Autonomia Rui Luis Rodrigues Comunidade Carisma, 28 de junho de 2009 Efésios 4:11-16 “Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles, conquistes e possuas por ti mesmo. A natureza encerra outras espécies em leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu próprio arbítrio, nas mãos do qual te coloquei, tu te defines a ti mesmo. Pus-te no mundo a fim de que possas melhor contemplar o que contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil escultor, descubras tua própria forma”. Giovanni PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a dignidade do homem (1486) Introdução 1. Vamos prosseguir, nesta semana, analisando alguns temas que estão presentes no livro que publiquei recentemente. Assim como fiz na semana passada, não pretendo expor um determinado capítulo do livro, mas apanhar ideias que se encontram ali e procurar desenvolvê-las na conversa com vocês. 2. Nosso pressuposto básico – e que tem sido extensamente desenvolvido nesta Comunidade, tanto pelo Anésio quanto por mim – é que a revelação fundamental que Deus faz de si mesmo é como Pai, com todas as implicações decorrentes desse fato. A paternidade de Deus não difere da humana, senão no fato de que é perfeita e, portanto, incansável, ilimitada! “Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai de vocês, que está nos céus, dará coisas boas aos que lhe pedirem!” (Mateus 7:11). 3. Hoje vamos procurar sondar aquela que me parece ser a intenção básica de Deus em seu relacionamento conosco; e que, curiosamente, não é um mistério, mas algo claro a qualquer um que tiver bom senso: como qualquer pai, o que Deus deseja é o crescimento (a maturidade) de seus filhos! A parábola do pai e do filho 1. Vou começar com uma nota de lirismo. Por razões pessoais, inclusive. Ando com saudade do meu pai (ele faleceu em 1999). Esta semana mesmo, pensei que gostaria de estar com ele (aqui! Não lá!), conversar, contar coisas. Só quem perdeu os pais sabe a falta que eles fazem. Pois bem, já que estou nessa disposição sentimental, vou começar com a parábola do pai e do filho. a) O filho nasce. Ele é uma coisa pequena e desajeitada, que chora e enche as fraldas regularmente. Mas está ali e é todo do pai. Qual pai já não sentiu aquela que é uma das maiores alegrias da vida: a de acordar de noite e ir quietinho até o quarto do filho só para escutá-lo respirando? b) Mas o pai sensato sabe que aquela coisinha ali, apesar de no momento ser toda dele, não o será para sempre. O pai não cria o filho para si mesmo. Cria-o para ser dono da própria vida. Cria-o, também, para o mundo no qual deverá viver. c) O filho cresce. E, com o passar do tempo, o pai começa a perceber que precisa, cada vez mais, deixar seu filho ser ele mesmo. Ele o orienta; ensinao; acompanha-o. Mas, finalmente, precisa deixá-lo sozinho. O pai sensato sabe que a dependência exagerada estragará seu filho, fará dele um adulto incompleto, atrofiado. d) Um dia o pai vê o filho tomar uma decisão incorreta. Não pode impedi-lo; o filho já cresceu, é adulto, responde por si próprio. O pai, mesmo não podendo intervir, acompanha-o ainda; mas precisa deixar que ele assuma a responsabilidade por sua própria vida. e) Numa manhã de sol, o pai, já velho, está sozinho em casa. Imaginem aquelas casas de gente velha, cheia de lembranças; o pai já está viúvo, tem os passos lentos, mas a mente ainda alerta. O filho se aproxima da porta (antes mesmo que ele batesse o pai já o percebera); entra. Senta-se, toma o café feito pelo pai, conversa com ele. Nessa conversa, um pouco de tudo: a alegria pelo carinho constante do pai; a gratidão pelos conselhos dados, pelo exemplo; o arrependimento pelas tolices praticadas. E, mais importante do que tudo, no final: o abraço entre pai e filho, aquele abraço que não carece de qualquer perdão explícito, porque tudo já está mais do que perdoado no coração do pai. E, quando o filho se afasta, de volta para sua vida, não vai sozinho. Leva o pai no coração; vai carregá-lo consigo todos os dias da sua vida. E o pai, vendo-o se afastar, alegra-se por ter dado ao mundo um homem. 2. Esse pai é apenas um reflexo humano e imperfeito daquele Pai perfeito, nosso Pai. Será tão difícil acreditarmos que esse mesmo desejo é o que ele nutre em relação a nós: o desejo de criar seres humanos adultos e responsáveis para a vida? Autonomia: o padrão de maturidade de Deus para nós 1. Em nosso trabalho social, sempre enfatizamos a necessidade de fazer das pessoas que auxiliamos sujeitos da sua própria história. Em outras palavras: não podemos construir a vida dessas pessoas; somente elas podem fazer isso! Essa percepção estabelece a distinção, fundamental, entre assistencialismo e ação social libertadora! O que estamos querendo dizer, fundamentalmente, é que precisamos ensinar as pessoas a serem autônomas! 2. “Autonomia”, etimologicamente, significa “lei de si mesmo” (auto = si próprio; nomos = lei). Mas o sentido etimológico passa uma imagem insuficiente do que significa essa palavra. “Autonomia” equivale, de fato, a ser adulto. É este seu sentido legal, aliás (o adulto é autônomo ou legalmente emancipado). 3. Ora, o que nos diz Efésios 4? a) Que, através dos ministérios dados por Deus à igreja, ele pretende que seus filhos sejam conduzidos à maturidade, ou seja, se tornem adultos! “E ele designou... com o fim de preparar os santos... até que todos... cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo. ...não sejamos mais como crianças... Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos...” (ver Efésios 4:11-16). b) Muita gente tem medo disso na igreja. Líderes têm medo de perder seu “curral” (exemplo dos que tentam dizer ao “rebanho” o que ler, o que pensar, em quem votar); cristãos imaturos têm medo da necessidade de tomar suas próprias decisões, por isso não dão um passo sem o “pastor”! 4. Mas “autonomia” não é um conceito negativo? a) Às vezes a palavra é usada para se referir à rebeldia fundamental do ser humano, ao desejo egoísta de “fazer sua própria vontade”. b) Mas esse sentido não esgota o termo. É possível uma autonomia doentia e uma autonomia saudável. A autonomia doentia é aquela vivida por uma pessoa que ainda permanece cativa do egoísmo. Essa pessoa vive no pecado, ou seja, no “fechamento de si mesmo sobre si mesmo (...)”, no “centramento do eu em si mesmo”, na “incapacidade de amar sem egoísmo” (Leonardo BOFF, Jesus Cristo Libertador, p. 149). De fato, é o adulto que ainda não é adulto, porque ainda vive num egoísmo infantil (o egoísmo é característico das crianças!). No fundo, a autonomia doentia é “autonomia” entre aspas, não é autonomia efetiva! c) A autonomia saudável é aquela na qual o ser humano “adquire consciência de seu fundamento divino” (Paul TILLICH, Perspectivas da Teologia Protestante, p. 58), ou seja, reconhece sua base em Deus; a partir de seu encontro com Jesus Cristo, consegue viver uma vida nova, liberta do egoísmo primordial, aberta para os outros e para Deus! Em outras palavras: nascida no Reino de Deus, essa pessoa agora precisa crescer para ser um adulto livre, autônomo e responsável! 5. Isso ficará mais claro se considerarmos que Jesus Cristo é o modelo definitivo de maturidade para nós. a) Temos isso, claramente, em Efésios 4:13 (“maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo”). b) A vida de Jesus como modelo de maturidade: vida totalmente aberta para os outros; em outras palavras, totalmente altruísta. É significativo que, apesar da sua intensa vida de oração, os evangelhos não registrem praticamente nenhuma petição de Jesus para si. Ele pensava o tempo todo nos outros e em Deus! De fato, o único pedido diretamente pessoal (registrado) está em Marcos 14:36 – “Abbá, Pai, tudo te é possível. Afasta de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres”. Um pedido pessoal (graças a Deus, assim o modelo não fica tão distante de nós!); mas logo temperado pela preocupação com o Outro: não a minha, mas a tua vontade! c) Ao mesmo tempo em que valorizava intensamente o humano (a alegria, as festas, a amizade; ver ensino do último domingo, Deus ama o que é humano), Jesus experimentou uma ligação dinâmica com o Pai; sua autonomia não se fez pela destruição da figura paterna, como nos mitos gregos (Zeus assumia seu “lugar” pela eliminação do pai, Cronos), mas pela recepção positiva do legado do Pai. Foi uma autonomia saudável e conseqüente! Ele não se apresenta como um adulto infantilizado, inseguro, que necessita o tempo todo perguntar ao Pai o que fazer. Ele já sabia o que fazer; conhecia o Pai e apenas vivia baseado no que conhecia! João 11:41-42, “Então tiraram a pedra. Jesus olhou para cima e disse: ‘Pai, eu te agradeço porque me ouviste. Eu sei que sempre me ouves, mas disse isso por causa do povo que está aqui, para que creia que tu me enviaste’”. É como se Jesus dissesse: “Só estou orando por causa deles, porque eu e o Senhor já sabemos o que fazer!” É curioso que Jesus geralmente não orava pela cura de ninguém; simplesmente agia! d) Podemos resumir dizendo que Jesus conhecia os movimentos básicos do coração do Pai e os acompanhava. Ele sabia o que preocupava o Pai, e simplesmente se colocava à disposição. Entendendo essas preocupações, podia simplesmente agir com base no que conhecia. E vivia isso com tal intensidade, estava tão preocupado em fazer isso, que não sentia necessidade de se preocupar consigo mesmo! e) Essa vida de Jesus – madura, conseqüente, responsável, altruísta, autônoma no pleno sentido da palavra – pode ser simbolizada por uma história relatada pelo escritor brasileiro Pedro Bloch. Numa conversa com um menino, um adulto lhe perguntou: “Você ora a Deus, menino?” “Sim, toda noite”, o menino respondeu. “E o que você pede a ele?” O menino respondeu: “Nada. Só lhe pergunto se posso ajudar em alguma coisa” (in Andrés TORRES QUEIRUGA, O fim do cristianismo pré-moderno, p. 140). Seria o caso de se perguntar: nessa história, quem é a criança e quem é o adulto? Implicações práticas 1. O que significa essa maturidade na prática, na nossa vivência cotidiana? Vamos procurar traçar algumas linhas. 2. Significa que Deus nos encheu de dons para a vida. É este, fundamentalmente, o sentido da fala de Deus a Adão, imaginada por Pico della Mirandola. “Eu lhe dei dons”, diz Deus ao ser humano. “Use-os! Você tem um dom fundamental, o livre-arbítrio. Empregue-o para usar todas as demais habilidades. Construa a si mesmo e faça um trabalho bonito!” Uma vez que a obra de Jesus Cristo nos resgatou do egoísmo, podemos e devemos nos lançar a essa “obra” (em nós mesmos!) com ânimo, coragem e alegria! Nesse sentido, a importância de desenvolver nosso potencial: cooperar com Deus, fazendo “render” os dons que ele nos deu! 3. Significa que Deus espera que vivamos a vida com coragem. Como Jesus, andando sobre a terra com liberdade, sem inseguranças infantis. Cada vez mais me convenço de que muita pregação evangélica atual gera apenas pessoas inseguras, que não têm coragem de encarar a vida. “Deus precisa fazer por mim!”, é o clamor constante. Mas onde a contrapartida, onde a disposição de agir responsavelmente? Vou usar um exemplo idiota: eu só publiquei um livro porque, primeiro, tive coragem de escrevê-lo! 4. Significa que Deus nem sempre nos livrará de problemas, mas sempre estará conosco. 1) Em geral somos mal-direcionados no que diz respeito à oração. Tratamos Deus como se fosse o gênio da lâmpada! 2) Não quero ficar nas velhas criancices aqui (como orar para ganhar na loteria ou pedir a vitória do seu time!); refiro-me a situações mais complexas. O mundo está cheio de injustiças; as pessoas perdem seus empregos, por exemplo, e isso é terrível. Deus não pode nos livrar dessas situações. Não seria justo se ele livrasse a alguns e não fizesse o mesmo a outros. Da mesma forma, Deus não pode pegar seu currículo (o último da pilha na mesa do entrevistador!) e colocá-lo por cima! Todos os outros são currículos de filhos dele também! E as crises pessoais (no casamento, por exemplo)? “Por que Deus não muda o coração de Fulano?” Porque ele não pode! Ele não violenta a liberdade de ninguém! 3) Mas então Deus não se preocupa? Claro que se preocupa! Ele é Pai! Como o pai humano, que acompanha seu filho, que sofre ao vê-lo em situação difícil, é assim que o Pai se comporta! Mas ele sabe que a interferência, caso fosse possível, caso não fosse injusta, seria mesmo assim um mal; deformaria o caráter do filho, porque ele precisa aprender a viver! Todavia, tenha em mente que Deus não o abandona; ele está com você, e continuará sempre mais perto de você do que você mesmo! 5. Significa que podemos nos associar a Deus na luta contra o mal e contra as injustiças. a) Sinto que nossa “piedade” às vezes nos torna alienados. Achamos que vamos resolver os problemas do mundo com oração. Na maioria das vezes é uma fuga cômoda às nossas responsabilidades! Apenas a oração não muda o mundo, ainda que ela seja fundamental. “Deus, acabe com a fome na Somália!” A resposta: “Vocês são as únicas mãos que eu tenho!” “Deus, envie um anjo para falar com Fulano!” A resposta: “Eu já enviei, mas ele ainda não foi! É você!” Na maioria das vezes, quando oramos por algo o resultado principal é que isso nos sensibiliza – e descobrimos que somos parte da resposta! b) Deus precisa de nós, de nossas mãos, de nossas bocas, de nossos corações comprometidos. Se nos tornarmos legitimamente autônomos, conscientes da realidade de Deus como base das nossas vidas, autênticos como Jesus, então poderemos, como ele, agir no mundo como instrumentos do amor de Deus. Para essa tarefa não são aceitas crianças. É preciso ser adulto, ser autônomo! c) Deus espera nos olhar como aquele pai da parábola que eu contei. Ele quer nos ver indo para a vida, saindo destes lugares de culto para fazermos alguma coisa positiva com os dons que ele nos deu. Ele quer nos ver vivendo com maturidade, com equilíbrio, com generosidade, com beleza. E, ao nos ver enquanto nos afastamos, ele quer se alegrar por ter dado ao mundo seres humanos como nós!