PONTO DE VISTA www.urologiaessencial.org.br BRUNO LESLIE Disciplina de Urologia UNIFESP Hospital do Rim e Hipertensão | SP MARIO NOGUEIRA Disciplina de Urologia UNIFESP Hospital do Rim e Hipertensão | SP Transplante Renal Pediátrico Introdução N a insuficiência renal crônica terminal na população pediátrica é um grave problema de saúde pública, sendo causa importante de morbidade e mortalidade nesta faixa etária. Estima-se que a prevalência no estado de São Paulo seja de 23.4 casos por milhão em idade compatível (PMPIC)1, ao passo que, nos EUA, este número é de 84,6 PMPIC e, na Europa, 33.6 PMPIC. Esta diferença revela que ainda existe subnotificação, atraso no diagnóstico em nosso meio e, provavelmente, inclusive mortalidade sem diagnóstico. Interessante notar ainda que, com o avanço da diálise na população neonatal, levando a uma sobrevida de recém-nascidos renais crônicos, a quantidade de crianças necessitando de terapia renal substitutiva tende a aumentar ainda mais. O transplante renal é o tratamento de escolha para a insuficiência renal terminal na 38 UROLOGIA ESSENCIAL V.3 N.2 JUL DEZ 2013 população pediátrica. Em Pediatria, o transplante apresenta benefícios peculiares, relacionados ao crescimento e desenvolvimento das crianças2,3. O transplante, principalmente se realizado precocemente e até os 5 anos de idade, permite que a criança ganhe estatura (medida pela variação do escore Z antes e depois do transplante), além de melhores custos para o sistema de saúde e até mesmo melhor sobrevida. O risco relativo de morte entre pacientes em diálise, esperando na lista de transplante e após a realização do procedimento, foi estudado4. Observa-se que até nos primeiros 6 meses após a cirurgia, quando o risco de morte devido a complicações cirúrgicas e infecciosas é maior, não foi observada diferença significativa entre os transplantados e os pacientes dialíticos. Já após 6 meses da colocação do enxerto, há uma nítida vantagem de sobrevida para os transplantados. As contraindicações absolutas para o transplante TRANSPLANTE RENAL PEDIÁTRICO BRUNO LESLIE MARIO NOGUEIRA na população são muito raras, limitando-se à doença maligna em atividade, à infecção crônica persistente, ao abuso de substância ou a comorbidades psiquiátricas. Todavia, esta modalidade terapêutica deve ser oferecida e estar disponível para todas as crianças renais crônicas terminais. Devido às vantagens do transplante renal em crianças, em outubro de 2009 foi publicado um novo Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes5, priorizando todos os doadores menores de 18 anos para receptores desta mesma faixa etária. Essa nova normatização, além de expandir a oferta de órgãos para a faixa pediátrica, também melhora a adequação de tamanho do rim do receptores com doadores e a oferta de rins com melhor potencial para pacientes com maior expectativa de vida. Em 2012, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)6, foram realizados 377 transplantes renais pediátricos no Brasil, sendo, desses, 87 de doador vivo. A etiologia de insuficiência renal crônica terminal difere muito entre adultos e crianças. Nos adultos, há predomínio de doenças glomerulares, nefropatia diabética e hipertensiva, enquanto as doenças estruturais (uropatias obstrutivas, aplasia/ displasia e bexiga neurogênica) são mais comuns em crianças. Quanto menor a criança, maior a chance de uma uropatia. Na faixa etária de 0 - 1 ano e de 2 - 5 anos de idade, 78% e 66%, respectivamente, apresentam anomalias estruturais do trato urinário7. Assim, o papel do urologista pediátrico não se resume apenas à cirurgia do transplante: devemos participar ativamente no preparo pré-transplante, bem como no seguimento pós-operatório. Preparo Pré-Transplante O preparo para o transplante renal pediátrico deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar, coordenada pelo nefrologista infantil, incluindo enfermeiros, nutricionista, assistente social e urologista pediátrico. O paciente deve ser inscrito para o transplante clinicamente compensado; desta forma, o PONTO DE VISTA tratamento dialítico e/ ou conservador deve ser realizado nas melhores condições possíveis. Particularmente relevante na população pediátrica é o manejo nutricional, além do estado vacinal, cujo calendário deve estar completo antes do transplante, devido à relativa incapacidade de o organismo responder às vacinas após a imunossupressão8. Indica-se o transplante para pacientes com clearance de creatinina menor do que 15 e peso maior do que 10 quilos. Do ponto de vista cirúrgico, o preparo começa com a identificação precoce de possíveis pacientes candidatos ao transplante renal. Alguns princípios devem ser seguidos em relação à preservação da anatomia vascular e urológica: evitar ao máximo o uso de acessos vasculares nos membros inferiores e minimizar o tempo de uso de cateteres umbilicais em recém-nascidos. Os ureteres devem ser preservados, evitando sua remoção nas nefrectomias e realizando reimplantes ureterais somente com indicações precisas. Embora na maioria dos transplantes a reconstrução urinária seja realizada com ureteroneocistostomia, em casos de complicações, o ureter nativo pode ser de grande valia para a correção de fístulas. A nefrectomia pré-transplante pode ser necessária em alguns pacientes e as principais indicações em crianças são: infecção crônica do parênquima renal, proteinúria maciça, hipertensão intratável, rins policísticos. É importante ressaltar que o refluxo vesicoureteral não é indicação absoluta de reimplante ureteral ou nefrectomia na avaliação pré-transplante, e que a correção do refluxo deve ser reservada a casos sintomáticos; com infecção urinária de repetição, o refluxo assintomático deve ser apenas observado. A avaliação do trato urinário inferior é realizada em grande parte dos pacientes, sendo mandatória nos casos de válvula de uretra posterior, bexiga neurogênica e outras anomalias complexas. Utiliza-se do diário miccional ou o diário de cateterismo, uretrocistografia miccional e estudo urodinâmico. Embora reconstruções urológicas possam ser realizadas V.3 N.2 JUL DEZ 2013 UROLOGIA ESSENCIAL 39 PONTO DE VISTA TRANSPLANTE RENAL PEDIÁTRICO BRUNO LESLIE MARIO NOGUEIRA após o transplante9, preferimos realizar todas a cirurgias antes de inscrever o paciente no programa de transplante. Os princípios do tratamento do trato urinário baixo na avaliação pré-transplante não diferem do manejo destas condições fora do contexto do transplante renal, porém, deve-se lembrar de que o enxerto é mais suscetível à descompensação do que os rins nativos. Deve-se assegurar um reservatório com boa complacência (farmacologicamente, com anticolinérgico, ou cirurgicamente, com a ampliação vesical), e um mecanismo de esvaziamento através do cateterismo intermitente limpo (com ou sem um conduto cutâneo continente cateterizável). Transplante e resultados Embora alguns autores preconizem acesso transperitoneal em pacientes menores do que 15 quilos10, preferimos a abordagem retroperitoneal em todos os casos. O retroperitônio é exposto por uma incisão de Gibson ampliada e a principal diferença técnica entre o transplante de adulto e o pediátrico é a topografia das anastomoses vasculares. Estas devem ser realizadas tão proximalmente quanto for necessário, para que se obtenham uma adequação de tamanho entre os vasos do receptor e do doador e uma adequada pressão de perfusão do enxerto. Desta forma, nas crianças menores do que 15 quilos, sempre preferimos o implante da artéria Aorta e da veia Cava distal (figura 1), enquanto que em paciente um pouco maiores, pode-se optar pelas ilíacas comuns e, finalmente, nos adolescentes, pode-se proceder nas ilíacas externas, como se realiza em um paciente adulto. A reconstrução urinária é normalmente realizada sob forma de uma ureteroneocistosmia. Quando a bexiga é favorável, opta-se pela técnica extravesical (Gregoir modificado). Em bexigas desfavoráveis, utiliza-se um reimplante intravesical (Leadbeter- Figura 1 Anastomose arterial na Aorta e venosa na Cava inferior 40 UROLOGIA ESSENCIAL V.3 N.2 JUL DEZ 2013 TRANSPLANTE RENAL PEDIÁTRICO BRUNO LESLIE MARIO NOGUEIRA -Politano). Quando a vascularização do ureter não for ideal, opta-se por anastomosar o ureter nativo do paciente diretamente na pelve renal do enxerto (ureteropielo anastomose). Apesar de ser um procedimento de alta complexidade, o transplante renal em crianças apre- PONTO DE VISTA senta bons resultados. Em uma análise de 40511 casos pediátricos realizados no Hospital do Rim e Hipertensão, observamos uma sobrevida do enxerto de doadores vivos em 1 ano e 5 anos de 97 e 92%, respectivamente. Para doador falecido, 91% em 1 ano e 78% em 5 anos9. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. Koch Nogueira PC, Santis Feltran LD, Camargo MF, Leao ER, Benninghoven JR, Goncalves NZ, et al. Estimated prevalence of childhood end-stage renal disease in the state of Sao Paulo. Rev Assoc Med Bras. 2011 July - August;57(4):436-41. Broyer M, Le Bihan C, Charbit M, Guest G, Tete MJ, Gagnadoux MF, et al. Long-term social outcome of children after kidney transplantation. Transplantation. 2004 Apr 15;77(7):1033-7. Groothoff JW, Cransberg K, Offringa M, van de Kar NJ, Lilien MR, Davin JC, et al. Long-term follow-up of renal transplantation in children: a Dutch cohort study. Transplantation. 2004 Aug 15;78(3):453-60. Chen A, Martz K, Kershaw D, Magee J, Rao PS. Mortality risk in children after renal allograft failure: a NAPRTCS study. Pediatr Nephrol. 2010 Dec;25(12):2517-22. Registro Brasileiro de Transplantes 2009, www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/Pediatrico/Pediatrico_2009.pdf. Registro Brasileiro de Transplantes 2012 ABTO, em www.abto.org. br/abtov03/Upload/file/RBT/2012/pediatrico2012.pdf 7. NORTH AMERICAN PEDIATRIC RENAL TRANSPLANT COOPERATIVE STUDY (NAPRTCS) 2004 Annual Report Renal - Transplantation, Dialysis, Chronic Renal Insufficiency. Em: http://spitfire.emmes. com/study/ped/resources/annlrept2004.pdf 8. Neu AM, Fivush BA. Recommended immunization practices for pediatric renal transplant recipients. Pediatr Transplant. 1998 Nov;2(4):263-9. 9. 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