementos aqui
retomados à luz de sua abordagem acerca da correlação entre rito sacrifical e dinâmica da
reciprocidade. Recorrendo às palavras de Mauss e Hubert, temos:
Se o sacrificante dá alguma coisa de si, ele não se dá; ele se reserva
prudentemente. É que, se ele dá, em parte é para receber. O sacrifício se
apresenta, sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O
desinteresse se mistura aí com o interesse. Daí por que com tanta freqüência
foi tão amiúde concebido sob a forma de contrato. No fundo, talvez não haja
sacrifício que não tenha alguma coisa de contratual (Mauss e Hubert, 2001, p.
225).
Ora, no Ensaio sobre a Dádiva (1924), Mauss não aprofunda essa questão, mas tem-se
uma clara reiteração da idéia do contrato preexistente no rito sacrifical. Afirma o autor que “a
destruição do sacrifício tem precisamente como finalidade ser uma doação que há de ser
necessariamente retornada” (MAUSS, 2001, p. 172). Por outro lado, no âmbito dos estudos
contemporâneos, muitos autores têm proposto o debate em torno ao tema da reciprocidade e
do sacrifício, dando continuidade à reflexão inaugurada por Mauss. Nessa perspectiva, alguns
matizes devem ser levados em conta. Um primeiro estudo a ser lembrado é o de Maurice
GODELIER (1996). Discorrendo sobre o sentido do sacrifício, o autor o compreende como
dívida eterna dos humanos para com Deus, para a qual não existe retribuição possível; logo, a
lógica da reciprocidade, em termos maussianos, não seria aplicável nesse caso. Nas palavras
de Godelier:
A humanidade encontra-se em dívida, portanto, desde sua origem, em relação
às potências que deram forma e deixaram como herança o mundo em que
20
vive, e esta dívida é impagável. Nenhum contradom pode ser “equivalente” a
ela, pode cancelá -la (GODELIER, 2001, P. 279).
Um outro acento interessante é aquele proposto por Allain CAILLÉ (2002).
Diferentemente de Godelier, esse autor procura deslocar a discussão acerca do sacrifício para
o campo teórico da reciprocidade/dádiva. Ao indicar o limite presente à teoria do sacrifício de
Hubert e Mauss, Caillé observa que esta deveria ser reinterpretada à luz do Essai sur le don –
a obra maussiana de 1924. Daí que sua proposta é a de reformular tais noções traduzindo-as
para a linguagem do dom (CAILLÉ, 2002, p. 166). Depreende-se da abordagem desses
autores certa polarização em torno à complexa questão do sacrifício. De um lado, a ênfase no
sentido da dívida eterna, sem possível retribuição; de outro lado, a ênfase no sentido da
reciprocidade, entendida como o movimento do dom e contradom. Para além da polarização,
busca-se, assim, situar o debate no nível do diálogo entre o campo teórico do sacrifício e o da
reciprocidade, compreendendo-os segundo uma singularidade ontológica que os diferencia e,
simultaneamente, os coloca diretamente imbricados. Nessa perspectiva, a análise de Marcel
Mauss parece definir com clareza a existência dos dois campos teóricos, como já acenado
anteriormente. Não obstante, como bem sublinha Teixeira Pinto (1993, p. 168), o tema do
sacrifício acabou sendo “esquecido” inclusive pelo próprio Mauss, que teria relegado a
segundo plano o seu “problema original”. Segundo o autor, essa tarefa apresenta-se como um
dos desafios para a antropologia: retomar e prosseguir a análise de alguns dos problemas
colocados por Mauss.
Quanto à perspectiva de análise aqui adotada, o material etnográfico recolhido sugere
a interpretação do sentido de “reciprocidade” implícito na imolação dos “homens-bomba”. De
maneira inequívoca, aparece em primeiro plano a demonstração de abnegação, de entrega, de
“submissão absoluta” a Deus e à sua vontade. No entanto, por mais altruísta que se mostre tal
ato, ele não está isento de interesse. Ou seja, há uma busca explícita de compensação. Uma
aspiração que, como os mulçumanos mesmos sinalizam, não pertence à ordem do material
nem do imanente e/ou imediato:
Por vontade própria ninguém quer morrer. Quem gosta da morte? Ou, então,
quem gosta de tirar todos os seus bens e entregar para outro? Mas os
21
companheiros do Profeta fizeram isto por seu livre arbítrio. Vendo que atrás
deste ato há uma grande recompensa. A recompensa é a satisfação de Deus e
seu contentamento com a pessoa, a absorção do castigo infernal, o lugar no
paraíso. A salvação. Com certeza, ele não espera a recompensa de alguém aqui
na terra. O que ele espera da sua vida? O que ele espera em troca? Fazer um
monumento e colocar no meio da praça? O que vai adiantar isso para ele? Vai
devolver sua vida? A única coisa que a pessoa espera, nesse sentido, é o
sucesso na outra vida (AMIN, entrevista agosto de 2004).
Na prática, entretanto, tal “reciprocidade” referente à comunicação com a esfera do
sagrado não é a mesma que se verifica no interior das relações sociais. Pode-se observar uma
mudança significativa na natureza da relação que se estabelece, quanto às partes envolvidas,
quanto aos objetos que se trocam, ao seu direcionamento e ao tempo em que a troca se efetiva.
Essa espécie de re-configuração dos elementos envolvidos na referida relação determina-se
fundamentalmente pela distância ontológica dos seres que se relacionam: de um lado estão os
seres humanos – pertencentes à esfera do imanente; e, de outro, está o Deus único –
pertencente à esfera do transcendente. A situação oriunda da comunicação entre as partes
coloca ambas as esferas num plano de verticalidade; ou melhor, trata-se de uma relação
assimétrica, de caráter hierárquico, entre um ser superior e suas criaturas (CAILLÉ, 2002, p.
168; GODELIER, 1996, p. 290). Destarte, o tipo de troca que se estabelece adquire uma outra
dimensão. Torna-se mais acentuada e contundente. Por um lado, há uma exacerbação da
“dimensão da abnegação”; e, por outro, uma amplificação ao máximo do interesse calculado”
(CAILLÉ, 2002, p. 168). Assim, na esteira dessas idéias e tendo em conta o que o xeique
afirma acerca do sacrifício, conforme citação acima, compreende-se a ação do “homembomba” como um ato maximizado de entrega, cuja oferenda é o dar-se a si mesmo, e sem
reservas, a Deus. Pela oferta de sua própria vida, espera receber, em troca da entrega total, um
bem também supremo, absoluto, sem medida de comparação: o paraíso – a salvação eterna.
Observa-se, desse modo, uma relação evidentemente hierárquica, que encerra uma
imprescindível dimensão de poder: os humanos se submetem inteiramente ao mandato divino,
à vontade de Deus, à sua lei. Nesse sentido, ainda que pareça uma troca eventual e desconexa,
ela está, na verdade, inserida na lógica da reciprocidade, conservando uma linha de
continuidade a ela, muito embora se situe numa escala diferenciada de tempo, e, por sua longa
duração, abarque sujeitos de diferentes épocas e gerações. Importante ressaltar que essa troca
não se inicia com a imolação dos “homens-bomba”, ela é contínua a um movimento que tem
22
suas origens, como o afirma Godelier (2001), na dívida original dos humanos para com os
deuses criadores do mundo em que vivem. Contudo, à diferença do que propõe o autor, esse
dom primogênito é retribuído por meio da fé e da demonstração permanente do ato de
submissão ao Deus todo poderoso. Daí que, na prática da religião islâmica, a comunidade de
fiéis incorpora à sua experiência cotidiana um significativo sentido da ação ritual, que se
estende aos diferentes âmbitos da vida humana. Portanto, constata-se a existência d o contradom humano; porém, este é de menor categoria, i.e., inferior ao dom divino. Todavia, não
deixa de se constituir numa contraprestação. Precisamente na diferença de “categorias” se dá
cimentação da relação hierárquica entre as esferas divina e a humana – oportuno assinalar que
Mauss procura mostrar esse elemento quando se refere às relações hierárquicas estabelecidas
por meio dos dons “agonísticos”. No sentido proposto por Mauss, a magnitude dos dons,
oferecidos e destruídos, é uma marca clara de status social e de relações de poder. Em suas
palavras:
Por meio desses dons [os agonísticos, de destruição e perda de grandes
riquezas] se estabelece uma hierarquia entre os chefes e seus súditos, entre os
súditos e seus mantenedores. Dar é sinal de superioridade, de ser mais, de
estar mais alto, de magister; aceitar sem retornar, ou sem retornar mais, é
subordinar-se, tornar-se cliente e servidor, fazer-se pequeno, escolher o mais
baixo (MAUSS, 2003, p. 255).
Nessa perspectiva, a imolação dos “homens-bomba” emerge como uma prova maior
da submissão absoluta, que faz parte, por conseguinte, da relação de reciprocidade com a
esfera do divino. No entanto, nota-se, essa troca não se restringe ao nível do individual, pois a
pessoa que se sacrifica nesse ato não o faz motivada por uma causa pessoal, nem em busca de
uma recompensa individual. Ela entrega sua vida por uma causa social, em “defesa da pátria,
da sua religião, da sua fé”, e igualmente está esperando uma recompensa maior: a “salvação
de toda a humanidade”. Assim, a sua ação incorpora o coletivo, inserindo-o na dinâmica da
reciprocidade, no caráter extensivo da dádiva e em seu retorno necessário. De fato, ativa-se o
ciclo da reciprocidade em diferentes tempos e corporeidades.
Por outro lado, nessa noção de reciprocidade, há o elemento do duplo caráter do
referido fenômeno. O que significa dizer que se trata de um ato “voluntário, aparentemente
livre e gratuito”; e, ao mesmo tempo, “obrigado e interessado” (MAUSS, 2001, p. 157).
23
Efetivamente, o que se coloca, aqui, em questão é a natureza aparentemente desinteressada,
altruísta e voluntária do ato de dar, mas, por trás disso, há um “interesse” e um sentido de
“obrigação”. Sendo assim, como entender esse sentido da obrigação em algo que se apresenta
como um ato livre? De acordo com a abordagem maussiana, é preciso olhar para o conjunto
de forças que atuam no universo social enquanto influenciam e delimitam igualmente o agir
individual – as alianças sociais, as relações de poder, a força do simbólico, os valores morais,
entre outros. Uma noção pertinente a esse tema, e que parece circunscreve-lo de forma eficaz,
é aquela desenvolvida por Pierre Bourdieu: a noção de habitus. De acordo com o autor:
Essa economia muito especial [a da reciprocidade] se apóia, ao mesmo tempo,
em estruturas específicas e em estruturas incorporadas, disposições – habitus –
que essas estruturas pressupõem e produzem ao lhe oferecer suas condições de
realização. (...) Isso significa que o dom como ato generoso só é possível para
agentes sociais que adquiriram, em universos onde são esperadas,
reconhecidas e recompensadas, disposições generosas adaptadas às estruturas
objetivas de uma economia capaz de garantir-lhes recompensa e
reconhecimento (BOURDIEU, 1996, p. 9).
Procura-se, pois, considerar que o universo da tradição islâmica, já apresentada
anteriormente, fornece o contexto mais amplo das estruturas por meio das quais se
reproduzem essas disposições determinantes das ações que empreendem os chamados
“homens-bomba”. Tendo em conta alguns aspectos referentes a essa tradição, compreende-se
o dado da submissão como elemento central da doutrina religiosa, que perpassa todas as
esferas da vida dos muçulmanos, produzindo neles uma forma de conduta, de raciocínio e de
se relacionar e de agir diante do mundo. Com efeito, basta lembrar o fato de que os cinco
pilares do islamismo assinalam práticas de oblação a Deus. Assim, partindo da fé incorporada
desde cedo aos costumes de família, vê-se configurar o habitus nas diversas dimensões da
vida pessoal e da vida social. Como assevera Abdel Nasser: “(...) lá [no Oriente Médio] é
outra coisa. Desde cinco ou seis anos uma criança na escola já aprende a ler o Alcorão; aqui
não é desse jeito. A grande maioria desses países árabes tem o Alcorão no ensino, tem que
aprender a memorizar” (entrevista julho de 2004).
24
Há toda uma situação colocada pela prática religiosa dos fiéis que cria as condições
para o exercício da obediência, da submissão e da entrega total a Deus. Os ensinamentos do
Alcorão e os documentos religiosos produzidos ao longo dos tempos não apenas introduzem
os fiéis no âmbito da vontade de Deus, mas os informa sobre as leis por meio das quais ele
continua agindo nas suas vidas individuais e sociais: na religião, na política, na economia, na
sociedade etc. Tal é a lógica que alimenta a obediência oferecida a Deus por Abraão. Também
ele recebe a palavra e a aceita incondicionalmente. O resultado de sua entrega é o
fortalecimento da sua fé, mas também dos benefícios que toda a humanidade receberia por
meio dessa entrega. Daí ser chamado o “pai” da fé. Nesse sentido, o coletivo é o principal
beneficiário da entrega. Abraão não teria imolado seu filho simplesmente por um capricho de
Deus, ou, menos ainda, para salvar-se a si mesmo, mas pela eficácia da entrega, que está
diretamente ligada à vontade de Deus com quem faz aliança por meio de sua livre decisão.
Enfim, esse contexto cultural islâmico, marcado pelo sentido religioso, está criando e
recriando na prática quotidiana um estilo de ser, uma disposição para se comportar e agir que
basicamente está orientada por sua atitude de entrega total a Deus. Uma entrega que está
alimentada por grandes ideais. Em primeiro lugar, a salvação eterna, o paraíso. Em seguida, o
que Demant (2004, p. 329) chama de “utopia islâmica”, que é a visão e a busca de uma
sociedade justa. Nessa perspectiva, os “homens-bomba” são a representação simbólica e ritual
maximizada dessa disposição de “entrega” em ordem à satisfação dos ideais de salvação e
justiça social. Observe-se o seguinte depoimento, que é bastante representativo dessa idéia:
Aquele que está lutando por um ideal é o mesmo que você [ao] defender-se contra um
agressor para proteger sua vida, mas você está fazendo este ato porque você está
cumprindo uma ordem de Deus. Acredita em Deus e acredita que este agressor irá
para o inferno, irá ser castigado e você, ao se defender e matar, não será punida. Você
acredita que Deus te deu o direito de proteger sua vida como a vida do próximo. Se o
próximo tirar sua vida, você está fazendo uma coisa pela causa de Deus, porque esta
vida não lhe pertence, mas pertence a Deus. A pessoa que está lutando num país onde
ele está vendo sua pátria violada, sua mulher, seus filhos, seus bens, sua riqueza, sua
casa está sendo destruída, sua vida está sendo tirada, ele está lutando não por causa
somente disso, mas também porque Deus deu o direito de lutar para proteger estas
coisas, porque a construção da vida humana é através da proteção destas coisas.
Segundo o Alcorão, aquele que mata uma pessoa é como [se] tivesse matado toda a
humanidade, aquele que dá a vida para alguém, dá a vida para toda a humanidade
(AMIN entrevista agosto de 2004).
25
Finalmente, parece imprescindível sublinhar que, independentemente do juízo moral
frente a esse ato, bem como das distintas posições que existem dentro do mundo islâmico e
fora dele, torna-se de fundamental importância a reflexão em torno de um fato cuja conduta
está intrinsecamente ajustada à lógica cultural e religiosa em que crescem e se educam os
homens e as mulheres-bomba. Dito de outra maneira, mais claramente, é uma possibilidade de
escolha, “normal” e/ou “plausível”. Ou ainda, trata-se de uma disposição apreendida ao longo
de suas vidas, que se ativa frente a determinadas condições sociais e políticas:
A questão política e religiosa no islamismo é o seguinte: é muito junta; junta
no sentido [de que] o islamismo quer construir não um Estado religioso, no
sentido de religiosidade, mas quer construir um Estado justo, um Estado puro,
que tenha harmonia, que tenha solidariedade, objetivo superior e sublime
acima de todos os interesses de cada um, que é adorar a Deus. E essa adoração
faz com que todos, tanto o governante como o cidadão, perante a lei e perante
Deus, sejam iguais. Direitos iguais e obrigações iguais (AMIN entrevista
agosto de 2004).
CONCLUSÃO
Algumas considerações, ao final deste estudo, devem reconhecer primeiramente a
complexidade da abordagem desse fenômeno, que moral e politicamente tem inúmeras
implicações. De modo especial, os obstáculos surgem quando são exigidos princípios como o
da “objetividade” e da “neutralidade” científicas. De fato, parece muito difícil não assumir o
“lugar” que torne explícito o recorte feito – ou melhor, o “lugar” do qual se fala. Com efeito, a
nossa aproximação junto aos representantes da comunidade islâmica em Santa Catarina se dá,
como se sabe, numa perspectiva ocidental de análise dos “nativos”. Entretanto, lembrando a
reflexão de Eduardo VIVEIROS de CASTRO (1998)7 , fizemos o esforço de compreender a
7
Ao falar sobre a atividade antropológica, o autor propõe a superação do jogo discursivo que coloca o
“antropólogo” em situação de vantagem em relação ao “nativo”. Neste sentido, sugere tomar a todos os
envolvidos nessa atividade por “antropólogos”, o que significa admitir uma relação de conhecimento entre
“observador” e “observado” operando uma modificação recíproca que se constitui por “atualização de
virtualidades insuspeitas do pensar”. Assim, a idéia de “relacionalismo” (perspectivismo para Deleuze)
corresponde à afirmação de que “a verdade do relativo é a relação”. Com efeito, a “experiência antropológica” se
torna efetiva não pela explicação do mundo do outro, mas pela possibilidade de multiplicar o mundo do próprio
26
perspectiva do “outro”, sob o seu olhar, e pensá-la numa interlocução com a tradição de
pensamento ocidental. Nesse sentido, o diálogo com Marcel Mauss mostra-se eficaz. Em
outras palavras, o nosso “lugar” privilegia uma interpretação voltada para o confronto a certos
preconceitos e ao moralismo dominantes na visão que se tem construído no Ocidente acerca
de tal fenômeno. Tentamos captar a lógica e o sentido que os mesmos “nativos” dão a esse
fato. Por outro lado, seguindo a contribuição de Mauss, procuramos tomar à mão alguns
elementos da sua teoria, para explicar o sacrifício e a reciprocidade partindo da pertinência
desses temas na experiência de campo e nas leituras feitas sobre a tradição islâmica.
Oportuno refletir que essa aproximação poderia se dar de diversos modos, sobretudo
porque há um debate colocado pelas diferentes formas de violência no mundo contemporâneo,
que desafia as sociedades “modernas” a pensar muitas e complexas questões. A título de
ilustração, podemos citar recente entrevista de Jacques DERRIDA (2004) ao Jornal Folha de
São Paulo quando, interrogado sobre o terrorismo e o medo que este provoca hoje, a despeito
de criticar o uso ideológico desse conceito, indica que o futuro depende da filosofia e dos
novos conceitos criados pelos filósofos – como “um novo conceito do político” e “um novo
direito internacional”; ou seja, ao que tudo indica, as respostas, de uma forma ou de outra,
apontam para a “capacidade” do Ocidente de propor soluções.8 Diferentemente disso,
procuramos alcançar uma visão sensivelmente nova e diversa do olhar de que partimos. Tratase de algo complexo que, a nosso ver, desvela no fenômeno dos “homens-bomba”
significativa riqueza cultural e simbólica da sociedade muçulmana. Por outro lado,
entendemos que é possível fazer uma leitura “total” desse fato, em se considerando a
abordagem maussiana, para compreender essa cultura. Tendo em conta o “fato social total”,
vemos que o fenômeno aqui analisado concentra elementos de toda ordem: religiosos,
econômicos, políticos, sócio-culturais, simbólicos etc. Tais elementos se “ordenam” sob o
contexto contemporâneo da sociedade global. Nesse ponto concordamos com Demant (2004)
“observador”. Tal tarefa se realiza por meio da relação antropológica, cujas “idéias nativas” são tomadas como
conceitos (VIVEIROS de CASTRO, E. O nativo relativo. In: Mana. v. 1, n. 8, fevereiro, 2002, p. 113-148).
8
DERRIDA, J. Jacques sem fatalismos. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de agosto de 2004, p. 1011 (Caderno Mais). Um outro artigo no mesmo Jornal enfatiza ainda mais esse olhar “ocidentalizado” sobre as
questões no mundo contemporâneo, por exemplo, quando afirma: “No caso do Iraque, creio que os americanos
estivessem muito otimistas e cheios de ilusões sobre o que achavam que poderiam fazer no Oriente Médio. Foi
um erro. Creio até que foi um ‘erro honesto’, e não uma mentira total em relação às intenções por trás da guerra.
Mas foi ingenuidade acreditar que, depois de uma ditadura de 30 anos como a que existiu no Iraque, as pessoas
simplesmente iriam aceitar uma democracia rapidamente” (LAQUEUR, W. Guerra sem limites: megaterror está
a caminho, diz analista. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de 2004, p. A20 (Sessão
Mundo, por Fernando Canzian).
27
quando afirma que o “fundamentalismo muçulmano é moderno”. Essa idéia nos parece
bastante relevante para explicar esse fato, uma vez que os “homens-bomba” são produto da
sociedade moderna, de seus conflitos e suas crises. Mas não somente isso: é também a
atualização de uma tradição milenar, que reconstrói seus códigos simbólicos para dar
respostas diante dos desafios do mundo contemporâneo. Certamente, não estamos defendendo
essa “resposta” – a dos homens e das mulheres-bomba – como a melhor opção para os
embates de hoje. Entretanto, é necessário compreender a lógica histórica e cultural que
preside esses fatos no mundo. Como lembra Bourdieu (1996), há “disposições incorporadas”
que delimitam o agir.
Uma tal lógica fundamenta-se na tradição religiosa que, como já foi visto ao longo
deste estudo, é o substrato da cultura dos mulçumanos, do seu pensamento, dos seus valores e
dos princípios que norteiam sua vida. Na prática, essa tradição tem como elemento central o
sentido da submissão, da abnegação, da entrega absoluta a Deus. Daí que o “sacrifício” se
insere nesse universo simbólico como algo incorporado e vigente na vida desses povos. Como
bem sublinha Marcel Mauss (2003), o sacrifício foi conservado e inclusive sublimado pela
teologia cristã – aspecto que, de resto, consideramos perfeitamente aplicável ao islamismo –,
tornando-se uma importante estratégia de ação e de defesa diante de situações consideradas
“perigosas”, naquelas em que o “contra-ataque do caos e o mal requerem incessantemente
novos sacrifícios, criadores e redentores” (MAUSS, 2001, p. 167). Assim, a nossa opção para
interpretar a ação dos “homens-bomba” sob a ótica de Mauss corresponde ao esforço de
colocar novas possibilidades de discussão em torno do tema do sacrifício, cuja inspiração, na
tradição antropológica, permite perceber mais satisfatoriamente o fenômeno. Em outras
palavras, é preciso contribuir com a crítica aos limites do debate político na sociedade
Ocidental, observando o aspecto relacional sob o qual se deve tomar a visão do “outro”. Nesse
caso, a visão do “outro” é plasmada por uma tradição religiosa e cultural bastante relevante no
mundo, e não apenas por aquilo que significa o “ataque dos homens-bomba” à modernidade
ocidental. A própria lógica do fenômeno revela um conjunto simbólico por si só pertinente
aos nossos estudos, como “interlocutor” autônomo e legítimo, para continuarmos avançando,
inclusive quanto à premente discussão política acerca das relações humanas nas sociedades e
nos Estados.
Nessa direção, a análise sugere que o ato dos “homens-bomba” pode ser entendido
como manifestação de um “sacrifício redentor”, o qual irrompe enquanto “resposta cultural” a
28
um contexto de conflito que afeta profundamente a estabilidade social desses povos. Esse
“lugar” de conflito é identificado pelos mulçumanos como “o mal” ameaçador, que atinge
tanto os bens fundamentais (primários) – território, pátria, família, comunidade etc – como
aqueles referentes aos seus grandes ideais (religiosos e/ou de vida) – a construção de uma
“sociedade justa” e a “salvação da humanidade”. Diante dessas forças do “mal” e do “caos”,
eles reagiriam, pois, com as “armas” da tradição: o rito e o sacrifício. Ora, sem dúvida, essa
“ação” mostra-se eficaz. Não apenas como mecanismo inapreensível pela lógica ocidental;
mas, especialmente, a eficácia do “sacrifício” se dá no interior dos povos mulçumanos, que,
como foi sugerido anteriormente, se projetam no “homem-bomba” e se identificam com ele
de algum modo, compreendendo-o como figura mística, “mártir” mesmo, o qual renova e
atualiza o sentido da fé e, de certa maneira, revivifica o “mito” primogênito de Abraão quando
oferece uma prova suprema de entrega e sacrifício incondicionais a Deus.
BIBLIOGRAFIA
Livros
ANTES, Peter. O Islã e a política. São Paulo: Paulinas, 2003.
BLOEMER, Neusa M. Itinerâncias e migrações: a reprodução social de pequenos
produtores e as hidrelétricas. São Paulo: USP, 1996 (tese de doutorado em Antropologia
Social).
29
BONTE, Pierre; IZARD, Michel (Org.). Dictionnaire de l’ethnologie et de l’anthropologie.
Paris: Presses Universitaires de France, 1991.
CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002.
COSTA, Licurgo. O continente das Lagens : sua história e influência no sertão da terra firme.
Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1982 (v. 1, 2, 3, 4).
DEMANT, Peter. O mundo mulçumano. São Paulo: Contexto, 2004.
GAUCHET, Marcel. Le sésenchantement du monde . Paris: Editions Gallimard, 1985.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GEERTZ, Clifford. La interpretación de las culturas. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000.
MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. 2.ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: formas e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
_______. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 183-314.
NABHAN, Neuza Nief. Islamismo: de Maomé a nossos dias. São Paulo: Ática, 1996.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do
Contestado (1912-1916). São Paulo: Ática, 1981.
Artigos
BOURDIEU, Pierre. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom. In: Mana. v. 2, n. 2,
outubro, 1996, p. 7-20.
30
CHOMSKY, Noam. El terrorismo funciona. Disponível em: <http://www.nodo50.org/csca>
(Al-Ahram Weekly, 1 al 7 de noviembre de 2001. Traducción: CSCAweb HYPERLINK).
DERRIDA, Jacques. Jacques sem fatalismos. In: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 15
de agosto de 2004, p. 10-11 (Caderno Mais).
LAQUEUR, Walter. Guerra sem limites: megaterror está a caminho, diz analista. In: Jornal
Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de agosto de 2004, p. A20 (Sessão Mundo, por Fernando
Canzian).
TEIXEIRA PINTO, Márnio. Marcel Mauss: o sacrifício e a dádiva. In: PAZ, Francisco
Moraes (Org.). As aventuras do pensamento. Curitiba: Ed. da UFPR, 1993, p. 139-171.
VELLOSO, Agustín. Los “hombres-bomba” y los derechos humanos en Palestina.
Disponível em: <http://www.nodo50.org/csca> (CSCAweb, 12 de agosto de 2002).
Documentos
Entrevista 1: 31 de julho de 2004. Informante: Abdel Nasser, 11p.
Entrevista 2: 31 de julho de 2004. Informante: Dabus Mohamed, 6p.
Entrevista 3: 6 de agosto de 2004. Informante: xeique Amin, 3p.
Entrevista 4: 9 de agosto de 2004. Informante: xeique Amin, 11p.
Entrevista 5: 20 de agosto de 2004. Informante: xeique Amin, 15p.
Download

O SACRIFÍCIO ISLÂMICO NA CONTEMPORANEIDADE Marta