A INSERÇÃO DO HOSPITAL NA GEOGRAFIA
HAUSSMANNIANA: EXCELÊNCIA CLÍNICA E MISÉRIA
HUMANA EM SOEUR PHILOMÈNE (1861) DOS
IRMÃOS GONCOURT
Vanessa Costa e Silva Schmitt1
RESUMO:
Após a agitação provocada pela Revolução, à qual sucederam mudanças
consideráveis na organização médica, institucional e pedagógica, a compreensão da
dimensão hospitalar transforma-se na França. Reconfigurado como espaço da formação
médica, o hospital favorece a eclosão da clínica 2 , sendo inegável a sua importância
como espaço vital da capital francesa no século XIX. A partir de sua representação em
Soeur Philomène (1861), romance naturalista de Edmond e Jules de Goncourt, o
presente artigo analisa as dimensões espacial, didática e social do hospital na Paris
haussmanniana, sob dois aspectos principais. Inicialmente, o hospital inserido na
geografia da cidade. Na sequência, como esta instituição do patológico, enquanto
microcosmo, influencia e transfigura os personagens nele inseridos.
PALAVRAS-CHAVE:
literatura
e
história,
instituição
hospitalar
(história),
Naturalismo, século XIX, Goncourt (Edmond, Jules).
***
A fim de melhor compreender o papel da instituição hospitalar no século XIX, faz-se
necessário, ainda que brevemente, destacar a função exercida pelos hospitais e
dispensários na sociedade cristã do Antigo Regime. Durante muito tempo considerado
"morredouro", "depósito humano" onde cuidados médicos mínimos eram eventualmente
oferecidos aos que não tinham recursos, associado frequentemente ao local onde se
aguardava impassivelmente o Requiescat in pace, o hospital francês pré-Revolucionário
em pouco ou nada assemelha-se a seu equivalente contemporâneo.
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pós-doutora pela Université de Genève, docente do Núcleo
de Ensino de Línguas em Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NELE/UFRGS). Email: [email protected]
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Inspirada pelas reformas introduzidas no período tridentino, bem como pela política real
do grand renfermement, a organização hospitalar segue ainda, durante o século XVIII,
um modelo monástico, onde, à exceção de alguns laicos recrutados a título individual,
todo o corpo hospitalar pertence a uma coletividade obediente a uma regra (DINETLECOMTE, 2005, p. 120). No entanto, cabe ressaltar que, desde o começo do século
XVI, os encargos administrativos dos estabelecimentos hospitalares não pertencem mais
aos cônegos mas aos leigos subordinados ao Parlamento (JACQUEMET, 1948, 968).
Em meados do século XVIII, vê-se, por um lado, o arrefecimento de três grandes
flagelos universais (guerra, peste, fome epidêmica), enquanto, por outro, a miséria
continua a implantar-se duramente no seio da sociedade, suscitando uma ampla reação
da parte de muitos benfeitores. Encorajados pela elite esclarecida da época, creem que
seria possível de amenizar o sofrimento dos desfavorecidos distribuindo-lhe cuidados
médicos (DINET-LECOMTE, 2005, p. 126). Às vésperas da Revolução, os hospitais
diversificam-se segundo as categorias de doentes a ser acolhidos, o que depende mais
da estratificação social que da nosografia em si.
Após a agitação provocada pela Revolução (incluindo a nacionalização dos bens
hospitalares, a interdição das corporações, a abolição de sociedades e academias, o
fechamento da Universidade com suas faculdades e escolas de medicina), à qual
sucederam mudanças consideráveis na organização médica, institucional e pedagógica,
a compreensão da dimensão hospitalar transforma-se na França.
"Liberdade perversa", nas palavras de Goubert e Rey, redefinição da ciência médica
(GOUBERT; REY, 1993, p. 7), introdução de espírito científico (HUARD, 1970, p. 6)
são algumas das consequências da Revolução.
Sobre novas bases desenha-se o ensino da medicina, a começar pela criação do internato
(Paris, 1802). Visando à homogeneização do ensino e da prática médicas, o hospital
será, a partir de então, o espaço da formação médica, favorecendo a eclosão da clínica
(GOUBERT; REY, 1993, p. 7). Não esqueçamos que a Convenção, em 1792, havia
determinado a dissolução das congregações voltadas ao serviço hospitalar. No entanto, a
despeito da proibição da vida comunitária, os cargos poderiam ser mantidos a título
individual, o que, para J. P. Martineaud, caracterizaria muito mais uma
desclericarização do que uma laicização stricto senso (MARTINEAUD, 2002, p. 7).
Sessão temática Literatura - 871
Tais medidas teriam poupado as irmãs da fúria revolucionária e preservado grande parte
da estrutura orgânica hospitalar.
Algumas questões capitais impõem-se ainda neste período de reorganização e
reconfiguração da instituição hospitalar. Tendo ficado patente o fracasso revolucionário
de uma assistência nacional, o hospital, de acordo com a lei do 16 vendémiaire ano V,
passa a ser responsabilidade comunal, cabendo a cada comuna gerir e financiar a
recepção e o acolhimento tanto de indigentes quanto de crianças, idosos e doentes.
Dessa feita, dúvidas prementes surgem: deve então a comuna pagar pelos estrangeiros,
pelos vizinhos, pelos camponeses? (HECKETSWEILER, 2010, p. 605). O que se
compreende por beneficência, assistência e caridade, e quais são os seus limites?
Impelidos por justas reivindicações, os franceses votarão, posteriormente, a lei 07 de
agosto de 1851, cujo artigo primeiro estabelecerá: "Lorsqu'un individu privé de
ressources tombe malade dans une commune, aucune condition de domicile ne peut être
exigée pour son admission dans l'hôpital existant dans la commune". De qualquer
forma, trata-se da previsão de uma situação emergencial, e será necessário aguardar
ainda cerca de uma década pela lei 15 de julho de 1893, concernente à assistência
médica gratuita, para que todos os indigentes, sem exceção, sejam acolhidos pelos
estabelecimentos comunais, segundo um sistema de circunscrições hospitalares bem
definido e hierarquizado conforme a importância e os recursos de cada instituição
(IMBERT, 1982, p. 335-336).
Urge destacar, igualmente, a dispersão anárquica dos estabelecimentos hospitalares no
país, a qual, segundo Jean Imbert, a passividade do Estado não apenas manteve como
contribuiu para que se agravasse numa política caótica sem precedentes. Comunas,
departamentos, ou frequentemente a associação de ambos, fundam hospitais à vontade,
bem como representantes da alta burguesia, os quais edificam, como legado,
estabelecimentos de saúde, sem nenhum plano pré-concebido. Tal falta de planejamento
acabar por ressaltar, ao invés de dirimir, a disparidade entre as regiões, fortemente
denunciada no Antigo Regime (IMBERT, 1982, p. 368-369).
Assim, em meados de 1830, a França dispõe de cerca de 150 000 leitos, distribuídos
entre pouco mais de 1.300 estabelecimentos. Segundo levantamento estatístico
apresentado pelo ministério do Interior, em 1833, a duração média de internação
compreende quatro meses, sendo que a mortalidade é superior a 10%: em um único ano,
Sessão temática Literatura - 872
11.000 indigentes vão a óbito apenas no departamento de Seine (HECKETSWEILER,
2010, p. 606). Não se pode ignorar, no entanto, que a região de Paris encontra-se dentre
as mais favorecidas. Na mesma época, existem na capital aproximadamente trinta
hospitais, capazes de acolher em torno de 20.000 doentes, além de oferecer formação
adequada aos 5.000 estudantes de medicina que nela residem (PREMUDA, 1999, p.
254).
Como consequências da revolução industrial, apontam-se as numerosas transformações
das estruturas econômicas e sociais, repercutindo impiedosamente sobre o campo e a
cidade. A urbanização desgovernada torna-se cada vez mais um fenômeno inquietante,
visto que os trabalhadores migrantes e suas famílias, desprovidos de acomodações
salutares, amontoam-se em cortiços onde assustadoras condições de higiene favorecem
a propagação de patologias como a febre tifoide e a tuberculose, o que acaba por
requerer hospitalização (PREMUDA, 1999, p. 254-255), muitas vezes prolongada e
ineficaz.
Embora tenha sua matriz profundamente consolidada no conceito cristão de caridade,
voltado desde o princípio a um modelo de assistencialismo altruísta, o hospital moderno
será influenciado por algumas das novas percepções sociais oriundas da revolução de
1848 (HECKETSWEILER, 2010, p. 606). Convidado a mudar pela contingência sóciotecnológica que se impõe, ele guardará, no entanto, por muito tempo, a natureza de
assistência aos indigentes que lhe é peculiar.
O hospital no Segundo Império: inserção na geografia haussmanniana
O nascimento da Assistência pública de Paris, em 1849, parece constituir um marco no
que diz respeito às instâncias de tutela em relação à saúde: sendo um instrumento
indireto do poder central, ela prepara lentamente os espíritos para uma intervenção mais
concreta do Estado (CABAL, 2001, p. 86-87).
Cabe ressaltar que, segundo Jeanne Gaillard, "tous hérités de l'Ancien Régime, les
Hôpitaux Généraux de Paris3 répondent au besoins d'une misère chronique qui colle à la
ville", de forma que o hospital, como já visto, é o refúgio necessário de uma população
3
Hospitais Gerais de Paris : Denominação dos hospitais sem especialidade.
Sessão temática Literatura - 873
pauperizada que espera da comunidade urbana uma assistência
sistemática
(GAILLARD, 1978, p. 395).
Modo secundário da vida urbana, a hospitalização não compreende apenas internações
episódicas, mas verdadeiras estadas, as quais, em sua maioria, são excessivamente
longas. Na sequência, aferventa-se nas ruas de Paris a massa de anônimos que, deixando
o hospital, não encontram domicílio nem recursos, prestes a provocar mais uma das
incontáveis revoltas que, se não surpreendem, desagradam e preocupam as autoridades
locais.
Ainda de acordo com Gaillard, a mutação demográfica que se opera na Paris do
Segundo Império acompanha-se de uma mutação da função hospitalar. Na capital
entrava-se, doravante, uma população imigrante, constituída na sua essência de
pequenos artesãos e lojistas modestos, mas, sobretudo, de operários que, por sua vez,
embora ganhem seu pão, não têm como assumir as nefastas consequências do
desemprego e da doença. O múnus do hospital passa a ser, por sua vez, revisitado: junto
aos imigrantes, suas atribuições são agora precisas, limitadas e intermitentes,
"d'assitsance
absolument
dépourvue
de
romantisme
religieux",
parcialmente
desatreladas daquele que era até então seu papel essencial (GAILLARD, 1978, p. 399).
Considerando-se os efeitos da revolução de 1848 (e, em especial, as Journées de Juin),
bem como o crescimento demográfico, aliados tanto a uma nova concepção do exercício
da medicina quanto a relações e desenhos urbanos inéditos, pode-se afirmar que todos
são fenômenos influentes na mudança de óptica em relação à caridade e ao consequente
redirecionamento do papel do hospital na segunda metade do século XIX em Paris. De
maneira geral, não parece incauto concluir, como bem o faz Gaillard, que o drama
operário e a revolução de 48 transformam, decisivamente, a política urbana e,
consequentemente, hospitalar (GAILLARD, 1978, p. 401).
Em matéria de assistência pública, o urbanismo parisiense não está voltado para
soluções hospitalares, de forma que, durante os grandes trabalhos de remodelação da
capital, parece haver uma grande sequência de amputações no patrimônio físico das
instituições. Avaliadas por M. Boude (apud GAILLARD, 1978, p. 404), em seu estudo
sobre as propriedades hospitalares de Paris, tais mutilações seriam da monta de 302.933
m2, no que diz respeito apenas às expropriações justificadas por utilidade pública
durante o Segundo Império. Valor ao qual devem-se acrescentar as vendas por contrato
Sessão temática Literatura - 874
consensual e as alienações (cerca de 184.772 m2 alienados pela Segunda República). No
total, a extensão patrimonial da Assistência Pública foi reduzida, em Paris, a menos da
metade. Tais números refletem as novas concepções apresentadas durante a Segunda
República e, sobretudo, sustentadas por Haussmann, referentes às relações urbanas e
outras perspectivas de atenção médica que não compreendem a hospitalização
(GAILLARD, 1978, p. 405) e que, por sua vez, serão características das políticas
sociais do Segundo Império.
Uma vez que compreendemos alguns elementos essenciais do contexto em que
se insere o estabelecimento hospitalar na Paris do Segundo Império, das novas
atribuições da instituição em si, bem como do corpo clínico e assistencial que nela atua,
evidencia-se mais claramente o papel do hospital na trama de Sœur Philomène, romance
que pode ser considerado como primícias do Naturalismo na França.
O hospital em Sœur Philomène: sofrimento à huis clos
Romance de Edmond e Jules de Goncourt, publicado em 1961, Sœur Philomène é
pouco conhecido no Brasil, não tendo sido traduzido para a língua portuguesa. O fato de
que esta obra não seja tão difundida, mesmo na França, quanto outros romances
coetâneos é verdadeiramente lamentável. Apenas cinco anos após Madame Bovary
(1856) de Gustave Flaubert e de seu impacto artístico e social, tende-se a afirmar que
este romance ímpar, por sua estética e temática, inaugura o Naturalismo na França4. O
hospital agudizará os sentidos dos leitores, primeiramente estimulados durante a
exposição crua da realidade enfadonha da esposa de um medíocre médico rural, cuja
narração primorosa dos pecados e da agonia de morte voluntária levaram Flaubert ao
banco dos réus5.
4
Uma das mais respeitadas especialistas dos estudos sobre Naturalismo na Europa, Colette Becker não
hesita em afirmar: "En procédant de la sorte, les Goncourt inaugurent bien ce qui sera la méthode des
romanciers réalistes/naturalistes: se fonder sur l’observation du réel et, pour ce faire, plonger dans la
réalité, enquêter sur le terrain, dans le milieu dans lequel l’intrigue sera située, processus méthodique,
logique, qu’ils mettent en avant dans leur Journal de 1860, se félicitant même de l’approbation de
Sainte-Beuve." (BECKER, 2011, p. 11-12)
5
Charles Augustin Sainte-Beuve a Edmond e Jules de Goncourt, carta de primeiro de setembro de 1861.
In: Edmond et Jules de Goncourt, Correspondance générale (referência completa a esta obra na
bibliografia final do artigo).
Sessão temática Literatura - 875
Nesta obra, os irmãos Goncourt apresentam sem subterfúgios a célebre clínica
parisiense, flertando com a análise médica do espírito humano, no momento em que
apresenta ao público uma irmã de caridade, Philomène, e um interno, Barnier, ambos
atuando no monumental Hôpital de la Charité. Não à toa, o crítico Sainte-Beuve
manifesta-se, dizendo: "Sœur Philomène est un roman d’une vérité parfaite, étudié sur le
vif" (GONCOURT, Correspondance générale, 2004, p. 553). Nele, o hospital assume
um papel até então inédito, capaz de mudar a forma como se concebe e como se aprecia
a literatura na segunda metade do século XIX, num desafio cenestésico sem
precedentes. Comecemos pela concepção do espaço.
A espacialidade em Sœur Philomène adquire uma nova dimensão: pode-se dizer que
toda a ação, bem como os conflitos, sejam eles psicológicos ou morais, acontecem à
huis clos.
À exceção da infância de Philomène, a protagonista, e do tempo que esta passa no
convento em formação, o hospital abraça toda a intriga. Portas fechadas, esta poderosa e
histórica instituição recebe uma multidão de anônimos em busca de cura e respeito. Para
alguns, significa o fim da linha. Para outros, a espera da morte dá-se fora do recinto, já
que o hospital não supõe mais caridade por si só, mas, ainda que a passos lentos, a
esperança da cura pela ciência.
Assim, os doentes não passam de casos patológicos aos quais os internos e chefes de
serviço fazem menção. A identidade lhes falta, e às vezes nem mesmo o número que
recebem os caracterizam, sendo o leito a única referência, como discutem os internos.
Tendo incorporado o anonimato que o hospital lhes confere, as próprias doentes da sala
Sainte-Thérèse tratam-se pelos seus números: "Madame Un! Madame Six! Madame
Onze! [...] " (SP, p. 91)6.
Sob a pluma dos Goncourt, o hospital é um microcosmo sociológico da realidade do seu
tempo. Concebe-se que a pobreza em si destitui o ser humano de dignidade. Quando,
em alguns pacientes, traços de humanidade são reconhecidos, estes deixam de ser vistos
6
A fim de tornar o texto mais leve e evitar repetições, todas as citações extraídas do romance serão
sinalizadas pela sigla SP, seguidas imediatamente pelo número da página. A edição utilizada no presente
artigo trata-se de : GONCOURT, Edmond et Jules de. Sœur Philomène. Édition préfacée et annotée par
Pierre-Jean Dufief. Tusson: Du Lérot, 1996, 176 p.
Sessão temática Literatura - 876
e entendidos como feras embrutecidas e lhes são acordados a devida atenção e o
cuidado necessários dentro da instituição:
Quand, à l'hôpital, le malade, homme ou femme, n'est pas une créature toute
brute, une sorte d'animal aux instincts endurcis que la misère a fait sauvage;
quand il montre des caractères d'humanité et qu'il révèle une sensibilité
morale sous la main qui le soigne; quand son coeur est dégrossi par la plus
mince éducation, ce malade voit s'empresser autour de lui les soins des
médecins et des internes. (SP, p. 97)
Da mesma forma, fica evidente a nova percepção do hospital como referência da clínica
médica, destituindo-o da simples acolhida dos doentes desemparados que por muito
tempo lhe foi característica. Assim, no auge do inverno, o interno Barnier recusa-se a
acolher um velho tísico em estágio avançado da doença. Com pesar, argumenta:
− Oui, il y a comme ça des moments durs... Mais si je l'avais reçu, mon chef
de service l'aurait renvoyé demain... C'est très difficile à placer ces pauvres
diables-là... C'est ce que nous appelons en terme d'hôpital une patraque... Si
nous recevions tous les phtisiques... Paris est une ville qui use tant! ... nous
n'aurions plus de place pour les autres, pour ceux qu'on peut guérir... [...].
(SP, p. 90)
Condenado a perecer do lado de fora do hospital, na tentativa de atendimento em outra
instituição especializada, o destino do tuberculoso terminal representa o poder e a força
do hospital. Em Sœur Philomène, não há vida para além das paredes da Charité.
Portas e janelas cerradas neste espaço restrito trazem consigo dois significados.
Primeiramente, aumenta a tensão da intriga. Em segundo lugar, pode-se dizer que a
trama à huis clos encapsula os conflitos morais e psicológicos (o que Flaubert já
conseguira magnificamente em Madame Bovary). Como uma extensão de suas mentes,
o hospital aprisiona as emoções de Barnier e Philomène e não permite que estas sejam
discutidas. De fato, ambos asfixiam-se, e seus conflitos são tão irrespiráveis quanto a
atmosfera do recinto onde vivem (ou onde, no caso de Barnier, passam a maior parte do
seu dia). Ao fim, eles parecem ser infectados pela pourriture d'hôpital, tornando-se
vítimas de seus próprios sofrimentos.
A personificação do hospital em Sœur Philomène
Sessão temática Literatura - 877
Da forma como pode ser interpretado (agente de contágio, ou a pourriture d'hôpital,
que tanto assusta e dizima), o hospital metaforicamente assume o aspecto da
degradação. Em Sœur Philomène, vislumbra-se aquele que será um dos pilares do
Naturalismo, ou seja, a influência do meio afetando profundamente os personagens.
Neste caso específico, ainda que de forma relativamente incipiente, a Charité age de
maneiras distintas sobre Philomène e Barnier, provocando neles repercussões
indeléveis.
Barnier é um interno que está às vésperas de defender sua tese de doutoramento em
medicina. Dedicado, dotado de uma habilidade ímpar para a prática médica, Barnier
goza de uma excelente reputação no hospital. Admirado pelos seus colegas, respeitado
pelos professores e afeiçoado pelos pacientes, que nele encontram um olhar mais
humano, Barnier pode ser visto como tendo um bom caráter. Nada além de elogios:
Au nom de Barnier, les louanges de l'interne s'étaient croisées dans la salle.
La reconnaissance s'échappait des lits, les bénédictions montaient des
bouches. -Oui, disait l'une, un bien brave garçon... et qui ne rechigne pas
après son service... - C'est lui qui sait vous faire un pansement! ... avec de
l'eau tiède avant, qu'il vous met... ça ne nous fait pas plus de mal que rien. Moi, il a été soigner mon homme à la maison... et c'est pas pour ce que ça
rapporte... Toutes ces voix qui se faisaient écho arrivaient doucement à la
soeur Philomène. (SP, p. 93).
Na verdade, no começo da narrativa, Barnier demonstra uma certa inadaptação ao meio
que, sinônimo de cura para uns, resulta em miséria moral para outros. No primeiro
diálogo entre o interno e a irmã, que transcende o leito dos doentes e os procedimentos
de rotina (o diálogo acontece no gabinete de Philomène), ambos discutem a difícil
introdução que experimentaram a um ambiente tão hostil7:
− Ah! Vraiment, vous avez eu tant de peine que cela à vous habituer à
l'hôpital! vous, un interne, un homme!
− Oui, on croit comme ça que ça ne nous coûte rien... Tenez! moi, ma mère,
je ne suis pas le seul... j'ai été près de quinze mois, quand j'ai commencé mon
7
Os Goncourt parecem emprestar algumas nuances da angústia que eles mesmos experimentaram durante
seu estudo de campo para a elaboração do romance. O mal-estar ocasionado pelas poucas horas de
permanência no ambiente hospitalar são descritos como apreensão e medo no Journal: "Nous avons mal
dormi. Nous nous sommes levés à sept heures. Il fait un froid humide; et sans nous en rien dire l’un à
l’autre, nous avons une certaine appréhension, une certaine peur dans les nerfs. Quand nous entrons dans
la salle des femmes, devant cette table sur laquelle sont posés un paquet de charpie, des pelotes de
bandes, une pyramide d’éponges, il se faitquelque chose en nous qui nous met le coeur mal à l’aise."
(GONCOURT, Journal, entrée du 18 décembre 1860, t. II, p. 538)
Sessão temática Literatura - 878
internat, à être triste... mais là, à fond... et on en a toujours un petit reste... Si
je vous disais que j'ai été plus de six mois sans pouvoir manger de bon coeur!
− Ah! ça me fait plaisir, ce que vous me dites là... On est si honteuse de soi
dans les commencements...
− Et puis, nous, c'est encore plus horrible que vous. La première fois qu'on
entame la peau d'un mort à la Clinique... je vous assure que cela fait un
effet... ça vous retourne... Et les autopsies! quand il faut fouiller dans tout
cela!... Et l'odeur qui vous entre dans les mains, et qu'on porte avec soi
partout... Heureusement qu'il y a de la graine de moutarde pour se laver...
Oui, c'est rude, allez! les premiers temps... pour tout le monde. [...]. (SP. 8788)
De acordo com Colette Becker, "les Goncourt, avec Sœur Philomène, offrent d’abord
une vision très personnelle de l’hôpital, qui révèle une profonde angoisse devant cet
univers du corps malade, de la mort et de leurs mystères." (BECKER, 2011, p. 14).
Philomène e seu contraponto, Barnier, traduzem fisiológica e psicologicamente o
estertor de suas almas ignorantes diante de tamanho desafio. Metaforicamente, quando é
preciso revolver os próprios sentimentos, penetrá-los a fim de descobrir suas doenças,
aquilo que neles há de mais secreto, fica-se impregnado por suas atitudes e obsessões,
como no caso de Barnier. Ele será profundamente afetado por duas ações que somente
parecem acontecer porque estaria preso à cadeia de eventos do hospital. A primeira
consiste na cirurgia, e consequente óbito, da paciente n. 29. Única a receber um nome,
Romaine foi o primeiro amor do interno, que o abandona e agora precisa ser
urgentemente operada de um tumor mamário. Devastado pelo terror do procedimento,
pelo pânico e desilusão que escapam da boca desta ex-amante nas agonias da morte8,
impotente diante do sofrimento alheio e da culpa que se atribui, Barnier dá o primeiro
passo em direção à sua decadência física e moral. Diz sim a bebida e, num êxtase de
alteração dos sentidos, tenta seduzir Philomène. A resistência da irmã e a humilhação de
um tapa no rosto fazem com que o interno acorde-se no dia seguinte "avec le dégoût de
lui-même" (SP, p. 147). Sem compreender o porquê de seu ato violento, já que nunca a
cobiçara, e sendo tomado pelo sofrimento da mutilação e morte de Romaine, abandonase à bebida. E tudo nele passa a ser desordem e degradação, até que o absinto o
consuma.
8
A carne macerada e o espírito desgovernado, Romaine não hesita a denominar seu antigo amor, agora
algoz a contra-gosto, açougueiro, gritando: "Ah! boucher, comme tu travaillais là dedans!… comme tu
coupais! C’est de la viande pour vous, hein! v’là tout c’que c’est!" (SP, p. 133)
Sessão temática Literatura - 879
Afetando paralelamente a personagem título como o faz com Barnier, o hospital
transforma Philomène. Figura diáfana na abertura do romance, quando desaparece ao
fundo da sala dos doentes após ter seus préstimos brutalmente rejeitados pelo interno,
Philomène ganha voz e contornos ao longo da intriga. Resplandecente, a alvura de seu
hábito confunde-se com a palidez das paredes e das cortinas dos leitos, com a brancura
cândida dos travesseiros que apoiam as cabeças dos que sofrem. O hospital testa-lhe
constantemente os sentidos, a habilidade, a tenacidade. No limiar entre a frenesia de
ação e a instabilidade cenestésica, o corpo de Philomène dá sinais de que a rotina da
instituição a desgasta e a usa à exaustão:
L'émotion retombait sur son corps en une fatigue qui le brisait comme une
nuit de jeu brise le corps d'un joueur. Ses sens avaient des instants de
lassitude où ils se dérobaient sous elle; et un tel accablement s'emparait de sa
volonté physique, qu'il y avait des moments où elle était prête à crier: Assez!
assez pour aujourd'hui! Mais aussitôt elle se métait à remuer, à marcher, à
aller, à agir. Elle s'agitait en se donnant un prétexte; elle faisait quelque
service qu'elle n'avait pas besoin de faire; et ses forces ainsi reconquises
recommençaient à lui obéir et à la servir. (SP, p. 82)
Mas para além da corrupção física e da fadiga, o hospital impregna-lhe os sentidos,
encarna-lhe, a possui até a comunhão:
Le soir, quand elle n'était pas de garde la nuit à l'hôpital, elle rentrait à la
communauté avec la tête vide, la pensée lourde, inerte, incapable
d'application et de mouvement. Elle avait peine à suivre le sens de ses
prières, à rassembler les mots qui les formaient. Il ne lui venait au cerveau
que des idées machinales, un reflet presque matériel de ses sensations
physiques. Ce n'étaient point des souvenirs, c'étaient des images qui
repassaient devant elle, et auxquelles elle s'abandonnait dans une
contemplation paresseuse et absorbée; images d'une illusion étrange qui
rapportaient sans pitié devant son regard la réalité toute vivante! Elle voulait
ne plus rien revoir, elle priait... Mais il lui revenait l'odeur, l'insupportable
odeur que boivent les vêtements, qu'aspirent les pores de la peau: elle ne
voyait plus l'hôpital, elle y était! (SP, p. 82-83)
E, finalmente, encontrando o sublime naquilo de mais odioso, Philomène esquece-se no
seu pequeno claustro de repugnância e dor, transformando-as em delícias inefáveis.
Redescobrir-se no abjeto, é o que faz Philomène entre as paredes da Charité:
C'était, pour la soeur Philomène, la belle heure de sa journée. Elle s'y oubliait,
elle se retrempait à la joie et aux enchantements de cette fatigue si douce. Elle
y puisait l'oubli de tout ce qui était laid, répugnant, redoutable autour d'elle. Et
Sessão temática Literatura - 880
cette matinée lui remplissait si bien l'âme qu'elle en emportait souvent du
courage pour tout le reste du jour. (SP, p. 85)
Transfigurada pela descoberta dolorosa do sofrimento e do caráter inexorável da morte,
Philomène faz-se nova nela mesma, reconstrói-se sobre as bases da doença, do fim e da
serenidade. No exercício concreto do despojamento religioso, Philomène despe-se da
mulher que ainda a habitava, para enfim revestir-se do verdadeiro manto de amor e
devoção:
Tout ce que lui restait de la femme, elle le sentit tout à coup vaincu et dompté
au fond d'elle par la soeur; et, forte dans sa robe comme dans une armure, elle
se jeta à genoux dans le cabinet vitré où elle se tenait le jour au bout de la
salle, et elle remercia Dieu avec un élan de joie. (SP, 87)
E assim, atravessando a personalidade de Barnier e Philomène, imiscuindo-se em seu
quotidiano e em seu caráter, encontra-se o hospital. Ao avaliar a influência desta
instituição nesta obra específica dos irmãos Goncourt, percebemos a força que emana
desta criatura. Mais que um cenário, mais que um espaço, mais que uma ilustração ou
uma representação de seu tempo, o hospital é um personagem do romance. Ele abriga
uma coletividade que ri, chora, transforma. Ele mesmo é alegre nas manhãs, quando
depois das visitas e dos curativos (SP, p. 83). Ele mesmo é desolador, quando o caixote
de madeira transporta o corpo de um paciente que acabou de falecer ("cette affreuse
boîte brune, portée par deux infirmiers, qui voile le cadavre, et donne la terreur du
mystère à l'horreur de la mort", SP, p. 81). Suas paredes abraçam o anfiteatro, palco das
dissecções, e quando a freira as roça com seu hábito, "elle [est] prise d'épouvante,
comme un enfant la nuit", SP, p. 81). É nele que Barnier procura a morte e a encontra,
finalmente. E assim o metabolismo deste corpo pulsante cria tantas angústias nos
protagonistas que estas terminam por devorá-los. Na escuridão do hospital, não se sabe
se Deus ouvirá a última prece de Philomène. A partir da essência deste personagem
singular e inédito imaginado por Edmond e Jules de Goncourt desenha-se um novo
olhar na literatura ocidental.
REFERÊNCIAS
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Sessão temática Literatura - 881
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Sessão temática Literatura - 882
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Excelência Clinica e Miséria em Soeur Philomhne (1861)