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A presença de uma aluna surda em uma turma
de ouvintes – possibilidade de (re)pensar a
mesmidade e a diferença no cotidiano escolar
Sampaio, Carmen Sanches
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Zeitschriftenartikel / journal article
Empfohlene Zitierung / Suggested Citation:
Sampaio, Carmen Sanches: A presença de uma aluna surda em uma turma de ouvintes – possibilidade de (re)pensar
a mesmidade e a diferença no cotidiano escolar. In: ETD - Educação Temática Digital 7 (2006), 2, pp. 47-57. URN:
http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-ssoar-101570
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ARTIGO
Literatura, Letramento e Práticas Educacionais
Grupo de Estudos e Subjetividade
A PRESENÇA DE UMA ALUNA SURDA EM UMA TURMA DE
OUVINTES – POSSIBILIDADE DE (RE)PENSAR A MESMIDADE E A
DIFERENÇA NO COTIDIANO ESCOLAR
Carmen Sanches Sampaio
RESUMO:
A presença de uma aluna surda em uma turma de crianças ouvintes em uma escola pública do Estado
do Rio de Janeiro tem instigado um grupo de professoras alfabetizadoras a invistir na realização de
uma prática pedagógica que transforme a diferença – que nos constitui – em vantagem pedagógica. A
tão proclamada homogeneidade – nos modos de aprender e ensinar, nos modos de lidar com as
crianças, nas práticas avaliativas, etc – vem dialogando com a heterogeneidade real de toda sala de
aula, possibilitando o aprendizado, nada fácil, de compreender a singularidade e a pluralidade como
traços constituintes do processo ensinoaprendizagem. Nesse processo algumas questões têm surgido:
como pensar uma escola que, de fato, reconheça as singularidades lingüísticas e culturais dos alunos e
alunas? Como reconhecer politicamente a surdez como diferença? É possível compreender e lidar
com a diferença, no cotidiano escolar, no sentido de praticar ações pedagógicas que não invistam na
nomeação e controle do outro? Ou a mesmidade da escola proíbe a diferença? Esse texto socializa e
discute limites e possibilidades de uma ação pesquisadora que procura, com as professoras, investir
na construção de um currículo escolar que não seja marcado pelo fracasso e exclusão cotidiana de um
número significativo de alunos e alunas das classes populares.
PALAVRAS-CHAVE:
Surdez; Educação; Inclusão
THE PRESENCE OF A DEAF STUDENT AMONG LISTENERS IN A
CLASSROOM – POSSIBILITY OF (RE)THINK THE SIMILARITIES
AND DIFFERENCES AT SCHOOL
ABSTRACT:
The presence of a deaf student in a classroom with listener children in a public school in the state of
Rio de Janeiro – Brazil has been caused a reaction in a group of literacy teachers of investing in a
pedagogical way that changes the difference – what consists for us – into a pedagogical advantage.
The wide announced equality – in modules of learning and teaching, in modules of dealing with kids,
in evaluation routines, etc – Comes dialoging with the real heterogeneous classroom world, showing
the possibility of learning, which is not easy at all, of understand the pluralism and the monism as
parts of the teaching-learning process. In this process some points must be discussed such as: How
thinking of a school that really recognizes the students’ linguistics and cultural differences? How to
politically recognize the deafness? Is it possible to understand and deal with the difference, at school,
in a way of not use pedagogical actions that don’t consist in naming and control of the other/the
different? Or the similarities at school block the “difference”? This text socialize and discuss the
limits and the possibilities of a research action that wishes, along with the teachers, invest in a
construction of a school résumé that don’t be seen by the failure and exclusion of a significant
number of students of lower classes.
KEY WORDS:
Deafness; Education; Inclusion
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Investigo1, em uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, o processo
alfabetizador experienciado por uma turma formada por crianças ouvintes e uma criança
surda.
A presença, nesta escola, de uma aluna surda tornou mais visível, para algumas
professoras, a característica de toda sala de aula – a diferença. A surdez dessa aluna não pode
ser ignorada e nem tão pouco facilmente apagada como tantas outras diferenças constitutivas
do espaçotempo escolar. Seu modo de ser – alguém que não escuta e não se comunica através
da linguagem oral – tem desafiado a escola a pensar e praticar modos outros de se relacionar e
compreender a alteridade. Nesse sentido, algumas questões têm surgido: como pensar uma
escola que, de fato, reconheça as singularidades lingüísticas e culturais, ao invés de apenas se
propor a incluir uma aluna surda? Como reconhecer politicamente a surdez como diferença?
Quais as conseqüências desse reconhecimento para o currículo escolar? É possível
compreender e lidar com a diferença, no cotidiano escolar, rompendo com um discurso, ainda
hegemônico, do “respeito” e da “tolerância” à diferença que termina apontando para ações
pedagógicas que investem na nomeação, discriminação, seleção, domesticação e controle do
outro/do diferente? (SKLIAR, 2003).
É necessário dizer que essa escola já conviveu com um índice elevado de crianças
retidas ao final da 1ª série do Ensino Fundamental – em torno de 40%. Insatisfeitas com essa
realidade algumas professoras começaram a estudar e a investigar a própria prática
pedagógica deslocando o foco das atenções para o processo de ensinar e aprender, para o
processo alfabetizador vivenciado pelas crianças e professoras2. Nesse processo perguntas e
mais perguntas foram surgindo: por que um número elevado de crianças não aprende a ler e a
escrever mesmo sendo alunos e alunas da escola desde a Educação Infantil e com a promoção
automática garantida ao final da classe de alfabetização? Como compreendemos3 os alunos e
1
Coordeno o projeto de pesquisa: A formação da professora alfabetizadora no exercício da docência e a
construção cotidiana de uma escola inclusiva e democrática. Essa ação investigativa conta com a participação
de duas alunas do Curso de Pedagogia/UniRio: uma, bolsista IC/CNPq e a outra, bolsista voluntária.
2
Há mais de dez anos que um grupo de professoras alfabetizadoras dessa escola, grupo do qual sou parte, vem
estudando, investigando e, como diria Jorge Larrosa (2003), conversando sobre a prática
pedagógica/alfabetizadora realizada cotidianamente no dia-a-dia da sala de aula. Além dos espaçostempos
institucionais acontece, uma vez por mês, aos sábados, fora do horário regular de trabalho, os encontros do
GEFEL (Grupo de Estudos de Formação de Leitores e Escritores). Nesses encontros ampliamos, de modo
(com)partilhado, nossas compreensões sobre o processo ensinoaprendizagem através do movimento de articular
práticateoriaprática.
3
Utilizo, ao longo do texto, a 1ª pessoa do plural, pois o falar da professora, de seus saberes e fazeres falo
também de mim, pesquisadora vinda da universidade, mas acima de tudo, professora alfabetizadora dos anos
iniciais da Educação Básica que por mais de 15 anos fui. Muitas das dúvidas das professoras foram, em algum
momento, dúvidas minhas e muitas das perguntas que hoje nos fazemos, ainda não tenho as respostas, mas
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alunas? Como compreendemos o processo ensinoaprendizagem? Como temos alfabetizado?
A prática alfabetizadora, implementada na escola, garante que as crianças compreendam as
funções da linguagem escrita na sociedade na qual vivemos? As atividades de leitura e escrita
articulam-se com as práticas sociais de leitura e escrita? Como temos lidado com as crianças
que não aprendem no tempo da escola, crianças que não acompanham a turma? O que
significa não acompanhar a turma? Como lidar com os diferentes ritmos de aprendizagem,
diferentes modos de compreender o ensinado, diferentes modos de se relacionar com o
conhecimento, com as pessoas, com o mundo, revelado pelos alunos e alunas? É possível lidar
com a(s) diferença(s) fugindo da hegemonia da normalidade que contribui, decididamente,
para a utilização da diferença como justificativa para selecionar, classificar e excluir os alunos
e alunas que não aprendem, não lêem, não escrevem, não se comportam como a maioria?
Essas perguntas, mais do que as respostas, pois como nos fala Nuria Pérez (2001) é
necessário mantermos viva a pergunta porque mesmo que não tenhamos a resposta, obriganos a continuar perguntando, têm possibilitado o investimento na realização de uma prática
pedagógica que transforme a diferença – que nos constitui – em vantagem pedagógica. A tão
proclamada homogeneidade – nos modos de aprender e ensinar, nos modos de avaliar, nos
modos de interagir com o(s) outro(s), nos modos de planejar, de selecionar os “conteúdos”
escolares etc – vem, aos poucos, dialogando com a heterogeneidade real de toda sala de aula,
possibilitando o aprendizado desafiador de compreender a singularidade e a pluralidade como
traços constituintes do processo ensinoaprendizagem. Um aprendizado nada fácil para quem
aprendeu, ao longo da sua formação, a compreender a diferença como “deficiência”, como o
que foge à norma, como desvio, como falta, como impossibilidade devendo, portanto, ser
controlada.
A presença da aluna surda na escola é, para algumas professoras, a possibilidade de
fortalecer, nos diferentes espaçostempos escolares, ações pedagógicas comprometidas com a
construção de um currículo escolar que “mude o foco de um pressuposto de semelhança para
o reconhecimento da diferença” (BURBULES, 2003, p.160) de modo que a preocupação
excessiva em nomear e apontar os “diferentes possa se deslocar para o movimento de melhor
compreender como as diferenças nos constituem como humanos, como somos feitos de
diferenças. E não para acabar com elas, não para as domesticar, senão para mantê-las em seu
mais inquietante e perturbador mistério”. (SKLIAR, 2005, p. 59).
juntas, de modo (com)partilhado temos investido na construção de uma escola mais democrática e mais solidária
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A partir das discussões realizadas por Skliar (1998, 1999, 2001, 2003, 2005) sobre
surdez, educação, alteridade e diferença, discussões inquietantes, instigadoras e provocadoras
pretendo, nesse texto, socializar e debater limites e possibilidades de uma ação pesquisadora
que procura, com as professoras de uma escola pública, investigar como lidamos, no dia-a-dia
da escola, com a questão da surdez como diferença, questão nova e desafiadora para os
profissionais da escola investigada. Outros autores e autoras farão parte dessa discussão
ampliando as possibilidades de pensar (e praticar) uma educação, uma escola cuja mesmidade
não proíba a diferença do outro.
Em 2003, participando de um Conselho de Classe a fala, angustiada, de uma das
professoras alfabetizadoras (professora da 1ª série do Ensino Fundamental), chama minha
atenção:
Eu não sei o que fazer (...) Há quase dois anos estou com Carla4. É muito difícil,
para mim, trabalhar com uma aluna surda! Como avaliar? Ela é uma criança alegre,
se dá bem com todos os colegas, mas... A turma está lendo, menos ela.
Sem experiência no trabalho com crianças não ouvintes, a professora se sentia
desamparada, despreparada e sem condições de avaliar a aluna. O que fazer? Como agir?
Como alfabetizar uma aluna que não ouve se o dizer, o pensar e o conhecer, no dia-a-dia da
sala de aula, nessa escola, como em tantas outras, são mediados pela oralidade, linguagem
ainda privilegiada no processo de ensinar/aprender? Sua fala/pedido de socorro ecoava pela
sala de reunião mediante o silêncio existente. A responsabilidade pelo trabalho com essa
aluna era, basicamente, dela, professora de turma, pois as crianças que não “acompanham a
turma”, as que não aprendem e/ou não se comportam de acordo com as expectativas da
escola/professoras, as que fogem dos padrões compreendidos como “normais”, são
selecionadas, destacadas e encaminhadas para atendimentos “especiais” dentro e/ou fora da
escola. Com essa aluna não era diferente5. A força da armadilha que nos captura para a
compreensão da diferença como deficiência é forte.
de modo que todos os alunos, alunas, professoras e pesquisadoras nela possam aprender e ensinar.
4
Como não discuti com as crianças da turma investigada, sobre o uso ou não de seus nomes próprios nos textos
produzidos e publicados, opto por alterar o nome dessa aluna.
5
Uma professora surda, oralizada, que atua no Curso de Formação de Professores (Curso Normal Superior de
Educação) da própria escola, uma vez por semana, fora do horário regular das aulas, trabalhava com essa aluna,
no intuito de alfabetizá-la. Essa mesma professora, uma vez na semana, por um período de duas a três horas,
participava das atividades realizadas em sala de aula.
50
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Boaventura de Sousa Santos, ao discutir as duas formas principais de conhecimento da
modernidade, o conhecimento emancipação e o conhecimento regulação (SANTOS, 2000),
nos ajuda a compreender esse modo de lidar com a diferença no dia-a-dia da sala de aula. Para
o conhecimento-regulação, que tem a primazia sobre o conhecimento emancipação, a ordem
é a forma hegemônica de saber. A diferença, para o conhecimento regulação, representa o
caos, a desordem - forma hegemônica de ignorância. Por esse motivo deve ser evitada,
silenciada e até apagada.
A diferença, por ser uma forma de complexidade (BRIGGS;PEAT, 2001), anuncia
imprevisibilidade e indeterminação nos processos educativos, gerando sentimentos de
apreensão e incerteza nos tempos e espaços escolares marcados pela busca da
homogeneidade. Sob o olhar da regulação, as associações estabelecidas entre diferença e
caos, diferença e desordem, diferença e turbulência, sinalizam impossibilidade de ensino e
aprendizagem. A heterogeneidade real de toda sala de aula, rica característica dos processos
sociais, passa a ser negligenciada pela escola e vivenciamos, cotidianamente, o que nos fala
Skliar: “está mal ser aquilo que se é ou que se está sendo” (SKLIAR, 2003). Nesta
perspectiva, essa aluna surda, como tantas outras alunas e alunos ouvintes – os PNEs
(Portadores de Necessidades Especiais), como têm sido nomeados - precisam de correção,
normalização, medicalização. Não foi por acaso que a mãe da aluna não ouvinte chegou a
explicitar, algumas vezes, o desejo de que sua filha voltasse a ouvir6.
Como a sociedade, a escola, na perspectiva teórica do conhecimento regulação
termina por investir, até sem perceber, em ações cotidianas que naturalizam a relação normal
– anormal. Sem questionar essa e outras premissas dualistas – corpo/mente, natureza/cultura,
objetivo/subjetivo, razão/emoção, bom/ruim, certo/errado, etc – tornam-se familiares. A
seleção, nomeação e discriminação dos estudantes portadores de necessidades especiais
durante as discussões pedagógicas realizadas são compreendidas, por um grupo significativo
de professoras, como óbvia e natural. E, na maior parte das vezes, a solução encontrada é o
encaminhamento para os especialistas de modo que os casos possam ser entendidos e
administrados. Enquanto isso, no cotidiano escolar, essas crianças e jovens são tolerados sob
o discurso do respeito à diversidade. Desse modo,
6
Carla ficou surda um pouco antes de completar um ano de idade em decorrência da meningite que contraiu.
Com surdez pré-lingïística, pois não se apropriou da linguagem oral, chegou na escola, com cinco para seis anos,
sem utilizar a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).
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os múltiplos recortes de identidade, cultura, comunidade, etnia etc (...) são definidos
somente a partir de supostos traços negativos, percebidos como exemplos de um
desvio de normalidade, no pior dos casos, ou de uma certa diversidade, no melhor
dos casos. (SKLIAR, 1998: 12,13)
Uma certa diversidade que termina por mascarar/ocultar as diferenças, pois nossa
aceitação, nosso respeito, nosso reconhecimento para com o outro – o diferente/anormal - é
um pressuposto, uma atitude necessária de modo a permitir/tolerar que o outro seja o que é
ou, através da nossa intervenção e generosidade, o tornemos normal, igual a nós. E, sob esta
ótica, a mesmidade da escola termina por “proibir” a diferença do outro.
(...) mantém-se uma lógica de relação de poder entre quem hospeda – que é quem
estabelece as leis de composição da diversidade, os fluxos de migração, as relações
comunitárias do trabalho etc. – e quem é hospedado – que, para tal efeito, deve, na
maioria dos casos, desvestir-se de suas tradições, desculturalizar-se, descomunalizarse, descorporalizar-se, destituir-se como sujeito para ocupar o lugar da diversidade.
(SKLIAR, 2003, p. 206)
Penso que o grande desafio da escola, ou seja, nosso necessário e emergente
aprendizado é, compreender, e não apenas aceitar, como nos fala Humberto Maturana (1999),
o outro como legítimo outro e, nesse processo, procurar se afastar, mesmo sabendo da
dificuldade, de uma relação de colonialidade com a alteridade. O antes afirmado retorna em
forma de pergunta: a mesmidade da escola “proíbe” a diferença?
O cotidiano escolar, espaçotempo de complexidade, multiplicidade, incerteza e
possibilidades, ao contrário do modo como aprendemos a compreendê-lo: definido pela
ordem, regularidade, previsibilidade e repetição pode revelar, nas ações mais rotineiras, a
tensão entre regulação e emancipação. Como nos alerta Boaventura de Sousa Santos (2000),
é necessário e urgente perseguir a revalorização, reinvenção e primazia do conhecimento
emancipação, uma das tradições marginalizadas na modernidade ocidental, sobre o
conhecimento regulação. Essa ação implica na (re)valorização da solidariedade como forma
de saber (SANTOS, 2000) subsidiando um fazer pedagógico que não se compreenda o outro
como um outro incompleto, insuficiente e que deve, portanto, ser corrigido e normalizado.
Neste sentido, tem sido instigante, provocador e um grande aprendizado a tentativa, cotidiana,
de lidar com a surdez como diferença rompendo com uma concepção, ainda hegemônica, de
localizar a surdez dentro dos discursos e práticas vinculadas a deficiência. As investigações,
em sala de aula, têm sinalizado que as crianças precisam de ajuda, de atendimentos variados e
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singulares, que aprendem em tempos e por caminhos não homogêneos, independentes de
serem ouvintes ou surda.
A professora que trabalha com a aluna surda, desde 2004, quando, juntas, começamos
a investigar o processo alfabetizador vivenciado por esta aluna e seus colegas ouvintes,
desenvolve uma ação alfabetizadora que investe na dialogicidade, na produção de textos
escritos e orais, de modo que as crianças possam aprender a ler e a escrever usando,
praticando e experienciando a linguagem escrita, procurando fugir de uma prática pedagógica
que tem a memorização e a repetição como eixos do trabalho. Carla, provocada a participar
das atividades realizadas, dentro e fora da sala de aula, foi evidenciando a subordinação do
currículo ao ensino da oralidade e, ao mesmo tempo, foi instigando-nos a pensar e a
compreender a surdez como uma experiência visual, embora se comportasse como se ouvinte
fosse, pois praticamente não convivia com surdos. Várias vezes, quando solicitada a ler, lia
emitindo sons incompreensíveis e se posicionando (desde segurar o papel ou livro, até o
movimento com o corpo) como seus colegas ouvintes faziam. Em casa e na escola usava
gestos mímicos, desenhava, dramatizava, recorria a datilologia (dizia as palavras utilizando o
alfabeto manual em Língua de Sinais), usava sinais (itens da LIBRAS). Ela e os que com ela
conviviam usavam de todos os recursos possíveis de modo a garantir a comunicação.
Vivíamos, na escola, o destacado por Regina Maria de Souza (1998):
(...) professores e alunos não falavam, via de regra, a mesma língua, isto é, não havia
um sistema lingüístico comum a ser compartilhado. Em muitas situações não se
poderia afirmar que o educando fosse usuário de uma língua. De fato, as crianças e
mesmo os adultos surdos muitas vezes chegavam às escolas trazendo um “sistema”
de comunicação muito simples, fortemente alçado na pantomima e em gestos de
apontar. Outros pareciam ter estabelecido com os pais uma forma de comunicação
mais complexa, composta por gestos e sons, mas que por conceito não poderia ser,
nem substituir, uma língua. (SOUZA, 1998, 10)
Procurávamos, guiadas pela opção política de aprender com a diferença e não isolar e
destacar os diferentes, não “falar” com Carla isolando-a das outras crianças e, também de não
achar natural que ficasse, como algumas vezes presenciei, no ano anterior, à parte do
discutido, pensado e trabalhado em sala de aula. As crianças eram (e são), nesta turma,
provocadas a tomar decisões e a interferir nas propostas a serem realizadas pelo grupo; a
dizer, escrever, desenhar, representar o que pensam e sentem; a discutir, coletivamente, os
conflitos existentes; a revelar seus saberes e ainda não saberes (ESTEBAN, 2001); a ajudar os
colegas, a aceitar ajuda no desenvolvimento das atividades. Algumas professoras dessa
escola, como a professora de Carla, procuravam atuar na zona de desenvolvimento proximal
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das crianças (VYGOTSKY, 1989, 1991) investindo nos conhecimentos prospectivos –
conhecimentos potenciais – em vez dos já consolidados.
A investigação e as discussões realizadas sobre esse processo foi tornando mais
evidente a necessidade da presença regular, em sala de aula, de uma professora e/ou estagiária
usuária da língua de sinais. Discordávamos, radicalmente, do que nos disse a fonoaudióloga
que trabalha com Carla “vocês não têm que se esforçar para entendê-la, como estão fazendo,
ela é que tem de se esforçar para entender vocês, pois está entre ouvintes”. Mesmo iniciantes
na discussão (e investigação) sobre surdez e educação procurávamos estabelecer, com clareza,
as fronteiras políticas da proposta educativa em construção – não queríamos produzir e
reproduzir uma visão colonialista sobre a surdez, desenvolvendo a idéia da supremacia do
ouvinte (evidente na fala da fonoaudióloga, por exemplo).
O uso cotidiano, em sala de aula, do português – oral e escrito – e da língua de sinais,
pelas crianças, professoras, alunas bolsistas, pesquisadora se insere, para nós, no que Skliar
(1999) denomina de educação bilíngüe numa perspectiva crítica: a possibilidade de
transformação das relações sociais, culturais e institucionais através das quais são geradas as
representações e significações hegemônicas/ouvintistas sobre a surdez e sobre os surdos. Não
podemos esquecer que “a própria organização do currículo e da didática, na escola moderna,
foi pensada e colocada em funcionamento para, entre várias outras coisas, fixar quem somos
nós e quem são os outros”. (VEIGA-NETO, 2001, p. 111).
A pressão exercida junto a Gerência de Inclusão7 e equipe técnico-pedagógica da
escola garantiu, quase no final do 1º semestre do ano passado (2005), a contratação de uma
professora surda para atuar nesta turma.
A surpresa vivenciada por Carla foi evidente. Nesta época, tendo ampliado seus
conhecimentos sobre a língua de sinais, com as alunas bolsistas que, duas vezes na semana
estavam em sala de aula e, também, com a fonoaudióloga8 que a atendia, perguntou,
utilizando a língua de sinais, para uma das alunas bolsistas se surdo podia ser professora.
Interagir com a professora surda, mais do que qualquer outra experiência vivida no cotidiano
da escola, foi crucial para que começasse a se perceber como surda, pois foi o encontro
surdo/surdo.
7
Órgão que presta assessoria às escolas da rede FAETEC – Fundação de Apoio à Escola Técnica – (Secretaria
de Ciência e Tecnologia do Estado do de Janeiro) oferecendo cursos, orientando e realizando discussões que
visam a implementação de políticas públicas de inclusão de estudantes com necessidades educativas especiais
nas escolas regulares.
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(...) Nos contextos sociais persiste a idéia errônea de uma representação iluminista
do normal, do perfeito, do ouvinte. A sociedade, a família, a escola continuam
traçando representações contra qualquer tipo de contestação possível. Os surdos,
nessa situação, vivem em condições de subordinação e parecem estar vivendo em
uma terra do exílio (...) Este é o ambiente onde vive a grande maioria dos surdos que
são filhos de pais ouvintes. È o ambiente da cultura dominante. A consciência de
pertencer a uma comunidade diferente é uma possibilidade de articular resistências
às imposições exercidas por outras comunidades ou grupos dominantes. Sem essa
consciência “oposicional”, o surdo viverá no primeiro e único lugar possível, onde
somente poderá desenvolver mecanismos de sobrevivência. A transição da
identidade ocorre no encontro com o semelhante, em que se organizam novos
ambientes discursivos. È o encontro do surdo/surdo. (SKLIAR, 1999, p. 11).
Temos experienciado o que Wrigley (1996) citado por Skliar (1999) chama de a
invenção quotidiana da surdez. Carla começou a se narrar de modo diferente. Começou a
compreender os surdos também de uma outra forma percebendo-os e, desse modo percebendo
a si mesma, como sujeitos potentes e capazes. A cada dia que passa, usa e pratica com mais
fluência a língua de sinais. Ao contrário do já vivenciado, inúmeras vezes, em sala de aula, lê
os textos que produz e os trabalhados em sala utilizando a língua de sinais, sem inibição. Seus
colegas de turma estão também aprendendo, como nos falou um deles, a falar com as mãos,
como Carla. Mas, estão acima de tudo, aprendendo a se relacionar com a surdez a partir da
perspectiva teórica, epistemológica e política da diferença e não do ponto de vista, ainda
hegemônico, da deficiência.
A presença na escola de uma professora surda tem evidenciado a dificuldade
encontrada, pelas próprias professoras, em lidar com essa questão. Era comum, no ano
passado, isto é, em 2005, nas reuniões pedagógicas, se a aluna bolsista, usuária da língua de
sinais não estivesse presente, a exclusão da professora surda. Inexistia a preocupação em falar
mais devagar (essa professora é oralizada e “lê” os lábios) e de frente para professora surda ou
uma das professoras da escola, usuária da língua de sinais, realizar a “tradução” das
discussões em andamento. Mesmo sem perceber, a própria professora surda e a aluna bolsista,
por várias vezes, se colocavam em uma posição física na sala de reuniões mais afastadas do
grupo e fora da roda de discussão. Inclusive a própria professora surda ao ser solicitada a
falar, por mais de uma vez resistiu alegando não ter o que dizer. Eu e Ana Paula, professora
de Carla, temos insistimos e a provocamos para que participe efetivamente das discussões e
estudos realizados, embora a língua pela qual se expressa e constrói conhecimentos não seja a
8
Embora a ação tenha como foco a oralização e leitura labial, Carla tem acesso ao aprendizado da língua de
sinais durante as sessões de terapia.
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língua dos professores e profissionais ouvintes da escola. Skliar (1999, ps 24-25) tem nos
ajudado a compreender que
o problema não é a oposição entre a língua oral e a língua de sinais. A questão deve
ser revertida para a seguinte proposição: a língua dos ouvintes não é a língua dos
surdos. Não é o fato de que os surdos utilizam uma outra língua que deve ser
discutido, mas o poder lingüístico dos professores e o processo conseqüente de
deseducação.
A investigação com o cotidiano, a partir de uma perspectiva complexa, possibilita a
percepção e o aprendizado de que a mesmidade da escola proíbe e não proíbe a diferença,
pois a permanente tensão entre os conhecimentos regulação e emancipação, presente no
cotidiano escolar, revela o confronto entre ações que legitimam relações com o outro que, a
todo momento, demonstram esta mal ser o que se está sendo ou está bem ser o que nunca
poderá ser e, ações com a alteridade que nos desafiam a experienciar uma educação, uma
relação pedagógica inspirada em dois princípios radicalmente novos: “não está mal ser o que
se é e não está mal ser além daquilo que já se é”. (SKLIAR, 2003: 209).
REFERÊNCIAS:
BURBULES, N. C. Uma gramática da diferença: algumas formas de repensar a diferença e a
diversidade como tópicos educacionais. In: GARCIA, R. L.; MOREIRA, A. F. B. (Org.).
Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003.
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CARMEN SANCHES SAMPAIO
Professora da Escola de Educação da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Pesquisadora do Grupalfa:
Grupo de Pesquisa: Alfabetização dos alunos e alunas das
classes populares/UFF. Participante do GES – Grupo de
Estudos Surdos e Educação/Unicamp.
E-mail: [email protected]
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A presença de uma aluna surda em uma turma de ouvintes