Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
Autores: Katia Cherix, Cintia Honda, Liliana Prado, Eloisa Roncaratti
Resumo
Este trabalho usa alguns fragmentos clínicos de acompanhamentos terapêuticos (AT)
para falar sobre a importância de se ter um projeto de vida na velhice. Através destes
fragmentos podemos olhar para o at como tendo também a função de auxiliar num
resgate ou construção deste projeto, reafirmando assim, para o idoso, um lugar de
sujeito que tem algo a conquistar no futuro. Falaremos da dificuldade de sonhar este
projeto frente às demandas da família e das limitações físicas e sociais. Lembraremos
a responsabilidade que temos todos frente à estas limitações sendo que nossa idéia do
que é o envelhecimento e nossa angustia frente ao nosso próprio processo de
envelhecimento podem também contribuir para a diminuição das possibilidades do
outro.
Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico, Envelhecimento, Projeto
O projeto no acompanhamento terapêutico de idosos
Introdução
Esse trabalho visa falar do projeto no Acompanhamento Terapêutico (AT)1 e
dos projetos de vida no envelhecimento. Entendemos que o projeto é uma construção
a ser feita durante o AT, um processo desenvolvido em conjunto entre o
acompanhante e o acompanhado. O projeto não nasce do desejo puramente de uma
das partes, ou da simples soma entre elas, mas do campo que se abre através do
vinculo formado entre o at, o acompanhado e seu ambiente.
Diversas vezes, encontramos limites que norteiam o espaço das escolhas e
projetos, como a família, a cidade, a condição social. No caso do envelhecimento, nos
deparamos com fronteiras que algumas vezes aparecem como muros intransponíveis.
São os limites físicos do envelhecimento do corpo; a finitude; as desigualdades
sociais; questões políticas como o não respeito aos direitos ao estatuto do idoso; os
1
Neste trabalho usaremos AT para designar o Acompanhamento Terapêutico enquanto trabalho e at
para designar o acompanhante terapêutico enquanto pessoa.
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
limites geográficos/urbanos que dificultam a circulação dos velhos na cidade.
Esbarramos também nas dificuldades da modernidade como o aumento da velocidade
do tempo e das informações que exigem uma maior flexibilidade perante as mudanças
na vida.
Por nossa sociedade ser organizada em volta do trabalho, quem não está mais
empregado sente a perda de uma identidade e reconhecimento que tinha até então.
Quando o sujeito envelhece, seu papel social muda e assim ele pode se sentir num
lugar social menos valorizado. Muitos idosos ficam perdidos e até deprimidos quando
se aposentam, assim como as mulheres quando perdem a sua função no cuidado da
família. Podemos pensar em projetos possíveis para além do trabalho formal?
Em “Velhice e projeto de vida: possibilidades e desafios” (2005), Vera Lucia
Valsecchi de Almeida nos mostra algumas respostas a essa indagação. Uma delas
seria a veiculada pelo discurso dos experts sobre a qualidade de vida e a importância
do idoso realizar atividades de lazer que mantenham em forma seu corpo. Para a
autora, este entendimento sobre o que seria qualidade de vida deixa de lado a relação
entre o individuo e a sociedade. Podemos então pensar que o idoso teria mais
qualidade de vida quando se sente pertencendo e participando da sociedade. A
participação como sujeito na família e na comunidade contribui à construção de
sentido para vida.
Dessa forma fica possível visualizar a idéia de projeto no AT e de projeto de
vida no envelhecimento. Através dos seguintes fragmentos clínicos podemos
acompanhar a busca de projetos singulares numa nova perspectiva de futuro.
Fragmentos clínicos
Iris
No caso de Iris de 80 anos, a acompanhante foi chamada por sua filha. A filha
tinha se mudado recentemente para a casa com a empregada e dois filhos adolescentes
com o objetivo de cuidar da mãe. Nesta nova configuração familiar, Iris foi perdendo
seu espaço, seus móveis, seu cachorro e sua privacidade. Começou então, a não querer
mais sair de casa, a ficar agressiva, se sentir perseguida e a alucinar. Através da escuta
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
das queixas de Iris, a at percebeu que ela estava tentando preservar um espaço dentro
de sua casa. Ela reagia às perdas através de delírios, queixas de roubo e sendo
agressiva no contato com a família. Depois de inúmeros encontros e conversas com a
filha, os netos e a empregada o motivo do sofrimento de Iris e dos que viviam com ela
foi ficando mais claro, e a relação entre eles melhorou a partir do momento em que
alguns espaços importantes para Iris, dentro da rotina da casa, puderam ser
respeitados.
Odete
A sobrinha de Odete procurou o acompanhamento para ter alguém que
pudesse ajudá-la a cuidar de sua tia. A idéia inicial da sobrinha era da at acompanhar
sua tia ao médico. Na sala de espera do consultório, Odete se abriu com a at dizendo
ser uma pessoa muito independente que escolheu não casar e não ter filhos. Depois de
algumas idas ao médico Odete encerrou os encontros dizendo através da sobrinha que
não tinha interesse em continuar se encontrando com a at. Conversando com a
sobrinha foi possível notar que Odete estava começando a se vincular com a at, mas
sentiu isso como uma ameaça, já que receber o cuidado da at poderia implicar perder
o cuidado da sobrinha.
Nímia
Nímia é uma mulher de 50 anos com um histórico de tentativas de suicídio.
Separou-se recentemente do marido e mora sozinha com dois filhos adolescentes. No
começo do AT, o projeto apareceu como uma tentativa de construir uma vida que
nunca se construiu: procurar emprego, ganhar dinheiro, pagar contas, criar os filhos,
cuidar de sua aparência e procurar novas amizades para se sentir menos “solitária”.
Ao longo dos ATs, ambas perceberam que Nímia era capaz de dar continuidade a
todos estes projetos sozinha e que o verdadeiro projeto do AT por trás destes projetos
era o de mantê-la fora das internações psiquiátricas. Eram através das idas às
consultas médicas, do cuidado da relação dela com a família e da disponibilidade de
escutá-la sempre para que ela não precisasse mais voltar a interromper seus projetos
de vida que se construía o projeto do AT. Neste caso o projeto de vida (tentar voltar
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
ao mercado de trabalho, perspectivas de aposentadoria, separar-se oficialmente do exmarido) não se confunde com o projeto do AT (construir uma rede de cuidados para
evitar a internação).
Helena
A enfermeira conheceu Helena de 90 anos após uma consulta médica na
clinica onde trabalha. Durante a consulta de enfermagem, a profissional tentou
orientá-la sobre os cuidados que teria que fazer em casa. Meses depois desta consulta,
Helena ligou para a enfermeira pedindo que fosse à sua casa para cuidar de um
ferimento aberto. Logo que chegou lá, a enfermeira percebeu que o ferimento não era
grave e que Helena queria companhia para conversar. Após 15 dias, Helena ligou
novamente convidando para tomar um café com bolo. Durante a conversa, Helena
falou sobre sua filha com quem perdera o contato e de uma irmã que morava numa
instituição. A enfermeira sugeriu passar o contato de uma acompanhante terapêutica
mas Helena recusou. No encontro seguinte, a enfermeira explicou que não poderia
continuar visitando-a e que seria importante que ela contrata-se alguém para visitá-la
e ajudá-la a retomar os laços com sua família.
Entendendo os projetos a partir dos casos clínicos
A entrada do at nem sempre é bem vista, o caso de Helena é muito
interessante, pois nos mostra essa situação muito claramente. Apesar de Helena pedir
companhia da enfermeira para realizar seus projetos de vida, não se sente confortável
em oficializar seu pedido. Em algumas situações a contratação de um at pode ser
entendida como uma afirmação de dependência e solidão.
Nos casos de Iris e Odete, fica clara a discrepância entre os projetos, ou
desejos, da família e do acompanhado, e a tentativa do at de fazer uma interlocução.
Para a família de Iris, o importante era manter os cuidados com a higiene e calá-la em
seus impulsos agressivos. Para Iris, o importante era reafirmar seu espaço e sua
autonomia.
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
No caso de Odete, a sobrinha queria uma acompanhante que levasse a tia ao
medico para que essa pudesse tornar-se independente. Odete sentia o desejo da
sobrinha como um abandono, e marcava para a at a necessidade de uma relação
afetiva de intimidade, que quando se inicia é entendida como estranha e insustentável.
Durante muitas das discussões dos casos no grupo de AT, são levantadas
hipóteses sobre as armadilhas das dinâmicas familiares, principalmente o pagamento é
efetuado por algum desses parentes. Como acontece em alguns dos casos citados. O
cuidado para não confundir o projeto do Acompanhamento Terapêutico com o os
desejos familiares acaba sendo redobrado.
No caso de Nímia as perdas ligadas ao processo de envelhecimento, como a
difícil reinserção no mercado de trabalho e a saída dos filhos de casa, se tornam
insuportáveis. Em “A pessoa idosa não existe” Jack Messy nos mostra que lidamos
com as perdas do envelhecimento da mesma maneira que lidamos com as perdas
durante toda a vida. Para Nímia, as perdas vividas atualmente a fazem reviver outras
perdas que nunca foram elaboradas. Para ela, as perdas sempre foram entendidas
como insuperáveis e a morte é vista como a única saída possível.
Segundo o filósofo francês Sartre, o Homem existe no momento em que
realiza seu projeto, que realiza aquilo que projeta ser. Podemos pensar que a
dificuldade de Nímia de lidar com as perdas a impede de projetar-se no futuro. Por
não aceitar as perdas, Nimia idealiza o passado. Frente a impossibilidade de reviver
suas lembranças, a morte aparece como uma opção, talvez a única. A idéia de existir
um projeto é poder transcender a si mesmo, e manter-se em um eterno vir a ser,
movimentando-se sempre em busca de ser aquilo que ainda não se é.
O que observamos na relação do idoso com seu projeto de vida, é que o
projeto permite que o idoso sinta-se como um sujeito a quem algo falta e não como
uma subjetividade que já está pronta, que é em si, que está completa e que não mais
busca transcender. Olhar para alguém como uma pessoa que não tem mais nada a
conquistar, anula sua liberdade, em prol da liberdade de quem se relaciona com ele e o
vê como um ser já concluído. Sartre entende a liberdade como a possibilidade de fazer
certas escolhas dentro de condições que são dadas. É a possibilidade do idoso
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
escolher, desejar e planejar, que o permite responsabilizar-se por sua vida e assim
sentir-se como sujeito.
Já Delia Goldfarb (2004), chama nossa atenção para a importância da escuta
dos idosos. É através das reminiscências que o idoso vai reconstruindo a todo
momento sua história e dando sentido ao passado, ao presente e ao futuro. O at escuta
o sofrimento do idoso ligado as angustias frente à morte, à solidão e ao
relacionamento com a família. Se sentindo escutado, o idoso ganha a possibilidade de
reelaborar sua história frente a alguém que não está ligado ao seu passado.
Em “Fragilidade, envelhecimento e desamparo”, a autora nos fala da penúria
social que é a situação subjetiva na qual alguns idosos se encontram. Além de lidar
com as dificuldades que surgem do processo de envelhecer, da dor das perdas dos
objetos investidos, do corpo, do próprio eu, o idoso também tem que lidar com a
exclusão social e o isolamento. Isso nos faz pensar na necessidade de procurarmos
soluções coletivas para que os idosos, tendo mais espaço de circulação social, possam
fazer novas escolhas, projetos para o futuro e colocarem-se como sujeitos frente à sua
historia, sua família e sua cidade.
Conclusão
Neste trabalho entendemos a importância de projetar-se no futuro para dar
sentido ao presente. O projeto não necessariamente precisa ser realizado
concretamente para dar sentido à vida. Podemos pensar que é a possibilidade de
projetos que sustenta o constante vir a ser. Diante disso, o at pode ser uma ferramenta
importante na tentativa de dar continuidade ou de reconstruir um projeto e assim
possibilitar que o sujeito se lance no futuro. O at pode acompanhar o idoso na resignificação das lembranças do passado, dando assim sentido ao presente e
imaginando um futuro.
Diante da fragilidade do corpo envelhecido a angustia pode nos levar à querer
proteger o idoso dos riscos do convívio social, de preservar sua saúde física. Pensando
assim, acabamos contribuindo para a redução de seus espaços de circulação social e
os idosos se vêem cada vez mais confinados em seus domicílios ou asilos. A idéia do
Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
idoso como alguém que já viveu sua vida e não tem mais planos para o futuro, acaba
aprisionando-os no passado.
Um at de idosos precisaria ter disponibilidade para escutar suas próprias
angustias frente ao envelhecimento e à morte para poder escutar do outro as questões
relacionadas ao envelhecimento do corpo, a finitude, a solidão e as dificuldades de
relacionamento familiar. É importante lembrar que nem a dependência ou a
fragilidade do idoso autorizam destituí-lo do lugar de sujeito, e que também somos
responsáveis pelas possibilidades de construções de futuro através da maneira como
olhamos para o envelhecimento.
Referencias bibliográficas
ALMEIDA, V.L. (2005) Velhice e projeto de vida: possibilidades e desafios
in Complex(idade) Velhice envelhecimento Editora Vetor
GOLDFARB, D. (2007) Fragilidade, envelhecimento e desamparo artigo da
Internet in www.portaldoenvelhecimento.net
__________
(2004)
História,
memória,
identidade
artigo
da
Internet
in
www.portaldoenvelhecimento.net
MESSY, J (1992) A pessoa idosa não existe São Paulo, editora Aleph
PEREIRA, Deise Quintiliano. Sartre fenomenólogo, ago. 2008, vol.8, no.2
artigo da internet in: http://pepsic.bvs-psi.org.br/
SARTRE. J.P Moral e Sociedade , Paz e Terra
VELHO, G. (1981) Individualismo e cultura Rio de Janeiro, Zahar
Download

O projeto no acompanhamento terapêutico de idosos