IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. REPRESENTAÇÕES DA MONARQUIA PORTUGUESA EM CRÔNICAS CONVENTUAIS DO SÉCULO XVII Moreno Laborda Pacheco Mestrando em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) E-mail: [email protected] Palavras-chave: Literatura conventual . Poder. Portugal. Época moderna. Entre 1630 e 1652, religiosas de dois conventos portugueses redigiram livros destinados a contar a história de suas casas monásticas e das irmãs que lá viveram. Os resultados desses esforços chegaram até nós, e são eles o Tratado da Curiosa Fundação do Convento de Jesus de Setúbal , redigido entre 1630 e 1646 pela Madre Leonor de São João, e a Notícia da Fundação do Convento da Madre de Deus de Xabregas , obra escrita entre 1639 e 1652 por uma freira que preferiu manter -se no anonimato. 1 Nenhum dos dois textos chegou a ser impresso, apesar do Tratado de Setúbal ter recebido as licenças necessárias. Esse manuscrito traz, logo nas primeiras folhas, os pareceres do Ministro Provincial dos Algarves e de um outro parecerista por ele designado, o q ue demonstra respeito às instâncias superiores da ordem franciscana local. Recorre também a um outro artifício de praxe para os autores que buscavam as casas tipográficas do Antigo Regime: a dedicatória a alguma figura ilustre – no caso, o Marquês de Ferre ira, D. Francisco de Melo. Na introdução, a autora justifica a confecção da obra como obrigação de sua função de abadessa, e faz questão de realçar, mais adiante, que tomou a tarefa de lidar com “Letras e Composições” quase como um sacrifício, visto que su a profissão era de fato a “humildade”. A Notícia de Xabregas possui algumas marcas fundamentais que a distinguem do Tratado: em primeiro lugar, foi escrita sob a forma de diálogos, e não em prosa. Também não possui nem licenças para a impressão e tampouc o está dedicado a algum possível patrono de sua vinda ao lume. Em seu título, aliás, parece querer se dirigir apenas às demais religiosas do convento, ao imortalizar os exemplos edificantes de outras irmãs mais antigas que o tempo insistia em nublar da mem ória da casa. Se nos fiarmos na crônica do Frei Jerônimo de Belém, a Notícia de fato nunca “saiu da clausura pela grande humildade da autora ” (MACHADO, 1930, t. 3, p. 423). No entanto, mesmo que não hajam referências diretas que apontem para a sua divulgação, é bem verdade que ele se encaixaria naquele tipo de texto conventual que Leila Algranti caracterizou como público e privado ao mesmo tempo. Ou seja, ele possuía uma faceta doméstica, na medida em que preservava a memória e a história da instituição, e 1 Diogo Barbosa Machado atribui a obra à madre Maria do Sacramento. No entanto, a questão parece ter mobilizado outros autores, como Ivo Carneiro de Sousa, que supõe uma autoria tripla, dividida entre Catarina das Chagas, Joanna da Piedade e Margarida da Trindade ( MACHADO, 1930 ; SOUSA, 2002). 2 outra pública, pois nesses casos “sempre houve a intenção, mesmo que camuflada, de enaltecer a ordem e divulgar a exemplaridade das ‘vidas’ fora dos conventos ” (ALGRANTI, 2004, p. 60). De qualquer modo, destinados a um público amplo ou para consumo intern o, estes textos realizam uma operação delicada de recorte e seleção dos fatos e eventos que merecem entrar para o registro. Suas autoras demonstram ter consciência de que inscrever uma história no papel é também demarcar a sua natureza, desenhar os limites de uma trajetória que se quer preservar e tornar pública. Assim, pode -se dizer que as narrativas não constituem exatamente tentativas de construir relatos fidedignos do passado, ficando mais evidente, como veremos adiante, a importância do local ocupado p or essas escritoras e seus conventos nos diferentes contextos em que suas obras foram escritas. Em poucos momentos esta operação narrativa fica tão visível quanto nos trechos que citam os reis e a Coroa de Portugal. A monarquia lusitana ocupa, de fato, um lugar especial nas duas crônicas. Em ambos os casos, elas acentuam a participação dos reis nos primeiros tempos de criação da casas, tais como na aquisição dos terrenos necessários, na emissão das autorizações papais para as fundações, na vinda das primei ras religiosas: em Setúbal, D. João II visitou o canteiro de obras durante um evento solene e, insatisfeito com o seu atraso, sugeriu mudanças no projeto; em Xabregas, D. Leonor escolheu o local da construção, supervisionou as obras e ainda acompanhou a ro tina das freiras, provendo -as do que fosse necessário. A preocupação dos reis com o andamento dos monastérios também ultrapassa o tempo das fundações, atravessando diversos reinados e resultando em benesses as mais diversas: reformas dos claustros, doações de relíquias e imagens de devoção, intercessões junto à Roma, isenções no pagamento de tributos, etc. Essas constantes remissões aos reis portugueses terminam por criar imagens determinadas sobre cada um deles, pois normalmente vêm acompanhadas de infor mações sobre a situação política do reino, o estado das relações com outras nações e as principais conquistas e derrotas militares, entre outras informações relevantes sobre cada reinado. Por um lado, as crônicas seguem maneiras bem conhecidas de represent ar os reis, guiadas por códigos de como se reportar à Coroa e a outras autoridades. Porém, o fato dessas crônicas terem sido escritas ao longo de momentos delicados da história política da monarquia portuguesa possibilitou o afloramento, aqui e acolá, de t ensões e dissonâncias. Em algumas passagens, como as que descrevem a derrota de Sebastião no norte da África, o tempo dos Filipes de Castela em Portugal e a Restauração de 1640, as diferenças de abordagem e de representação ficam mais nítidas. 3 Com sua redação principiada em 1630, o Tratado de Setúbal constrói suas descrições da monarquia portuguesa nos marcos de uma administração Habsburga fragilizada, mas presente. Assim, a ascensão de Filipe II ao trono português 50 anos antes é delineada dentro dos parâmetros normais de sucessão dinástica. Neto de D. Manuel, sobrinho de D. Henrique, o reino foi entregue a ele com pouca dificuldade, “posto que não sem mortes de alguns que quiseram resistir”. As “alterações” causadas pela entrada das tropas castelhanas inc luíram um cerco a Setúbal e o Convento de Jesus, situado num ponto vulnerável fora dos muros da vila, recebeu um tratamento do Duque de Alba que já dava mostras de qual seria a posição da comunidade diante da administração castelhana: o comandante ordenou que as tropas não fizessem dano à comunidade e doou -lhe, de seu acervo particular, um crânio das onze mil virgens, entre outras esmolas. De fato, assim como os trechos dedicados aos monarcas predecessores, de D. João II a D. Henrique, os que versam sobre o s filipes seguem o mesmo padrão de deferência. Começam por narrar como se deu a morte do anterior, a ascensão do herdeiro, comentam brevemente os seus casamentos, os nascimentos de seus filhos e enumeram as mercês concedidas ao convento. Também não deixam, quando é o caso, de narrar a presença dos reis dentro do claustro e de se reportar a diálogos que eles mantiveram com as religiosas. Estes trechos, abusando de tópicos que indicam quebra de protocolos na relação com o monarca, reforçam a idéia de proximid ade e reverência mútua entre o rei e as religiosas. Filipe II, em visita à casa, recusou -se a deixar que a abadessa e as demais beijassem-lhe a mão e, quando a abadessa tropeçou no hábito, tomou -a nos braços e evitou a sua queda. Filipe III, seu filho e su cessor, apesar de permitir que as freiras, postas de joelhos, beijassem sua mão, “levantava a cada uma com muita benevolência ”. E a cada momento em que a abadessa ajoelhava para pedir seu auxílio na reforma do monastério, ele a “levantava em seus braços, c omo se fora Pai, e não Rei ” (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 71-72v). Além dessas referências explícitas, talvez o maior indício do alinhamento da narrativa aos filipes esteja num capítulo anterior, dedicado a D. Sebastião. E isso se explica basicamente pela impo rtância que teve o destino do jovem rei para a afirmação da legitimidade do governo Habsburgo em Portugal. Como todos os outros capítulos, este dedica um bom espaço a relatar as mercês concedidas pelo monarca ao convento e a especial devoção que nutria por ela. Porém, também cede bastante espaço para a descrição de seu “desgraçado sucesso e infeliz morte ”, o que revela uma preocupação em delimitar as circunstâncias que geraram a crise sucessória que desembocou na união das coroas de Castela e Portugal. O Tratado descreve brevemente a primeira ida de Sebastião ao Norte da África, reputando a decisão de adiar o ataque e voltar a Portugal ao baixo número de soldados e à 4 intercessão do “Conselho de Soldados Velhos ”, o que demonstra que a autora estava bem informada sobre o assunto. Relata, em seguida, a segunda tentativa de Sebastião e o seu desfecho trágico: em menor número, os portugueses são rapidamente desbaratados e, na refrega, o rei cai morto após lutar junto a seus “aventureiros de cavalo ”. Finda a batalha no Marrocos, inicia -se a descrição da saga que envolveu os despojos do rei. Sem quebras de capítulo ou parágrafo, passa -se ao reconhecimento do corpo por seu “moço de câmara”, Sebastião de Resende, e por outros nobres que caíram cativos. Eles dão testemunha de que era mesmo de Sebastião o corpo que fora sepultado em Alcácer Quibir (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 65v-66). Em seguida, o relato conta a passagem do corpo para Ceuta, doado por “el hamet” (Mulay Ahmad) a Filipe II, e seu posterior translado deste at é o Reino, tarefa confiada ao duque de Medina -Sidônia. Nesse ponto, descreve o evento grandioso que foi a transferência do corpo de Faro, no Algarve, até o Mosteiro de Belém. O túmulo, levado por mulas, passou por diversas vilas e cidades, “e em cada uma destas terras os iam a receber todos os religiosos, povos e justiças na forma que é costume receber aos Reis vivos, porém as festas eram de tantas lágrimas, prantos e soluços como pedia a ocasião ” (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 67-67v). Em meio ao caminho, a marc ha solene se deteve em Évora e Almeirim, onde se juntaram à tumba de Sebastião as de D. Henrique e de Infantes filhos de D. Manuel e D. João III. Por fim, o corpo chegou a Lisboa, onde, com toda a pompa e circunstância devida, foi enterrado junto a seu pai s e avós. A versão do Tratado segue o rei até o seu sepultamento no Mosteiro dos Jerônimos, uma das cerimônias fúnebres de uma longa série iniciada ainda em 1578, semanas depois das primeiras notícias de Alcácer. A narrativa passa pelo reconhecimento do c adáver por seus pares, pelo seu repatriamento e pelo que Valensi (1994) chamou de suas “exéquias reiteradas”: as inúmeras diligências de Filipe II em reforçar a idéia de que o rei estava morto e enterrado, e não expiando seus pecados disfarçado de mendigo ou celebrando no paço de Prestes João, à espera do momento oportuno para voltar. Para reforçar a solidez desta posição – o que termina por nos indicar o quanto ela era passível de questionamento à época –, a Madre Leonor diz ter consultado “livros e papéis autênticos e escritos por pessoas dignas de muita fé e crédito ”. Uma delas foi Henrique Correia da Silva, alcaide mor de Tavira e testemunha do longo cortejo fúnebre que atravessou Portugal, com quem a autora conversou e se informou “por mais certeza e c rédito” do que escreveu (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 68). Afora isso, a autora justifica o seu acesso a testemunhas especiais e a papéis que “declaram na forma da verdade ” pelo seu parentesco: seu pai, D. Rodrigo de Castro Barreto, foi um dos nobres que perece u junto a D. Sebastião no 5 Marrocos. Consultas a testemunhas diretas, acesso a papéis e livros “autênticos”, ligação filial com um dos mártires da grande derrota portuguesa: seriam estes expedientes utilizados pela autora para situar seu texto num debate ma is amplo sobre o desfecho do rei Desejado? Jacqueline Hermann, em El Ksar El-Kebir. Narrativas e história sebástica na batalha dos três reis, chamou atenção para a relação dialógica estabelecida entre diversos textos e autores que trataram o tema desde os primeiros momentos após o massacre do exército português. Em meio a tantos relatos e crônicas, Hermann sugere a conformação de uma “guerra de discursos ” entre estes escritos, de tal modo complexa, que seu estudo aprofundado revelaria lugares de poder e me canismos de afirmação próprios do Estado Moderno – mesmo que “apegado a fórmulas e projetos herdados da Baixa Idade Média ”, tais como a “guerra santa” ou o “rei guerreiro” (HERMANN, 2006, p. 25). Ela afirma que, em meio ao debate, estes discursos estiveram mais interessados “com o lugar ocupado por cada um dos produtores dessas versões ” do que com uma busca desinteressada pela “verdade”. Se de fato a Madre Leonor de São João acreditava na versão que narrava, por ora é impossível. De qualquer modo, a versão sustentada por ela atendia os interesses e prestava reverência à casa reinante, de onde emanavam as disposições que garantiam o bom funcionamento do convento onde foi abadessa. A comparação com a Notícia da Fundação do Convento da Madre de Deus de Xabrega s pode ser útil para iluminar a utilização de mecanismo semelhante, num contexto próximo – mas substancialmente distinto – daquele em que se iniciou a redação do Tratado de Setúbal. A redação da Notícia de Xabregas foi iniciada, a confiar no próprio rela to, em 1639. num ambiente de descontentamento aberto e declarado contra o reinado de Filipe IV de Castela (e III em Portugal). Como dito acima, nela os monarcas do passado são lembrados por sua participação em momentos cruciais da fundação. Os filipes, ao contrário, merecem pouca ou quase nenhuma menção. Até a época de Sebastião, as referências aos reis são mais diretas e elogiosas. Para períodos posteriores, o que surgem são comentários enviesados, que deixam ver a insatisfação com o tempo presente. Por ex emplo, em conversa sobre a festa de Santa Auta e sobre como ela já havia sido mais venerada no passado, uma das religiosas se queixa do pouco que é “conhecida e festejada ”, ao que outra replica dizendo que “não era assim em verdade no tempo em que este Rei no tinha Reis que eram devotíssimos da Santa, e lhe faziam grandiosas solenidades em o seu dia ”. Em comentários sobre as relíquias em posse do convento, o lamento da comparação entre presente e passado continua: 6 Leonarda: Todas as mais relíquias desta c asa, quem as deu? Alexandra: Tudo quase foi dado pelos Reis, assim as de que se fez o santuário do coro, como as que ainda estão por colocar, e as duas cabeças das onze mil virgens Leonarda: Grande devoção tinham os Reis a esta casa, grande glória de nosso senhor e suas almas. Alexandra: Para quê é falar no que tanto magoa, sabeis -vos, filha, em que estima tinha o Príncipe D. João o Pai de el -rei D. Sebastião às freiras, que no seu tempo viviam, que perguntava quanto lhe custaria canonizá -las a todas? e quando se via só com elas, punha -se de joelhos, e por mais que resistiam, lhes tomava a bênção, dizendo que o não soubesse ninguém (SACRAMENTO, 1639-1652, f. 20v). O tópico do rei que se rebaixa diante das religiosas é, como se pode ver, recorrente tanto no Tratado como na Notícia. A diferença está apenas em quais reis são retratados dessa maneira. Os filipes são citados nominalmente na Notícia em algumas breves passagens. Na primeira delas, Filipe II surge apenas como intercessor numa questão envolvendo freiras flamengas fugidas de Flandres, aparentemente por questões de perseguição religiosa. Numa outra, o mesmo rei surge como fonte de atribulações para uma das religiosas do convento. A sóror Constança de Jesus – de Gusmão, no século –, era filha de D. Afonso de Portugal, Conde de Vimioso, morto em Alcácer junto com D. Sebastião. Seu irmão, D. Francisco, que sucedeu o pai no título, bandeou para o lado de D. Antônio, Prior do Crato, durante a crise sucessória desencadeada pela morte de D. Henrique. Por e ste motivo, Constança de Jesus foi presa e enviada à Espanha a mando de Filipe II, juntamente com a condessa sua mãe e mais sete irmãs. De volta a Portugal, ela e as irmãs decidiram tomar hábitos em conventos “com grande brevidade [...] antes que el-rei entendesse no negócio de seu Estado ” . A escolha do convento da Madre de Deus parece não ter sido fortuita: segundo consta, elas foram orientadas por um “padre capucho muito santo ”, no momento de escolher as casas em que professariam. À Constança coube o Con vento da Madre de Deus, escolha que a deixou muito honrada pois não queria “tomar o hábito em outra parte ”. Nela foi abadessa por quatro vezes, com “grande peito e governo, e autoridade; e assim era muito respeitada dos prelados, e das freiras” (SACRAMENTO, 1639-1652, f. 81-82). A trajetória de Constança de Jesus exposta no relato nos fornece, então, pistas interessantes sobre a posição do convento diante dos reinados filipinos em Portugal. Mais que isso, o papel desempenhado por sua família, que malgrado ter caído em desgraça à ocasião da derrota de D. Antônio continuou a fornecer quadros para a administração central do Reino e 7 para a hierarquia eclesiástica 2, nos ajuda a reconstruir parte das redes de relações que permearam a política portuguesa no períod o. Uma outra religiosa retratada na Notícia que nos ajuda a rotear o lugar social do convento – ou a posição construída pela crônica para o mesmo – é a sóror Maria da Conceição. O trecho em que sua história é contada foi escrito no ano de 1644, quatro ano s após a ascensão de D. João IV ao trono português. Nele, revela -se outro tipo de relação entre religiosas e rei, mais próxima daquela intimidade que marcou a convivência com os reis de outrora e distinta da que é endereçada aos filipes de Castela. Maria da Conceição, “mui nobre” e filha de pai estrangeiro, era conhecida por seus dons de antevisão e presciência. Em uma ocasião, prevendo a derrota de D. João num embate contra castelhanos, pediu às demais religiosas que escrevessem a parentes seus que iam a o paço, dando notícia de que não “que se não havia de conseguir o intento ”. A religiosa que conta essa passagem, Melânia, diz que, apesar da madre ter dado razões temporais para sua mensagem, as demais depois suspeitaram “que a soubera na oração ”. Outra religiosa, Metildes, relembra recado diferente de Maria da Conceição ao rei. Um dia, esta teria lhe pedido que “escrevesse a uma pessoa que o podia dizer a Sua Majestade que mandasse dizer todos os dias três missas aos Anjos S. Miguel, custódio de el -Rei e do Reino”. Mais uma vez, negou que esta orientação tivesse sido obtida mediante revelações. Por essa época, o convento também era responsável por lavar e consertar os corporais da capela do rei. Em uma ocasião, quando os responsáveis pelo seu transporte esq ueceram de trazer a chave que destravava a pequena arca que os transportava, a madre Maria da Conceição abriu -a, levando-a a uma imagem de Nossa Senhora presente no ante -coro e proferindo as seguintes palavras: “minha Senhora, abri este fechinho porque, co mo vedes, não há tempo para se consertar esta roupa de vosso filho” (SACRAMENTO, 1639-1652 , f. 133-135v). Nestes trechos mais adiantados da redação da Notícia a figura do rei aparece, então, reatada com a casa conventual e suas religiosas. Não é mais aque le rei distante e ausente, digno apenas de queixas e lamentações. É, ao contrário, um rei próximo: está ao alcance das religiosas, e tanto pode ouvi -las opinar sobre matérias diversas quanto encarregá -las de funções importantes, como a de conservar os pano s que cobrem o altar de sua própria capela. Em larga medida, é possível dizer que o longo tempo tomado pela redação da Notícia possibilitou a recuperação, ao final da própria crônica, de um tom laudatório considerado no início como parte de um passado perd ido. A obra, então, vista globalmente, é testemunho de 2 Também eram seus irmãos João de Portugal, que foi Bispo de Viseu, e Nuno Álvares de Portugal, que governou o Reino. 8 viragens políticas da história portuguesa, e, em si mesma, constitui uma de suas conseqüências diretas. O Tratado de Setúbal também sofreu modificações posteriores, e seus últimos adendos datam do ano de 1646. Por isso mesmo, à exemplo da Notícia, a crônica de Setúbal retrata a ascensão de D. João IV, em 1640. Por conta do tempo que levou a sua redação, os acréscimos de eventos posteriores foram feitos ao final da obra, trecho originalmente dedicado à memória dos abadessados da casa. Portanto, sem figurar no rol dos reis benfeitores da casa, a descontinuidade narrativa entre os reinados de Filipe IV e do Duque de Bragança é flagrante. Na costura que faz para retomar o assunto da sucessão monárquica, é possível perceber o esforço de Leonor de São João em resumir em poucas linhas o muito que se passou entre o último filipe português e a instalação da Dinastia de Bragança. Com estas palavras, ela encerra o trecho dedicado à morte de Filipe III e a sucessão de Filipe IV: Sucedeu-lhe nos Reinos, e em ser Padroeiro deste Convento, a Majestade del-Rei Filipe IV em Castela e terceiro em Portugal, de quem recebemos as esmolas ordinárias e esperamos toda a mercê e favor que costumamos receber de seus antecessor es. O mesmo esperamos da Majestade da Rainha Isabel de Bourbon nossa Senhora, que Deus guarde por larguíssimos anos em Companhia del -Rei nosso Senhor e do Sereníssimo Príncipe Baltazar e mais sucessão que Deus lhe dê como de contínuo pedimos (SÃO JOÃO, 1630-1646, f. 78). Quatro anos depois, no momento de anunciar a ascensão de D. João IV, a coisa muda de figura. Argumentando que suas doenças e achaques da idade detiveram a impressão de seu livro, Leonor de São João aproveita para atualizá -lo, dando conta das grandes mercês que deus Nosso Senhor tem feito a este Reino de Portugal, o qual por justos juízos seus chegou a tal miserável estado, e fraqueza nos atos da cristandade qu e se suspenderam as igrejas na cidade metropolitana de Lisboa, missas, sermões e sacramentos em forma que tudo eram clamores ao céu, e sentimento dos males que em a terra se iam intitulando (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 289v). A dificuldade em compatibilizar trechos aparentemente discrepantes redunda num silenciamento quanto a que “miserável estado” era este, e como a ele Portugal chegara. A crônica se limita, em seguida, a relatar a “santa e valorosa resolução ” tomada pelos portugueses: a aclamação do neto de D. Manuel, D. João de Bragança – curiosamente, o mesmo grau de parentesco que permitiu a requisição da coroa por Filipe II. Na mesma oportunidade, a crônica relembra outra neta do Venturoso, D. Catarina de Bragança, concorrente direta de Filipe II ao trono durante a sua vacância. Assim como fez no momento 9 de incensar os filipes, o Tratado volta ao passado e à genealogia para situar a dinastia nascente, redimensionando o tempo em que Portugal ficou o unido à Castela pela dupla coroa. A partir daí, o tom laudatório aos Habsburgos já não apresenta mais as mesmas cores, como fica claro na seguinte passagem: no tempo em que morreu nosso cristianíssimo Rei Dom Henrique, [...] o Católico Rei Dom Filipe II de Castela, seu primo irmão, ficou possuindo o Reino, e os príncipes seu filho e neto, em cujo tempo presente aconteceram as desgraças altas e também as grandes misericórdias com que nosso Senhor neste breve tempo tem, e vai cumprindo as profecias, e promessas, que fez El Rei Dom Afonso Henriques, as quais levam felizmente cumprindo em presença e tempo do nosso virtuosíssimo monarca o Senhor Dom João o 4o deste nome, em Portugal [...] indo cada dia de bem e melhor esta monarquia (SÃO JOÃO, 1630 -1646, f. 290v). A modificação no tom e no tratamento dispensado aos monarcas retratados nas narrativas é nítida. No caso da Notícia de Xabre gas, a mudança é mais branda e mesmo mais previsível: nos tempos dos filipes, um tom de lamentação em relação ao presente; depois da ascensão de D. João IV, um tom jaculatório. Já no Tratado, a reverência destinada aos filipes se transfere aos Bragança de maneira abrupta, deixando ao tempo dos primeiros “as desgraças altas”, quase que uma deixa para a recuperação pelo próprio Duque de Bragança da tradição mítica da monarquia portuguesa. Se essas mudanças no texto de Setúbal respondem a uma preocupação edito rial, demonstrada pela autora na medida em que persegue padrinhos ou simpatizantes da sua publicação, não é possível afirmar. Uma outra possibilidade de explicação reside na necessidade premente de criar laços com o novo governante, abrindo caminho para o favorecimento do monastério nas decisões e emanações régias. De qualquer modo, também é delicado atar o teor desses escritos a um alinhamento pré-determinado das casas monásticas que suas autoras habitaram. Se, de fato, as próprias narrativas concorrem pa ra construir determinadas imagens desses monastérios e de suas religiosas, elas não se furtam a, aqui e ali, deixar entrever a heterogeneidade de sua composição: em Setúbal, uma religiosa pede a Filipe II que a deixe orar pela alma de D. Antônio, Prior do Crato; em Xabregas, uma outra era irmã de Diogo Soares, influente nobre português ligado à administração castelhana. Dizer que o Convento de Jesus era pró -Castela e o da Madre de Deus de Xabregas se colocava ao lado de D. João IV significa reduzir a capacidade de confecção dessas crônicas como construção de discursos com fins específicos, ou mesmo ignorar a dinâmica da política interna travada no interior desses monastérios. 10 Como bem chamou atenção Curto (2003, p. 336), uma análise detalhada da relação entre sujeitos que a historiografia consagrou como antagonistas, que dê especial atenção sobretudo aos tempos anteriores ao 1640 que separou suas trajetórias e atiçou futuras leituras apaixonadas do episódio, pode colocar em outros termos questões relativas à fidelidade ao rei, patriotismo, nacionalismo, etc. Assim, um olhar atento sobre essas crônicas pode revelar alguns dos mecanismos utilizados no Portugal do Antigo Regime por religiosas para alcançar diferentes objetivos. Um dos caminhos que se apresenta m é o do rastreamento dos nomes que aparecem citados no corpo do texto ou nos pára -textos (dedicatórias, preâmbulos, introduções, etc.) que o cercam. Através deles é possível localizar as filiações de suas autoras e de seus principais padrinhos no contexto mais amplo da sociedade portuguesa. Essa perspectiva deve ser balizada e contraposta ao conteúdo desses escritos, que de sua forma também apontam para manobras e arranjos construídos pelas religiosas a partir de seu acesso à leitura e à escrita. Referências ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura – ensaios de história do livro e da leitura na América Portuguesa (1750 -1821). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2004. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 -1728. CURTO, Diogo Ramada. A restauração de 1640: nomes e pessoas. Península. Revista de Estudos Ibéricos, Porto, n. 0, p. 321-336, 2003. HERMANN, Jacqueline. El Ksar El-Kebir. Narrativas e história sebástica na batalha dos três reis. Marrocos, 1578 . História: Questões & Debates , Curitiba, n. 45, p. 11 -28, 2006. MACHADO, Diogo Barbosa. 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