Artigo
Este artigo analisa a
complicada relação entre
educação e psicanálise
com base no primeiro estudo de caso de Melanie
Klein, sobre "Fritz", o estudo de Freud do "Pequeno Hans" e um filme
contemporâneo. Todos
eles representam dilemas
da relação criança-adulto,
e o fazem através de surpreendentes questionamentos por parte das crianças
sobre a sexualidade e a
natureza da existência. Esses
textos do arquivo introdu¬
zem também a questão
de 'o que mais a educação pode significar quando se levam em conta a
associação livre e o inconsciente?' Finalmente, o
artigo reflete sobre o difícil conhecimento colocado pelo problema de se
conhecer a história de alguém por meio da questão do Outro.
Psicanálise c o m c r i a n ças; M e l a n i e K l e i n ; sexualidade; educação;
difícil conhecimento
O RETORNO DA
"CRIANÇAQUESTÃO":
U M A LEITURA D O
FILME MA VIE EN
ROSE A PARTIR DE
MELANIE KLEIN
1
Deborah
P.
Britzman
T r a d u ç ã o : L u c i a n a P é r e z de C a m p o s
THE RETURN OF
QUESTION
READING
Pires
"THE
CHILD":
MA
VIE
EN
ROSE THROUGH
MELANIE KLEIN
This paper analyzes
the
uneasy relationship
between education
and
psychoanalysis by way of
Melanie
Klein's first case study of
"Fritz,", Freud's study of
"Little Hans" and a contemporary
film. They all
represent
dilemmas
in
child/adult
relations
but
do so through
the
child's
startling
questions
about
sexuality
and the nature
of
existence.
These
archival
texts also open a
question
of what else education
can
mean when free
association and the
unconscious
are respected.
Finally,
the
paper considers
the difficult knowledge
made
from
the problem
of
knowing
one's history
through
the
question
of the Other.
Child
psychoanalysis;
Melanie
Klein;
sexuality;
education;
difficult
knowledge
O ARQUIVO
Vez
por outra, u m a figura curiosa escapa
2
do arquivo psicanalítico . Pontalis (1981, p.95) cha-
ma essa figura sinistra ( U n h e i m l i c h ) de "a criança-
questão". Ele produz essa metáfora a partir da leitu-
ra do p r i m e i r o e estranhíssimo relato de M e l a n i e
Professora de Educação e diretora d o programa de
pós-graduação em Pensamento Político e Social da
no Canadá.
Klein (1921) da análise de seu York
filhoUniversity
de cinco
anos,
no qual ela leva a cabo o que era chamado na épo-
ca de u m a " e d u c a ç ã o p s i c a n a l í t i c a " . A n t e s de
adentrar na essência dessa metáfora, vale, contudo,
tecer um breve comentário sobre o lugar que esse artigo ocupa na
história do a r q u i v o p s i c a n a l í t i c o , sobretudo o que ele i n a u g u r a
para a prática psicanalítica e sua teoria, e para a educação. Existem,
é preciso lembrar, outras crianças-questão, talvez a mais famosa delas
- a primeira - foi o decepcionante estudo de caso de Freud (1909)
do "Pequeno H a n s " . No entanto, Klein levou essa metáfora a surpreendentes proporções; seu relato afetou o arquivo psicanalítico
de uma forma que o Pequeno Hans não pôde - mesmo tendo feito as mesmas perguntas a seus pais. E n q u a n t o o Pequeno Hans
parecia justificar o uso da teoria psicanalítica, particularmente na
estranha história da ação tardia da angústia infantil, o estudo de
caso de Klein, por sua vez, abriu novas, e profundamente contestadas, visões para a teoria psicanalítica.
3
A t u a l m e n t e , o texto de Klein O Desenvolvimento
de uma
Criança
apresenta-se como uma leitura estranha. Sua escrita é difícil
de ser a c o m p a n h a d a e se p r o l o n g a em frases sem p r o p ó s i t o . O
texto é, na realidade, composto de dois diferentes escritos, com
dois anos de i n t e r v a l o entre eles. A p r i m e i r a parte, escrita em
1919, foi seu trabalho de qualificação para admissão na Sociedade
de P s i c a n á l i s e de B u d a p e s t e . Esse t r a b a l h o r e p r e s e n t a a
primeiríssima tentativa de Klein de relatar a análise de uma criança,
e talvez de proferir outra justificativa à relevância do processo para
a própria criança. Nesse texto, sua crença na educação psicanalítica
e em seu objetivo de esclarecimento sexual é inabalável. Na parte 2
do artigo, entretanto, escrita alguns anos depois, Klein descarta
essa crença e contesta sua insistência anterior na utilidade da psicanálise profilática. A crença na educação e, conseqüentemente, no
esclarecimento - Aufklärung
- do qual a educação era tida como
representante torna-se ambivalente.
Olhado de forma retrospectiva, esse relato também inicia uma
guerra de artigos nas eternas discussões que a autora trava com
Anna Freud . Ao longo de suas vidas, Melanie Klein e Anna Freud
discordariam sobre como interpretar a luta entre realidade e fantasia na análise infantil. Anna Freud (1928) achava que se a fantasia
era o tópico do diálogo psicanalítico, a analista devia, com o intuito de educar, aproximar a criança da tarefa do teste de realidade. No começo, Klein concordou. Mas, em 1923, teve profundas
dúvidas sobre o que o analista devia interpretar. Ao longo de suas
longas carreiras, essas fundadoras da análise de crianças discutiram
sobre o lugar da educação no diálogo psicanalítico com crianças.
Q u a n d o O Desenvolvimento
de uma Criança
foi reeditado, nas
obras completas de Klein (1975), c o n t i n h a u m a nota de rodapé,
a c r e s c e n t a d a em 1947, que n e g a v a c o m m a i o r v e e m ê n c i a seu
primevo otimismo no papel da educação na psicanálise. Nessa nota,
4
a autora caracteriza sua antiga crença
como algo "necessariamente ligado ao
seu c o n h e c i m e n t o p s i c a n a l í t i c o da
época". Ela parece sugerir que o arquivo não envelhece bem e que, em
nosso retorno a ele, devemos interpretar o status de seu conhecimento,
outrora e agora. O artigo causa
estranhamento também porque Klein
analisa seu próprio filho - uma prática aceitável naquele tempo -, embora esse fato seja disfarçado em sua
sinopse do estudo de caso. Seu filho
Erich transforma-se no garoto "Fritz"
do artigo e Klein passa então a se
referir a si mesma na terceira pessoa.
Mesmo Klein descrevendo esse seu
p r i m e i r o t r a b a l h o como " e d u c a ç ã o
com feições analíticas", podemos dizer, em retrospectiva, que esse artigo
também representa o início da técnica psicanalítica do brincar de Klein,
na qual interpretar as fantasias e angústias das crianças tem precedência
em r e l a ç ã o a q u a i s q u e r t e n t a t i v a s
educativas. Aliás, nesse primevo estudo de caso, p o d e m o s v i s l u m b r a r o
i n í c i o do esforço de Klein para escutar analiticamente, para interpretar
não as questões literais que eram form u l a d a s pelas crianças, mas aquelas
que eram deixadas sem formulação.
Dessa forma, a metáfora da "criançaquestão" torna-se rica em possibilidades, i m p r i m i n d o à fantasia inconsciente p r o f u n d i d a d e e surpreendente
força e insistência.
Assim, Klein começa uma educação psicanalítica com seu filho, com
a i d é i a de esclarecê-lo sobre o que
ela chamava de "questões de ordem
sexual". Ao responder quaisquer de
suas questões com honestidade, Klein
pensava ajudá-lo a prevenir que ele
tivesse um futuro de tendências neuróticas, além de, uma vez por todas,
liberar a sexualidade de sua aura de
m i s t é r i o e de g r a n d e p a r t e de seu
perigo (1-2). Mas seu filho já havia
s i n a l i z a d o seu d e s c o n t e n t a m e n t o ;
n e l e , estava já p o s t a , na v i s ã o de
Klein, uma certa inibição da curiosidade. Originalmente, Klein interpretou o apego de Fritz à superstição,
à figura fantasiosa do "Coelhinho da
Páscoa", e, dessa forma, à fé absoluta
de que seus desejos seriam atendidos,
como se ele tivesse p a r a d o de pensar. De fato, Fritz não q u e r i a que
seus desejos e teorias fossem testados
pelo c o n h e c i m e n t o do a d u l t o : ele
não queria ser esclarecido. Mas ele
também não queria esperar a experiência tornar-se história.
As coisas se t o r n a m u m t a n t o
absurdas. A um certo ponto, o garoto de cinco anos, Fritz, acredita que
é um c o z i n h e i r o gourmet,
que fala
francês fluentemente e pode consertar quaisquer objetos que tenham se
q u e b r a d o . E n q u a n t o Klein e x p l i c a
pacientemente que ele não pode fazer
nenhuma dessas coisas - que ele precisa aprender - , Fritz responde calmamente: "Se me mostrarem como se
faz uma vezinha só, eu posso fazer
isso muito bem!" Ele se agarra firmemente a esse belo refrão; é sua últim a p a l a v r a . A l g o s o b r e ter q u e
aprender é omitido e Klein coloca o
que está sendo deixado de lado sob
o título assombroso de "A resistência
da criança ao esclarecimento". É possível, eu acho, perguntar a que exatamente está r e s i s t i n d o , já que outras partes desse primeiro artigo colocam a luta de Fritz sob o grande
tema da existência. Ou seja, Fritz se
pergunta sobre a natureza da realidade e seus julgamentos, a qualidade d o t e m p o , da h i s t ó r i a , e da
memória, a definição de seus direitos e p o d e r e s , o f u t u r o de s e u s
desejos e esperanças, o s i g n i f i c a d o
do n a s c i m e n t o e da m o r t e , e se
Deus existe.
Esses são p r o b l e m a s delicados
que nos levam ao domínio sonhador
da tentativa de simbolização de nosso encontro tanto com a realidade
q u a n t o com a fantasia. E se Fritz
agora está se parecendo u m pouco
com o filósofo Kant, tentando conhecer as coisas-em-si-mesmas e a
toda hora se c h o c a n d o contra sua
própria subjetividade; essas questões
forçam Klein a chegar mais próximo do que nunca de seus próprios
desejos por e s c l a r e c i m e n t o . E é a
partir dessa confrontação que emerge a figura da criança-questão. Será
que Fritz estaria interessado em tentar distinguir entre suas fantasias e
sua realidade? O que pode o conhecimento significar nessa divisão? Por
que ele se agarrou tão firmemente a
suas explicações sobre como o mundo deveria funcionar? Talvez Fritz
estivesse desconstruindo as duas esferas e isso o estava detendo. Embora
Klein comece a pensar sobre onipotência infantil - um modo de pensamento teimoso, que mesmo enterrado por ter de crescer, é a i n d a preservado através de nossos desejos
por aprendizado e existência -, ela
está t a m b é m no p e r c u r s o de sua
p r ó p r i a educação como a n a l i s t a , e
quiçá como mãe. Estranho, então,
u m e s t u d o de caso, que a refreie
q u a n t o a educar seu filho, retome
sua confrontação com sua p r ó p r i a
educação: não o esclarecimento, mas a
natureza (inconsciente) da existência
enquanto tal.
S u p o n h a m o s q u e o p o n t o de
vista inicial de Klein, ao qual ela primeiro chamou de "educação psicanalítica", não esteja além de nosso próprio arquivo, a pedagogia contemp o r â n e a c e n t r a d a na c r i a n ç a . Lá, a
c u r i o s i d a d e da c r i a n ç a d e t e r m i n a o
currículo, o professor profere conhecimento para o uso da criança, o conhecimento é a descoberta de como
as coisas funcionam e a intervenção
do adulto segue os passos das preocupações das crianças e, dessa forma,
a u x i l i a em sua a l t e r a ç ã o . N ã o é o
caso de dizermos que esses objetivos
educacionais não valham a pena; embora eles sejam facilmente desviados
por t u d o que exceda o l i t e r a l , em
outras palavras, nossa resistência para
tudo mais que a curiosidade sinaliza.
Q u a n d o essa orientação sobre como
o c o n h e c i m e n t o se faz o r g a n i z a a
educação psicanalítica, os esforços do
adulto em guiar a criança excluem a
percepção do trabalho do inconsciente. De o n d e vem a c u r i o s i d a d e de
alguém e o que a interrompe precocemente? Se a l g u m a coisa e s t r a n h a
aconteceu a Klein no seu c a m i n h o
em direção à sua educação - se, brevemente falando, ela encontrou "uma
criança-questão" - , algo difícil também acontece com a educação.
Klein tinha dificuldade em conceber a natureza da curiosidade - de
onde ela vem, o que representa, como
ela se desprende de seu objeto e, assim, o que significa apressar essa facilidade. Essas questões também avivaram algo novo sobre sua p r ó p r i a
c u r i o s i d a d e ; Klein descobriu, com a
resistência da criança ao esclarecimento, sua própria resistência
ao que m a i s a c r i a n ç a p e r g u n t a v a . Nós e s t a m o s e n t r a n d o n o
d o m í n i o psicanalítico da transferência: a troca de desejos inconscientes, o deslocamento de nosso primeiro amor para figuras de
autoridade, a transposição de equivalências simbólicas de conflitos antigos e reprimidos para a compreensão de novas situações.
Significantemente, Freud (1912) escreve sobre transferência como
u m a d i n â m i c a , u m a relação, e associa sua indelével assinatura à
permissão de investigação. Ao tentar saber algo novo, nosso arq u i v o p s í q u i c o é aberto. A t r a n s f e r ê n c i a , escreve Freud, nasce
do "compromisso entre as demandas da [resistência] e as do trabalho de i n v e s t i g a ç ã o " (Freud, 1912, p. 103). A l g u m a coisa dentro do p r ó p r i o t r a b a l h o de i n v e s t i g a ç ã o resiste e i n s t i g a suas
próprias demandas. E, em psicanálise, essa resistência pode simb o l i z a r u m p a r a d o x o : há m i s t é r i o na s e x u a l i d a d e e o conhecim e n t o não pode retirá-lo. M a s há t a m b é m m i s t é r i o no conhecimento porque nós temos sexualidade. E nesse ponto que nossa
educação i l u s ó r i a fracassa e naufraga.
Ao ler esse primeiro estudo, pode-se ficar i m p a c t a d o com a
qualidade insolúvel das questões de Fritz e talvez perguntar qual
tipo de trabalho essas questões tentavam realizar. De certa forma,
as exaltadas respostas de Klein a seu filho parecem indicar que ela
também foi capturada por esse mistério. Fritz pergunta: "Como os
olhos ficam dentro? Como uma pessoa ganha a sua pele?". Ocorre
então u m a outra questão: " Q u a n d o serei m a m ã e ? " . No entanto,
mesmo se Klein tentasse respondê-las (e, em breve, veremos as estranhas discussões que suas tentativas produziram), seu filho se recusava a acreditar nela. E Klein passou a acreditar que a prova preferida não era critério para o estabelecimento de u m a realidade
convincente. A realidade teria que passar pela resistência e pela
investigação. As questões dessa criança desafiavam tanto a imaginação dos adultos quanto as noções convencionais de tempo. Afinal
de contas, como você poderia responder à preocupação: onde eu
estava antes de nascer? Ou ainda, quando o garoto se tornará uma
mamãe? Cada questão assemelha-se ao negativo de uma fotografia.
As qualidades particulares das perguntas que ele tentava formular como, por exemplo, como me mantenho inteiro? o que acontecerá
comigo por que eu sou eu? e em que sou parecido com você? podem ser suavemente agrupadas sob o signo da existência enquanto tal. A questão inconsciente pode ser: o que posso fazer porque
fui feito? Até que essa série, ao mesmo tempo estranha e familiar,
de preocupações pudesse ser testemunhada, tanto Klein quanto seu
filho estavam capturados pelo resplendor do Esclarecimento. Quanto mais a criança perguntava, e mais a mãe respondia, mais ansio¬
5
so, repetitivo e estereotipado tornava-se o d i s c u r s o d e l e s . A p r ó p r i a
educação psicanalítica, que implicava
e x p a n d i r a c u r i o s i d a d e , tornou-se
para mãe e filho algo como uma inibição intelectual.
Observe-se a conversa entre
Melanie Klein e seu filho no tópico
de
como
são
feitos
os bebês.
Klein
ofereceu essas explicações na linguagem da criança como uma forma de
ajudar seu filho a desistir de sua teoria de que os bebês são feitos de leite.
C o n t u d o , a l i n g u a g e m da criança é
bastante engenhosa na medida em que
pode sustentar suas primeiras teorias.
Afinal de contas, leite tem, de fato,
algo a ver com isso tudo.
" Q u a n d o começo a falar novamente do ovinho, ele interrompe: 'Eu
sei disso.' Eu continuo: 'O papai faz
uma coisa com o pipi dele que realmente parece com leite e que se chama semente; ele faz isso como se estivesse fazendo pipi, mas só que u m
pouco diferente. O pipi da mamãe é
diferente do do papai' (ele me interrompe) 'Eu sei disso!' Eu explico: 'O
pipi é que nem um buraco. Se o papai bota o pipi dele dentro do pipi
da mamãe e faz a semente lá, então a
semente corre mais fundo para dentro do corpo dela e q u a n d o se encontra com um dos ovinhos que estão dentro da mamãe, o ovinho começa a crescer e se transforma numa
criança.' Fritz ouviu com grande interesse e disse: 'eu queria tanto ver
como u m a criança é feita lá dentro
desse jeito.' Eu explico que isso só
vai ser possível q u a n d o ele crescer,
pois não pode acontecer antes, mas
que então ele mesmo vai poder fazer.
'Mas então eu queria fazer isso com a
mamãe'. 'Isso não pode, a mamãe não
pode ser sua mulher porque ela já é
mulher do papai, e aí o papai ia ficar sem mulher'. 'Mas nós dois podíamos fazer isso com ela.' Eu digo:
'Não, isso não pode. Cada homem só
tem uma mulher. Q u a n d o você estiver grande, a mamãe vai estar velha.'
... 'a m a m ã e sempre vai amar você,
mas ela não pode ser sua mulher.' ...
No final, (ele) disse: ' M a s , uma vez
só, eu queria ver como a criança entra e sai."
6
Há alguns graciosos momentos
de déja'vu
em toda essa confusão entre tempo e timing,
assim como de
agudeza, quando Klein percebe como
essas explicações deixavam Fritz sozinho e triste. Além disso, vale notar o
estranho traço de confiança de Fritz:
o "Eu sei disso!" e seu desejo de ser
elucidado uma vez que pudesse fazêlo por si m e s m o . Essas colocações
p o n t u a m e m a n t ê m em suspenso o
pedido de sua mãe. Klein coloca essa
conversa sob o título de "A resistência da criança ao esclarecimento". A
g r a m á t i c a da r e s i s t ê n c i a se m o v e
para a frente e para trás: o conhecimento da mãe depende da aceitação
por p a r t e de seu f i l h o do f u t u r o
p e r f e i t o . Q u a n d o F r i t z se t o r n a r
adulto, ele poderá fazer essas coisas.
Mas a promessa do tempo é insufic i e n t e p a r a a u r g ê n c i a do t e m p o
presente e para a ação retardada do
passado perfeito da lógica da criança. Há também a paixão entre mãe e
filho, um mistério de vulnerabilidade
que roça as bordas da linguagem.
7
De fato, a vulnerabilidade de mãe
e filho reside na linguagem e é levada
por ela. Mesmo que o adulto use as
mesmas palavras que a criança, ele
pode estar a s s u m i n d o o que Michel
Balint (1992) chama de "nível edípi¬
co da linguagem", quando "as interpretações do analista são vivenciadas
como interpretações pelo paciente."
Fritz, vale recordar, recusa interpretação ao afirmar "Eu sei disso!". Da
mesma forma faz Klein, já que suas
respostas são uma tentativa de instalar, através do conhecimento, a realidade que se esquiva de Fritz. Balint
está precisamente interessado no momento em que a l i n g u a g e m é usada
para s u b s t i t u i r o o u t r o . Ele sugere
que, a l g u m a s vezes, a interpretação
do a n a l i s t a n ã o p o d e ser r e c e b i d a
pelo analisando como uma interpretação. Nesses casos, então, a linguagem
do a n a l i s t a é p e r c e b i d a c o m o se o
analista estivesse castigando, alertando
e perseguindo o analisando. Isso também faz parte da transferência: o conflito psíquico carregado pela linguagem é sentido antes da compreensão.
O nível edípico da linguagem ocorre
q u a n d o a diferença é m u t u a m e n t e
assumida, quando, mesmo se a linguagem n ã o é tão a d e q u a d a , ela pode
g r a d u a l m e n t e ser aceita c o m o u m a
forma de construir entendimento de
estados afetivos não muito facilmente
a c o m p a n h a d o s por p a l a v r a s . B a l i n t
c o m p a r a o nível edípico da l i n g u a gem - nossa facilidade e interesse no
problema da interpretação e diferença
- com o que vem antes disso: u m a
literalidade terrível, um colapso entre
a coisa e o que tenta representá-la.
Essa é a literalidade que Klein (1930)
c h a m o u de " e q u a ç ã o s i m b ó l i c a " ,
quando o símbolo é realidade. O
p r o b l e m a é que há, o que Ferenczi
(1933) notou, " u m a confusão de líng u a s " entre o adulto e a criança. A
l i n g u a g e m do a d u l t o n ã o consegue
apresentar-se como
uma
interpreta-
ç ã o , ou como u m a construção. Assim, a l i n g u a g e m é recebida c o m o
se ela p u d e s s e i m p o r a r e a l i d a d e .
Klein por fim e n t e n d e r i a que n ã o
é possível defrontar-se com a "criança-questão", se o a d u l t o recorrer a
explicações p r e m a t u r a s , defender-se
de forma c o n v e n c i o n a l , ou desejar
esclarecer.
Pode-se dizer que onde há linguagem, há defesa contra a l i n g u a gem. Essa trajetória - uma questão é
feita, u m a resposta é oferecida, e,
então, a i g n o r â n c i a s i m u l a d a deixa
nebulosa qualquer tentativa de diálogo - é p r ó x i m a d o m o d o c o m o
Freud (1900) descreveu a defesa da
"Chaleira" em seu livro
Interpretação
dos Sonhos.
Nessa passagem, um homem empresta a chaleira de seu vizinho e a devolve quebrada. "O defensor afirma primeiramente que nunca
a devolveu quebrada; em uma segunda vez, a c h a l e i r a t i n h a u m furo
q u a n d o ele a e m p r e s t o u , e, n u m a
terceira vez, ele nunca havia pegado
emprestada chaleira nenhuma de seu
vizinho. Quanto mais melhor: se ao
menos u m a dessas três linhas de defesa fosse aceita como válida, o homem teria de ser absolvido" . Veja a
defesa de F r i t z : sua r e s p o s t a está
equivocada, eu n u n c a perguntei sobre essa questão, eu já sabia disso. A
discussão de Alice Pitt sobre o chiste
da chaleira levanta um paradoxo-chave das relações e d u c a c i o n a i s : "Para
que a fala funcione como u m a revelação, algo acontece que é completamente novo e inesperado; a revelação transforma o ego." Se a questão
for para t r a n s f o r m a r , ela deve in¬
8
fluenciar a própria natureza da resposta. M e l a n i e Klein por fim
entendeu que a criança-questão transforma o c o n h e c i m e n t o do
adulto, assim como seu ego e sua capacidade de reflexão. A criança-questão questiona o desejo do adulto e não há n e n h u m álibi
para nossos desejos.
Originalmente, Klein credita muito valor ao papel da educação psicanalítica na cura da ignorância e, talvez, até mesmo dos
erros da existência. Ela achou que a persuasão racional conseguiria
transformar a mente de seu filho, que ela poderia dissuadi-lo de
suas teorias através das palavras, e dessa forma resolver para ele os
mistérios da sexualidade. Mas, ao testemunhar as questões de seu
filho, ela se deu conta de u m a certa repetição no conteúdo do
que seu filho perguntava e no modo como ela respondia. Estamos
de volta à busca do problema da existência. Fritz pergunta: "Onde
eu estava antes de nascer?... C o m o uma pessoa é feita? ... Para que
precisamos de um papai? ... Para que precisamos de uma mamãe?"
Q u a n t o mais Klein explicava, menos a criança pensava. E Klein
observou: "Uma certa 'dor', uma falta de desejo para aceitar (contra o que seu desejo pela verdade lutava) foi o fator determinante
de suas freqüentes repetições da questão." Onde há existência, há
uma certa dor, uma ambivalência. Todas as questões de Fritz começam com o questionamento: "como eu fui feito, de onde eu vim?"
Essas questões, Klein passou a suspeitar, eram também um apelo
inconsciente à história a i n d a não formulada: "O que posso fazer a partir de como fui feito?" Escutar a questão inconsciente
significava, para Klein, virar as costas para o ajuste da realidade, e d u c a d a m e n t e c h a m a d o de " e s c l a r e c i m e n t o " , e colocar-se o
m a i s p r ó x i m o possível da a n á l i s e das f a n t a s i a s . R e s p o n d e r às
questões de seu filho com suas próprias verdades convencionais
cedeu lugar a interpretar as questões em duas l i n h a s : na l i n h a
das defesas e na l i n h a dos desejos inconscientes tanto do filho
q u a n t o da mãe.
Quais são então as características da criança-questão? Em primeiro lugar, as questões da criança-questão veiculam conhecimentos
difíceis. Apesar de tudo indicar contrariamente, a criança-questão
é capaz de pensamentos bizarros, de devolver aos adultos a resistência curiosa de sua própria linguagem edípica. A questão enerva
o conhecimento do adulto, mexe com sua ansiedade e talvez seu
impulso de oferecer a "defesa da chaleira". Na opinião de Adam
Philip (1998), encontrar o que é inesperado requer sintonia com
"algo de valor: uma atenção para a irregularidade, a excentricidade, a imprevisibilidade do que cada pessoa faz com o que recebe
- a s i n g u l a r i d a d e i n a t a da h i s t ó r i a d i s t i n t i v a de cada pessoa".
Estamos de volta à questão da existência: o que posso fazer por¬
que fui feito? "Não é uma questão de indiferença à nossa liberdade," escreve Richard Cohen em sua discussão sobre ética em nossos
tempos, "o fato de que
'somos
9
nascidos '
e não causados,
e por
necessidade temos pais." Nossa liberdade é inexplicavelmente ligada
ao outro, mesmo cada u m de nós percebendo a singularidade do
laço que nos liga.
Nossa criança-questão devolve ao adulto suas próprias prescrições e ansiedades, talvez devolve até mesmo seus próprios pais.
Nessa troca, várias coisas podem dar certo ou errado. A criança¬
questão oferece ao adulto u m teste de realidade não-usual: usar a
questão da criança para encontrar a verdade da existência do adulto. A criança-questão testa a realidade do adulto ao questionar o
c o n h e c i m e n t o do a d u l t o e sua p r o x i m i d a d e com a fantasia. Se
t u d o der certo, para parafrasear Pitt, a fala poderá f u n c i o n a r
como revelação, aliás como o começo de qualquer nova forma de
interpretar o fato de existência. O que Klein percebeu como " u m a
certa dor", uma falta de vontade de aceitar a verdade e u m desejo
pela verdade ao mesmo tempo, anima o desejo. A verdade particular em jogo é, por fim, como cada u m de nós passa a entender
n o s s a s i n g u l a r i d a d e i m p r e v i s í v e l em r e l a ç ã o à s i n g u l a r i d a d e
imprevisível do outro. O erro particular e necessário, e isso nos
traz de volta à questão da onipotência, é que "o ego confunde a si
mesmo com o eu." (Green 2000, p. 19). Se pudermos chamar esse
tipo de verdade de "existência e n q u a n t o t a l " , deve-se, afinal de
contas, fazer uma ressalva, ao mesmo tempo em que se telegrafa o
que Klein chamou de "uma dor particular". Qualquer tentativa de
ajustar seu significado pode parecer um pouco como a defesa da
C h a l e i r a . S i m , as coisas ficam absurdas, a l i n g u a g e m perde seu
objeto; ocorre o que Ferenczi testemunhou como " u m a confusão
de línguas". Contudo, também pode ocorrer prazer.
O
FILME T O C A N T E
1 0
Se no arquivo o tempo permanece parado, então vamos ao
cinema. Lá, também, encontramos uma criança-questão e sua família. No filme Ma Vie en Rose (traduzido para " M i n h a Vida em
Cor-de-rosa") aparece u m a outra criança-questão que se pergunta
continuamente 'qual é a natureza da minha existência para m i m ? '
E, então, 'o que essa natureza tem a ver com reconhecimento e
desentendimento?' A cena de abertura conta toda a história em
m i n i a t u r a : u m garoto de sete anos, de forma c u i d a d o s a e bela,
vestiu-se como uma garota e quer que os outros o vejam. O filme
parece i n t e r r o g a r a p l a t é i a sobre
como vão a c o m p a n h a r o desenrolar
dessa história, assistindo ao desenrolar das personagens e testemunhando
a história de seu próprio aprendizado se desenrolar. Qual é a natureza
da educação aqui?
Nosso garoto de sete anos, Lu¬
d o v i c , tem u m a q u e s t ã o u r g e n t e :
" S o u u m g a r o t o ou u m a g a r o t a ? "
Então, sua p r ó x i m a questão é u m a
e s p é c i e de r e s p o s t a : " q u a n d o me
transformarei em u m a g a r o t a ? " Ele
conta à sua mãe o que ele acredita
que vai acontecer porque se apaixonou por J e r o m e : "Ele vai se casar
comigo quando eu não for u m garoto." Será que o a m o r transforma o
ego? M a i s tarde, Ludovic tenta prever o futuro através da referência ao
que a história descartou; ele elabora
uma teoria do sexo a partir da aula
de b i o l o g i a sobre c r o m o s s o m o X e
Y que sua irmã lhe deu. Nesta oferta
de e s c l a r e c i m e n t o , b i o l o g i a é sina,
não i n t e r p r e t a ç ã o . A isso sua i r m ã
acrescenta u m a a u t o r i d a d e : o texto
da e s c o l a . A c o n f u s ã o de l í n g u a s
provoca um estranho encontro, pois
Ludovic ainda se pergunta: quais as
p r o b a b i l i d a d e s dos c r o m o s s o m o s ?
Será que eles são como dados lançados em direção ao caminho de u m a
p e s s o a ? L u d o v i c b r i n c a c o m essa
aula q u a n d o , logo após demonstrar
seu prazer ao urinar sentado no vaso
s a n i t á r i o , ele c o n t a a J e r o m e : "Eu
sou um garoto-garota. Meu X para
garota caiu dentro do lixo. Foi um
erro científico." Sem ter responsabilidade alguma por isso, Ludovic precisa aguardar para que seu cromossom o p e r d i d o encontre seu c a m i n h o
de volta para casa. Se a natureza pode
se perder, ele parece dizer, é apenas
a ciência que está enganada.
Por u m tempo, os pais de Lu¬
dovic são flagrados na defesa da chal e i r a . Eles, aos p o u c o s , ficam sem
ação, de t a m a n h a p r e o c u p a ç ã o : os
v i z i n h o s estão começando a falar e
afastar-se da família. Os vizinhos parecem culpar os pais por não terem
o controle, por permitirem as identificações de Ludovic, e por respeitálo em p r i m e i r o l u g a r ! E a p e n a s
q u a n d o a mãe vê Ludovic vestindo
sua cueca de frente para trás que ela
procura uma psicóloga, j u n t a m e n t e
com o pai e Ludovic. A p s i c ó l o g a
p e r g u n t a aos pais: "Vocês q u e r i a m
u m g a r o t o ou u m a g a r o t a ? " E há
um momento no consultório da psicóloga em que os pais se confrontam
com sua c o n f u s ã o de desejo, por
meio de uma pergunta não-formulada: "O que é que o desejo inconsciente dos pais significa para a criança?" O que os pais querem? Essa pergunta tem m u i t a força e a resposta
deles é uma confusão de línguas. De
que maneira o desejo dos pais retorna através do que a c r i a n ç a a m a ?
Em u m a segunda cena, a psicóloga
sugere que os pais esperem para ver
e p e r m i t a m que Ludovic decida se
ele quer voltar ao seu c o n s u l t ó r i o .
Sua sugestão é sutil: retardem qualquer resposta para tornar possível a
Ludovic elaborar sua questão. Deixe-o ter tempo de fazer u m a história, antes que ele tenha que se preocupar em fazê-la.
A avó de Ludovic, que se recusa a envelhecer, conta à família: "Eu
acho que devíamos deixá-lo viver sua
fantasia." E por que não? Afinal de
contas, todo m u n d o no filme está
fazendo exatamente isso: a l g u n s vivem sua fantasia de perseguição, outros, como as bonecas encantadoras,
Pam e Bem, são mágicos e neuróticos. Escutem a canção de Pam que o
pai e Ludovic cantam em altos brados: "Eu a l m e j o ser feliz, é c o m o
uma neurose!" A família tenta seguir
o c o n s e l h o da a v ó , m a s a p e n a s
como u m a terapia aversiva fracassada. Eles vão a uma festa com Ludovic trajando um vestido e explicam
aos vizinhos: "Nós estamos deixando
ele encenar sua fantasia para que se
torne banal." Mas, é claro, a banalidade reside no cruel estado de ausência de p e n s a m e n t o dos o u t r o s .
Ludovic, afinal de contas, está sempre pensando.
L u d o v i c é s u s p e n s o da escola
por causa de uma petição de pais e
o diretor pontua: "Seu gosto é muito excêntrico para esta escola." Os
vizinhos desaparecem também; o pai
perde seu emprego; alguém picha na
garagem da casa da família o seguinte
aviso: "Vá embora garoto bicha!" e
nossa criança-questão pergunta: "Por
que é que os garotos bichas têm que
ir embora?" A resposta de sua mãe
repete a lógica da ameaça: "Bicha significa garotos que gostam de outros
garotos." A mãe então corta o cabelo comprido de Ludovic. Vários outros eventos ocorrem e os pais parecem se alternar em suas descompensações. No entanto, o filme faz pouco
por novas possibilidades: Ludovic e
seus p a i s são d e i x a d o s c o m s u a s
q u e s t õ e s . O f u t u r o de L u d o v i c como ele vai aprender a viver, quais
as estratégias que ele vai elaborar, e
c o m o os o u t r o s o a c o l h e m - deve
esperar por u m outro filme, m u i t o
embora nesse filme tocante o futuro
m a l possa esperar. Se, p a r a v á r i o s
adultos, o futuro já chegou e se faz
presente através de sua ansiedade diante de Ludovic, ainda resta a admirável p e r g u n t a de L u d o v i c : o que
fica dessa história?
A Q U E S T Ã O DA
HISTÓRIA
Qual é então o tempo da história? "No que concerne à psicanálise",
escreve André Green (2000) em u m a
palestra sobre experiência e pensamento, "o histórico é u m a noção muito
difícil de tratar." A razão dessa dificuldade tem a ver com qual é a história da psique e, de u m p o n t o de
vista psicanalítico, existem realidades
rivais. A definição de Green sintetiza
u m p o u c o o que M e l a n i e Klein e,
p r o v a v e l m e n t e , os a d u l t o s que circ u n d a v a m Ludovic tentaram encontrar. Pelo m e n o s p a r a a p s i q u e , a
h i s t ó r i a é experienciada como u m a
estranha combinação do "que aconteceu, do que não aconteceu, do que
poderia ter acontecido, o que aconteceu com uma outra pessoa que não
eu, o que não poderia ter acontecido
e... uma afirmação que ninguém teria
nem i m a g i n a d o como representação
do que realmente aconteceu" (Green,
2000, p.2-3). Na avaliação sonhadora
de Green, é difícil separar, de u m a
vez por todas, a experiência de um
evento de nossas esperanças e decepções. Essas escolhas libidinais são fascinantes e, às vezes, persecutórias em
seu alcance. Elas sugerem u m a outra
visão sobre o que Melanie Klein ent e n d e u p o r " u m a c e r t a d o r " , em
que, ao mesmo tempo, se quer e não
se quer a verdade. Nessa outra visão,
o tempo c o n v e n c i o n a l é deslocado;
em seu lugar fica um curioso cálculo da questão que vimos c h a m a n d o
de existência enquanto tal. Nesse cálculo, novamente, o que Phillips chama de "uma atenção para a irregular i d a d e (...) do que cada pessoa faz
com o que recebe" é que parece provocar g r a n d e confusão no m u n d o .
Os pais de Ludovic estão preocupados com a vida de Ludovic e como
será seu futuro. Talvez eles desejem
poupá-lo do o s t r a c i s m o , da dor de
viver a diferença em tantas direções.
Talvez eles se sintam fracassados por
não terem sido capazes de entender
ou i n f l u e n c i a r seu desejo, e talvez
haja, a i n d a m e s m o , u m certo l u t o
pela p e r d a do que eles d e s e j a v a m
para seu filho. Mas não há esclarecim e n t o para Ludovic; ele é tão teimoso q u a n t o seu predecessor neste
artigo, Fritz, e, dessa forma, resistente, não ao que Melanie Klein primeir a m e n t e c h a m o u de os p e r i g o s e
m i s t é r i o s da s e x u a l i d a d e " , m a s à
idéia mesma de escolher uma história
antes que ela possa ser testada. Pareceme que Ludovic quer ser reconhecido
ao mesmo tempo em que reconhece a
si mesmo. E ele pode responder "Eu
sei disso!" com tanta facilidade quanto seus predecessores neste a r t i g o ,
Fritz e o Pequeno Hans.
Se a história é tão complicada,
se ela é o nó feito entre a m i s t u r a
de realidade e fantasia, há também,
na psicanálise, algo bastante simples
sobre isso. Por v o l t a da época em
que Melanie Klein estava completan¬
do a segunda parte do estudo de caso de Fritz, S i g m u n d Freud
retornou ao seu "Pequeno Hans" para acrescentar um pós-escrito.
Freud relatou o caso primeiramente em 1909. Em 1922, um "Pequeno Hans" de 19 anos se encontrou com Freud de novo, para
dizer que leu o estudo de caso, mas mal pôde se reconhecer ali.
Nem pôde lembrar qualquer coisa sobre sua inibição intelectual e
pesquisas sexuais, disse ainda que, ao ler "Pequeno Hans", ele pensou se Freud estaria mesmo descrevendo a si mesmo com cinco
anos de i d a d e . O que r e a l m e n t e o adolescente H a n s l e m b r a v a ?
Freud escreveu: "Portanto a análise não preservou os eventos da
amnesia, mas foi tomada pela amnesia ela mesma." (Freud, 1909,
pp. 148-149) Exceto pelo fato de haver algo de que Hans se lembrava, e que agitou sua memória quando retornou a uma cidade que
visitara uma vez quando criança e a qual associou a Freud.
Esse pós-escrito u n i u d o i s p e d a ç o s da h i s t ó r i a : p r i m e i r o
Freud usou essa ocasião para lembrar seus leitores que, q u a n d o
"Pequeno Hans" foi publicado pela primeira vez, ele causou indignação social; muitos culparam a psicanálise por roubar a inocência
das crianças e por falar sobre curiosidade e teorias sexuais das crianças. O público temeu o futuro e sentiu que a psicanálise, por escavar o passado, teria arruinado o que viria depois. Mas lá estava
Hans, já crescido e bem.
O segundo pedaço da história referido por Freud é paradoxal. Nós temos história, porque temos esquecimento. E a forma
como esquecemos é próxima ao que Freud chamou de "dormindo".
O pós-escrito conclui: "Qualquer pessoa familiarizada com a psicanálise pode, de vez em quando, experimentar algo semelhante quando está d o r m i n d o . Ele será acordado por u m sonho, e decidirá
analisá-lo naquele exato momento; ele então dormirá de novo sentindo-se suficientemente satisfeito com os resultados de seus esforços; e, na próxima manhã, sonho e análise serão igualmente esquecidos" (Freud, 1909, p.149). Que esquisito, então, é encontrar u m a
criança-questão e não interrogar a criança, mas sim a história da
questão. Talvez devêssemos rever a ú l t i m a descrição de Green da
história da psique. Lá Green escreveu: "uma afirmação que alguém
nunca tinha nem sonhado como representação do que realmente
aconteceu." Aqui, podemos escrever "uma afirmação que sonhamos
e então esquecemos." Ainda existe a questão da existência apresentada pelo a r q u i v o e filme: o que acontece c o m i g o sem que eu
mesmo(a) perceba?
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As p e r g u n t a s
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familiares
der
às i n s i s t e n t e s
membros
sobre
mais emaranhadas,
jovens
tornam-se
complicadas
3
A " A n á l i s e de u m a fobia em u m
de c i n c o a n o s " de Freud
um
apanhado
não
viu
sui-generis,
o garoto
já que
realmente,
coleção das consultas
de H a n s
trocou com
em d u a s
garoto
(1909) também
uma única ocasião. O estudo
veu o t e x t o
exceto
estava, naquele
Freud
partes: uma
1 U m a v e r s ã o m a i s breve desse a r t i g o
Early Education
Conference,
momento,
s u l t a s de seu p a i c o m
"Professor
foi
Reconstructing
no Bank Street
Freud"
entre
pai e filho.
como
uma forma
os p e n s a m e n t o s
pai
escredescriHans
a par das
con-
Freud. A figura
é parte
Hans
das
usou
do
conversas
essa
de s i n a l i z a r seus
figura
própri-
p s i c a n a l í t i c o s . Por
p l o , o p a i de H a n s
em
de c a s o é a
e cartas que o
Freud.
é
Freud
ção e e n t ã o u m a a n á l i s e . O P e q u e n o
o r i g i n a l m e n t e apresentada na
e
(p. 3 0 )
Naves.
NOTAS
so-
respon-
dos
saber'
sua
nos
como
demandas
Children's
1995.
crianpesade-
de d o r
da f a m í l i a ' p o r
confusas."
da
e inscreveu
melodia
breviventes, questões
(Catherine Cullen e Philip Cullen,
t r a n s . ) Nova
tocou
familiar,
sobrevivên-
o adulto: "Quando o
fantasmagórica
que
dessa
a criança-ques-
sua h i s t ó r i a
m a i s e s p e c i f i c a m e n t e sobre sua
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97). Hans
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(Conselho
uma
q u e r i a q u e seu p a i
fantasia.
de Pesquisas em C i ê n c i a s Sociais e H u m a n i -
4
d a d e s do C a n a d á ) sob o t í t u l o
meu p r ó x i m o
"Conheci-
m e n t o d i f í c i l no e n s i n o e a p r e n d i z a d o :
questionamento
um
p s i c a n á l i t i c o " , grant # 410-
98-1028. Gostaria também de agradecer J o n a than S i l i n pelo convite para participar
mesa
Recupero
Freud,
uma
Klein
debate
Education:
and
em
Anna
Psychanalytic
que será p u b l i c a d o pela The Sta-
te U n i v e r s i t y New York Press, A l b a n y .
5
longo
desse a r t i g o estarei
citando
porção
de p s i c a n a l i s t a s q u e
utilizam
para
l i v r o After
da
redonda.
a i m a g e m da c r i a n ç a - q u e s t ã o
esse i n t e r e s s a n t e
Melanie
Histories,
Klein
parafraseia
questões.
Ao
(p.
registrasse
"abrir
O
a
maioria
fraseamento
dessas
original
ser e n c o n t r a d o
n a s p á g i n a s 8-9 de O
senvolvimento
de
são e m
inglês).
uma
Criança
(na
pode
Dever-
6 N.T.
R e c o r t e da t r a d u ç ã o
tuguês
Klein,
outros
feita
por
André
para o por-
Cardoso,
M . Amor,
Culpa
e Reparação
trabalhos.
Rio
de J a n e i r o ,
In
e
RJ:
Imago, pp. 55-6.
7
N.T.
No
o r i g i n a l " t e n s e " q u e se
refere
ao t e m p o v e r b a l .
8 N.T. T o d a s as t r a d u ç õ e s de c i t a ç õ e s feitas
daqui
em
diante
foram
feitas
por
mim.
9
N.T. A e x p r e s s ã o "ser n a s c i d o " é c o r r e t a
em i n g l ê s , e, e m b o r a
cia
não tenha equivalên-
em p o r t u g u ê s , o p t e i por m a n t ê - l a dessa
forma
p a r a e f e i t o de p r e c i s ã o da i d é i a de
assujeitamento
ao p r o c e s s o .
10 N.T. No o r i g i n a l "The m o v i n g p i c t u r e "
abre para m ú l t i p l o s s i g n i f i c a d o s q u e
t a m t a n t o p a r a a q u a l i d a d e de
to de u m
filme quanto
para a qualidade
c o m o v e n t e , t o c a n t e , e m o c i o n a n t e do
em q u e s t ã o .
apon-
movimen-
filme
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"criança- questão": uma leitura do filme ma vie en rose a partir