SER, MEMÓRIA E MÚSICA: ARTICULAÇÕES DESDE O REAL Rafael Silva Lemos Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Resumo A palavra "poesia", em sua origem etimológica, diz do ato de criar. Na experiência grega original, conforme pode ser lido no "Banquete" de Platão, é aquela capaz de tornar o não-ser em ser. E há um responsável específico para esta operação na Grécia: o poeta. O poeta é responsável por conservar em seu canto a origem do povo grego. Numa era pré-escrita, i.e., sem registro escrito sistemático, isto torna íntimas a noção de história (memória) e a de criação, entremeadas pelas Musas, que cantam pela voz do poeta. Este trabalho pretende articular a noção de existência através da experiência poética grega, apresentando a relação entre memória e música como modalidade fundamental de articulação do ser. Abstract “Poetry”, in its etymological meaning, tells us about the creative act. At the original ancient greek experience, as can be read in Plato’s Symposium, it is the act able to turn the not-being into being. And in ancient Greece there is a specific responsible for this operation: the poet. The poet is responsible for maintaining through his sing greek people origins. In a pre-writing age, both notions of history (memory) and creation become intimate through the action of singing. This paper intends to touch the notion of ‘existence’ through the greek poetic experience, by presenting the relation between memory and music as a fundamental articulation of being and its modes of existence. II SIEFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015 SER, MEMÓRIA E MÚSICA: ARTICULAÇÕES DESDE O REAL “Una cosa, hasta no ser toda, es ruido, y toda, es silencio” - Antonio Porchia “É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não mais ressoa” - Martin Heidegger “I just stand” - John Cage Introdução Pretendemos aqui fazer a relação entre música e ser, como a música se mostra capaz de constituir memória e como essa memória, de um modo ou de outro, afeta isso que se quer pensar como ser. Mas, para que esse caminho se torne viável, é necessário pensar, previamente à relação ser-música, colocarmos os termos que serão aqui discutidos em questão, isto é, fazer a experiência de cada um deles e, fazendo essa experiência, já vislumbrar a própria relação música-ser. Música Música é proveniente do grego μουςῐκή e diz de toda arte que é presidida pelas Musas. As Musas, filhas de Zeus e Mnemosine (Memória), foram concebidas para que se cantasse e lembrasse para sempre a vitória de Zeus e seus aliados (as divindades do panteão olímpico) sobre os titãs. Conforme se encontra na Teogonia: [as Musas] precipitando-se ocultas por muita névoa vão em renques noturnos lançando belíssima voz, hineando Zeus porta-égide...1 E diz Hesíodo de seu canto: ... inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado, impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por último sempre cantar. 2 Em seu cantar, isto é, fazer música, assim como por sua ascendência, portanto, as Musas estão ligadas à constituição de memória. É à memória que as Musas devem a sua 1 2 vv. 9-11 vv. 31-34. 2 Ser, memória e música: articulações desde o real função enquanto seres existentes e, para tal, isto é, para que existam e, ainda, para que exista também memória, é necessário que cumpram com o que lhes é devido: “primeiro e por último sempre cantar”. O canto que as Musas cantam é sua própria presença. Serem concebidas após o evento da peleja contra os titãs não se afigura como problema ou anacronismo. A temporalidade própria do mito não é de caráter seqüencial e sucessivo e, portanto, primordialmente não-cronológico, no sentido de um tempo que, ao modo de uma flecha, conduz-se desde um ponto para frente e se mostra capaz de ser interpretado como cumulativo, como quem consegue somar os passos seguindo a trajetória da flecha de um ponto a outro. Chrónos, em sua plenitude, se diz como o sentir a passagem do tempo com acurácia, isto é, cuidado, permitindo-se um sentido histórico não-historiográfico, mas, por assim dizer, memorável. Chrónos, enquanto poder e temporalidade que impõe-se aos homens, não se reduz a mera medição matemática e racional do tempo, e, por isso, também não pode ser considerada como primazia cronológica a histografia, pois a história não é a demarcação de eras ou marcos de acordo com o padrão hegemônico neste ou naquele instante: esta é a história do ente. História é, como nas palavras de Martin Heidegger, “adensamento histórico” e “decisão da essência da verdade”. Isto quer dizer: o modo como se compreenderá Chrónos é fundamental para o entendimento da verdade contida no canto das Musas, na medida em que Chrónos, 1) como verificação exata do tempo cronológico implicará sempre em uma manifestação imposta como verdadeira e que irá suplantar qualquer outra tomando-a por falsa, não por vigor, mas por domínio instrumental (que, em termos históricos se desdobra normalmente como submissão e instrumentalização do homem pelo homem); 2) como “adensamento histórico” é o próprio mýthos em sua força de fazer ‘ex-istir’, tornar a realidade coisa e palavra a um só tempo, capaz de deslocar os homens de seu pretenso domínio técnico sobre o mundo para alocá-los no mundo, i.e., modificando, mundificando na unidade do real. Este cantar proveniente das Musas não é, portanto, qualquer cantar, e, sobretudo, não é cantar como entendemos hoje, como o ato de por palavras em cima de uma melodia na intenção de passar uma mensagem, isto é (e ainda isso pode ser questionável, dada a mensagem que se tenta passar), de se expressar algo. ‘Expressar’ é uma palavra composta por ex-, que, em um de seus significados, pode ser entendido como um ‘movimento para fora de, vindo de dentro’ e pressio, que quer dizer ‘pressão’, podendo, portanto, a palavra ‘ex-pressão’ ser tomada como uma pressão que se dirige de dentro para fora. No entanto, se admitimos isso, admitimos que há alguém que se expressa (um cantor) e há alguém cuja função é simplesmente receber passivamente essa expressão, esse cantar: instala-se assim a relação 3 II SIEFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015 sujeito / objeto, onde a subjetividade do sujeito produz a ação e o objeto meramente a sofre. Mas não é assim que se dá a dinâmica do canto nas suas origens. Jaa Torrano coloca assim: “O nome das Musas são as Musas e as Musas são o Canto em seu encanto”. Isto significa: as Musas são mais do que aquelas que cantam, são elas também o próprio cantar, a própria palavra cantada: a própria música. Ao fazer (-se) música, ainda que não se evoque mais a Musa no início de cada canto, esta por si só já aparece, pois fazer soar a música já é trazer para próximo a experiência original da Musa. Para tanto, porém, é necessário romper com a relação sujeito / objeto e, inclusive com a imagem arquetípica da Musa enquanto a deusa da Música; isto porque: 1º) a Musa necessita ser fazer vigente enquanto a própria música, não como um símbolo ou representação que os arcaicos, por serem arcaicos e necessitarem de explicações para coisas que não podiam averiguar pois não eram tão “avançados” quanto nós, inventaram apenas para suprir sua necessidade de conhecimento de maneira mais ou menos satisfatória, 2º) a relação sujeito / objeto, por dizer do objeto ou ao objeto tudo quanto parece verdadeiro apenas ao sujeito, não diz nada do (suposto) objeto, mas age de uma maneira tal que seria razoável pensar que o objeto, se a ele concedida a capacidade de dizer algo sobre o dito do sujeito, talvez pudesse recorrer a Álvaro de Campos em Lisbon Revisited: “Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta”; além disso, esta relação pautada pelo predomínio do sujeito em relação a seu objeto, impede que a Mus(ic)a realize plenamente a sua função, que é constituir memória. Música aqui está ligada não tanto à maneira contemporânea de entendê-la como a produção da música, a indústria fonográfica e mesmo a inspiração, quanto à interação, ao diálogo necessário à própria música em si, para que esta se realize enquanto ‘pro-dução’ concreta, isto é, de ‘inter-esse’ real e denso a todos que essa música possa envolver. Porque música, na sua experiência original diz antes de uma criação de sentido sempre singular (uma vez que o relacionamento de uma pessoa com a música é sempre único; daí também a falha de todos os modelos de ensino, de música ou não, ao se pretenderem universais) do que de uma cultura popular ou de massas, diz mais de reunião e diálogo entre aquele que se retrai em sua voz para que através de si soe (e soe sempre como nunca antes) a voz própria da Musa (o bardo, o poeta, o aedo) e aquele que, de ouvidos abertos, se dá ao convite da própria música, que é o convite de escutá-la, de fazer sua própria interpretação, de criar também o seu sentido, estabelecendo uma unidade entre todos os participantes dessa relação, do que de um autor da música (alguém que possui direitos intelectuais sobre ela, seja lá o que isso signifique) que 4 Ser, memória e música: articulações desde o real grava a música e esta é reproduzida em massa para ser comercializada igualmente em massa e escutada igualmente em massa. Memória Talvez uma última consideração sobre a palavra ‘musa’: proveniente do grego μοΰσα, pode ser dividida em duas partes: o radical μν-, que, por diversos processos da língua se altera em μνη- e μου- e que significa ‘unidade’, e o sufixo τια (tau, iode [/y/], alfa) que, igualmente processos fonéticos e fonológicos, se torna –σα e que, se tomado na sua origem,o sufixo indoeuropeu *teu, “... se desdobra do abstrato primário *-ta, que diz, entre outras coisas, poderoso, que tem poder”, pois, se já ressaltamos que as Musas são filhas da Memória e qual sua relação, aqui torna-se mais explícita sua relação com Zeus, e “Zeus é a grande percepção (mégan nóon)”, aquele que, justamente por perceber, pode conferir existência a algo, aquele que concede a cada um dos deuses olímpios o seu quinhão onde impor sua vigência absoluta. A Musa é, portanto, aquela que justamente possui o poder de presentificar as coisas e, presentificando-as em sua dinâmica infatigável, fazer com que se torne possível uma unidade entre elas, ainda que essa unidade surja apenas numa expectativa, isto é: real enquanto possibilidade. Da mesma maneira que μοῢσα, também a palavra memória, do grego μνήμη pode ser desmembrada. μνήμη provém de μνη-, que, conforme dito acima, quer dizer ‘unidade’, e –μη, que, “...se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar, sonhar ou medir [e então] teríamos que memória diria governar, pensar, sonhar ou medir a unidade”. Há aqui explícito então um parentesco entre ‘musa’ e ‘memória’, onde as duas se relacionam em função dessa unidade. Mas se a Musa possui a capacidade de tornar presença e fazer vislumbrar essa unidade, ainda que como possibilidade, a memória é a responsável por afirmá-la, isto é, por torná-la realidade, pois se a Musa concede presença a tudo que emerge por seu canto, a memória se encarrega (e em grego, na forma alongada μην, a partícula –μη “diz meditar, refletir, inventar, mas também velar”) de conferir a essa presença tanto sua permanência quanto seu ocultamento, pois a memória é tanto memória quanto esquecimento. Do contrário, se tudo permanecesse presente, nada nos marcaria, nada surgiria a nosso olhos ou chegaria a nossos ouvidos de maneira a nos chamar a atenção, de maneira que guardássemos conosco ou correspondêssemos a algo. Esse movimento de velar e desvelar é o que torna a relação Musa-memória uma relação que trata da verdade, do ser. Porque verdade aqui não pode ser colocada em oposição 5 II SIEFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015 à mentira: é verdade entendida ἀλήθεια, o não-esquecimento. É verdade porque o canto das Musas encanta, isto é, nos coloca numa intimidade com aquilo que está sendo cantado, faz com que nos apropriemos desse canto porque esse nos comove. Nos ‘co-move’ a criar sentido a entendermo-nos com o canto desta ou de outra maneira, fazendo permanecer não aquilo que queremos, mas aquilo que nos toma, nos possui e arrasta para habitar um mesmo tempoespaço, formando uma unidade. Essa unidade é a harmonia, uma “combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência...”, do grego ἁρμός, onde diz “encaixe, juntura”. Essa harmonia se faz fundamental em conjunto com a música com a memória na criação do sentido. Afinal, se produzimos uma seqüência de sons, é só graças a memória que permanecem e se encaixam numa medida, isto é, são pensados, se relacionam, possuem unidade,são harmônicos e não simplesmente tomados como coisas que não possuem qualquer relação entre si. Criar sentido é tornar verdade. Da mesma maneira que a música, assim se dá a palavra. A palavra diz de um aspecto da coisa, não é meramente um conceito ou convenção. Recuperar a origem da palavra, tão longe quanto conseguirmos ir, é fazer a tentativa da experiência original da mesma, isto é, fazer, à maneira das Musas (pois a palavra é também canto e encanto), com que soe a palavra como no momento em que foi criada: inaugurá-la. Inaugurar é inaugurar na memória, não permitir que a inauguração seja esquecida e soterrada pelo conceito, pela palavra gasta, não pensada. Por isso a poesia (poesia aqui entendida em todos os seus sentidos: o poema, a literatura como um todo ou toda forma de arte, de criar e interferir no real) não pode ser de conteúdo subjetivo, uma mera abstração ou a imitação ou representação do real, pois ela opera verdadeiramente no real, por si (em conjunto seja com aquele que a produz, seja com aquele que a interpreta) é capaz de fundar tempo e espaço, Tempo e espaço esses de uma vigência que escapa (ainda que não de todo) do cronológico, mas que se projeta para além de seus limites. É a vigência de αἰών, o em tempo que diz do “período de existência”, isto é, onde qualquer medida de tempo perde o sentido, isto é, vive-se o momento em sua duração imensurável. O operar da poesia toma para si o pensamento e o cuidado dos que se põem em contato com ela, fazendo com que de alguma maneira eles a ela correspondam: corresponder é interferir no real, criar memória, fazer permanecer. Essa correspondência aos acontecimentos é fundamental para que se entenda ser da maneira que vamos tentar experimentar a seguir. 6 Ser, memória e música: articulações desde o real Ser “Harmonia é o acordo, a junção operada entre diferentes instâncias substantivas, entre instâncias concretas, isto é, instâncias que são capazes de desencadear realidade”. A harmonia, portanto, tem vigência também fora de um sentido mais estritamente musical ou poético (entendendo aqui brevemente “musical” e “poético” nos seus sentidos mais limitados, os da agastada instância comunicacional), sendo a própria articulação da memória em seu empenho de constituir isso que chamamos acima de ‘instância substantiva’. Pois a substância (do latim substantia, “a qualidade de ser real ou de ter existência presente”) é aquilo capaz de produzir vigência por si só, é o que fundamenta, que funda o próprio ser e faz com que este, sendo como é o reunir de todas as possibilidades, se entifique, presentifique, isto é, se faça “fenômeno, isto é, do que se mostra e se diz, do que se mostra quando se diz e do que se diz quando se mostra” de um modo ou de outro, onde nenhum modo de aparecer desde o ser prevalece sobre outro. Modo, palavra esta proveniente do grego μέλος e que diz “membro, articulação, membro de uma frase musical”. Mélos é, na fala estrita da música, a escala musical na qual me ponho a articular sons de uma maneira ou de outra (p. ex.: escala de dó maior e a de dó menor). Na fala do ser, mélos é a maneira como o ser se coloca numa relação com o mundo. E da mesma forma que o conjunto de sons de uma escala postos em relação, isto é, articulados conjuntamente pela memória, chama-se melodia, também a melodia do ser é essa articulação das várias maneiras do ser de se colocar no mundo e correspondê-lo, pois melodia é uma “seqüência de notas ou sons que, apresentando organização rítmica com sentido musical, se relacionam reciprocamente de modo a formar um todo harmônico”. É a essa sucessão de modos de emergir, de melodias incessantes e originais que se dá o nome de ser, porque, da mesma forma que, não variando a melodia, corre-se o risco de cair numa monotonia, a possibilidade do ser de ser substantivo, isto é, de possuir densidade, é justamente harmonizar memória articulando modos diversos de aparecer, pois o modo nada mais é que a melodia do próprio, sendo isso tanto o modo de cantar quanto o modo de ouvir. Ouvir é corresponder. A isto que aqui estamos chamando correspondência também pode ser dado o nome de lida. E, se na correspondência não conseguimos deixar claro o quanto esse movimento de velar/desvelar, se de um modo, seja de outro, não está dentro do nosso controle, no sentido de que não podemos não decidir, mas sempre decidir de um jeito ou de outro. Ortega y Gasset assim coloca: “Quando me ponho nas mãos de um outro, fui eu 7 II SIEFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015 quem decidiu e continuo decidindo que ele me dirija: não transfiro, pois, a decisão, mas apenas seu mecanismo”. Isso significa dizer, em última instância, que mesmo que nada fizesse, já estaria decidindo por fazer algo: nada. Porque, ao contrário do que pode parecer, a partir dos exemplos dados no texto, o não fazer, o não dito (a saber, o silêncio) também são maneiras de ser, isto é, também compõem isto que estamos tentando entender por ser, pois o ser só pode se revelar na tensão que se dá entre opostos tais como som e o silêncio, o aparecer e o ocultar, a permanência e o movimento, memória e esquecimento e, inclusive, o ser e o não-ser, porque ser de um modo já é não ser de outro. Essa tensão se dá no âmbito do próprio ser, no âmbito do acontecimento da linguagem, o âmbito da diferença. É a diferença a provocadora dessa harmonia de instâncias substantivas, sejam elas a música, a palavra ou o ser que, no fundo, são tudo um e o mesmo. Bibliografia HEIDEGGER, Martin. A Linguagem. In: A Caminho da Linguagem. . Tradução de Marcia Sá Cavalcanti Schuback. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis : Vozes, 2002. JARDIM, Antonio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005 LIDELL, Henry George & SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford University Press, 1996. ORTEGA Y GASSET, Jose. Em torno a Galileu: esquema das crises Petrópolis: Vozes, 1989 OXFORD. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1968 TORRANO, Jaa. Teogonia. A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1995. 8