Oicram Somar
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Grafologia
Aquelas letras ilustravam todo o caos dentro dele. Difícil seria
distinguir em seu interior seus verdadeiros sentimentos, suas reais intenções, suas
perspectivas, se é que ainda existia alguma, e até a possibilidade de já ter, um dia, tido
passado.
Suas letras revelavam mais que suas palavras, signos caóticos, densas,
conturbadas, fortes, arrogantes, confiantes, aventureiras e venturosas; suas letras
revelavam mundos contraditórios, não um após o outro, mas todos juntos em
combustão, explosões tão fortes que lançavam sinais ao espaço sem fim. Impossível
entendê-las, aquelas letras eram códigos que nem ele após escrevê-las conseguia
decifrar. Ele, assim como suas palavras, estava perdido, embora não parasse de
escrever, quase não falava, escrevia ininterruptamente. Nunca lhe importou o valor de
seus escritos, sua vontade era de registrar o que homem algum jamais conseguira
exteriorizar. Angustia de um “vir a ser” o Deus de si mesmo e único ponto de partida
sem começo, de chegada sem final, apenas um grande meio, um meio que paira e
expande, e se contrai e expande, e se contrai...
Preenchia os papéis ao seu alcance com tanta agilidade, que mau os
marcavam, para logo em seguida, com fúria intempestiva correr a caneta tão rápido
sobre a superfície plana, que a impressão que dava é que tudo seria destruído. Aqui e
ali, palavras saltavam aos olhos, e nos faziam compreende-las entre uma infinidade de
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outras palavras com sentido dúbio, palavras que pareciam serem inventadas, pois não as
entendíamos, devido as letras não serem compreensíveis ou não fazerem sentido para
nós. Assim ele passou seus últimos 10 anos de vida no Sanatório Geral, entre folhas e
mais folhas, escrevendo, sem parar.
Seus trabalhos, se é que aquilo poderia na época ser chamado de
trabalho, foram todos guardados carinhosamente por uma pessoa que o amava muito.
Passado alguns anos, uma mulher começaria a lançar romances que impressionariam
crítica e público culto do mundo todo. Sob o pseudônimo de Somar, ela viria ganhar
muito dinheiro e reputação internacional. Somar nunca deu entrevistas, vivia reclusa e
se negava a receber qualquer quantia pelo seu trabalho. Doava seus direitos autorais a
Instituições Filantrópicas.
Depois de 10 anos de sucesso e dez obras literárias – 3 livros de
contos, 3 romances e 3 obras poéticas -, Somar morre misteriosamente e deixa uma
carta assombrosa como testemunho:
“Antes de mergulhar na mais profunda loucura, Ramos, autor de um
único romance, “A Escrita dos Deuses” disse-me que escreveria milhões de páginas em
suspenso, e que eu deveria editá-las, e que isso me daria o sustento necessário para viver
confortavelmente. Achando que seria mais uma de suas crises de demência, prometi a
ele que faria o que ele me pedisse, já que o amava. Assim que suas crises se tornaram
freqüentes ele foi internado. Ramos começou a escrever alucinadamente, eu só não
saberia que isso iria se arrastar por dez longos anos. Guardei tudo o que ele escreveu, e
após sua morte, ainda não conformada com sua perda, voltei a ler o que ele deixou com
mais atenção. Não entendia quase nada, até que passei a ler somente as palavras que
conseguia decifrar, quando de repente o texto passou a fazer sentido. Não me sentindo
detentora de suas obras, adotei o nome Somar que é o contrário de Ramos e passei a
publicá-las, como ele queria. O resto é história. Deixo esta carta como testemunho, e
todos os manuscritos de Ramos para averiguação. Tenho poucos dias de vida, algo me
corrói e dou por cumprida a minha tarefa”.
A carta foi endereçada a Giorgia Verdi, a grande critica literária e
fervorosa amante dos trabalhos de Somar. Apesar do espanto com notícia tão inusitada,
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Verdi entendeu os motivos que fizeram Somar publicar os livros com um pseudônimo e
não dar crédito a Ramos, era desejo dele ficar incógnita. Acontece que depois de muito
trabalho e estudo, Verdi encontrou um novo código entre aqueles manuscritos. O
primeiro texto que Verdi decodificou, o conto “Até o fim”, lhe daria as regras
necessárias, que nada mais eram que o desejo do misterioso autor, para que novos
romances fossem publicados. Sabemos isso hoje devido as anotações de Verdi em seu
diário, que foi encontrado, como todo diário, após a morte da grande crítica literária.
Verdi, fã daquela literatura fantástica, por respeito à genialidade que nutria por Ramos
publica dez grandes obras literárias, baseados na nova decodificação. Verdi com os
direitos autorais cria a Fundação de Amparo às Crianças Dementes. Depois de muitas
glórias e um prêmio Nobel de Literatura, além de inúmeros outros prêmios literários,
deixa seu testemunho, como o desejava Ramos, e doa todos os manuscritos de Ramos
para a Biblioteca Nacional. Assim, aquelas enigmáticas palavras ficariam à disposição
de críticos e estudiosos do mundo inteiro. Até hoje já foram encontrados 10 códigos
exatos e publicados 100 obras da mais fina literatura, entre contos, romances e poemas.
O código número 11 parece que foi descoberto por Augusta Moravia, da Espanha, no
mês passado, e seguindo a tradição, esperamos que as próximas obras sejam tão belas
quanto as outras 100.
Se tudo correr conforme a previsão que se tem repetido nos últimos
100 anos, Roberta Moravia publicará 10 livros em dez anos, para então uma nova
amante da literatura descobrir um novo código, em meio aos manuscritos de Ramos, e
continuar a saga daqueles papéis onde misteriosamente um gênio, louco, nos deixou
milhares de palavras que se sabiamente ou matematicamente organizadas darão grandes
clássicos. Tudo leva a crer que aqueles papéis, grafados de forma inconsciente, guardam
segredos ilimitados que contam histórias sem fim.
Trecho da obra, A Escrita Sem Fim – Uma Biografia de Ramos, 2001, pg, 9, 10,
11, de Amélia Calvino, Editora Mondoville, Itália.
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Grafomania
Um dos casos mais assombrosos e estranhos que se tem notícia da
mania – do grego, mania, as, loucura, demência – de escrever, conhecido como
grafomania, relativo às pessoas que escrevem compulsivamente em qualquer superfície
é o Caso Ramos.
Pouco se sabe de Ramos: sua infância, juventude, vida adulta. Todas
as especulações feitas a seu respeito fazem menções a suas obras, ou às suas quase
obras, pois tudo que conhecemos de Ramos além de um pequeno livro que o mesmo
editou com suas parcas economias na época – 1880 - e que intitulou “A Escrita Divina”,
ou “A Escrita dos Deuses”, são as obras que terceiros editaram ao decodificar os
códigos que existem em suas milhares de páginas manuscritas que deixou em seus 10
anos de internação no Sanatório Geral. Não são poucas as interpretações a respeito da
obra de Ramos, que tentam entender a sua “genialidade”, ou o fenômeno Ramos, como é
conhecido nos círculos médicos psiquiátricos. Todos os escritos decodificados de
Ramos foram feitos por pessoas que o admiravam e casualmente sem conhecimento
prévio sobre as técnicas de decifração de códigos. Lembramos que certos códigos são
extremamente difíceis de serem decodificados e especialistas no assunto, que estudaram
as decodificações, se espantam como pessoas sem nenhum estudo na área conseguem
chegar a cálculos tão elaborados e ao mesmo tempo de uma simplicidade “irritante”,
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segundo Mark Kenoyer, um dos grandes especialistas do Pentágono, cujos trabalhos
com os escritos de Ramos foram infrutíferos. Por outro lado, alguns críticos e escritores
têm conseguido sucesso surpreendente até agora, mas vale lembrar, sempre de forma
casual, ao menos é o que dizem as pessoas que conseguiram decifrar seus códigos. Por
uma questão que intriga a todos, principalmente àqueles que convivem com estes
mistérios há pelo menos 50 anos, nenhum decodificador explicou pormenorizadamente
o processo de decifração, ou se explicaram, mais complicaram do que elucidaram o
problema. É como se existisse uma fina interação entre código e decodificador, signo e
significado, que não pudesse ser descoberto ou não fosse possível entender, nem para
aqueles envolvidos em suas descobertas.
Muitos especialistas da área da decifração se recusaram a examinar
as milhares de páginas deixadas pelo Grafomaníaco do Sanatório Geral, como foi
chamado Ramos na época de sua internação, com medo de fracassarem em sua
empreitada, outros chegaram a dizer que tudo não passa de charlatanismo, o que é
insustentável e infundado no caso, visto o número de provas e de testemunhos que
estudam o “fenômeno”.
Mark Kenoyer, filósofo e matemático com importantes trabalhos
publicados e um grande admirador de toda a obra de Ramos e suas co-autoras, mesmo
sendo um intelectual de renome mundial, questionado sobre a sua tentativa frustrada de
resolver o Código Ramos, disse com a humildade de um sábio, “que acredito que nem
toda poesia será decifrada, a não ser por aqueles que mais se aproximarem dos confins
do Universo ou de si mesmo”. Em linguagem figurada, talvez Kenoyer, com toda a sua
sensibilidade e argúcia, queira nos dizer, que nem toda revelação se faz pública.
Por Fridha Cutzoal, A Linguagem Secreta de Ramos, Revista Universo Real,
Editora Nacional, México, 1951, p. 15, 16.
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Grafofobia
Izar era um menino em tudo superior aos outros. Sua capacidade
intelectual parecia ser imensa e desenvolvia raciocínios extremamente elaborados para a
sua idade. Cedo aprendeu a ler com pouquíssimas referências gráficas e mais cedo ainda
já rabiscava folhas e folhas com lápis colorido. Os pais de Izar, percebendo a
precocidade daquela criança, tudo fizeram para o desenvolvimento de suas aptidões,
mas parecia que as aptidões de Izar eram infinitas. Aos quatro anos desenhava figuras
geométricas perfeitas sem o auxilio de esquadros, réguas ou compassos; aos seis, seus
desenhos possuíam um colorido e uma harmonia impressionante; aos 12 anos Izar era
capaz de entender Rosseau, Platão, e Kant, para surpresa de seus professores e espanto
de seus amigos que nada entendiam daquilo. Aos 14 anos Izar já colecionava medalhas
em competições esportivas: natação, judô, futebol, surf. A capacidade de Izar
surpreendeu também seu professor de violão, quando aos 8 anos lhe apresentou o
famoso chorinho “Meditando”, gravado mais tarde pelo grande violinista Celso Cavaco.
Izar já conhecido pelas suas aptidões artísticas, físicas e intelectuais guardava apenas
um segredo, aos 18 anos já não conseguia escrever, a simples menção de que tivesse
que rabiscar uma simples palavra lhe deixava em pânico. Aos 30 anos estava Izar
internado no Centro de Recuperação Kalimaya quando teve uma crise nervosa dizendo
ser o autor da famosa obra “Poética do Crepúsculo Sentimental”. Morre alguns dias
depois de derrame cerebral abraçado ao livro.
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Tudo leva a crer que Izar sofreu um grande trauma, quando aos 17
anos não sabendo como declarar seu amor por uma amiga, lhe escreve um grande
poema, de 350 páginas, e é alvo de chacota dela e de suas colegas. Izar que não
conhecia a derrota, aos poucos sofre de uma intensa melancolia e logo em seguida
devido a um trágico acidente automobilístico em que seus pais vêm a falecer, Izar tem
uma crise de nervos que o leva a ser internado.
Soraya Maria aos 27 anos publica o poema “Poética do Crepúsculo
Sentimental”, onde relata o amor de um jovem de nome Izar, por sua amada. O poema
de grande intensidade e explosões emotivas sugere a capacidade de que todos têm de
atingir o Paraíso na terra através da arte erótica, desde que tenham um amor sincero para
se guiarem na jornada interior que leva à perfeição poética. A perfeição poética seria a
capacidade do Ser de descortinar tudo que a natureza oculta, e de revelação em
revelação, atingir o ápice do contentamento, que é a união com a sua amada, o profundo
mistério de quando duas almas se encontram para toda a eternidade. Poema repleto de
figuras simbólicas e de metáforas que suscitou milhares de interpretações, discussões e
estudos desde que foi publicado. Soraya Maria se suicida aos 30 anos de idade
misteriosamente, e deixa seu diário intacto na mesa de sua cabeceira. Alguns anos
depois, sem se saber como, o seu diário aparece na Biblioteca da Cidade e é
“encontrado” por uma das enfermeiras do Sanatório onde Izar sofria calado o seu
destino esquizofrênico. No diário Soraya revela o verdadeiro autor do poema que
publicara como se fosse de sua autoria, a causa daquela poesia, e o verdadeiro motivo
do trágico destino de Izar que amava Maria, e de Maria que não entendia, em sua
adolescência, os complexos sentimentos de Izar.
Dos inúmeros contos retirados da obra de Ramos, com o tema sobre
grafofobia, este talvez seja o mais intrigante, e para muitos, se não resolve, ajuda a
entender a crise que Ramos teve depois de publicar seu único livro e não ser
reconhecido como escritor por uma suposta amante, que alguns estudiosos insistem em
reconhecer em suas obras, como as enigmáticas S’s, pois o nome de todas as
personagens dos romances de Somar, que foi a primeira co-autora de Ramos, começa
com a letra S. Alguns enxergam ainda no pseudônimo “Somar”, as iniciais de Soraya
Maria. Seria Somar cúmplice do verdadeiro e grande amor de Ramos? Carregaria
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Somar este segredo a vida inteira, segredo que a “corroia por dentro”, como escreveu
pouco antes de morrer?
Em se tratando deste autor, as especulações a respeito de sua vida só
aumentam com o tempo, e o paradoxo, a dúvida e as incertezas parecem que nos
conduzem a labirintos tão sofisticados quanto aquele relatado por uma de suas coautoras em que as pessoas se perdiam nos labirintos retilíneos de seus cotidianos. Não
demora muito para a leitora se surpreender da máxima, dita por uma de suas
personagens, que “no infinito as retas paralelas se cruzam, e quando vivemos uma vida
sem surpresas, todo encontro pode ser fatal”.
Galla Lieu, Psicopatologia Gráfica – Estudos da Psique, Editora Oficina do
Psicólogo, França, 1980, ps. 28, 29.
Labirintos Íntimos
Myriane Kaupf em seu ensaio Sobre as Horas do Tempo e os Pontos
nos I’s, procura através de um conto de Ramos, por sua co-autora Aurora Hernandez,
descortinar as vicissitudes da vida levada ao extremo da organização. Myriane com sua
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prosa agradável, porém fecunda, nos leva a refletir sobre as mazelas e o enorme vazio
deixado por um mundo ao nosso redor em que nada mais é surpresa, ou em outras
palavras, estas ainda mais aterradoras: nada seria mais surpreendente.
O conto de Ramos, intitulado “Intimidade”, começa nos relatadando
a vida simples de um casal de namorados que crescem juntos em uma pequena cidade
do interior da Colômbia. Helena e Giacomo nascem na mesma cidade, estudam no
mesmo colégio, freqüentam a mesma Igreja e moram lado a lado durante 25 anos. De
famílias tradicionais e muito amigas, nutrem um pelo outro um carinho e uma amizade
enorme, e em determinado momento em sua adolescência passam a namorar. Helena
não tem segredos para Giacomo e nem este para Helena. Não é preciso dizer que Helena
nunca se relacionou com outra pessoa e nem Giacomo com nenhuma outra mulher.
Tudo que ouviam em casa era que uma vida segura era a fórmula da felicidade e uma
vida segura era estudar, obter o diploma Universitário, ter uma profissão e criar os
filhos. Os pais de Helena viviam dizendo que, “Nós sabemos viver porque sabemos para
onde ir”, já os pais de Giacomo, diziam ao seu belo filho, “Aqueles que não sabem o
que querem, jamais serão felizes”. Um dia Giacomo e Helena, tão bem comportados e
educados, já casados, precisaram sair de sua cidade, pois esta seria inundada por uma
grande represa, devido a construção de uma hidrelétrica na região. No primeiro dia na
nova cidade, uma cidade grande, para a qual se mudam, Helena se perde ao se entreter
no mêtro com um livro de poesia. Passa horas na rua, se desespera, chora, até que
Giacomo a encontra em uma delegacia. A partir deste dia, que foi o pior dia da vida dos
dois personagens, eles resolvem nunca mais se afastar, ou terem qualquer tipo de
surpresas. Assim Giacomo e Helena se muniram de celular, GPS e um computador
portátil, e poderiam a todo o momento Helena rastrear Giacomo, e Giacomo rastrear
Helena. Mas não bastava. As horas em que saíam para o trabalho e as horas em que
chegavam era rigorosamente monitorada por ambos. Tudo era sabido com antecedência:
dias de compras, qual quitanda se dirigir, o médico que consultar, o banco, a escola, o
cinema, o shopping, as horas e os dias de lazer. Para “evitar desconfortos numa cidade
grande”, pois a vida já não era a mesma, evitaram os filhos, pois “este mundo anda
perdido”. Ambos levavam uma vida sem surpresas, sem aventuras. Conheciam o mundo
pela televisão, pela internet. Sabiam através dos GPS’s dos outros, tão bem organizados
quanto eles, localizar uma bromélia na mata atlântica e identificá-la, um animal na
savana da África, um surfista em uma onda Havaiana. Viajavam pelo mundo através da
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televisão e do monitor do computador. Helena conhecia a fábrica que Giacomo
trabalhava, os móveis de seu escritório, a sala de reuniões, tudo através das marcas do
GPS de Giacomo que tudo anotava. Com antecedência já sabia o que a esperava quando
se por algum motivo tivesse que ir busca-lo na fábrica. Giacomo igualmente conhecia a
sala de aula em que Helena ministrava suas aulas, a escola, o pátio da escola e assim por
diante, tudo graças ao GPs e as fotos digitais que Helena mandava para o computador.
Evitavam surpresas e suas vidas seriam seguras e felizes. Giacomo e Helena levavam a
vida de tal jeito que bastava um olhar, um gesto para o outro saber o que fazer, ou como
se portar. Até que um dia eles acordam, se olham no espelho e não se reconhecem. O
conto acaba ai.
Myriane fica imaginando, como o leitor do conto também deve ficar,
o que aconteceria após este “despertar ao contrário”. A autora do ensaio nos convida a
refletir sobre o labirinto que é a vida destas pessoas ditas “pré-modernas”, numa
sociedade altamente computadorizada e informatizada. Giacomo e Helena entraram em
um labirinto sem curvas ou acidentes, um labirinto retilíneo, reto. Mas este labirinto
retilíneo como Myriane gosta de denominar as vidas destas pessoas, um dia hão de se
encontrar com o desconhecido, e este desconhecido vem sem avisar, uma porque “nos
esquecemos um do outro quando nada mais há para se notar de diferente”, outra porque,
como nos lembra Myriane, “no infinito as retas paralelas se encontram” e o “encontro
no infinito é um lugar surpreendente”, nas palavras de Myriane. O ensaio continua
fazendo um convite a todos para que se entreguem a poesia, pois foi assim que Helena
se esqueceu de tudo e se “perdeu” de Giacomo e de seu mundinho tão bem delimitado,
“mas Helena não sabia voar e desesperada com as alturas que tinha atingido se
desespera, louca para voltar a rastejar pelo chão”. A nossa ensaísta interpreta de forma
lúcida, com suas nove décadas de vida, as palavras dos pais de Giacomo e Helena. Para
Myriane o “Nós”, implícito nas duas únicas frases de seus pais no conto representa a
intolerância com o “Outro”, também, implícita nas frases. “É como se dissessem:
existem “Nós’ de menos e “Outros” demais neste mundo, fazendo bobagens, por isso as
coisas estão assim, tão ruins”, em outras palavras deveriam haver mais iguais a “Nós” e
menos iguais aos “Outros”.
Myriane com a sutileza e as metáforas que tanto gosta em seu novo
ensaio interpreta o conto de Ramos de uma forma surpreendente, pois termina seu texto
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dando-nos a latitude e a longitude de sua nova casa nas Bahamas. Tão logo seu ensaio é
publicado na Revista de Estudos Contemporâneos da Universidade de Cali, alguns
internautas munidos de sua parafernália computadorizada identificam no jardim de sua
casa, grandes dizeres, voltados para os céus em que os GPS’s conectados aos satélites
tudo captam: “abracadabra”. Myriane, com seus 90 anos, crítica feroz de uma sociedade
que insiste em fazer tudo virar objeto de consumo, provoca ao longe, sem deixar de nos
surpreender.
Por Ramira Pulvan, para O Caderno de Sinopses, Brasil, 21/10/2005.
Hermenêutica
O conto Holistica-mente, de Ramos pela sua co-autora Dani Kuntz,
não poderia ser mais sugestivo, por representar a atual crise política, comportamental,
religiosa, artística e até filosófica da atualidade, segundo Pizarro Conte, em seu novo
livro Complexidade, onde reúne os seus ensaios e palestras ao longo dos últimos anos.
Pizarro com sua conhecida engenhosidade e capacidade de síntese sugere ao leitor por
meio do conto citado desmistificar a crença de que a ciência, a lógica analítica e as
novas descobertas neurológicas bem como a falência do sistema capitalista em sua nova
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fase neo-liberal possam nos levar a uma sociedade justa e harmônica. Por outro lado,
Pizarro também faz duras criticas àquele pensamento de determinadas escolas de
tendências herméticas que surgem de tempos em tempos igualando o discurso destas
com certos discurso acadêmicos contemporâneo que pecam tanto pelo simplismo
medíocre, como pela verborragia.
A crítica de Pizarro vai de encontro a tendência que todos têm de
procurarem o caminho mais simples para o conhecimento, mistificando o mundo a sua
volta, dando a este “mundo” uma áurea de “conhecimento secreto” ou “a verdade dos
eleitos” para citar apenas dois dos mais conhecidos jargões místicos-religiosos – no
sentido pejorativo - de todos os tempos. O que tem a coloração de parecer uma análise
inteligente e sensata, na verdade é de uma mediocridade e de um “simplismo”
exorbitante, que em vez de formular boas perguntas e buscar as verdades fundamentais,
sem excluir as duvidas que daí certamente surgem, apenas encobre mais ainda a “falta
de capacidade de entendimento e de disciplina que todo estudo requer” e ainda o “medo
da mudança de comportamentos e a incapacidade de todos de agir realmente de forma
desapegada quando temos de abrir mão de nosso egoísmo para um bem comum”. Cabe
aqui o conto de Ramos, por Dani Kuntz na íntegra.
“A escola de Hassan, nos Urais, era das mais conhecidas Escolas
Cientificas e Filosóficas – era assim que Hassan chamava a sua escola, pois “cientifico”
e “filosófico” na época dava uma aura de “inteligência” e “verdade” - do Grande
Império. Na verdade existiam milhares de Escolas Científicas e Filosóficas em toda a
região que cobria o Grande Império. O Grande Império cobria todo aquele planeta. Mas
aquele planeta - para a insatisfação dos líderes do Grande Império – ainda era repleto de
culturas estranhas umas as outras ou se não eram estranhas eram diferentes entre si.
Nada conseguia fazê-las se igualar, apesar dos esforços constantes do Grande Império.
De qualquer forma muitas características de todas estas culturas foram diluídas com o
tempo, seus deuses, suas manifestações culturais, seus usos e costumes. Hassan como
centenas de outros “líderes”, que por pura sensibilidade ou saudosismo dos “velhos
tempos”, procuravam resgatar a todo custo “verdades” ocultas, entre as “verdades
ditadas pelo Grande Império” através dos livros considerados por eles sagrados. O
Grande Império entendia e assim ensinava nas escolas que se uma coisa ou algo fosse
verdadeiro, jamais poderia ser falsa e se fosse falsa jamais poderia ser verdadeira. Isso
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facilitava o contrato social entre as partes, pois o Grande Império ensinava tudo o que
era “verdadeiro” e o que se publicasse fora de seus domínios só poderia ser falso.
Acontece que as muitas culturas não entendiam da mesma forma muitos pontos de vista
do Grande Império e nem entre si, embora todos quisessem fazer parte do Grande
Império, pois era mais cômodo.
Alguns povos entendiam que dentro de casa não se entra de sapato,
outros entendiam, que não havia problemas; alguns eram céticos com relação a uma
causa divina na formação dos mundos, outros já acreditavam nesta possibilidade;
pensadores citavam seus textos e procuravam provar a impossibilidade de uma única
origem que abarcasse toda a multiplicidade, já outros entendiam que seria impossível a
multiplicidade sem uma unidade original que as organizasse; muitos nem sequer
poderiam admitir este Universo como um Universo caótico, já outros negavam qualquer
ordenação real. Aquele planeta era dominado pelo Grande Império, e este procurava a
todo custo infundir uma única língua e formar um Único Homem, paltado nas idéias e
tradições do Grande Império. O problema era como fazer isso se pessoas como Hassan
se negavam a abandonar suas particularidades em favor de um modelo único, que
segundo o Grande Império, traria felicidade à toda comunidade planetária?”.
“Foi assim que o Grande Império passou a disseminar nos meios de
comunicação as mesmas informações, infinitas vezes, como uma “lavagem cerebral”,
acontece que por obra sabe-se lá de quem, textos herméticos passaram a circular pelo
planeta na mesma velocidade que as informações do Grande Império. Assim como as
informações textuais do Grande Império eram claras e de fácil assimilação muita gente
simpatizou com estas verdades e fizeram delas sua única verdade; por outro lado as
verdades dos textos ditos herméticos tinham que ser decodificados, interpretados e
muitos simpatizaram com estas “verdades”, pois dava àqueles que delas diziam entender
uma aura de sabedores daquilo que ninguém sabia e assim a valorização do “saber
oculto” estava garantido a uma minoria dita “inteligente”, com sentido de
“espiritualizados”. Não demorou muito para que o Grande Império percebesse que
estava deixando de atingir uma grande parte da população e passou a lançar no mercado
e nos meios de comunicação seus textos ocultos e a financiar verdadeiros gurus, mestres
espirituais e consultores astrais por todo o Império. As Escolas Cientificas e Filosóficas,
como as de Hassan, que não se alinhavam com o Império, por seu turno, passaram a
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explicar de forma mais simples seus textos herméticos e a instruir a preços módicos
milhares de discípulos por todo o mundo. Passaram também a ter o nome genérico de
Escolas da Sabedoria, mas agora fazendo a política do Grande Império. O Grande
Império sabendo da nova política de marketing de seus “concorrentes” criou pelo
planeta diversas Escolas Alternativas. Por sua vez, os esotéricos, místicos e todo tipo de
intérpretes das escrituras ocultas passaram a se chamar de Escola do Pensamento
Cientifico, dando ao termo “cientifico” um novo significado, mais “espiritualizado” e
em pouco tempo a confusão era tão grande que ninguém mais sabia discernir a política
ou o discurso do Grande Império com o das Escolas de Sabedoria, as Ordem do Santo
Graal, as Associações Científicas, os Centros Filosóficos. O Império conseguira triunfar
através de seu discurso único, embora aparentemente existisse diversos pontos de vista e
opiniões a respeito de tudo justificando o sistema dito democrático. Seus opositores
também se sentiam avançando, visto que suas idéias agora estavam na mídia do Grande
Império. Algumas Escolas Lingüísticas da Ordem Branca, opostas a política do Grande
Império, entendendo a confusão em que tudo se encontrava, disseminou a idéia de que a
revelação da verdade só viria de uma profunda meditação e que as palavras escritas não
tinham o poder de demonstrar a verdade ou a essência da vida feliz. O Império então
lançou as bases de uma terapêutica com ares “científicos” sobre as técnicas meditativas,
e sem demoras agregou ao seu discurso a capacidade de que todos poderiam ter de
atingir tal revelação se ousassem seguir suas técnicas meditativas, que seriam superiores
das Escolas Lingüísticas da oposição. Por reação, algumas Escolas do Oriente Secreto
se sentido inferiorizadas, dissimularam seu discurso e através das Escolas dos Novos
Mestres da Nova Era passaram a entender, através de suas novas interpretações, de seus
textos sagrados, que o verdadeiro conhecimento só poderia ser atingido através dos
deuses que deixava suas mensagens cifradas em búzios, varetas, números e toda sorte de
adivinhações feitas por pessoas altamente qualificadas e iniciadas por suas Escolas. O
Império sempre pronto a novos contra-ataques lança então uma série de livros e álbuns
de figurinhas ensinando como decifrar a arte das adivinhações e coloca em suas
Universidades alguns cursos financiados pelo Estado para a formação de adivinhos,
bruxas e afins. A sua reação veio acompanhado de novas teorias psicológicas e pontos
de vista de práticas de relaxamento corporal da Antiguidade do Oriente. As Escolas
esotéricas criam então novas formas de Tai Chi, Judô, artes marciais e Yoga, assim
como doutrinas que uniam de forma escabrosa conceitos da psicologia moderna com o
sempre fecundo suporte teórico místico religioso de sociedades secretas de algum lugar
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do Oriente. Livros e mais livros, sites e mais sites informavam sobre a veracidade e a
charlatanice disso tudo. Os entendidos diziam que muita porcaria estava sendo
publicada e que os verdadeiros conhecimentos continuavam a ser revelados somente aos
escolhidos. O Império então forma cursos cada vez mais inacessíveis e caros para
formar profissionais que possam combater os poucos escolhidos das sociedades
esotéricas. Aos poucos a dicotomia Escolas Místicas são charlatanice, e Escolas do
Império são honestas se faz. Não se sabe como, mas teorias de que o Império é
dominado por Sociedades Secretas que disseminam o mal são relatadas. Enquanto isso
as Sociedades antes ditas Secretas se fazem cada vez mais transparentes. O Império
lança então sua política de transparência enquanto as Sociedades Alternativas se
afundam nas matas e nos desertos”.
“O Império se aproveitando da situação alargou os seus poderes, a
concentração de renda aumentou, milhares de miseráveis vagavam pelo mundo até que
um colapso se deu naquele planeta, com a decadência das Instituições e dos centros de
saber”.
“Tudo leva a crer que aquela civilização só vai se levantar novamente
o dia em que perceber que todo conhecimento é complexo, e não simplista como queria
o Grande Império; e que o “conhecimento secreto” como queriam os “esotéricos’ ou
“místicos” não é o “conhecimento profundo”; que a verdade não pode se relacionar com
o que não é dito ou dito de forma obscura como queriam tanto os “místicos” e os
“acadêmicos” de plantão, sempre ávidos por fama e o reconhecimento de seus
“discípulos”. Resta saber se um dia ainda isto acontecerá e se pessoas como Hassan terá
condições de mudar junto com o Grande Império, colocarem-se no centro do problema e
efetuar as devidas mudanças, num amplo diálogo que abarque todos e tudo, e suas
múltiplas perspectivas”.
Pizarro vê em Hassan e no Grande Império não só os sistemas que
brigam pelo poder através de um falso conhecimento, mas todos aqueles que se negam a
entender que todo conhecimento é complexo e que deve ser aberto e discutido com
todos sem distinção, e só assim, e não de outra forma, quem sabe, poderemos superar as
mazelas da ignorância, e nos elevar à alturas jamais alcançadas.
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Camille da Silveira, Suplemento Literário Anarquista do Jornal Amanhã é Outro
Dia, 02/06/2006.
Olhos Verdes
“Estranhos olhos verdes aqueles que me fitaram dia e noite. Mesmo
longe eu os sentia me devorando, lentamente, com sede e fome e uma vontade enorme
de me comer. Os mesmos olhos que refletem a luz de todo o universo, agora refletiam
seus sentimentos mais profundos. Eu captava naqueles olhos uma história proibida, que
homem algum, jamais ousou. Seus silêncios velavam nossos sentimentos, mas seus
gestos traiçoeiros denunciavam suas intenções. Insegurança compreensível de uma
mulher que já não era tão jovem, cujas marcas da vida, como tatuagens tribais,
revelavam filhos crescidos, amantes esquecidos, encontros e desencontros, e a solidão
de um futuro incerto, misturado à nostalgia de um tempo de curta memória.”
“Experiente e sabedora de suas limitações, mesmo com seu talento e
sua força diante de mim, ela se mostrava indecisa, um misto de paixão e medo da
aventura. Mas as verdadeiras aventuras não se repetem, por isso sabia que ali seria
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diferente, pois pressentia o perigo de um amor não correspondido, ou pior, de uma
recusa.”
“Eu, com a qualidade de quem espera com calma o que tarda, sentia
que ali seria terreno perigoso, gostava dela, mas jamais a amaria. A velhice, é a solidão
dos que amam e desejam possuir a beleza de um corpo jovem. Ela estava saudosa”.
“Sei que aos poucos me deixei levar pelos seus encantos sutis: um
olhar encabulado, a maturidade de seus gestos, o sorriso triste. Sua experiência de vida
aliada a sua elegância, aos poucos me seduzia, e eu me entreguei aos seus carinhos, me
voltei aos seus caprichos, e mergulhei em seus segredos. Eu era o seu sonho, e entre a
vigília e um sono profundo, fui arrastada por sua doce paixão, pois ela sabia que seria a
última de um ciclo, e eu embriagada pelo meu despertar e pela sua felicidade, a amei
como jamais alguém a amou: com toda a liberdade de expressão, pois só assim, ela o
sabia, sairíamos dali vivas, sem rancores e com a certeza de que tudo fizemos para
sermos felizes”.
“Então, ela me teve, com toda a sua logoplegia”.
Assim termina o mini-conto Olhos Verdes, de Ramos, que foi
decodificado por Isabela Mendes, em seus anos de silêncio, em virtude de uma
autopunição, feita devido a um amor não correspondido. Isabela Mendes, enquanto
cobria como repórter guerras civis em países africanos, ficou durante oito meses
desaparecida em lugar até hoje ignorado pela autora e pelas autoridades locais, e foi
trocada por presos políticos no Quênia em 1983. Acredita-se que Isabela tenha se
apaixonado por uma de suas seqüestradoras e tido com ela um intenso romance. O que
intriga a todos é que a mesma Isabela que já vinha escrevendo belos contos como coautora dos manuscritos de Ramos, impedida de falar devido a seu voto de silêncio,
passa a escrever contos autobiográficos que a fortalecem e acabaram servindo como
terapia a seu trauma tão infeliz. O que fica no ar envolto em mistério e causa certo
incômodo aos especialistas - psicólogos, médicos psiquiatras, críticos literários e outros
- é a circunstância em que os contos foram escritos. A teoria de que Isabela estaria
manipulando o código por ela encontrado antes de seu seqüestro está descartada por
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especialistas que vem estudando a tempos os famosos manuscritos e suas
decodificadoras. Por enquanto o fenômeno permanece sem respostas convincentes e a
ciência ainda é incapaz de elucidar o “problema”, que para Isabela se tornou, se não a
sua salvação, a sua válvula de escape.
Patrícia Cristal, Contos e Contadores, Editora da Gente, 1988, ps. 32, 33.
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Aquelas letras demonstravam todo o caos dentro dele