A CAUSA DE PEDIR NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: em busca de uma
propedêutica teórica científica
Poliana Lino Rodrigues1
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) determina no
artigo 193, inciso IX, que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, [...]" (BRASIL, 1988). Já
o artigo 282, inciso III, da Lei 5.869/73, o atual Código de Processo Civil, dispõe ser
necessário à petição de instauração procedimental indicar "o fato e os fundamentos jurídicos
do pedido" (BRASIL, 1973), devendo ser analisado, “o fato e o direito” - artigo 458, inciso II,
do Código de Processo Civil, enquanto requisito essencial da sentença (BRASIL, 1973).
Relacionada à desnecessidade de ser considerada toda a fundamentação jurídica
apresentada pelas partes, tem-se o disposto nos artigos 126, 130 e 131, também do Código de
Processo Civil, que, ao elencar “os poderes, deveres e responsabilidade do juiz”, lhe
possibilita, em determinadas situações, tamanho “poder”, que seus atos acabam por se
confundir com aqueles que, a rigor, são próprios das partes2. Assim é que, questionado o
limite de atuação do Estado-juiz quando da resolução de conflitos ou, ainda, a caracterização
da fundamentação a que os provimentos se submetem, observa-se, na doutrina tradicional, o
entendimento no qual o Estado-juiz, porque pressuposto de cognição privilegiada em relação
aos demais co-participantes, poderá construir o provimento sem observar a fundamentação
jurídica apresentada pelos outros sujeitos da norma procedimental, indicando, portanto, a
adoção do “princípio” da substanciação como regente da causa de pedir.
[...]
Para a substanciação, adotada por nossa lei processual civil, o exercício do direito de
ação deve se fazer à base de uma causa petendi que compreenda o fato ou o
complexo de fatos de onde se extraiu a conclusão a que chegou o pedido formulado
1
Graduanda em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
onde é Monitora da disciplina Teoria Geral do Processo e Coordenadora de Pesquisa no Núcleo Acadêmico de
Pesquisa. Pesquisadora no Instituto de Investigação Científica Constituição e Processo. Pesquisadora no grupo
de pesquisa denominado “Dos direitos e garantias processuais penais: uma análise a partir das decisões das
cortes internacionais de direitos humanos”, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais.
2 Do mesmo modo, nas disposições relacionadas aos Juizados Especiais tem-se a Lei n.º 9.099/95, que não exige
do autor fundamentação jurídica. É o que se observa do disposto no artigo 14, parágrafo 1º, inciso II, da Lei. É
possibilitada a construção do provimento a partir do reputado como mais justo e equânime pelo Estado-juiz,
artigo 6º (BRASIL, 1995). Em tal especialidade, "basta ao autor apontar genericamente o título com que age em
juízo" (THEODORO JUNIOR, 2013, p. 382), o que acaba por indicar a adoção da individualização enquanto
"princípio" regente da enunciação da causa de pedir.
2
na petição inicial. A descrição do fato gerador do direito subjetivo passa, então, ao
primeiro plano, como requisito que, indispensavelmente, tem de ser identificado
desde logo. [...] (THEODORO JUNIOR, 2013, p.382).
É de se verificar que a defesa do “princípio” da substanciação se encontra fundada
justamente no artigo 282, inciso III, do Código de Processo Civil que, como já se observou,
sobre tal possibilidade não faz menção. E ainda, o novo Código de Processo Civil, instituído
pela Lei nº 13.105/153, ao caracterizar o fundamento qual o provimento deve se submeter,
também não o vincula à fundamentação jurídica arguida pelas partes. Pode se dizer que, por
fim, que é a substanciação "princípio" não por disposição legal e sim por "consenso
doutrinário".
Nesse contexto é que se faz necessária uma análise crítica de tal "princípio". Verificar
o discurso embasador da não consideração de toda a fundamentação jurídica das partes
quando da construção do provimento é essencial para aferir o escopo de sua aplicação e,
ainda, a possibilidade de sua admissão no Estado Democrático de Direito. A análise
esclarecedora, teorizada de institutos jurídicos, mormente daqueles que implicam na mudança
do mundo da vida dos cidadãos pela jurisdição, é necessidade elementar da ciência
processual. No Brasil, desde José Alfredo de Oliveira Baracho, tal análise se relaciona ao
devido processo legal como direito ao processo institucionalizado na Constituição de 1988 e
que é
impostergável e representativo de conquistas teóricas da humanidade no
empreendimento secular contra a tirania, como referente constitucional lógicojurídico, de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas
procedimentais nos seguimentos da administração, legislação e jurisdição. (LEAL,
2012, p.88)
Tal análise, ainda, rompe com aquilo que inaugurado por Oskar Von Bülow, ao se
embasar no direito romano e teorizar tecnicamente o processo com o propósito apresentar
fundamentos histórico-sociológico pretensamente autorizativos da migração do
controle social para mãos da magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção
de técnicas que permitissem a desvinculação dos julgadores das abordagens
formalistas ou legalistas na aplicação do direito, municiando, com isso, a
magistratura de instrumentos de dominação idênticos aos dos pretores e magistrados
em Roma. (LEAL, 2008, p.62)
Proposição esta que se vinculou as mais diversas teorias ou técnicas processuais
desenvolvidas desde Bülow e que não podem ser admitidas no Estado Democrático de
3Atualmente o novo Código de Processo Civil aguarda o período de vacatio legis para entrar em vigor.
3
Direito, não acriticamente, pois que têm o processo como "instrumento do Estado para o
exercício do poder jurisdicional" (THEODORO JÚNIOR, 2013, p. 2). Havendo direitos
fundamentais (fundantes da democracia) instituintes do processo, como o contraditório e a
ampla defesa, não pode este ser mero instrumento do Estado-juiz. No Estado Democrático de
Direito e, mais especificamente, a partir de uma proposta neoinstitucionalista, o processo é
instituição constitucionalizada que possibilita o contraditório, a isonomia, a ampla defesa e,
com isso, a coautoria do cidadão na construção do direito. A cidadania, portanto, é tida
[...] como direito-garantia fundamental constitucionalizado, só se encaminha pelo
Processo, porque só este reúne garantias dialógicas de liberdade e igualdade do
homem ante o Estado na criação e reconstrução permanente das instituições
jurídicas, das constituições e do próprio modelo constitucional do Processo. (LEAL,
2012, p.31)
Assim é que ultrapassados os ideológicos Estado Liberal e Estado Social o direito
[...] só pode cumprir a função de estabilizar expectativas de comportamento se ele
preservar uma conexão interna com a garantia de um processo democrático através
do qual os cidadãos alcancem um entendimento acerca das normas de seu viver em
conjunto.[...] (OLIVEIRA, 2002, p.66)
Por conseguinte, necessário se faz desenvolver, constantemente, uma reflexão crítica
sobre à legitimidade decisória a partir de institutos e “princípios” como o da substanciação e
da indivisualização da causa de pedir de molde a analisar se os seus discursos se admitem no
direito democrático. Façamo-lo!
REFERÊNCIAS
BRASIL, Código de Processo Civil (1973). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869compilada.htm. Acesso em: 01/09/2014.
BRASIL, Constituição (1988). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01/09/2014.
BRASIL, Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: 01/09/2014.
BRASIL, Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm#art1045. Acesso
em 01/08/2015.
4
BRASIL, Projeto de Lei do Senado n.º 166 de 2010. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97249. Acesso em:
05/09/2014.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Aide, 2012.
LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte:
Mandamentos, FUMEC/FCH, 2008.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo primeiros estudos. 11. ed.. São Paulo:
Forense, 2012.
MADEIRA, DhenisCruz.Processo de conhecimento &cogniçãouma inserção no Estado
Democrático de Direito. Curitiba:Juruá, 2008.
CARVALHO NETTO, Menelick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado
da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de
constitucionalidade das leis no Brasil um pequeno exercício de Teoria da
Constituição.Disponívelemhttp://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=w
eb&cd=1&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Farthurguerra.weebly.com%2Fuploads%
2F1%2F5%2F5%2F9%2F1559351%2Fa_contribuio_do_direito_administrativo_menelick.do
c&ei=qBscVLPxIcfLgwSIj4CQCA&usg=AFQjCNE_CNmCqhfAe3ojw94OkIpC1zJeZA&si
g2=A8jCcVG_VUClHmPsKi5KiQ&bvm=bv.75774317,d.eXY. Acesso em 19/09/2014.
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba:Juruá, 2008.
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civilteoria geral do direito
processual civil e processo de conhecimento. 54. ed. Rio de Janeiro: Forense,2013. v.1.
Download

A CAUSA DE PEDIR NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO