Sobre a plástica do corpo pele e plástica Kathia Castilho Entendemos o corpo humano como uma estrutura de linguagem que o homem arranja, decorando e ornamentando por meio das relações combinatórias. O encadeamento das combinatórias forma um texto ou um discurso que se manifesta nas interações sociais. Em termos semióticos, o corpo é um sujeito que age e esse seu fazer o qualifica como sujeito competente. É bem provável que as primeiras marcas sobre o corpo tenham acontecido acidentalmente - durante uma luta com um animal feroz, contra o inimigo ou qualquer outro ato de bravura - que foi considerado como marca de valor da performance do sujeito. Atribuía-lhe um reconhecimento social perante os outros da coletividade. O fato é que os sinais, as marcas e as cicatrizes acabam por se apresentar como um traço distintivo caracterizador da situação discursiva que significam por estarem em relação ao corpo. Tal inscrição empenha-se em substituir e transpor uma ação (símbolo do ato de bravura, sucesso na caça, número de conquistas etc.) que ressemantiza o sujeito tornando-o diferente dos membros do grupo. Ele possui um objeto de valor, já que realizou uma performance. Por exemplo, sabe-se que, para os povos guerreiros, as cicatrizes conquistadas em combates contra inimigos consistiam em motivos de glória e honra. Portanto, eram tão condecorativas como hoje são as medalhas de honra. Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi Corpo Feminino e Masculino Gunter Haaf. A Origem da Humanidade. Círculo do Livro. 1979. O corpo impõe-se como uma estrutura física e sensível que se apresenta coberto por uma pele que o “veste”, selando-o (limite dérmico). A pele constitui, então, a primeira versão de revestimento que o corpo traz naturalmente consigo. É nessa pele que o homem, desde o início dos tempos, inscreve suas marcas. O objetivo é construir sentidos para o seu ser e estar no mundo. Tais sentidos transformam-se no ritmo das mudanças da segunda pele que, como veremos, se faz em consonância com as variações de tempo e de espaço. 1 Marcas no rosto feminino Tribo do norte da Africa. Prudence Glynn. Skin to Skin. Oxford University Press.1982. Cerimonial paramentado. Prudence Glynn. Skin to Skin. Oxford University Press.1982. Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi No universo animista dos primeiros homens, as pinturas ou as incisões são corporais. Isso significa que o primeiro suporte para a codificação ou representação usado pelo homem foi o seu próprio corpo. As pinturas e as tatuagens reproduzem, exatamente, essas inscrições de distinção que relatam episódios ligados às atividades de força e de bravura. Assinalam no próprio corpo o número de inimigos mortos, feridas de guerra etc. Nesse âmbito, esses elementos formam e explicitam uma narrativa. 2 Sobre os corpos de alguns povos “primitivos” eram incisos não só os atos heróicos, como também atos considerados errôneos ou indignos. Isso mostra-nos que as marcas também podiam possuir um caráter punitivo ou, até mesmo, marginalizador do sujeito em sua coletividade. Nesse caso, a tatuagem expõe para sempre a culpa do sujeito, na medida em que, como inscrição permanente, obriga-o a carregá-la em seu próprio corpo, assinalado por um valor negativo que colocava em alerta os outros componentes do grupo em relação a sua pessoa. Considerando esses aspectos que nos reportam a um universo arcaico (no qual as marcas corporais e suas significações já assumiam uma condição de elemento caracterizador, adjetivador e designador), cabe salientar que a possibilidade de entendermos o corpo como um texto gestual e visual com articulações com outros textos (como o verbal e o oral) nos leva ao estabelecimento de laços com o contexto no qual esse encontra-se inserido. As crenças, os usos, os costumes e os valores socioculturais são capazes de determinar vários aspectos do ser social, especificando o tipo de atuação, função, deveres, importância e, dentre outros aspectos, competência qualificadora que o sujeito possui para atuar em seu meio. Nesse âmbito, o corpo é tanto veículo e suporte, quanto significação. Ele participa de sua manifestação, é o sujeito ou objeto da ação, um dado circunstancial do tempo e do espaço. A ordem, as tarefas e as funções que garantem a estabilidade social nas sociedades são apreendidas por meio de códigos visuais. Depois, são confirmadas por outras linguagens. O corpo, entendido como suporte, faz circular essas organizações e possibilita que sejam constantemente evocadas de um modo sensível. Sobre a pele de cada indivíduo, está inscrito um conjunto de textos que permitem o norteamento e a orientação que se refere à posição individual do sujeito frente ao coletivo, do privado em relação ao público. Esse conjunto textual tem, portanto, a função de reativar um clima de consenso social através de um pacto coletivo, conforme também nos afirma C. Campelo: “A identidade cultural do indivíduo (em termos semióticos, um sujeito) está inscrita no corpo e esta identidade é visível, estampada às claras, através das informações que emanam deste corpo.” Corpo como suporte da magia e do sagrado As mutilações tribais incluem botoques para os lábios, ornamentos do nariz e brincos. Os brincos são populares em muitas sociedades humanas e representam uma das poucas mutilações do corpo ainda usadas nas cidades ocidentais. A decoração, particularmente a adotada próxima aos orifícios do corpo, procurava afastar as influências negativas, servindo então como amuleto. Decorava-se, as orelhas, a boca, o nariz etc. com amuletos, objetos mágicos com função defensiva. No Egito, por exemplo, usavam-se anéis e colares para prevenir a morte prematura. Os egípcios acreditavam que a vida escapasse pelas mãos ou pela cabeça; portanto, usavam esses adornos com poderes mágicos. Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi Sabemos que a vida dos povos primitivos era extremamente permeada pela influência da magia. Aos espíritos, era atribuída a origem de todos os males. Os eventos nefastos (tais como a morte, as doenças e as calamidades naturais inexplicáveis na época) ganhavam a dimensão do sobrenatural do qual os homens deviam proteger-se. Acreditava-se que o próprio corpo, pelos seus orifícios, permitia a entrada das doenças. As primeiras decorações corpóreas, particularmente aquelas adotadas próximas aos orifícios e extremidades do corpo, remontam, segundo N. Squacciarino à “tentativa mágica inicial de proteção”. 3 O caráter mágico das decorações corpóreas constitui a primeira motivação discursiva na qual o corpo impõe-se como suporte de elementos simbólicos de caráter protetivo, mágico. Representa o elo de segurança de sua própria vida no mundo primitivo, um tempo marcado pela prática de inúmeras manifestações ritualísticas. Colares, pulseiras, anéis e brincos ainda são ornamentos preferidos no universo contemporâneo. A decoração corpórea constitui uma lembrança periódica das origens à maneira dos mitos e em conformidade com eles. Não é uma coincidência o fato de que tanto na imaginação ocidental como nas mitologias primitivas os fantasmas tomem formas zoomorfas. O animal representa, na verdade, o ser intermediário entre o inaminado e a humanidade, entre o anonimato inconsciente e a subjetividade. Nesse sentido, se um ser humano pode ser determinado pela sua singularidade, isto é, pela diferença entre um e os outros indivíduos de seu grupo; um animal, ao contrário, determina-se por pertencer a uma espécie, por oposição às demais espécies (ordem coletiva). Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi Poderíamos tentar explicar, por meio da variante da pintura corporal, a freqüência de referências lendárias ou mitológicas que são reportadas aos animais e que obedecem a mesma finalidade pelo fato de usarem plumas de aves em um cocar ou adornar com eles o corpo. É comum encontrarmos exemplos em que o homem procura um meio de identificação com o animal. O objetivo é captar seus poderes ou evocálos, buscando, por meio dessa associação, absorver as características apreciadas do animal, expondo-as no próprio corpo. Seria uma busca intersomática nos termos em que Eric Landowski aborda, atribuindo a sua “presença” uma ação de contágio. Assim, o corpo apropria-se de elementos que não lhe são naturais, mas que através de suas Tribo Indígena Brasileira projeções tornam-se pertinentes. 4 Na imagem que retrata a tribo brasileira, observamos o corpo coberto por plumas. Todos os ornamentos que completam o trajar reforçam a tentativa de contágio ao construir uma aparência metafórica de pássaros e outras aves multicoloridas. Em sua totalidade, o corpo organiza-se como um discurso que se funda em programas narrativos constituidores de seus fazeres e transformações. Há no sujeito um querer, um poder e um saber ficar igual ao animal, assim capturando sua força. O mesmo ocorre na imagem dos homens com lanças - Nova Guiné. Além das penas e das plumas, há uma latente apropriação de outros elementos da natureza circundante que ganham um papel de adorno, colocando o corpo em interação com seu universo. A associação com animais ocorre por intermédio da utilização de chifres, plumas e peitorais coloridos, como é observável em algumas espécies de pássaros. Imitam a plumagem das aves. O nariz vermelho pronuncia-se como um bico. As grandes folhas que estão nas laterais da cabeça simulam grandes orelhas, provavelmente de um mamífero, e estão ao lado do elemento que alude a um chifre. O corpo Dança com lanças dos homens dos humano encontra-se aqui totalmente revestido por Altos Planaltos - Nova Guiné elementos de decoração da natureza, pois estão no reino natural os objetos de valor dessa cultura. Eles investem o sujeito de várias personificações, as quais interagem e potencializam por contágio o aspecto humano, animal ou vegetal almejado. A apropriação ou a presença de traços distintivos não naturalmente humanos desencadeia essa transferência de valores. O sincretismo de elementos faz-nos pensar na convivência e no poder de domínio que o homem pretende ter sobre outras espécies. Mulher Hamba - Congo . Preparada para dança. Le Corps peint. Skira. Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi No que se refere à imagem da mulher do Congo, o rosto feminino é uma máscara de aspectos rígidos. A rigidez é suavizada pelo movimento das linhas e dos pontos coloridos pintados sobre ele. O corpo inteiro recebe um tratamento cromático avermelhado. Destaca-se uma inscrição, provavelmente trata-se de seu nome, exibindo a sua força de ação. Em volta do pescoço, destaca-se a presença de um colar com presas de animais. Na boca, faixos de um capim ordenados como um bigode de felino. Mais uma vez, a tentativa é de incorporar no humano os poderes e os valores que se atribuem à natureza em seus reinos vegetal e animal. Quer ser possuidora de suas qualificações e atributos. 5 Podemos considerar tais aspectos, particulares a certas tribos, traduzidos em formas do trajar contemporâneo. Na imagem abaixo, reencontramos o rosto coberto, velado, parcialmente oculto e, portanto, não contemplado plenamente. O uso de penas, como acessório, adjetiva o discurso. O corpo encontra-se revestido pelo cromatismo têxtil. Embora aqui os trajes estruturem-se de forma a combinar diferentemente algumas linhas do corpo, podemos observar, principalmente na composição das mangas, um querer latente de mostrar-se volátil em seu conjunto. Criações do estilista Ungaro - 1990 Anderson e Garland. Storia della Moda. de Agostine. Milano, 1989. Fórum Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi Vamos discutir exemplos em que a moda contemporânea reflita usos e costumes que podemos relacionar com usos arcaicos. 6 7 Sobre a plástica do corpo - Anhembi Morumbi