> clinicando Ana Maria Rudge Jones e Lacan: pesadelos, demônios e angústia A influência do pensamento de Ernest Jones na obra de Lacan, especialmente em sua teoria da angústia, é examinada. O livro de Jones “Sobre o pesadelo”, seguidamente citado por Lacan, é avaliado como de grande importância para a clínica psicanalítica, na medida em que toda a problemática da angústia é nele discutida e equacionada. > Palavras-chave: Angústia, pesadelo, demônios, complexo de Édipo, incesto pulsional > revista de psicanálise > clinicando > p. 61-70 ano XVII, n. 181, março/2005 The influence of the thought of Ernest Jones on Lacan, specially on his anxiety theory, is examined. The book by Jones “On the nightmare”, frequently quoted by Lacan, is evaluated as being of great importance for psychoanalytic clinic, once a new theory of anxiety is presented in this book. > Key words: Anxiety, nightmare, demons, Oedipal complex, incest >80 Embora o seminário sobre a Angústia, de J. Lacan, o último a ser publicado pela editora Seuil de Paris, seja fartamente lido e comentado pelos psicanalistas pela riqueza de suas contribuições para a clínica psicanalítica, pouco se tem lido o livro de Ernest Jones, Sobre o Pesadelo, que é seguidamente citado neste seminário. As idéias de Jones sobre o tema possuem uma presença de grande peso no desenvolvimento da teoria lacaniana da angústia. De forma mais geral, merece atenção o grande apreço que Lacan, que não era de distribuir elogios, demonstra seguidamente pela obra de Jones. Além do escrito em sua homenagem, “À memória de Ernest Jones: sobre sua teoria do simbolismo”, há várias outras ocasiões em que demonstra sua admiração pelo psicanalista inglês. Dedica todo o seminário do dia 12 de março de 1958, Formações do inconsciente, a discutir detalhadamente três artigos de Jones que qualifica como muito importantes: “Phalique phase”, apresentado no Congresso de Insbrück em setembro de 1927, “Early development of female sexuality”, de 1927, e “Early female sexuality”, de 1935. Em O desejo e sua interpretação, 11 março 59, dis- Jones é evidente pela incorporação que faz do termo, no seio de suas elaborações sobre a aphanisis do sujeito pelo Outro. Não sou a primeira a notá-lo. Disse Nazio: “certos conceitos importantes na teoria lacaniana levam tão fortemente o selo de Jones, que eu disse a mim mesmo que Lacan ama a Freud como a seu duplo, mas é a Jones quem deseja” (seminário de 15 maio 79, A topologia e o tempo). É especialmente na pesquisa de Jones sobre o tema do pesadelo e seu impacto na teoria lacaniana da angústia que vou me deter. Seu livro On the nightmare (1931), que Lacan qualifica como um “de uma riqueza incomparável” (Lacan, 62-63, p. 69), resultou da conjugação de três trabalhos escritos em épocas diversas. A primeira parte – A patologia do pesadelo, havia aparecido inicialmente em 1910 no American Journal of Insanity, e tratava da etiologia, patogênese e clínica do pesadelo. A segunda – Relação entre o pesadelo e certas superstições medievais – tinha sido publicada em 1912, em alemão. A terceira parte e a conclusão eram inéditas até 1931. Essa terceira parte apresenta-se como uma contribuição da psicanálise para a etimologia, a partir das descobertas sobre o pesadelo1 (Meyer, M. A. 1932). É interessante assinalar que, à época da elaboração da maior parte do que está apresentado no livro, Freud estava longe de elaborar sua segunda teoria da angústia. Ao decidir investigar o pesadelo, Jones o toma como algo do campo da patologia, e se 1> Mostra como a palavra “nighmare” deriva do Anglo-Saxão nicht = noite mais mara, literalmente um esmagador (crusher). Significava originalmente demônio da noite, veio a designar os sonhos de terror supostamente impostos por esses demônios e, posteriormente, égua. pulsional > revista de psicanálise > clinicando ano XVII, n. 181, março/2005 cute o artigo “The Oedipus complex: an explanation of Hamlet mystery “, que foi publicado em 1910 no Journal of American Psychology, e a ele se refere como “um monumento que é essencial ter lido”. No próprio seminário sobre a Angústia, em 19-06-63, refere-se ao artigo “Madonna’s conception through ears” como sendo um artigo “cuja leitura não se poderia recomendar demasiadamente”. Mais conhecidos são os freqüentes comentários sobre a aphanisis, uma noção introduzida por Jones na psicanálise. Para esse autor, a castração seria uma ameaça apenas parcial à capacidade de gozo sexual. A grande ameaça e o medo fundamental que jaz na base de qualquer neurose seria a total extinção, nomeada com a palavra grega “aphanisis”, da “capacidade e oportunidade de gozo sexual” (Jones, 1927, p. 460). Lacan, que discute essa proposta de Jones na maior parte de seus seminários, critica a idéia da aphanisis do desejo como constituindo a raiz da angústia de castração. Considera contraditória a idéia de que o desejo, que é justamente aquilo que provoca a angústia e contra o que o recalque opera, possa ser o bem a ser preservado, o bem ameaçado. Entretanto, não é exatamente de aphanisis do desejo que Jones fala, mas de aphanisis como ameaça à possibilidade de prazer sexual, algo que é mais abrangente do que a ameaça de extinção do desejo. Inclui a impossibilidade de encontrar objetos. Embora os comentários de Lacan contenham laivos de crítica, sua admiração por >81 pulsional > revista de psicanálise > clinicando ano XVII, n. 181, março/2005 >82 espanta que o pesadelo não seja considerado com maior seriedade pelos médicos, já que a agonia que o acompanha, com os distúrbios fisiológicos concomitantes, põe em risco a saúde e até a vida do sonhador. Fazendo uma cuidadosa e ampla revisão da literatura médica do século XIX sobre o pesadelo, isola os traços com que muitos autores o caracterizam para, cotejando e criticando essas contribuições, chegar a uma definição do pesadelo. A descrição do pesadelo que, apoiando-se nesses autores, Jones elabora, é bastante precisa. Geralmente ele ocorre quando o sonhador dorme sobre suas costas. São sonhos intensamente assustadores, acompanhados de respiração difícil e de uma opressão violenta no peito, como se um enorme peso se localizasse sobre ele. A privação de movimentos voluntários também se faz presente; o esforço para se livrar dessa opressão se choca com o sentimento de paralisia e de um extremo desamparo. O sonhador parece encontrarse incapaz de mover qualquer músculo para se proteger, assim como de gritar por ajuda. Nessa agonia e torpor, emite sons surdos e desesperados até que consiga acordar, sozinho ou com ajuda externa. Um terror incompreensível é a paixão que nunca está ausente: a angústia. Embora Jones seja de opinião de que um ataque de angústia, semelhante em todos os aspectos ao do pesadelo, pode ocorrer no estado de vigília, geralmente a angústia assume, no pesadelo, uma feição peculiarmente paralisante e horrível. À época, as tentativas de explicar a recorrência dos pesadelos, que em casos particularmente graves chega a impedir que o paciente tenha coragem de se deitar para dormir, invocavam causas orgânicas – tóxicas, respiratórias, gástricas, etc. Refutando essas tentativas de explicação, Jones ressalta como as manifestações do pesadelo são primordialmente mentais, a principal delas sendo a formidável intensidade da angústia. Nos níveis em que está presente no pesadelo, é um fenômeno patológico, tanto quanto uma neurose de angústia. A concepção freudiana da neurose de angústia serve de pretexto a Jones para ressaltar o quanto estão intimamente ligados a sexualidade e o terror. Entretanto, na verdade o autor discordava em parte da primeira teoria da angústia proposta por Freud, a que resultou de sua concepção de neurose atual (Zetzel, 1958). Nessa teoria, a angústia era tomada basicamente como descarga de desejo sexual não satisfeito, fosse por mera contingência da vida, fosse como conseqüência do recalque. Jones, embora destacando e concordando com a proximidade entre a sexualidade e a angústia, afasta-se dela. No seu trabalho “Patologia da ansiedade mórbida”, apresentado em 1911 na América, e para o qual remete o leitor de “Sobre o pesadelo” considera que ... o desejo que não pode encontrar expressão direta é introvertido e o medo que surge é o medo de uma irrupção do próprio desejo enterrado. Em outras palavras, a angústia mórbida serve à mesma função biológica que o medo normal, no sentido de que protege contra os processos mentais dos quais se têm medo. (Zetzel, 1958, p. 312) Embora concorde com Freud de que a angústia resulta do recalque, não a toma como uma transformação da libido, mas como medo de algo que é desconhecido, um perigo interno. Jones antecipou, dessa forma, o caracteristicamente feminina. O peso no peito, a passividade da entrega, palpitações, suores e sufocação são, em cores exageradas, o que se sente no coito. A experiência clínica leva Jones à hipótese de que é o recalque do componente feminino e masoquista, mais do que do masculino, que engendra o típico pesadelo. Por isso mesmo, os homens estariam mais sujeitos a essa condição. Outra característica especial do pesadelo, que o diferencia dos outros sonhos de angústia, é o fato de ser muito vívido e acompanhado de uma forte sensação de realidade. Isso explica que, no passado, tenha sido atribuído a visitantes noturnos reais. Jones parte então para uma impressionante e erudita demonstração de sua tese principal: a de que muitas crenças supersticiosas se originaram do pesadelo. A eficácia dos pesadelos na gênese de cinco crenças supersticiosas, estreitamente relacionadas entre si, é examinada. São elas os íncubos e súcubos, vampiros, lobisomens, Diabo e bruxas. Desse empreendimento, que causa uma impressão inesquecível em quem acompanha seu desenrolar, o que se depreende de imediato é que Jones está concedendo ao pesadelo um cunho mais estrutural do que a qualquer outro sonho de angústia. Ele é típico, e muito esclarecedor das condições da angústia. É exatamente por esse viés que Lacan retomará essas elaborações de Jones para formatar a sua versão da angústia como sendo uma resposta ao desejo do Outro. Alguns autores consideram que a importância histórica desta obra é que ela é a primeira ocasião em que se propõe que o desejo incestuoso está na origem de toda a religião pulsional > revista de psicanálise > clinicando ano XVII, n. 181, março/2005 movimento freudiano de abandonar a explicação econômica da angústia e tomá-la como sinal do retorno do recalcado. De acordo com a teoria freudiana dos sonhos como realização fantasmática de um desejo recalcado, quanto mais intenso for o conflito, mais a realização onírica do desejo tende a se apresentar de forma distorcida, tornando-se irreconhecível para o sonhador. Entretanto, não é sempre que o trabalho de censura ou cifração obtém sucesso. Quando o desejo é especialmente intenso, pode driblar a censura. Nesse caso, a relação entre a distorção e a angústia será inversa. Quanto mais o desejo escapou à distorção, maior a manifestação da angústia que o acompanhará. Para Jones, o pesadelo é, entre os sonhos de angústia, aquele que é acompanhado pela mais intensa angústia. Isso o autoriza a tomá-lo como uma expressão bastante clara do conflito em torno do desejo o mais intenso: o desejo incestuoso. A experiência clínica mostra que os pesadelos, ao lado da angústia, não escondem o cunho libidinoso. Seu tema recorrente é o de um visitante noturno, um demônio obsceno que se deita sobre o sonhador para copular. A semelhança desta estrutura do pesadelo com certas alucinações eróticas, em que os pacientes se queixam de abuso por parte de figuras que são tanto atraentes quanto repelentes, não escapa ao autor. O conteúdo latente dos sonhos de angústia, como uma categoria mais ampla, é a realização de um desejo conflitivo porque incestuoso. Mas o pesadelo tem uma posição singular entre os sonhos de angústia, porque seu conteúdo latente é bastante estereotipado: o coito em uma posição >83 clinicando pulsional > revista de psicanálise > ano XVII, n. 181, março/2005 >84 (F. J. C., 1932). Efetivamente, Jones chegará a concluir que as superstições derivadas dos pesadelos são uma tentativa de lidar com a realização inconsciente de que as crenças do cristianismo são baseadas nos desejos edípicos da humanidade. Já que a solução que o Cristianismo oferecia para os conflitos derivados do complexo edípico não era satisfatória, a luta contra os demônios noturnos e contra as entidades dessas superstições tinha de continuar na vida desperta e na escala social os conflitos subjacentes ao pesadelo. Para apoiar sua teoria sexual do pesadelo, Jones destaca o fato de que o nome científico do pesadelo, na Idade Média, era “incubus”, a mesma palavra que denotava um demônio que surgia à noite, jogando-se pesadamente sobre o peito das mulheres e as violando. Os demônios que atacavam sexualmente os homens eram chamados de “succubi”. Esses seres imaginários são alvo da projeção dos mesmos desejos eróticos em jogo nos pesadelos. O mesmo mecanismo está em jogo com os vampiros e lobisomens, exceto pelo maior acento, no caso destes últimos, no sadismo oral. De toda a forma, a angústia do pesadelo tem esse cunho de angústia de devoração, de sucumbir tornado objeto do ser que pesa sobre o peito. No estudo sobre o Diabo, Jones sugere que inicialmente a divindade tinha aspectos bons e outros maus. O Diabo seria o resultado da decomposição de uma atitude ambivalente que levou à criação de uma deidade boa e outra má. Antes do Cristianismo não havia uma divindade exclusivamente dedicada ao mal, como o Diabo medieval. No judaísmo, não havia inicialmente Diabo, e nem necessidade para isso, já que o próprio Deus judaico comportava aspectos maus: Deus e o Diabo eram uma mesma divindade. Com o cristianismo, o Diabo aparece como a explicação para toda a infelicidade que habitava o mundo. A divindade voltada para o mal se tornou necessária pelo fato de que o desejo por um Pai celestial bondoso coexistia com a persistência da infelicidade causada pelas pestes e a pobreza. A Igreja passava por muitas dificuldades, crises internas, escândalos, e atribuir todas as dificuldades ao Diabo era uma forma de encobrir suas fraquezas. O Diabo medieval, composto de elementos pagãos, foi uma crença que a Igreja não tentou destruir, pelo contrário, encorajou já que lhe permitia atribuir suas dificuldades a uma agência externa, com que se pudesse lidar. A repressão pela Igreja de todos os desejos mundanos, como o desejo de saber, e principalmente a atividade sexual, colocou em destaque a idéia de pecado. Segundo Michelet, citado por Jones, o incesto era muito comum nessa época, e o crime principal cometido no Sabbath das bruxas era o incesto, doutrina expressa de Satan. A crença no Diabo durou mais que as outras, observa Jones, mas com menos força que a idéia de um Deus benevolente. O ódio que esteve voltado para uma divindade externa, volta-se contra o próprio sujeito, e a solução para o mal passa a ser a punição considerada como um meio de aperfeiçoamento. Jones observa que a psicanálise mostra que essa manobra é perigosa. A hostilidade despertada pela desventura estaria melhor canalizada se dirigida para um ser inatingível do que para si mesmo ou para os semelhantes. clinicando turna, mas que também representa uma substituição, segundo a manobra fóbica, da bruxa pela égua (Lacan, 1957, p. 306). Ao se referir às duas versões freudianas da angústia, no seminário de 30 de janeiro de 1963, Lacan endossa a teoria proposta por Freud, ao diferenciar a angústia que é uma resposta ao desamparo da criança ao chegar ao mundo, que caracteriza como perigo original e localiza na dimensão do Real, da angústia sinal. Essa sinaliza um perigo, perigo que Jones, de quem Lacan elogia o tato e a boa medida, considera ser constituído pelo “burried desire”. É o retorno do “desejo enterrado” que é sinalizado com a angústia, e esse retorno é perigoso. Como em Freud, o que o sinal de angústia sinaliza é o retorno do recalcado: a irrupção do desejo recalcado, o desejo do Outro como desejo inconsciente. Ao longo do seminário “A angústia” Lacan irá enfatizar o papel do desejo do Outro como determinante do sujeito. O Outro do desejo que me determina é vestígio do Outro primordial, específico, que me recebeu nesse mundo. O desejo do sujeito não tem sua origem no corpo, mas é conformado pelo que esse Outro para ele desejou. Portanto, a primeira posição do sujeito por vir é a de objeto causa de desejo, posição em que o desejo do Outro o colocou. A partir daí, o que se deseja é causar o desejo do Outro, recolocar-se no papel de causa do desejo do Outro. Mas o desejo do Outro é também o que nos expõe à angústia, como ilustra Lacan em seu apólogo do louva-deus. Ao portar uma máscara que não sabe qual é, e defrontar-se com o louva-deus fêmea, animal que devora seu macho após o sexo, o sujeito é tomado de angústia por não saber que objeto é para ele. O desencadear da angústia sinaliza o desamparo experimentado pulsional > revista de psicanálise > ano XVII, n. 181, março/2005 A crença na bruxaria foi também promovida pela Igreja. Os dois principais crimes atribuídos às bruxas eram ataques à fertilidade e relações sexuais com o Diabo. É o complexo de Édipo que sustenta a crença na bruxaria e o ódio, o medo e o ciúme em relação à mulher. O Diabo é o pai, transformado pela hostilidade e rivalidade. O Malleus Maleficarum, apesar de sua intolerância e crueldade, é considerado por Jones como uma fonte inestimável para o estudo dos motivos do medo à mulher. Para Jones, tanto a teoria do diabo quanto a do materialismo médico que a substituiu para dar conta dos pesadelos são expressões da resistência dos homens a reconhecer os processos psíquicos ligados ao complexo de Édipo. A verdade só chegou a ser descoberta no início do século XX pela psicanálise, porque a progressão da humanidade do recalque ao julgamento é longa (Meyer, 1932). O livro de Jones teve uma óbvia influência na teoria da angústia de Lacan, embora o autor francês estivesse, na época em que apresentou seu seminário sobre a angústia, já de posse da segunda teoria freudiana da angústia, apresentada em 1926, enquanto Jones não tinha tido acesso a ela por ocasião da primeira publicação dos dois primeiros e mais importantes textos sobre a angústia que compõem “Sobre o pesadelo”, ambos anteriores a 1926. Já no seminário sobre a relação de objeto 8 de maio de 1957, Lacan se refere ao livro de Jones a propósito do cavalo e de seu papel, como objeto fóbico de Hans e como um tema preponderante na mitologia, lendas, contos e no pesadelo. Lembra que nightmare, pesadelo, quer dizer “égua da noite”, aparição angustiante da bruxa no- >85 pulsional > revista de psicanálise > clinicando ano XVII, n. 181, março/2005 >86 ante o enigma que é desejo do Outro. Algo análogo se dá nos pesadelos, e se expressa muito bem nos exemplos de Jones, retirados das crendices e superstições. É exatamente onde Lacan recorre ao livro de Jones, afirmando que “a angústia do pesadelo é experimentada como a do gozo do Outro. O correlato da angústia é o íncubo ou o súcubo (dois tipos de demônios), esse ser que vos esmaga com todo seu peso opaco de gozo alheio sobre vosso peito, que os esmaga com seu gozo” (Lacan, 1997, p. 70 [12-12-62]). Íncubos e súcubos, mas também vampiros e lobisomens, são personagens de histórias em que o sadismo oral e o desamparo ante a ameaça de devoração estão tão presentes como na do louva-deus. Rabinovich (1993) recorre a uma cena do filme “A dança dos vampiros” de Polansky, para ilustrar a irrupção do estranho. Ele se dá no momento preciso em que um casal, que está dançando em um baile, passa em frente a um espelho e só uma das duas pessoas do par tem sua imagem refletida em um espelho, como se dançasse sozinha. O que ocorre neste momento, é que não só alguém de aparência normal subitamente se revela como um vampiro, mas que o próprio protagonista que com ele dançava também se transforma, se torna outro: objeto para ser sugado de seu sangue, alguém que não mais importa senão como algo a ser chupado. Todas as imagens que este se dava de si mesmo já não mais se sustentam ante isso a que o desejo do Outro o reduziu. Em todo o pesadelo, que, lembremos, não é para Jones sinônimo de sonho de angústia, mas um tipo específico de sonho de angústia, o sonhador está na posição de objeto a serviço do gozo do Outro, sem que sua condição de sujeito sequer venha ao caso. Por traz do gozo do Outro, sempre se pode entrever o desejo do Outro (Rabinovich, 1994). A fantasia é o que o sujeito oferece como resposta ao desejo do Outro, para não ter que responder a esse desejo com seu próprio “ser de objeto”. O breve momento em que a fantasia se desfaz, momento do estranho, é um momento de angústia porque provoca a oscilação das referências em que o sujeito costuma se apoiar. É essa experiência fugaz, em que “a falta falta”, que Lacan promoverá em seu seminário. A função da falta está diretamente ligada à abordagem lacaniana da angústia. Essa falta é constitutiva do sujeito, uma falta de estrutura. Lacan qualifica de radical, a falta constitutiva da subjetividade, ela não está sujeita a uma suspensão efetiva. O que se dá é um efeito que resulta de se poder vislumbrar algo que costuma estar encoberto por uma ilusão. A ilusão que resulta da imagem especular é do sujeito transparente a si próprio. A determinação que incide a partir do campo do Outro e nos constitui costuma, em grande parte, ser ignorada. O fenômeno do estranho é justamente a aparição do objeto que faz balançar essa ilusão, levando o próprio sujeito a vacilar. Ocorre quando algo mobiliza um investimento primitivo do corpo que ficou de fora como um resíduo na constituição da imagem especular. Em seu texto de 1919, Freud havia caracterizado o estranhamento exatamente como um momento em que o que deveria ter ficado escondido se manifestou. Mas é fugidio, esse momento. É no romance e na obra de arte que nos recomenda buscar entender melhor o estranhamento, porque é justamente nesse território que aparece tingido de cores mais fortes. Nesses momentos de estranhamen- voca. Projeção do desejo sobre o ser imaginário, incubo ou súcubo, mas também desejo moldado pelo desejo materno que esteve no início: o de reintegrar seu produto. Não é à toa que a formidável angústia que acompanha o pesadelo não seja a angústia sinal, como a que comparece em outros sonhos de angústia, mas sim angústia traumática e vivência de completo desamparo. É por essa sua posição de limite, de desmesura, que o pesadelo pode nos esclarecer sobre a dinâmica da angústia. 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Artigo recebido em agosto de 2004 Aprovado para publicação em janeiro de 2005 pulsional > revista de psicanálise > clinicando ano XVII, n. 181, março/2005 to não é a angústia traumática que costuma comparecer como alguns autores erroneamente indicam (cf. Harari, 1997, p. 65-6), mas a angústia sinal; sinal do retorno do recalcado. A angústia traumática é a que comparece nos pesadelos, deixando o sonhador petrificado e estarrecido. A aphanisis do sujeito está intimamente ligada à problemática da angústia, na medida em que é esta que sinaliza sua constituição inaugural pelo Outro, os traços e vestígios desse processo, e também sua determinação pelo Outro a cada momento da vida. O termo “Outro” em Lacan tanto designa o Outro social, com que me encontro na polis, quanto um Outro que é herança das marcas deixadas pelas experiências da infância, as experiências que constituíram o sujeito. Em sua ênfase no inconsciente como trans-individual, Lacan pontua seu seminário com lembretes de como a angústia com que lidamos na clínica é uma angústia da qual não podemos nos excluir, já que é uma angústia que provocamos, com a qual temos uma “relação determinante” (Lacan, 1997, s. 12.12.62). Não é só o texto de Jones sobre o pesadelo, como paradigma da angústia traumática, que ilumina a teoria da angústia de Lacan, mas a própria concepção de aphanisis encontra um lugar privilegiado nessa teoria. Vimos que a situação traumática, para Lacan, é ser reduzido à posição de objeto pelo desejo/gozo do Outro. A ameaça de aphanisis, cuja tradução clínica mais aproximada com a qual nos deparamos, segundo Jones, são “pensamentos de castração e morte (temor consciente à morte e desejos inconscientes de morte)” (Jones, 1927, p. 460), é a ameaça de morte psíquica, de apagamento do sujeito, e é isso que o incesto con- >87