Democracia como condição do desenvolvimento em Amartya Sen Marcelino Pies1 Resumo: O artigo pretende discutir a relação entre democracia e desenvolvimento tendo como base o livro Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen. O objetivo das reflexões está orientado no sentido de analisar e destacar as condições necessárias para instituir processos de desenvolvimento nas sociedades contemporâneas. Refletimos, a partir da tese de Sem, a respeito da consolidação da democracia, com a implantação de mecanismos de participação social nos diferentes espaços públicos, como um fator essencial para estruturar uma concepção de desenvolvimento centrada em promover lógicas de inclusão e sustentabilidade econômica, social e ambiental de médio e longo prazo. Sen afirma que existe uma relação intrínseca entre democracia e desenvolvimento, sendo a primeira um elemento constitutivo do próprio desenvolvimento, pois amplia as condições de escolha e de liberdade e tem uma contribuição instrumental na construção de valores e normas de convivência social. O desenvolvimento como um processo de afirmação das liberdades humanas contrasta com a visão restrita que identifica desenvolvimento com crescimento econômico. Amartya Sen diz que o desenvolvimento deve ser pensado além da acumulação de riqueza e aumento do PIB e está relacionado com a melhoria da qualidade de vida das pessoas e das liberdades que podem desfrutar. A pesquisa realizada consiste numa revisão bibliográfica. Palavras chave: Democracia; Desenvolvimento; Liberdade; Amartya Sen. Introdução As discussões a respeito da relação entre democracia e desenvolvimento ocuparam um espaço importante na sociedade contemporânea, especialmente nos últimos anos do século XX e os primeiros anos do século XXI. Inúmeras percepções e concepções foram formuladas e disputadas no meio acadêmico, social e político, com visões diferentes e nem sempre conciliáveis, mas que enalteceram a importância deste debate, que, certamente, está longe de ser concluído. 1 Mestre em Ciências Sociais pela UNISINOS. Graduado em Filosofia. Professor da Faculdade Meridional IMED de Passo Fundo. Consultor na área de Planejamento Estratégico. Membro do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, minorias, espaço público e sustentabilidade. E-mail: [email protected] Partimos do pressuposto de que o avanço e a consolidação da democracia, com a implantação de mecanismos de participação social nos diferentes espaços públicos, é um fator essencial para estruturar uma concepção de desenvolvimento centrada em promover lógicas de inclusão e sustentabilidade econômica, social e ambiental de médio e longo prazo. Democracia e Desenvolvimento Um dos autores que contribuiu de maneira efetiva para articular democracia e desenvolvimento foi o economista indiano Amartya Sen. Em seu livro Desenvolvimento como Liberdade (2000) o autor analisa e chama atenção para a importância das instituições deliberativas para a conceituação do desenvolvimento, que é "um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (SEN, p. 52), uma vez que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento. Para o economista indiano, “desenvolver e fortalecer um sistema democrático é um componente essencial do processo de desenvolvimento”. (SEN, 2000, p. 185). O autor afirma que existe uma relação intrínseca entre democracia e desenvolvimento, sendo a primeira um elemento constitutivo do próprio desenvolvimento, pois amplia as condições de escolha e de liberdade e tem uma contribuição instrumental na construção de valores e normas de convivência social. Segundo as formulações de Sen, o desenvolvimento cria condições objetivas para as pessoas ampliarem suas escolhas, pois a democracia possibilita para o conjunto da sociedade uma “dinâmica especial que garante o exercício da liberdade, simbolizada na discussão pública como condição indispensável para todo o seu processo de organização e, especialmente, para as necessárias opções que caracterizam um modelo de desenvolvimento sustentável”. (ZAMBAN, 2012, p. 207). A perspectiva de desenvolvimento formulada por Sen considera a democracia como um elemento constitutivo básico de vencer privações de liberdade, o que requer a interrelação de certas liberdades instrumentais, tais como “oportunidades econômicas, liberdades políticas, facilidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora” (SEN, 2000, p.11). Incorporar essas questões no processo de desenvolvimento é um elemento central para a expansão das capacidades das pessoas. A compreensão do desenvolvimento como uma forma de expressão das liberdades instrumentais e substantivas implica em modificar a maneira de percebê-lo e promovê-lo, pois requer a remoção das privações de liberdade que podem surgir em razão de processos inadequados, ou seja, o desenvolvimento consiste na remoção de diferentes tipos de restrições, como nutrição adequada, saúde de qualidade, educação básica, água potável, liberdades políticas e sociais “como a violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos e civis” (SEN, 2000, p.31). Isso significa dizer que o desenvolvimento depende das ações livres das pessoas. O desenvolvimento como um processo de afirmação das liberdades humanas contrasta com a visão restrita que identifica desenvolvimento com crescimento econômico. Amartya Sen diz que o desenvolvimento deve ser pensado além da acumulação de riqueza e aumento do PIB e está relacionado “sobretudo com a melhoria da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos” (SEN, 2000, p. 29). Assim, podemos afirmar que a percepção ampliada de desenvolvimento incorpora dimensões políticas, econômicas, culturais, históricas, ambientais, ou seja, aspectos que promovem a melhoria da qualidade de vida no sentido de Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. No desenvolvimento econômico não é adequado “considerar apenas o crescimento do PNB ou de alguns outros indicadores de expansão econômica global. Precisamos também considerar o impacto da democracia e das liberdades políticas sobre a vida e as capacidades dos cidadãos” (SEN, 2000, 178). A partir desta formulação de Sen podemos compreender o desenvolvimento com uma visão mais ampla e integral, ou seja, enquanto um processo social influenciado por um conjunto de variáveis que vão desde os condicionantes macroeconômicos, a inclusão social, a participação social nos espaços públicos e o uso racional dos recursos naturais. Numa linguagem mais objetiva poderíamos dizer que desenvolvimento enseja produção com adequada distribuição espacial e pessoal de renda, qualidade de vida com inclusão social e preservação ambiental e, por fim, participação social nos espaços públicos para a definição de políticas e o exercício da cidadania. Existe um círculo virtuoso entre as liberdades políticas, oportunidades sociais e facilidades econômicas. Nesse sentido, Amartya Sen entende que: Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras. (SEN, p. 25-26). Seguindo os passos de Sen podemos afirmar que a efetivação de um sistema democrático deve ser um dos objetivos do desenvolvimento, uma vez que a participação da sociedade através de processos de discussão, escolhas e deliberações pode contribuir eficazmente para a realização de políticas que resultam em melhores condições de vida para a maioria da sociedade, diminuindo a fome e as desigualdades sociais. “Nenhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em nenhum país independente com uma forma democrática de governo e uma imprensa relativamente livre” (SEN, 2000, p. 180). Ao articular a ideia da democracia com o combate das desigualdades sociais, Sen deixa claro que a questão do crescimento econômico e a distribuição equitativa da renda precisam ser percebidas como um meio e causa necessária, mas não suficiente para alcançar as verdadeiras dimensões de desenvolvimento, já que este implica em reduzir as disparidades econômicas, a promoção de qualidade de vida e a expressão das liberdades políticas. Ao que nos parece, Sen não apenas percebe a democracia como a melhor forma de governo, mas também como um importante instrumento que a sociedade tem à disposição para diminuir os riscos de catástrofes coletivas e evitar a fome de sua população porque “certamente é verdade que nunca houve uma fome coletiva em uma democracia multipartidária efetiva” (SEN, 2000, 208). Ou seja, a liberdade política cria condições e oportunidades para evitar catástrofes econômicas, uma vez que as fomes podem ser prevenidas. A democracia apresenta-se, portanto, como um caminho fértil para a construção do desenvolvimento com liberdade. Em outra passagem, no livro Desenvolvimento como Liberdade, Amartya Sen afirma que o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação da liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. A despeito de aumentos sem precedentes na opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo à maioria. (sem, 2000, p. 18). Nesse sentido, podemos afirmar, com Zambam, que o modelo de desenvolvimento possui legitimidade na medida em que tem capacidade de integrar as pessoas, as instituições e os demais agentes sociais na busca da superação das graves desigualdades, simbolizadas no analfabetismo endêmico e nos governos ditatoriais, e na estruturação de uma estrutura de relações políticas que preserve e aprimore a democracia, fomentando os mecanismos de organização, participação e decisão, que fortaleça e incentive a atuação dos seus membros na condição de agentes e o desenvolvimento das capabilidades de cada um, o que aprimora e valoriza o poder de escolha (2012, p. 122). O exercício da democracia, através do voto, da participação dos cidadãos nos espaços de discussão e deliberação pública gera oportunidades para evitar que os agentes governamentais tomem decisões unilaterais e autoritárias em desacordo com as reais necessidades da população. Em contrapartida, a construção de políticas de desenvolvimento com a participação efetiva dos diversos atores cria condições para a democratização das políticas públicas, conferindo poderes efetivos às organizações da sociedade civil na formulação e gestão de políticas que possam alcançar o conjunto da população, especialmente a econômica e socialmente vulnerável. A democracia apresenta-se como um sistema de qualidades funcionais e substantivas em reais condições de propor e construir políticas públicas de desenvolvimento com conteúdo para expandir as liberdades políticas e as liberdades civis, assim como para estender os direitos na perspectiva da distribuição de renda e da promoção de cidadania. O fortalecimento da democracia gera oportunidades para que os cidadãos possam contribuir nos processos políticos de tomada de decisões a respeito dos assuntos de natureza pública. Nas palavras de Sen A questão da discussão pública e participação social é, portanto, central para a elaboração de políticas em uma estrutura democrática. O uso de prerrogativas democráticas – tanto as liberdades políticas como os direitos civis – é parte crucial do exercício da própria elaboração de políticas econômicas, em adição a outros papéis que essas prerrogativas possam ter. Em uma abordagem orientada para a liberdade, as liberdades participativas não podem deixar de ser centrais para a análise de políticas públicas. (SEN, 2000, 134). É preciso ressaltar que as políticas públicas estão “inseridas em contextos políticos e sociais específicos e são disputadas por diferentes atores, com interesses diversificados e distintos graus de poder de influência e cooptação” (BUARQUE et al., 2012, p. 24). Esse nível de disputa e conflitividade reforça ainda mais a questão da participação dos diversos atores nos processos de elaboração de políticas públicas e na melhoria da qualidade das decisões tomadas, pressionando, inclusive, os agentes governamentais a ampliar os espaços democráticos para a melhor elaboração, definição e implementação dessas políticas, deslocando o poder que ora se encontra, prioritariamente, concentrado na esfera do Estado para o âmbito da sociedade organizada e representativa. Esse processo de fortalecimento do cânone democrático também pode contribuir para a efetividade das políticas públicas, uma vez que os sujeitos sociais se comprometem com as mesmas e, simultaneamente, fortalecem as organizações sociais que se articulam em torno dos espaços de participação (GOHN, 2004). A ideia da discussão pública e da geração de conflitos nos processos de discussão das políticas públicas são elementos essenciais para a expressão das liberdades políticas e a promoção da democracia. Estes podem e devem servir para refletir a respeito das estratégias e caminhos a serem seguidos pelos governantes numa determinada sociedade. O consenso fácil pode ser compreendido como um sinal objetivo do autoritarismo, mesmo em pais que tem instituídos democracias formais. Nas palavras de Sen, Os direitos políticos e civis, especialmente os relacionados à garantia de discussão, debate, crítica e dissensão abertos, são centrais para os processos de geração de escolhas bem fundamentadas e refletidas. Esses processos são cruciais para a formação de valores e prioridades, e não podemos, em geral, tomar as preferências como dadas independentemente de discussão pública, ou seja, sem levar em conta se são ou não permitidos debates e diálogos (SEN, 2000, p. 180-181). A percepção de ter na democracia um elemento constitutivo do desenvolvimento levanos a compreensão de que o desenvolvimento não é algo que pode ser definido abstratamente, atemporal, mas, sim, é produzida em processos históricos e culturais que permeia as diferentes nações. Neste processo, inclusive, não podem ser descartados os retrocessos, conflitos e pactos entre os diferentes atores envolvidos, sendo não necessariamente um processo linear que abarca somente os avanços de uma determinada sociedade, bem como não tem um critério único e exato do que venha a ser desenvolvimento. Sen exemplifica esta questão dizendo que o “desenvolvimento de muitas economias envolve a substituição do trabalho adscritício e do trabalho forçado ... por um sistema de contratação de mão-de-obra livre e movimentação física irrestrita dos trabalhadores” (2000, p. 43). Uma das grandes questões enunciadas por Sen é de que as liberdades políticas referem-se às oportunidades que as pessoas têm para determinar “quem deve governar e com base em que princípios, além de incluírem a possibilidade de fiscalizar e criticar as autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, de ter liberdade de escolher entre diferentes partidos políticos, etc.” (SEN, 2000, p. 55). Assim, é “preciso ver a democracia como criadora de um conjunto de oportunidades” que não serve como panaceia para todos os males, mas oferece uma oportunidade para alcançar o que é almejado, de modo que “as liberdades políticas e as liberdades formais são vantagens permissivas, cuja eficácia depende do modo como são exercidas”. (SEN, 182). Parece-nos evidente que a ideia de Sen é que a participação individual e coletiva nos diálogos a respeito dos caminhos do desenvolvimento contribuiu efetivamente para a elaboração de políticas na perspectiva inclusiva e na busca de uma justa e equitativa distribuição dos resultados e benefícios. Assim, o desenvolvimento somente poderia ser alcançado a partir do fortalecimento e da consolidação do sistema de democracia, requerendo uma forte e ativa articulação e participação dos indivíduos, atores coletivos e do próprio Estado. CONSIDERAÇÕES FINAIS As diversas formas de desigualdades existentes não podem ser combatidas tendo o mercado ou o Estado como únicos agentes que determinam o desenvolvimento, sob pena desses manterem a concentração econômica e acirrar as desigualdades. Nesse sentido, é preciso reconhecer a importância da participação do conjunto dos cidadãos e dos atores na elaboração e efetivação de políticas e programas direcionados à redução das desigualdades sociais, econômicas e regionais. Se o desenvolvimento depende da ampliação da democracia é difícil concebê-lo sem a participação efetiva dos cidadãos durante o processo de construção, sendo que a ausência de democracia já é um primeiro fator de desigualdade. Dessa forma, as políticas de desenvolvimento devem estar orientadas pelos valores da democracia e compreender o crescimento econômico a partir do princípio da distribuição de riqueza. Requer também que as pessoas tenham condições de vida digna e o compromisso da sociedade no uso racional e sustentável dos recursos naturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUARQUE, Sérgio et al. Reflexões e proposições de políticas públicas de desenvolvimento territorial. Brasília: IICA, 2012. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v.15). GOHN, Maria da Gloria. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: AZEVEDO Sergio de; RIBEIRO, Luiz; JUNIOR, Orlando Alves dos Santos (Org.). Governança democrática e poder local. Rio de Janeiro: Revan, Fase, 2004. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ZAMBAM, Neuro José. Amartya Sen: Liberdade, justiça e desenvolvimento sustentável. Passo Fundo: IMED, 2012.