Pº R.P. 7/2010 SJC-CT Coisas que se encontram no domínio público (fora do comércio jurídico). Insusceptibilidade da sua aquisição por usucapião. Recusa. Imposto de selo. DELIBERAÇÃO 1. …, advogado, apresentou pessoalmente na Conservatória do Registo Predial de …, no dia … de … de (Ap. …), pedido de registo de aquisição a favor dos ora recorrentes de prédio pertencente à freguesia de …, omisso no registo e inscrito na matriz sob o artigo … da mesma freguesia em nome de … 1.1. Como título juntou escritura de justificação de … de … de …, outorgada no Cartório da Notária …, sito na cidade de …, com averbamento de publicação no jornal “…” de … de… de…, da qual consta que os justificantes declararam ser possuidores de prédio urbano sito no …, com o qual confronta de Norte, Sul e Nascente, confrontando com … do lado Poente, composto de … com 7m2 e destinado a comércio. Como circunstância determinante do início da posse, invocam a “aquisição do imóvel por usucapião”, verbal, não reduzida a escritura pública, ocorrida no ano de 1984, em razão da qual os justificantes indicaram a compra à indicada titular da inscrição matricial, e como circunstâncias consubstanciadoras dessa posse apontaram “ que desde a data da referida compra verbal tem sido por eles conservado e explorado comercialmente, assim como têm pago os impostos pelo mesmo devidos, bem como a licença de ocupação da via pública à Câmara Municipal de ... e todas as despesas correntes com água e energia eléctrica”( sublinhado nosso). 1.2. A escritura inclui a menção de exibição de documento matricial, comprovativo não só do teor da respectiva inscrição mas também da proveniência ( do artigo actual) do artigo … da extinta freguesia da …, inscrito antes de 7 de Agosto de 1951. 2. A indicada referência à circunstância do pagamento de licença de ocupação da via pública levou a Senhora Conservadora a dar por manifestada a natureza dominial pública do prédio - fora do comércio jurídico( art. 202º/2 do Código Civil)- e a afirmar que “estamos perante a figura do detentor ou possuidor precário, que corresponde à situação daquele que, tendo embora o corpus da posse( artigo 1251º do Código Civil), a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real -1- correspondente ( com animus possidendi ) neste sentido vide ainda o artigo 1253º do Código Civil” . Aí assentou o juízo de qualificação do pedido, considerando não titulado o facto e recusando o seu registo nos termos do disposto nos artigos 68º e 69º, nº 1, b) do C.R.P.. 3. À recusa reagiram os justificantes impugnando-a hierarquicamente, interpondo o respectivo recurso no dia … de … de … ( Ap. … ), cujos termos aqui se dão por integralmente reproduzidos. Começando por afirmar que não vislumbram em que se baseou a recorrida para afirmar que o bem integra o domínio público alegam, por um lado, que o quiosque é um prédio urbano ( art. 204º, nº 1 do Código Civil), pois é facto público e notório que é um “edifício em alvenaria com alicerces incorporados no solo, e não, uma estrutura amovível e de carácter temporário” e , por outro, público, que o mesmo não integra o domínio invocando em síntese que: a) O mesmo está inscrito na matriz em nome de um particular; b) O pagamento de uma taxa de ocupação da via pública à Câmara Municipal não significa que integre o domínio público, já que “ a ocupação da via pública pode respeitar a ocupação da mesma com mesas e cadeiras”; c) A escritura foi publicada nos termos da lei e não mereceu oposição de entidade pública ou privada; d) Se desconhece qualquer legislação que o afecte ao domínio público; e) “o seu destino – comércio – afasta a sua utilização para fins públicos”. 4. A recorrida sustentou a recusa com base na seguinte contra-argumentação: a. “O prédio objecto de registo das confrontações encontra-se implantado constantes da caderneta predial ) no …( como resulta parcela esta destinada à satisfação de relevantes interesses colectivos (estacionamento público ) e com o uso directo e imediato pelo público e salvo melhor opinião, fica assim verificada a dominialidade pública”; b. “A inscrição matricial definidos no artigo do prédio em nome do justificante nos termos 92º do Código do Notariado ( na redacção introduzida pelo D.L. 273/01, de 13/10) funciona como condição ou requisito de legitimidade para outorgar a escritura de justificação notarial naquela qualidade, nada na letra da lei permite concluir que a titularidade da inscrição matricial faça prova do respectivo direito constituindo quando muito, um mero factor indiciário( …) daí que os elementos fornecidos pela matriz -2- não possam nem devam ser havidos como prova da dominialidade a favor de quem, em dada altura, figure como seu titular”; c. O edifício encontra-se implantado em pleno domínio público, continuando o solo, na falta de desafectação, a ser público; d. “O pagamento respeitante à licença de ocupação da via pública diz respeito ao quiosque e se assim não fosse questiona-se porque é que não foi exibida ou identificada a referida licença de forma a que fiquem dissipadas qualquer dúvidas, uma vez que é facto assente de que esta licença de ocupação da via pública existe”; e. “A publicitação do acto também não impede a oposição posterior de eventuais interessados designadamente a impugnação judicial”; f. O artigo 84º da Constituição da República Portuguesa e o D.L. nº 477/80 de 15 de Outubro enumeram expressamente os bens do domínio público. Questão Prévia O requerimento de recurso foi acompanhado de fotocópia da caderneta predial relativa ao anterior artigo de matriz ( … da extinta freguesia da …, como se relatado), para demonstrar o que é alegado no ponto 7º, deixou isto é, que a inscrição em nome da referida … já vigorava em 31 de Dezembro de 1937, data da emissão dessa caderneta. Integra também os autos uma Cópia do ofício dirigido pela Câmara Municipal de … à Conservatória já depois da data de apresentação do recurso, através da qual se pretendeu dar conhecimento do justificado, promovido na mesma data cópia de requerimento que se sido mal inscrito, pedido de eliminação uma vez que pela indicada do artigo matricial do prédio Câmara Municipal, conforme juntou àquele ofício, com fundamento no facto de “ter faz parte do espaço denominado … que pertence ao Domínio Público conforme certidão em anexo”. Desta consta certificado que o dito …, identificado com a respectiva área e confrontações, pertence ao Domínio Público Municipal e que “qualquer inscrição matricial efectuada na respectiva área foi efectuada por mero lapso”. Ora, não tendo qualquer dos indicados documentos “contado” para a elaboração da decisão objecto de impugnação, não pode a entidade ad quem levá-los em consideração na apreciação do mérito da mesma impugnação, como por diversas vezes este Conselho já teve ocasião de deixar entendido, no contexto da interpretação do disposto no art. 142º-A, nº 3 do C.R.P.1 . 1 Uma das últimas ocasiões em que tal aconteceu – e já depois da entrada em vigor da alteração introduzida ao art. 147º-B do C.R.P. pelo D.L. nº 116/2008, de 4 de Julho, que se traduziu na determinação -3- Saneamento: O processo é o próprio, as partes legítimas, o recurso tempestivo, e inexistem questões prévias ou prejudiciais que obstem ao conhecimento do mérito. Pronúncia: A posição deste Conselho vai expressa na seguinte Deliberação 1. As coisas que se encontram no domínio público, estão fora do comércio jurídico e não podem ser objecto de direitos privados ( art. 202º, nº 2 do Código Civil) decorrendo da imperatividade dessa exclusão a insusceptibilidade da sua aquisição por usucapião2. 2. O conceito de estradas constante do artigo 84º, nº 1, d) da Constituição da República Portuguesa abrange todas as vias públicas (incluindo assim v.g. os largos, praças ou rossios3), que por seu lado devem ser compreendidas como universalidades da aplicação subsidiária do disposto no Código de Procedimento Administrativo ao recurso hierárquico - foi no Pº R.P. 168/2008 SJC-CT, disponível intranet. 2 O direito público, maxime o constitucional, não nos fornece uma definição de coisas públicas, nem é esse o desiderato da indicada disposição de direito privado, que se limita a considerá-las excluídas desse âmbito privado, sem embargo do disposto no art. 1304º do mesmo Código Civil. A indicada insusceptibilidade aquisitiva é doutrinalmente pacífica. Cfr., por todos, Ana Raquel Gonçalves Moniz, in O Domínio Público – O Critério E O Regime Jurídico da Dominialidade, pág. 428. 3 Nos presentes autos não se discute a natureza pública do …, na cidade de …, com a qual estão de acordo recorrida e recorrentes não se justificando que em abstracto e/ou em concreto se introduzam aqui quaisquer considerações acerca dos critérios da aquisição do carácter dominial. Refira-se apenas que segundo Cândido de Figueiredo, in Grande Dicionário, Bertrand Editora, 24ª Ed., entende-se por Rossio: “Terreiro que era roçado ou fruído, em comum, pelo povo; logradouro público; Lugar espaçoso; terreiro; praça larga (Port. Ant. ressio)” . Em tabela está saber, em razão das declarações constantes do título apresentado para registo, qual a natureza da ligação existente entre o bem que se pretende ver registado com base no usucapião e esse Rossio …, que faz parte do domínio público municipal. -4- (englobando v.g. as obras de arte, passeios, sinais de trânsito ou túneis), fazendo tudo parte do chamado domínio público rodoviário ou circulatório4. 3. Constando o objecto mediato do pedido de registo identificado no título (escritura de justificação notarial, com invocação de usucapião) como sendo um prédio urbano composto de “quiosque”, com área determinada, sito em praça ( rossio ) pública(o) , com o qual confronta por três dos lados, essa identificação não é suficiente, por si só, para dar por manifesto que a referida área de implantação está integrada no domínio público5. 4 Para um estudo aprofundado destes dois planos do sentido abrangente do conceito em questão, cfr. Durval Ferreira, in Posse e Usucapião, pág. 103 a 106, o qual dá notícia de que esse sentido é comum na Doutrina e na Jurisprudência. 5 A situação concreta que foi objecto de apreciação no Pº R.P. 143/2004 – DSJ-CT, disponível intranet, oferece, quanto ao essencial, algumas afinidades com a dos presentes autos. Ali, a realidade material era um “açude e pesqueira” no Rio …, com o qual confrontava por três dos lados, aqui é um “quiosque” no …, com o qual confronta por três dos lados, (nos títulos) como prédios urbanos, indicação, como tal ambas as realidades são qualificadas num caso sem indicação da respectiva área e no outro com essa inscritos na matriz. Tendo sido possível, naquele caso, concluir que não se pretendera invocar a usucapião sobre a parcela do leito do Rio …, não houve que fazer entrar a insusceptibilidade dessa aquisição na decisão de qualificação, antes se tendo imposto uma abordagem abrangente das diversas hipóteses de possível enquadramento da situação, quer no âmbito da comercialidade de direito público, quer no da “sobreposição dos estatutos da propriedade pública e da propriedade privada”, quer ainda no da “constituição(onerosa) pela entidade administrativa de direitos reais menores, mais propriamente de direitos de superfície, sobre bens dominiais”. Depois de se ter dado por inverificado qualquer dessas hipóteses de enquadramento, concluiu-se por um outro, considerando que se tratava de aquisição da propriedade de obra em parcela dominial, não sujeita a publicidade registral, já que a obra em si mesma não é prédio, por falta de solo ( art. 204º do C.C.). Conjugando, in casu, o titulo e o pedido de registo, afigura-se-nos que se pretendeu invocar a usucapião de um prédio urbano , integrando portanto admissível , a construção e o respectivo solo, o que significa que se fosse exclusivamente com base nos referidos elementos de identificação, dar por manifesto que esse solo integrava o domínio público( o Rossio de ...), teria igualmente que considerar-se o facto por manifestamente nulo, dada a dita insusceptibilidade de aquisição desse solo por usucapião, o que constituiria desde logo motivo de recusa com fundamento no disposto nos artigos 280º, nº 1 do Código Civil e 69º, nº 1, d) do C.R.P.. Ora não nos parece que assim deva entender-se. Por um lado, nem pela natureza das coisas nem por força da lei se pode dar por imperativo que os quiosques assentem, nele incorporados ou não, ou em muitos casos em solo com natureza pública, embora se saiba que na generalidade assim acontece. Um “quiosque” – segundo Cândido de Figueiredo, ob. cit. - é uma “Pequena construção, geralmente de madeira, espécie de pavilhão, situado em praças, jardins, etc., e que serve habitualmente para venda de tabaco, jornais, bebidas, etc..”. -5- 4. O mesmo não se pode afirmar no caso em que, simultaneamente com aquela identificação, , os justificantes declararam (na escritura), no âmbito da menção das circunstâncias consubstanciadoras da posse( art. 89º, nº 2 do Código do Notariado) , que “têm pago a licença de ocupação da via pública à Câmara Municipal”, se não existir qualquer outro elemento que admita que se questione a pertinência dessa licença à ocupação provocada pelo próprio quiosque6. 5. Nos termos do art. 1º, nº 3, a) do Código do Imposto de Selo a aquisição por usucapião é considerada transmissão gratuita, sujeita à incidência do imposto fixado na verba 1.2 da Tabela Geral, constituindo a falta de prova obrigações fiscais correspondentes do cumprimento das fundamento da qualificação do registo como provisório por dúvidas( cfr. art. 68º, 70º e 72º do C.R.P. e art. 63º do Código do Imposto de Selo) 7. Por outro lado, a natureza pública do Rossio de …, o qual é indicado como local da situação do quiosque e com o qual este confina por três lados, não significa necessariamente que o solo onde o quiosque assenta faça parte integrante desse Rossio e esteja compreendido na correspondente universalidade. O facto de ser situado no …, não significa que não possa estar fora dele, embora confinando com ele, além de que, nem a lei nem a natureza das coisas impõem que uma praça pública não possa sofrer um solução de continuidade, isto é, incluir no seu perímetro algo que não esteja integrado no domínio público. O que acabou de ser dito não significa que os elementos de identificação do prédio não justificassem por si só a dúvida acerca da natureza do solo, caso em que seria de exigir prova de que não fazia parte do domínio público, mediante documento emitido pela respectiva Câmara Municipal. Caso fosse de se entender que o solo não estava incluído na realidade material objecto de justificação, imporse-ia a recusa nos termos e com o fundamento constantes do supra indicado processo, para o qual se remete, neste ponto e nos outros supra referidos, já que também aqui está fora de questão que a situação possa ser enquadrada (dada como titulada) segundo qualquer das outras hipóteses indicadas. O mesmo se diga quanto ao que nesse processo de deixou entendido (cfr. nota 12) quanto à relevância da inscrição matricial, da qual os recorrentes pretendem retirar o argumento de que ela pressupõe a natureza de prédio ( também para feitos civis) não integrado no domínio público. 6 Os recorrentes, como ficou relatado supra no texto, alegam que “o pagamento de uma taxa de ocupação da via pública (…) não confere o domínio público do quiosque em causa” pois “a ocupação da via pública pode respeitar a ocupação da mesma por mesas e cadeiras”. Ora, não constando do título a referência a qualquer outra área de ocupação que não seja a própria área de implantação da “obra”, não é de ocupação de uma via pública que não 7 possível admitir que o pagamento invocado se refira a uma licença a correspondente à ocupação provocada por essa implantação. Não fora a qualificação de recusa que anteriormente defendemos e a falta de prova de cumprimento das obrigações fiscais que se verifica in casu, constituiria motivo de uma qualificação de provisoriedade por -6- Em face do exposto, é entendimento deste Conselho que o recurso deve improceder8 Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 26 de Maio de 2010. Luís Manuel Nunes Martins, relator. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em 01.06.2010. dúvidas apesar de este motivo não ter sido suscitado pela recorrida, seguindo o entendimento que vem sendo defendido por este Conselho ( Cfr., entre outros, , o Pº R.P. 107/2004 DSJ-CT, disponível intranet). 8 Afigura-se-nos no entanto mais rigoroso, de acordo com o que ficou anteriormente dito, enquadrar a recusa na alínea d) do nº 1 do art. 69º do C.R.P., diferentemente do que fez a recorrida, que invocou a alínea b) do mesmo nº 1. -7- Pº R.P. 7/2010 SJC-CT (Ficha) Súmula das questões tratadas Pedido o registo de aquisição por usucapião, com base em escritura pública de justificação notarial, de prédio urbano identificado como situado em praça pública, com a qual confronta por três lados, composto de quiosque, com determinada área, com a indicação pelos justificantes, consubstanciadoras da posse, no âmbito das circunstâncias de que “têm pago a licença de ocupação da via pública à Câmara Municipal”. • Interpretação do título quanto a saber se a realidade material justificada inclui ou não o solo. • Concluindo-se que manifestamente inclui público, o solo, quer saber este apreciando é ou isoladamente não os elementos de identificação, quer conjugando-os com a referência a licença de ocupação de via pública. • Concluindo-se que (in)susceptibilidade o da solo faz parte do domínio público, respectiva aquisição por usucapião, considerando a extra comercialidade de direito privado das coisas que integram esse domínio ( art. 202º, nº 2 do Código Civil). • Incidência do imposto de selo relativo à transmissão gratuita na aquisição por usucapião (art. 1º, nº 3, a) do Código do Imposto de Selo e verba 1.2 da respectiva Tabela Geral). 8