UMA INVESTIGAÇÃO ETNOGRÁFICA SOBRE OS FLANELINHAS QUE FAZEM DA
PRAÇA PADRE CÍCERO DA CIDADE DE JUAZEIRO DO NORTE – CEARÁ UM
LUGAR DE ORDEM E TRABALHO.
Gilmária Henllen Gondim Gomes1
[email protected]
Faculdade Paraíso - Juazeiro do Norte
Joselina da Silva2
[email protected]
Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri
Virgínia Cavalcante Coelho3
[email protected]
Universidade Federal do Ceará - Campus Cariri
INTRODUÇÃO
Este texto é parte integrante e inicial da Pesquisa “Flanelinhas x Sociedade – uma leitura
da Sociologia Jurídica”, que se propõe a analisar a atuação dos flanelinhas na Praça Padre Cícero,
uma das mais centrais da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará. Nosso objetivo nesta investigação é
observar o uso do espaço urbano através da atuação de um grupo de trabalhadores inseridos no
mercado informal da cidade e sua relação com a sociedade circundante e com os usuários dos
serviços por eles oferecidos. Voltamos nossa curiosidade acadêmica para atuação dos guardadores e
lavadores de carros, alcunhados como flanelinhas, abrigados no perímetro adjacente à referida
praça.
Nesta busca, chegamos à Praça Padre Cícero às 7:30h de um dia útil, tão logo por volta do
horário de fluxo dos trabalhadores formais chegarem ao seu destino de trabalho. Observávamos
desta praça um movimento rítmico de pessoas. Porém, entre os transeuntes, pouco se via flanelinha
na área. Depreende-se daí, a idéia de que a experiência destes trabalhadores informais lhe legara
1
Acadêmica do Curso de Direito pela FAP. Integrante do N’BLAC.
Profª Adjunta do Curso de Biblioteconomia da UFC / Campus Cariri. Doutora em “Ciências Sociais” pela UERJ.
Coordenadora do N’BLAC – Núcleo Brasileiro, Latino Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais ,
Gênero e Movimentos Sociais.
3
Profª Assistente do Curso de Administração da UFC / Campus Cariri. Mestre em “Ordem Jurídica Constitucional”
pela UFC. Integrante do Grupo de Pesquisa LIEGS/UFC – Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Gestão Social –
UFC.
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conhecimentos do seu ofício. Portanto, torna-se oportuno discorrer sobre como se dá a organização
do trabalho destes agentes econômicos informais e como se opera sua relação com o meio físico e
humano.
A praça ia ganhando forma de comércio. Víamos por todos os seus arredores diversos
outros trabalhadores: topiqueiros, taxistas, mototaxistas, engraxates, quiosqueiros, guardas
municipais por fim, flanelinhas. Todos dividindo a ocupação do mesmo espaço, todos se
beneficiando dele, cada qual à sua medida. A referida praça ia se revelando, não como um mero
cenário da cidade, uma variável independente dos fenômenos ou tramas sociais que se lhe alojam,
mas como um terreno estremecido por diversas possibilidades de significações. Nesta conjectura,
dizemos que a praça vai constituindo significados conforme os grupos sociais vão dela se
apropriando.
Os espaços da praça, planejados para os encontros amorosos, para as caminhadas
vespertinas, vão sofrendo diversas incursões, subvertendo os usos planejados e delimitando
hipoteticamente fronteiras físicas e sociais. De um lugar que ostentava liberdade do uso coletivo, a
praça vai paulatinamente passando a assumir o lugar da ordem e do trabalho. É deste lugar que
surge esta investigação. Diversos questionamentos podem ser apresentados diante deste universo,
tais como: qual o perfil do trabalhador inserido neste mercado? Qual a sua relação com a sociedade
circundante e com aqueles que usufruem os seus serviços? Faixa de renda... qual o perfil de
habitação? Qual a longevidade na profissão? Qual o gênero da maioria dos envolvidos neste labor?
Que bens materiais possuem? Qual a relação com o espaço que ocupam?
Estas inquietudes cognoscitivas aceitas à luz de uma investigação empírica, a príori, nos
remonta a idéia do quanto é admissível tecer um olhar sociológico e jurídico sobre os flanelinhas,
cujos quais têm se apresentado na trama da vida real como personagens ativos da economia
informal. Estes trabalhadores informais, a fim de sobreviver, vendem sua força de trabalho e, por
assim fazer, demonstram a capacidade que lhes foi delegada de alterar a natureza por meio da
comunicação criativa e inteligente em função de adaptá-la às suas necessidades e conveniências.
“Tal qual a linguagem, o trabalho é atributo inerente do homem” (LIMA; 2007:07), por isso,
investigar o trabalho que os flanelinhas executam na Praça Padre Cícero se mostra um desafio
palpitante do ponto de vista da Sociologia Jurídica, haja vista que, na teia de relações que envolvem
os flanelinhas, liberdades e direitos se confluem.
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COMPOSIÇÃO TEÓRICA ACERCA DO USO DO ESPAÇO URBANO E DAS RELAÇÕES
SOCIAIS MANTIDAS NESTE ESPAÇO
É pacífica, na literatura, a compreensão de que os fenômenos sociais coexistentes numa
determinada época se plasmam de maneira dominante no espaço físico-social, quando as formas
sociais supervenientes vão absorvendo ou eliminando elementos basilares antes vigentes, cujos
quais melhor representam a nova mentalidade político-social acerca dos diversos e divergentes
ordenamentos da vida em sociedade.
A relação entre os fatores da vida social (política, religião, armas,crença, raça) é
variável historicamente; cada grande época, cada grande conjuntura social,
reordena os elementos da vida coletiva. No mundo dito ocidental, o predomínio
histórico da burguesia surgiu paralelo com a consolidação do capitalismo como
economia expansiva e acarretou a gradual subordinação de muitos dos conteúdos
da vida social às pautas econômicas. (SALDANHA, 2003:74).
Essas formas sociais, as quais Pontes de Miranda denominou de “círculos-tipos”, ressoam
diretamente no modo como os sujeitos sociais vão tecendo a ocupação e uso do espaço físico e suas
relações neste espaço. Assim, apoiado neste entendimento, qual seja das formas sociais serem
legados culturalmente (re)construídos, é possível admitirmos que o espaço urbano vai sendo
alterado e moldado conforme os interesses dos grupos sociais, em espaços com significados
próprios, tecidos de uma lógica vigente. Neste trabalho, adotamos a idéia da racionalidade
weberiana como a lógica mobilizadora do engenho humano sobre o espaço que ocupa, tanto o físico
(urbano), quanto o social (relações intersubjetivas). A modernidade ocidental da qual fazemos parte
dita a racionalidade como veia propulsora das condutas humanas. Uma das ordens contidas nos
moldes da vida moderna diz respeito às razões de caráter econômico.
Contrariamente ao período medievo, em que as ações humanas eram regradas por intensos
e substanciais preceitos religiosos e divinos, hodiernamente podemos investir na afirmativa de que a
essência que move o homem encontra matizes em outras fontes. Em corolário ao exposto, Saldanha
(2003:117) destaca que o Renascimento se caracterizou como marco nesta metamorfose de
mentalidade,
convergiram nesta época, várias tranformações decisivas: o advento da economia
monetária, o humanismo científico e literário, o cisma luterano, as expansões
marítimas, as novas técnicas. Com isso tudo, a urbanização crescente dos estilos de
vida, o racionalismo intelectual, a ampliação do comércio, a gradual secularização
da metalidade. A secularização consistiu basicamente numa substituição dos
padrões religiosos por padrões leigos, racionais e mundanos.
No bojo desta historicidade vemos a Reforma Protestante, que, desde os séculos XVI e
XVII, passou a ser responsável por uma verdadeira revolução do pensamento. É o que afirma
Andrade (2004:88) ao declarar que, “a partir da expansão do protestantismo pela Europa Ocidental,
as atividades e compromissos dos homens passaram a ser guiados pela conduta ascética e pela ação
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racional que visa fins”. O resultado disso foi a racionalização das condutas sociais em todos os seus
aspectos. Segundo Weber, apud Andrade (2004:89), “o protestantismo não foi a única causa do
surgimento e consolidação do capitalismo, mas sem ele a sua evolução teria sido muito diferente”.
E, continua: “o capitalismo não é um fenômeno econômico como parece em princípio, mas o
resultado de um complexo processo sócio-cultural.”
Fazendo uma conjectura destas ponderações, pertine destacarmos um outro conceito
weberiano do qual este trabalho despende. No rol da sociologia compreensiva, Weber circunscreve
as ações sociais sob a ótica dos tipos puros de dominação. A princípio covém tornar clarividente o
que venha a ser ação social na perpectiva weberiana. Portanto, segundo Weber, apud Saint-Pierre
(1999:54), que por ação deve-se entender uma conduta humana, que pode ser um omitir ou permitir,
carregada de um sentido subjetivo para o sujeito ou os sujeitos envolvidos na ação. Ainda neste
escopo esclarecedor, Saint-Pierre (1999:109) discrimina os tipos de ações, categorizando-as em
racionais e irracionais. No primeiro grupo constam: a ação racional orientada a fins
(zweckrationalistat), que se caracteriza pela expectativa depositada no comportamento tanto dos
objetos mundanos quanto dos outros homens, e ação racional voltada a valores (wertrationalistat),
guiada pelos princípios e crenças impressos na conduta. No grupo das ações irracionais, têm-se: a
ação afetiva, determinada por afetos e sentimentos atuais de todo tipo, e a tradicional, determinada
por um costume arraigado.
Uma ação pode repousar em constelações de motivos e intenções de índoles muito
diversas, mas sempre haveremos de situá-las em um destes tipos supracitados. A evidência de um
destes tipos sobre os outros vai determinar a dominação dos tipos puros, ademais, esta dominação
precisa ser legítima para se perpetuar. A dominação vai se configurando como tal quando impele o
indivíduo a fazer aquilo que ele não faria naturalmente. As constantes intervenções do homem sobre
a realidade física e social impõem a tônica da submissão de uns sobre outros, seja pela dominação
tradicional, carismática ou racional-legal. Assim, ‘inconcluimos’ esse prólogo teórico acreditando
que a ocupação do espaço urbano e as ações sociais mantidas nele estão carregadas de sentido
sociológico, uma vez que espelham a matriz de uma ordem cósmica vigente.
PRAÇA - LUGAR DA ORDEM E DO TRABALHO
Ao investigar um pouco da dinâmica do trabalho dos flanelinhas, percebemos que eles têm
uma lógica organizacional, a qual é disciplinada por normas de conduta, elaborada por eles
mesmos, que precisam ser respeitadas para garantir o convívio harmônico entre eles. Destarte, este
lugar que outrora fora palco de brinquedos e brincadeiras das crianças e suas famílias, encontra-se
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incontestavelmente dividido por pontos de atuação dos flanelinhas. Os quatro perímetros que
demarcam a forma quadrangular da Praça Padre Cícero são vistos por segmentos retilíneos que se
transmutam em seu lugar de trabalho (pontos) e se revestem de uma ordem tácita. Conforme o
mapa, os segmentos são negociadamente divididos por 20 a 30 flanelinhas.
Não há uma ordem civil que discipline a conduta dos flanelinhas em seu labor, porém, há
uma ordem implícita e legitimada pelo silêncio e anuência de todos eles, ordem esta que garante
sobremaneira a relação mantida, fazendo da Praça Padre Cícero um lugar da ordem e do trabalho.
Por constituírem um grupo social, os flanelinhas imprescindem de regras e normas coletivas que
orientem suas vidas aos fins colimados e ao mesmo tempo assegurem a ordem e a paz entre si e os
demais. Ilustra-se daí uma praça que vai se sedimentando em plenário de leis consuedutinárias, de
modo que as condutas reiteradamente adotadas vão se plasmando em costumes infiltrados na
sociedade e, talvez, valorados e aprovados por ela.
Sem intenção de exaurir a lista de razões que levam os flanelinhas a fazer da praça um
lugar de ordem e de trabalho, investimos no momento por aquela que corrobora com o discurso de
um dos mais recentes paradigmas sociais, nutrido pela lógica dos direitos humanos, do qual o
trabalho se traduz como um valor essencial a dignidade humana, de tal monta que o direito ao
trabalho se encontra no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II) da Carta Magna, em
seu Capítulo I, art. 5º, XIII: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas
as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Ao trabalhar, os flanelinhas não só o faz pela questão de sobrevivência, mas também
porque o trabalho enobrece e tonifica o sujeito economicamente ativo, em cidadão com identidade
trabalhadora para efeitos de estabelecer, como consumidor, relações no setor econômico. Assim, os
flanelinhas vão compondo a categoria dos profissionais informais e autônomos. Deduzimos que a
autonomia que o trabalho de flanelinha oferece prestigia o cumprimento dos seus deveres laborais, a
exemplo o seu horário de chegada e de saída no labor. Quem faz a hora de trabalho é o próprio, pois
sem patrão, ele rege-se pela sua vontade, necessidade ou conveniência.
PRAÇA PADRE CÍCERO: A DIVISÃO TERRITORIAL DO TRABALHO
Conforme nos informou um dos entrevistados, este trabalho nesta praça data
aproximadamente meados dos anos 90 e surgiu inicialmente com o serviço de lavar o carro. Com o
passar do tempo é que se desdobrou nesta outra atividade, qual seja a de pastorar o veículo. As
condições de segurança que as cidades de grande e médio porte vêm sofrendo foram assimiladas
pelos flanelinhas e, valendo-se do engenho humano em agregar valor ao trabalho, eles foram
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percebendo que a tarefa de velar o carro lhes renderia retorno, quando da não procura pelo serviço
de lavagem do veículo. Assim, entre uma ação e outra, eles vão se situando na Praça Padre Cícero
em pontos.
k
x
No mapa apresentado, o ponto X está sob o domínio exclusivo de um único flanelinha,
porque, conforme explicação oferecida, este ponto corresponde a uma delimitação menor em
comparação ao ponto vizinho, além de que, no ponto X, alguns carros são de propriedade dos donos
de estabelecimentos locais. Estes, por sua vez, não rendem lucro ao flanelinha, haja vista estarem
estacionados defronte ao seu estabelecimento comercial. Traduz-se, portanto, em não precisar do
serviço de proteção oferecido por este trabalhador informal. Destes proprietários, só lhe
remanescerá o pagamento pelo serviço de lavagem do carro, quando este for solicitado ou
autorizado.
No ponto K, diferentemente do ponto X, atuam 3 flanelinhas, os quais compartilham
um mesmo ponto, exigindo-lhes dispor de certa norma para assegurar o convívio harmônico na
relação de trabalho que estabelecem entre si. Os três se beneficiam do referido ponto conforme a
destreza e habilidade no ofício que escolheram, fazendo-nos lembrar uma relação de mutualismo. A
regra que norteia suas ações laborais passa pelo viés do respeito à iniciativa de atuação do outro, de
modo que quem chegar primeiro na abordagem do motorista, passa a tê-lo como seu cliente;
todavia, a vaga mantém-se de todos.
No ponto Z verificamos outra forma de ocupação. Neste lado estabeleceu-se a norma
apelidada por “o da vez”, o que significa dizer que sempre um dos três flanelinhas que dividem este
ponto estará na vez para oferecer a vaga do estacionamento. Dentre eles, sempre terá um que tomará
para si a demanda e garantirá (ou não) o benefício da oferta. O carro atendido na chegada por um
dos flanelinhas, também será despachado na saída pelo mesmo. Este movimento vai se dando
contínua e subseqüentemente. Assim, modela-se uma das atividades laborais do flanelinha
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O acesso ao ponto impõe algumas restrições e não está inclinado a recepcionar qualquer
sujeito que se propõe no desejo de ser flanelinha. O ponto está subjugado às determinações dos que
lá estão fixados. Assim, podemos perceber no depoimento de um dos entrevistados, quando
perguntado sobre o como fazer para adquirir um ponto na praça: “Só se um deles viajar ou fizer
alguma coisa e deixa pro colega ficar aí respondendo, aí, num ponto aí. (...) Entra no avulso; que
muitos deles aí não deixa entrar não. E entra assim, querendo entrar, na briga, assim, querendo
entrar.”
A ECONOMIA INFORMAL NA PRAÇA
O negócio informal desenvolvido pelos flanelinhas produz uma renda que não advém
somente da vigilância que prestam sobre os carros. Soma-se a esta o serviço de lavagem e
polimento, embora a maior parte do tempo eles passem ‘velando’ o bem móvel. Com raríssimas
exceções, o carro sai do estacionamento sem que seja abordado por um deles. Embora a regra
estabelecida por um dos grupos seja de que o flanelinha que atende é o mesmo que despacha,
algumas vezes aplica-se a exceção. Isto ocorre quando aquele que atendeu precisa ausentar-se.
Assim, ele deixa um outro sobreavisado. Percebemos com isso que, apesar de ser um trabalho de
índole informal, vulnerável e muito peculiar, o ‘ofício’ de flanelinha é também revestido de uma
lógica funcional.
O nosso prematuro entendimento em admitir o flanelinha como um trabalhador, com
funções definidas, fins determinados e trabalhadores identificados, deflagra-se nos discursos
proferidos por aqueles entrevistados e se constitui, pelas suas narrativas, em ponto de divergência.
Por razão ainda não explorada, os flanelinhas não reconhecem a entrega do dinheiro por parte dos
condutores como uma espécie de pagamento, e sim como uma doação ou oferta, salvo os casos de
lavagem e de polimento. A falta deste reconhecimento refuta a nossa concepção inicial. Esta
particular dissensão merece, pois, atenção especial. Portanto, neste propósito, dispomos de algumas
respostas emitidas pelos informantes, as quais foram dadas mediante a seguinte pergunta: por que
você (flanelinha) acha que as pessoas pagam? “Pagar não, dar.” / “Porque vê que nós merece, fica
o dia todo aqui.” / “Porque a gente vive disso e a gente merece.” / “Porque tem muita gente boa
nesse mundo de meu deus.”
Esta antítese está profundamente marcada pelos discursos elencados anteriormente. O fato
de acreditarem que ‘merecem’ receber algo, pressupõe que eles ficam à espera de alguma
recompensa, geralmente pecuniária. É fato também que eles não estão na praça para simplesmente
servir ou ajudar incondicional e gratuitamente, até porque, na condição de pais de família, precisam
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de recursos para sustentar os seus. Por isso, é de modo camuflado que a cobrança de pagamento é
feita. Eles não exigem expressamente tal gesto pecuniário por parte do condutor de veículo. E mais,
pensamos que disso são plenamente conscientes. Porém, as suas ações estão inequivocadamente
pautadas e orientadas sob a ação dos que ali estacionam.
Este sincretismo, de que a ação racional com relação a fins dos flanelinhas
(aprioristicamente assim categorizada) se orienta na expectativa da ação do outro, e, assim sendo,
encontra-se em via de mão dupla, oferecendo risco de colisão de direitos, está devidamente marcada
nesta narrativa: “Um dia né, um carro, dessas hilux prata. Aí fui lá, né. Ele me deu cinco centavos.
Aí eu disse: esse é o dinheiro que o senhor tem, patrão? É sim! Então guarde pro senhor não ficar
sem!”
Apesar de se apresentar de modo um tanto tímido – para não dizer desconfiado
– quanto à questão da retribuição, donde sê-la elemento constituinte do conceito de trabalho, sem a
qual este não se configura como tal, os flanelinhas se mostram como uma categoria de trabalhadores
com vida própria, devidamente representada pela Associação dos Lavadores de Carro, com sede
localizada no Bairro São Cabral. Pela associação, estes trabalhadores do anonimato vão
conquistando espaço; vão assumindo forma, a exemplo das ‘batas amarelas’ conseguidas por um
dos presidentes da associação; vão se fortalecendo pelas ferramentas (baldes, flanelas) cedidas por
entidades públicas. Dados informados por um dos presidentes entrevistados: “o que a gente faz
quando eu era presidente, arrumava lata, flanela na prefeitura e distribuía pra tudim aqui. Essa
bata aqui foi nós que arrumemo. Eu arrumei 40 batas com Dr. P.
M.”. Depoimentos como este nos levam a acreditar que os flanelinhas, enquanto espécie
de economia informal, vão se abastecendo de legitimidade no meio social.
CONCLUSÃO
O trabalho etnográfico que nasce do desejo de ceder um olhar sociológico e jurídico sobre
os flanelinhas desnudou um mundo de significados que estavam cortinados sob as lentes escuras de
um conhecimento não palpável. É dizer que, “sem investigação e sem provas não podemos saber
qual interpretação é a verdadeira” (ARON; 2002:468). Ademais, “o ator nem sempre conhece os
motivos da sua ação; o observador é menos capaz ainda de adivinhá-los intuitivamente. Precisa
investigá-los, para poder distinguir entre o verdadeiro e o verossímil.” (ibidem:468). Portanto,
acreditamos haver pertinência nestes auspícios sociológicos. Somente depois que o sujeito se
investe das prerrogativas de investigador é que se pode afirmar sem prejuízo de semântica que nem
todo olhar dirigido a algo inteligível é ‘um olhar que vê’.
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No devaneio dos nossos pensamentos primários, enxergávamos o flanelinha como alguém
que apropriava-se indevida e arbitrariamente do espaço público e deste fazia seu comércio; alguém
que imprudentemente usava o que é de todos como se seu somente fosse; alguém que ameaçava a
ordem social e jurídica por negligenciar o direito do outro em ter acesso ao espaço que também lhe
é de direito. Inclinávamos, num ajuizamento extremista, em acreditar que estes ditos personagens
sociais teriam a extorsão como prática recorrente. Não víamos, porém, as razões pelas quais os
flanelinhas se sujeitavam a usar a rua como seu lugar de trabalho; a usar flanelas e papelão como
suas ferramentas contínuas e constantes; sua habilidade em abordar os condutores de veículos como
seu marketing pessoal e profissional, tanto quanto seu cartão de visita para angariar um valor
pecuniário na troca de bens. Em oferecimento da prestação de serviço (segurança, zelo do
patrimônio), espera-se em troca o reconhecimento em forma de moeda corrente no mercado
(dinheiro).
Outrossim, as narrativas ou depoimentos expressos anunciam uma certa cautela por parte
dos flanelinhas, naquilo que compete acreditar até onde pode ir o limite de suas ações. Fazemos um
juízo de que eles têm ciência que trabalham sob a égide da complexidade e delicadeza de sua
situação diante do governo e da sociedade, quiçá por saberem que não podem cobrar o
estacionamento numa vaga que não lhes pertence, única e exclusivamente. Vemos a vaga na rua
como uma antítese: ela pertence a todos e a ninguém ao mesmo tempo.
Vemos a Praça Padre Cícero, não tão somente por ela em si, mas pelo que ela
assume quando se mostra palco de atuação dos flanelinhas, como um solo estremecido pelas
diversas e divergentes possibilidades de interpretação sócio-jurídica que nos impõem. O silogismo:
a praça é um bem público; um bem público é um bem de todos; a praça é um bem de todos; fomenta
a necessidade de se investigar com todo o rigor que a ciência exige este famigerado objeto
inteligível.
Desta investigação etnográfica, mantém-se a certeza de que os flanelinhas da Praça Padre
Cícero compreendem uma categoria de trabalhadores que debutam na esfera social da cidade de
Juazeiro do Norte e também no orbe da jurisdição. O flanelinha se configura como trabalhador
quando, a fim de sobreviver, vende sua força de trabalho. Quanto a isto não paira nenhuma dúvida.
Neste entendimento, vislumbramos um campo fértil para Sociologia Jurídica debruçar-se, em razão
de tratar-se de um fenômeno social das sociedades modernas e por deflagrar a comprovação de
caráter fundamental de jurisdição, na medida em que congrega a discussão de vários direitos postos:
direito à dignidade, direito ao trabalho, direito a segurança social, direito ao uso do espaço público,
dentre outros aqui não enumerados.
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Seja pela força ou pela imposição do respeito à tradição daqueles flanelinhas mais antigos,
a praça é demarcada por pontos que coadunam com a idéia de divisão territorial de trabalho. Desta
exploração etnográfica, ficou evidente, a priori, que o flanelinha não se traduz por um substantivo
ao qual atribuiu-se ânimo (vida) simplesmente, mas sim uma espécie de ‘ofício’ não reconhecido
‘ainda’ na ordem sócio-jurídica. Neste prisma, pela ótica da ciência jurídica, os flanelinhas
encerram um fato social do qual não se deve vilipendiar.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Thales de. O pensamento sociológico de Max Weber. In: LEMOS FILHO, Arnaldo (et
alli). Sociologia Geral e do Direito. Campinas: Alínea Editora, 2004.
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Rio de Janeiro: Martins Fontes / Editora
Universidade de Brasília, 2002.
LIMA, Francisco Gérson Marques de. O significado e o alcance da expressão “relação de
trabalho”.
Disponível
em:
<http://www.prt7.mpt.gov.br/artigos/maio_2007_significado_expressao_relacao_trabalho.pdf>
Acesso em 05 de março de 2008.
SALDANHA, Nelson. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber: entre a paixão e a razão. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1999.
SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange. Sociologia do Direito: uma visão substantiva.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2003.
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uma investigação etnográfica sobre os flanelinhas que fazem