IBASE OPINIÃO Dulce Pandolfi * preparado para votar 74 DEMOCRACIA VIVA Nº 32 Idas e vindas da cidadania política no Brasil republicano Ao longo da sua história, o Brasil conviveu com diversos arranjos políticos institucionais. Períodos de grande fechamento do regime foram alternados com fases de maior participação. E, em função da conjuntura política, as regras eleitorais e os sistemas partidários sofreram modificações substantivas.1 Durante a chamada República Velha (1889–1930), eleições diretas e regulares ocorriam em todas as esferas, e a exigência de comprovação de uma renda anual mínima para ser eleitor, vigente no período imperial, foi suprimida. Entretanto, as eleições não eram competitivas, e o corpo eleitoral era bastante reduzido. De acordo com a Constituição de 1891, poderiam ser eleitores os homens brasileiros maiores de 21 anos, salvo os analfabetos, os mendigos, os praças de pré – excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior – e, finalmente, os religiosos de ordem monástica, companhia, congregações ou comunidades sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importasse em renúncia da liberdade individual. Ora, nos primeiros anos da República, quase 80% da população brasileira era analfabeta. Portanto, a esmagadora maioria estava, a priori, excluída do sistema eleitoral. Quanto às mulheres, que repre- 1Muitas das idéias apresentadas neste texto estão em artigo de minha autoria (2002). sentavam quase a metade da população, embora o texto constitucional fosse omisso, não votavam nem podiam ser votadas. JUL / SET 2006 75 O P I N I Ã O Naquele período, o voto era facultativo e, na prática, a descoberto. Não havia uma justiça eleitoral e cabia ao Legislativo dirigir todo o processo. Além da restrita participação – o número de votantes não atingia 5% da população –, as fraudes eram constantes. Uma das mais usuais era a falsificação das atas. O mesário, por meio da sua “pena”, alterava o número de votantes. Esse procedimento tornou-se conhecido como “eleições a bico de pena”. Não havia cédula eleitoral padronizada, e cada eleitor produzia sua própria cédula. Era comum cabos eleitorais reunirem eleitores em um recinto, conhecido como “curral eleitoral”, onde distribuíam cédulas já preenchidas para serem depositadas diretamente na urna. Outro grave problema era a diplomação dos eleitos. Normalmente, a apuração total de uma eleição durava cerca de um mês. A decisão final sobre quem havia sido eleito recaía sobre uma comissão constituída por parlamentares escolhidos nas suas respectivas assembléias legislativas e presidida pelo mais velho dos eleitos. Quando alguém que constava da lista dos eleitos não era considerado confiável, a comissão não concedia o diploma, ou seja, não confirmava a sua eleição. Segundo a expressão da época, aquela pessoa era “degolada”. Diferentemente da Constituição imperial de 1824, baseada em idéias unitárias e centralizadoras e inspirada em um modelo parlamentar europeu, a Constituição republicana de 1891 era mais liberal e federativa, inspirada no modelo dos Estados Unidos, baseado na autonomia dos estados. Em função do caráter federalista do regime, os partidos eram estaduais e era por meio deles que as oligarquias exerciam forte controle no jogo eleitoral. Os estados mais poderosos, Minas e São Paulo, revezavam-se na Presidência da A Constituição de 1934 era mais liberal e menos centralizadora do que desejava o presidente e, em 1937, por meio de um golpe, instalou-se uma ditadura, conhecida como Estado Novo 76 DEMOCRACIA VIVA Nº 32 República, e os candidatos da oposição não conseguiam ultrapassar 20% dos votos. Era a época da política café-com-leite. No fim da década de 1920, o sistema político entrou em crise. Com o crescimento das cidades e a emergência de uma classe média mais participativa, eclodiram movimentos reivindicando a ampliação da cidadania. “Republicanizar a República” passou a ser a palavra de ordem desses segmentos. As eleições presidenciais realizadas em março de 1930 foram as mais disputadas desde que a República foi implantada. Entretanto, apenas 5,6% da população votou e o gaúcho Getúlio Vargas – candidato oposicionista, apoiado por uma coalizão que reuniu oligarquias dissidentes e setores de classe média – foi derrotado pelo candidato oficial, o paulista Júlio Prestes. Poucos meses depois, em outubro, eclodiu um movimento armado que viria a ser conhecido como Revolução de 30 e que levou, “provisoriamente”, Getúlio Vargas à Presidência da República. O Governo Provisório, sem partidos e sem parlamento, durou quatro anos. Em 1933, em face da realização de eleições diretas para uma Assembléia Nacional Constituinte, foram criados novos partidos. No ano seguinte, foi promulgada uma nova Constituição, e Vargas elegeu-se, indiretamente, presidente da República. Criou-se a Justiça Eleitoral, e o direito do voto foi estendido às mulheres e aos homens maiores de 18 anos. Mas o período constitucional durou pouco. Partidos nacionais A Constituição de 1934 era mais liberal e menos centralizadora do que desejava o presidente e, em 1937, por meio de um golpe, instalouse uma ditadura, conhecida como Estado Novo, que se prolongou por oito anos. Nesse período, todas as liberdades civis foram suspensas, os partidos políticos dissolvidos, e o Legislativo, fechado. Em cerimônia pública, as bandeiras estaduais foram queimadas para sinalizar o fim do federalismo. O Estado tornou-se forte, centralizador e intervencionista. Em 1945, com o término da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazismo e do fascismo, manifestações contra a ditadura intensificaram-se em todo o país. No fim daquele ano, Vargas foi destituído do poder, e foram realizadas eleições para presidente da República e para o Congresso Constituinte. Iniciou-se, então, importante fase da história republicana. IDAS E VINDAS DA CIDADANIA POLÍTICA NO BRASIL REPUBLICANO Uma das inovações foi a criação de partidos nacionais. Do interior do Rio Grande do Sul surgiram duas agremiações, ambas ligadas a Vargas: o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O PSD, principal herdeiro da máquina político-administrativa criada no Estado Novo, tornou-se o maior partido que surgiu no pós-45. Era fruto de uma combinação de interesses das oligarquias rurais e dos novos setores urbanos vinculados à burocracia estatal. Já o PTB foi articulado a partir da estrutura sindical montada durante o Estado Novo e vinculada diretamente ao Ministério do Trabalho. A União Democrática Nacional (UDN), anti-Vargas por excelência, aglutinava segmentos das classes médias liberais urbanas e setores da burguesia financeira. Naquela conjuntura, o Partido Comunista do Brasil, criado em 1922, também se tornou uma força partidária expressiva. Duramente perseguidos(as) pela ditadura Vargas, os(as) comunistas estavam fortalecidos(as) diante da derrota do nazismo e do fascismo que marcou o fim da Segunda Guerra – na qual a então União Soviética teve papel decisivo. Seu líder maior, Luiz Carlos Prestes, que passou quase dez anos na prisão e foi libertado graças à anistia em 1945, desfrutava de enorme prestígio popular. Era conhecido como o “Cavaleiro da Esperança”. A Constituição de 1946 garantiu o funcionamento de uma justiça eleitoral autônoma. O voto, além de direto e secreto, passou a ser obrigatório, e as pessoas maiores de 18 anos podiam votar. Entretanto, analfabetos(as), que naquele período representavam ainda cerca de 60% da população, permaneciam excluídos(as) do processo eleitoral. As restrições também se estendiam aos soldados. Outra grave distorção do sistema implantado em 1946 foi a exclusão dos(as) comunistas do jogo partidário. Em maio de 1947, o Partido Comunista teve seu registro cancelado. O Brasil, em função da chamada “Guerra Fria” – uma acirrada disputa ideológica entre o mundo capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o mundo socialista –, rompeu relações com a União Soviética. Comunistas passaram a ser considerados(as) os(as) principais inimigos(as) do regime capitalista. No Brasil, só recuperaram a legalidade muitas décadas depois, em 1985, quando os países socialistas enfrentavam sua mais séria crise e o comunismo deixava de ser visto como uma ameaça para a manutenção do sistema capitalista. Apesar das limitações, o regime político implantado no pós-Estado Novo, que ficou em funcionamento até 1964, alargou a participação. Se, nas eleições de 1930, o eleitorado representava 5% da população, em 1945 esse percentual subiu para 13%, e, em 1962, para 26%. Além da expansão do eleitorado, ao longo do período, o sistema partidário consolidou-se, e os movimentos sociais se fortificaram. A luta em prol de uma reforma agrária – percebida como condição essencial para diminuir as profundas desigualdades sociais do país – acirrou os ânimos dos setores conservadores. Em 1964, por meio de golpe, o experimento democrático implantado em 1946 foi bruscamente interrompido. Com a implantação da ditadura militar, os movimentos sociais começaram a ser brutalmente reprimidos. Cassações, prisões, torturas, mortes e banimento do território nacional tornaram-se prática corriqueira. Entretanto, ainda que de forma bastante limitada, o regime autoritário, diferentemente do Estado Novo, manteve alguns mecanismos da democracia representativa. Mas, ao sabor da conjuntura, as regras do jogo político eram constantemente alteradas. Enquanto a eleição para a Presidência da República era indireta, realizada por meio de um colégio eleitoral, as eleições para o Congresso Nacional, assembléias estaduais e municipais eram diretas. Um ano e pouco depois do golpe, a estrutura partidária implantada em 1945 foi abolida, e instituiuse o bipartidarismo, composto pelo partido O Brasil, em função da “Guerra Fria”, rompeu relações com a União Soviética. Comunistas passaram a ser considerados(as) os(as) principais inimigos(as) do regime capitalista JUL / SET 2006 77 O P I N I Ã O governista, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido da oposição. Novo sindicalismo No início, o movimento estudantil era o pólo aglutinador das manifestações contra o regime. No fim da década de 1970, importantes greves operárias eclodiram na região do ABC paulista (formada na época pelos municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul). O novo sindicalismo reivindicava o direito de greve e maior autonomia da estrutura sindical em relação ao Estado. Ao lado do movimento operário, movimentos sociais populares e de classe média também ganhavam força. As associações de moradores(as) de bairros e favelas proliferaram em diversas cidades do país. Em 1981, ocorreu em São Paulo o I Encontro Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat). Um dos seus desdobramentos foi o surgimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), ambas organizações autônomas de caráter nacional. Em 1979, a Arena e o MDB foram extintos. Sem dúvida, havia uma demanda de setores oposicionistas exigindo uma reforma partidária, mas existia também uma clara intenção do governo de dividir a principal agremiação oposicionista. O MDB havia se firmado como um pólo importante de oposição ao regime e, a despeito das constantes mudanças das regras do jogo visando favorecer o governo, a Arena diminuía sua votação O Partido dos Trabalhadores tinha suas raízes no ABC paulista e o apoio das comunidades eclesiais de base e representava uma novidade na vida partidária do país 78 DEMOCRACIA VIVA Nº 32 a cada eleição. Para a Câmara dos Deputados, o governo, que havia recebido em 1966 50,5% dos votos, viu seus votos murcharem para 48,4% em 1970, 40,9% em 1974 e 40% em 1978. O MDB, legitimado e enraizado nacionalmente, reagiu à reforma partidária e tentou permanecer com o mesmo nome. Entretanto, a Lei de Reforma Partidária exigia que as novas organizações incluíssem em seu nome a palavra partido. Pela nova composição partidária, a Arena passou a se chamar Partido Democrático Social (PDS). Já o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) tornou-se o sucessor direto do MDB. Além desses dois, surgiram quatro agremiações: o Partido Popular (PP), liderado por Tancredo Neves, que reuniu setores mais moderados do MDB e alguns quadros da antiga Arena; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), liderado por Ivete Vargas, e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, que dividiram a herança do trabalhismo de Vargas; e, finalmente, o Partido dos Trabalhadores (PT), que tinha suas raízes no ABC paulista e o apoio das comunidades eclesiais de base organizadas pela Igreja Católica. Liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, o PT representava uma novidade na vida partidária do país. Antes das eleições de 1982, que ocorreriam na vigência do pluripartidarismo, o governo mudou as regras eleitorais. Proibiu as coligações partidárias e instituiu a vinculação total de votos. Ou seja, o eleitorado só podia votar em candidatos(as) do mesmo partido, fosse para vereador(a), deputado(a) estadual, deputado(a) federal, governador(a) ou senador(a). Um dos maiores temores do governo era perder a maioria no Colégio Eleitoral, que iria garantir a vitória do seu candidato à Presidência na eleição de 1985. Como resposta ao casuísmo, a estratégia adotada por setores oposicionistas foi incorporar o PP ao PMDB. Depois das eleições de 1982, a luta em prol das eleições diretas para presidente da República, as “Diretas Já” – a maior campanha política que o Brasil já conheceu –, ganhou as ruas. Contudo, no dia 25 de abril de 1984, a emenda do deputado Dante de Oliveira, que propunha eleição direta para Presidência da República, foi rejeitada na Câmara dos Deputados por uma pequena diferença de 27 votos. Para ser aprovada, necessitava receber 325 votos, que era o quorum de dois terços exigido para aprovação de IDAS E VINDAS DA CIDADANIA POLÍTICA NO BRASIL REPUBLICANO emendas constitucionais: 298 deputados(as) disseram sim à emenda; 65, não; 113 não compareceram para votar; 13 se abstiveram. No dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, apoiado por setores oposicionistas e por dissidentes do regime militar, foi eleito presidente da República ao derrotar, no Colégio Eleitoral, o candidato do PDS, Paulo Maluf, por 480 votos contra 180 e 16 abstenções. Oficialmente, terminava o regime militar e tinha início o período conhecido como Nova República. Democracia fortalecida Uma nova Constituição foi promulgada em 1988. Apelidada de Constituição Cidadã, concedeu às pessoas analfabetas e a jovens de 16 anos o direito de votar, ampliando consideravelmente a cidadania política. É importante registrar que a exigência da alfabetização para ter direito ao voto foi pouco usual em outros regimes democráticos. Na Europa, apenas em Portugal havia essa exigência, abolida em 1974 quando terminou a ditadura de Salazar. Entre os países da América Latina, o Brasil foi o último a permitir o voto do(a) analfabeto(a). A abolição dessa exigência já havia ocorrido no Uruguai em 1918, na Colômbia em 1936, na Venezuela em 1946, na Bolívia em 1952, no Chile em 1970 e no Peru em 1980 (cf. Nicolau, 2002). A Constituição de 1988 inovou ainda com a adoção do sistema de maioria absoluta nas eleições para presidência, governos estaduais e prefeituras de municípios com mais de 200 mil eleitores(as). Caso nenhum(a) dos(as) candidatos(as) obtenha mais de 50% dos votos no primeiro turno, haverá um segundo turno, quando competem apenas os(as) dois(duas) mais votados. O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei, importantes instrumentos da democracia direta, também foram previstos na Constituição de 1988. Entretanto, somente dez anos após a sua promulgação, que o Congresso Nacional regulou esses dispositivos. Em 1989 foi realizada a primeira eleição direta para presidente da República depois do golpe militar de 1964. A disputa ocorreu em dois turnos, e votaram mais de 72 milhões de pessoas, ou seja, 49% da população brasileira. Em 1994, por emenda constitucional, o mandato presidencial, previsto para cinco anos, foi reduzido para quatro. A idéia era que as eleições presidenciais ocorressem simultaneamente com as eleições para o Congresso Nacional, governos estaduais e assembléias legislativas. Em 1997, uma nova emenda constitucional foi aprovada permitindo que presidente, governadores(as) e prefeitos(as) se candidatassem por mais um mandato consecutivo. Nas eleições de 2002, o número do eleitorado aumentou para mais de 115 milhões de pessoas, aproximadamente 67% da população. Nessas eleições, todos(as) os(as) eleitores(as) fizeram uso da urna eletrônica. Sua primeira utilização foi em 1996, mas só atingiu 57 municípios do país. Além de reduzir as fraudes, a urna eletrônica facilitou o processo de votação, diminuindo a quantidade de votos nulos. Sem dúvida, nas duas últimas décadas da nossa conturbada história republicana – a despeito da profunda desigualdade social e da ainda freqüente violação dos direitos humanos –, os direitos políticos tiveram avanços significativos (cf. Carvalho, 2001). Diferentemente de outros períodos, a legislação em relação à organização e ao funcionamento dos partidos políticos é pouquíssimo restritiva. No entanto, muitas distorções permanecem. Uma reforma que regulamente, por exemplo, o financiamento das campanhas eleitorais e imponha a fidelidade partidária se faz necessária e urgente. Atualmente no Brasil, mais de 70 mil cargos – incluindo presidente da República, governadores(as), senadores(as), deputados(as) federais e estaduais, prefeitos(as) e vereadores(as) – são preenchidos por voto direto e eleições competitivas. Certamente, a distância que existe entre o eleitorado e aqueles(as) que o representam ainda é muito grande. Valorizar o processo eleitoral e ampliar os espaços de participação é fundamental para alargar a cidadania. Mas, para além do fortalecimento dos partidos e do parlamento, instituições básicas da democracia, é necessário pensar e criar novas formas de fazer política. * Dulce Pandolfi Historiadora, diretora do Ibase e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. NICOLAU, Jairo. A história do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. PANDOLFI, Dulce. Voto e participação política nas diversas repúblicas do Brasil. In: GOMES, Ângela; PANDOLFI, Dulce; ALBERTI, Verena (coords.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. JUL / SET 2006 79