1 SOBRE AQUILO Larissa Cassandra Pereira França QUE NÃO SE PODE FALAR Bacelete SOBRE AQUILO QUE NÃO SE PODE FALAR Larissa Bacelete1 Cassandra Pereira França2 Resumo É comum que comportamentos violentos repetitivos sejam associados à perversão, pois nesta observa-se o predomínio da atuação compulsiva sobre a construção fantasmática e a elaboração. Entretanto, poderíamos declarar que a angústia está ausente na perversão? Gerard Bonnet (2008) rejeita esta idéia comum ao afirmar que um grande sofrimento subjaz a fantasia de vingança que compõe a sexualidade perversa. O “fazer mal ao outro” seria então um modo de estabelecer contato com o meio externo, a partir da atuação violenta compulsiva. Estas premissas nos remetem ao que postula Winnicott (2002) acerca da relação entre agressividade e reconhecimento do objeto, nas origens do psiquismo do sujeito. Através de seus impulsos destrutivos as crianças podem começar a se estabelecer as fronteiras entre elas mesmas e o objeto primário. O presente trabalho propõe discutir as idéias destes autores sobre perversão e violência, a partir da análise do intrigante Precisamos falar sobre o Kevin, de Lynne Ramsay. Palavras-chave: perversão, violência, Bonnet, Winnicott. Abstract Usually violent and repetitive behavior are associated with perversion, for in this pathology it is observable the primacy of compulsive performance over construction and elaboration in phantasy. However, could we declare anxiety to be absent in perversion? Gerard Bonnet (2008) rejects this common idea affirming that a huge suffering is under the revenge phantasy that composes the perverse sexuality. The 1 Psicóloga (UFMG), mestranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG), pesquisadora do Projeto CAVAS/UFMG, que atende crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. 2 Professora doutora na Universidade Federal de Minas Gerais, Coordenadora do Projeto CAVAS/UFMG. 2 “harming someone else” would be a model of establishing contact with external environment, as from the compulsive and violent performance. These premises refer us to what Winnicott (2002) claims about the aggression and acknowledgement of an object, at the origins of the subjects’ psychical life. Through their destructive impulses children can establish the borders between themselves and the primary object. This papper aims to discuss these authors and their ideas about perversion and violence analyzing “We need to talk about Kevin”, by Lynne Ramsay. Keywords: perversion, violence, Bonnet, Winnicott. O filme Precisamos falar sobre o Kevin (We need to talk about Kevin) de Lynne Ramsay, baseia-se no livro homônimo de Lionel Shriver, que narra a história de uma mãe atormentada pela culpa. Aos 16 anos, Kevin, seu filho, mata onze pessoas numa tarde que parecia comum em seu colégio, no subúrbio de Nova York. Entre as vítimas, sete colegas, uma professora, um funcionário, além de sua irmã caçula e seu pai. Uma das últimas cenas que assistimos na versão cinematográfica mostra o desespero de Eva ao ser informada do ato cometido pelo adolescente. Aparentemente uma família comum, com seus núcleos sintomáticos, seus problemas mascarados, suas dificuldades em abordar certos assuntos, seu dia-a-dia agitado obturando as carências mais evidentes, os Khatchadourian parecem retratar as relações e conflitos que encontramos em qualquer lar. Mas não seria isto também que nos horroriza, ao pensarmos que nesta família, que poderia ser a nossa, estas questões aparentemente banais tiveram um desfecho tão trágico? Qual seria a razão de tanta violência, expressa por Kevin? Haveria alguma explicação? A insegurança em relação a seu desempenho materno faz com que Eva leve quase dois anos para confrontar o filho com a primeira pergunta que nos vem à cabeça, ao saber da chacina na escola: por quê? A resposta de Kevin é tão enigmática quanto sua personalidade: “Eu achava que sabia... agora já não tenho tanta certeza.” Se nossa questão não pode ser respondida de modo definitivo, pelo próprio autor dos assassinatos, resta-nos levantar algumas hipóteses a partir da observação do relacionamento entre o adolescente e sua mãe, dupla que mantém um estranho vínculo, marcado pelo ódio, a cumplicidade, e arriscaríamos afirmar, pela esperança. 3 Primeiramente, é necessário dizer que Eva não desejava ter filhos, e que sentiase bastante perturbada durante a primeira gravidez. Enquanto observava outras gestantes felizes, na expectativa de cuidarem de um bebê, ela parecia se perguntar se saberia fazêlo. Seu incômodo só piorou com o nascimento de Kevin: o choro, a dependência, a fragilidade do bebê deixavam Eva tão exaurida, que ela se sentia mais confortável num canteiro de obras, cujos ruídos eram infernais, do que na própria casa, a sós com a criança. Para ela, Kevin parecia não estar bem quando ficava sob seus cuidados. Choramingava muito, não dormia e nem mamava bem, mostrando-se calmo apenas com a chegada do pai. Sem perceber a extrema dificuldade de sua esposa para cuidar da criança, Franklin acreditava que se tratava de uma fase, e que por fim, Eva se adaptaria a esta nova situação. Porém, durante a primeira infância, a criança parece rejeitar os contatos que a mãe tenta travar: não fala, nem brinca com ela, destrói seus objetos, mostra-se agressiva e distante. Entretanto, observamos que o comportamento de Kevin é direcionado, e tem a função de provocar Eva, incitar sua ira, levando-a a recorrer ao auxílio do marido para resolver os problemas que tem com o menino. Chamou-nos a atenção, especialmente, a cena (38:52 a 41:39) na qual, usando tinta vermelha, Kevin suja todo o quarto onde ficavam fotografias, mapas, e rotas de viagens da mãe, as lembranças da época em que ela não tinha compromissos familiares, e podia visitar qualquer lugar, coisa que apreciava muito, e da qual sentia enorme falta. Chamando seus objetos de estúpidos, Kevin demonstra-se enraivecido ao notar que Eva desejava ter uma vida diferente da que levava como esposa e mãe. E podemos nos remeter a outra cena (31:59 a 32:59), cronologicamente anterior a esta, mas que a complementa, na qual sua Eva diz ao menino: “Mamãe era feliz antes do Kevenzinho aparecer, sabia? Agora mamãe acorda todas as manhãs desejando estar na França!”. Gerard Bonnet (2008), psicanalista francês que tem conduzido muitas pesquisas acerca da perversão, sugere que nestes casos a fonte de maior sofrimento para o sujeito é uma quebra repentina na relação com o objeto primário. Excitada pelo contato com o outro, pela ação de suas mensagens enigmáticas, a criança precisa, então, encontrar, por si mesma, uma maneira de dar vazão a estas pulsões. Uma das saídas possíveis seria a reprodução deste abandono experimentado através de uma atuação compulsiva, tentando inverter o estado de passividade no qual o infante se encontra. O comportamento violento repetitivo seria um modo de operar esta torção das posições passivo-ativo. 4 Seja por dispensar à criança um tratamento violento, indiferente, ou por ausentar-se nos momentos de constituição de seu psiquismo, quando o adulto não pode proporcionar modos mais sublimados de operar a excitação que atinge a criança, uma das vias de ligação que ela encontra para esta energia é o fomento de um desejo de vingança, que fará com que imponha a outros objetos o sofrimento que experimentou. Portanto, na perversão, o mecanismo da projeção é usado para exteriorizar os conteúdos mortíferos e disruptivos implantados pelo objeto primário, elementos que não puderam sofrer um processo de metábole. Em sua atuação, o perverso provoca no parceiro aquelas sensações e sentimentos não simbolizados em seu psiquismo. Esta lógica de reversão compõe a fantasia de vingança que subjaz toda atuação perversa, mas, além disso, pode significar também uma tentativa de ligação afetiva, de estabelecimento de vínculo: projetando no outro o trauma que sofreu, o sujeito busca algum modo de contato com o mundo externo, um objeto que acolha a mensagem contida em sua compulsão, auxiliando-o a decifrá-la (Bonnet, 2008). Estas idéias de Bonnet podem ser comparadas ao que propõe Winnicott (2002) em seu artigo intitulado “A delinquência como sinal de esperança”. Nele, o autor afirma que a criança que apresenta comportamentos anti-sociais muitas vezes teve experiências de satisfação com o objeto no início da vida. No entanto, estas vivências foram interrompidas em algum momento, provocando no sujeito o desejo de reviver este tempo em que a privação afetiva ainda não ocorrera. Assim, a tendência anti-social denotaria a expectativa do infante em relação ao objeto, convidando-o a acompanhá-lo neste processo regressivo. Winnicott (1999) também alia a agressividade às tentativas infantis de exploração da realidade externa. Segundo ele, o reconhecimento da distinção entre eu-outro é acompanhado de impulsos agressivos, como o morder, exemplo da mescla de excitação e agressão que origina a percepção destas fronteiras. O autor destaca, então, a importância do desempenho materno nestes movimentos exploratórios, pois para que esta diferenciação entre sujeito e objeto ocorra de forma satisfatória é necessário que o objeto primário suporte o quinhão de violência que a criança lhe dirige, ajudando-a a incluí-lo em processos mais construtivos. Voltando à análise do filme, propomos trabalharmos com a hipótese de que Eva não exerceu bem esta transformação de conteúdos destrutivos em impulsos criativos, em decorrência de suas próprias fantasias agressivas dirigidas ao filho. 5 Na história, um curioso detalhe nos permite compreender a ligação do menino com a mãe: é Kevin quem denuncia a segunda gravidez de Eva, antes mesmo que seu pai o perceba. Vejamos então que, sob a postura indiferente e agressiva da criança, esta se mantinha extremamente atenta ao que se passava com a mãe, conhecendo-a intimamente. A chegada da irmã em sua casa deixa Kevin, então por volta dos seis anos de idade, enciumado e regredido, como ocorre com quase todas as crianças que passam por esta situação. Mas nota-se que Célia desperta em Eva um outro tipo de maternidade: com a menina, ela se sente confiante em seu papel de mãe, consegue sorrir, brincar, demonstra ter prazer nas atividades cotidianas com a criança, como dar banho, pentear os cabelos, comprar roupas, e fazer passeios. Obviamente, esta disparidade não escapa à arguta percepção de Kevin, o que, por sua vez, provoca em Eva um temor constante de que o filho, encolerizado, cause algum dano à menina. Atormentada por estas fantasias, Eva não se surpreende quando Célia, aos cinco anos, sofre um “acidente” enquanto estava sob os cuidados do irmão. Este episódio a deixa gravemente ferida, e faz com que ela perca um olho. Diante disso, Kevin não exibe qualquer sinal de culpa, ou preocupação. Ainda que seriamente abatida com o sofrimento da filha, e desconfiando de que Kevin tenha de alguma forma provocado o acidente, Eva não consegue interpelar o adolescente, seja para verificar sua culpa ou inocência. Nem mesmo a postura desafiadora de Kevin, que parece provocá-la depois do acontecido, comendo com volúpia uma fruta cujo formato lembra um globo ocular, faz com que a mãe lhe dispense algo além de um silêncio aterrador. Este “não dizer” reflete a impossibilidade tradutiva de elementos fragmentadores, transmitidos inconscientemente entre Eva e Kevin. O diretor do filme utiliza um recurso interessante que ilustra este intercâmbio mudo. Em algumas cenas, sobrepõe as imagens dos dois, ou os mostra em sequência, mas tão rapidamente que chega a confundir o espectador. Afinal, era a mãe ou o filho quem lavava o rosto? Quem estava naquele sonho? Este amálgama parece apontar a culpa que Eva sente em relação aos crimes cometidos por Kevin, encarnando a posição de agressor, e se submetendo a todo tipo de ataque e humilhação após o massacre na escola. Ou ainda, esta confusão evidencia o malogro daqueles movimentos exploratórios descritos por Winnicott, a partir dos quais começam a se configurar as fronteiras entre o ego da criança e o objeto primário. Se a agressividade de Kevin era para sua mãe tão perturbadora a ponto desta não suportá-la, e desejar afastar- se do filho, como ela poderia favorecer a transformação destes impulsos em meios mais simbólicos de lidar com a excitação? 6 Percebemos então, que no que diz respeito ao autor da violência, tanto Bonnet quanto Winnicott reconhecem aí um potencial de transmissão de conteúdo, uma tentativa de contato com o meio externo. Ao contrário do que geralmente se pensa, estes atos anti-sociais podem indicar muito mais uma busca por contenção, do que propriamente rebeldia em relação a ela. A contenção que pode e deve ser exercida pelo adulto, não é um modo de dar um destino às excitações, de oferecer formas de tradução para elementos desorganizadores que agem no psiquismo infantil? Ora, o silêncio de Eva não é um tipo de abandono, um “deixar a criança se haver com as pulsões”, como salienta Bonnet? Algumas cenas revelam que Kevin, desde a infância, sentia-se angustiado e invadido por excitações que não podia manejar: levou muito tempo para começar a falar, embora não apresentasse nenhum transtorno neurológico que justificasse tal demora. Não conseguia controlar os esfíncteres, o que deixava Eva muito irritada. Este ponto, em particular, provocou uma das cenas (42:29 a 47:18) mais impactantes do filme. Em uma discussão com a mãe, Kevin evacua imediatamente após suas fraldas terem sido trocadas, deixando Eva extremamente enfurecida. Com aspereza, ela pega o filho pelo braço, e o empurra com violência ao outro canto do quarto, o que faz com que ele quebre o braço. No hospital, já muito tensa e culpada, Eva é informada de que Kevin tinha sido corajoso e firme, e não reclamara da dor em momento algum. Ao chegar em casa, o menino conta ao pai que se machucou ao cair da cama. Por sua vez, Eva não diz a verdade ao marido, com medo das represálias constantes que ele lhe faz quanto a seu relacionamento com Kevin. A partir daí, o filho passa a chantageá-la, mostrando sutilmente a cicatriz em seu braço sempre que a mãe se nega a fazer algo que ele deseja. Notamos neste episódio como a cumplicidade materna corrobora o vínculo paradoxal entre os dois, mas também mantém não traduzidos estes nódulos de desprezo e raiva, sentimentos que não entram numa trama associativa que os justifique. Já na prisão, após os assassinatos na escola, em uma das poucas conversas que tem com sua mãe sobre o relacionamento entre eles, Kevin diz a Eva que aquela agressão que lhe infligira fora o ato mais verdadeiro que tivera em relação a ele. Observamos que, para o adolescente, o ódio da mãe é tomado como única demonstração possível de seu afeto. Assim, Kevin busca evocar na mãe uma resposta exasperada, prova de que ela está suficientemente investida nele, a ponto de tolerar seus impulsos destrutivos. A postura indiferente de Eva, e sua insatisfação com a própria vida tornam difícil o investimento na criança, inviabilizando a veiculação de aportes narcísicos juntamente com as mensagens 7 enigmáticas. Além disso, pensamos que ela projeta em seu primeiro filho os fantasmas que a invadiram durante sua gravidez: os temores de fracassar como cuidadora, de ter a vida arruinada com a chegada deste bebê. Mas não nos parece que a principal questão neste caso seja a emergência destes afetos agressivos, ou destas fantasias violentas entre mãe e filho, e sim a inabilidade da primeira em encadear estes elementos num discurso, encaixando-os num “romance familiar” que possa gerar, por exemplo, um sintoma. Em relação ao objeto - não o objeto da violência, mas o objeto primário do sujeito que a pratica -, se tanto Bonnet quanto Winnicott atribuem esta violência à dificuldade do adulto em se adaptar às necessidades da criança, é possível detectar a partir daí, duas vertentes argumentativas. Para Bonnet, a mãe não é capaz de munir o filho de material simbólico suficiente para lidar com as fantasias fragmentadoras que ela mesma lhe transmite, inconscientemente. Conforme dissemos, Eva não consegue enxergar Kevin para além dos sentimentos de desconforto e inadequação que a habitavam enquanto cuidava da criança. Esta é, inclusive, uma crítica que poderia ser feita à construção da imagem do menino na história. Kevin aparece sempre emburrado, agressivo, petulante, cínico, ou manipulador. Estaríamos, então, diante de uma criança unidimensional? Seus afetos, seus conteúdos psíquicos seriam mesmo tão simplórios quanto o que se pode depreender de seu comportamento? Ora, lembremos que o romance de Shriver é narrado pela mãe do menino, e que temos acesso, portanto, à sua versão do mesmo. Não parece razoável supor que esta versão encontra-se impregnada pelos sintomas, temores, fantasmas, sobretudo o material inconsciente desta mãe? Assim, pensamos que o pavor de malograr em sua função materna institui um índice identificatório ao qual Kevin é lançado. Reconhecendo-se neste lugar persecutório, é pela via da violência que ele busca um modo de escoar esta invasão pulsional. Em contrapartida, na visão winnicottiana o objeto materno não exerce bem a função de holding, não reconhece o impulso criativo existente na agressividade da criança. Nesta perspectiva, a figura materna não é capaz de converter tais núcleos instintivos de agressividade em simbolização, através do brincar, ou do reconhecimento neste sujeito, de um desejo de contribuir no contexto familiar, de oferecer alguma coisa ao objeto amado. Para concluir e ilustrar esta idéia de Winnicott, mencionemos outra cena (01:06 a 01:08) importante: na vitrine de uma livraria, Kevin, já adolescente, contempla a foto da mãe num pôster do livro que esta lançara. Eva, que passava com Célia pelo mesmo local, vê o filho admirar sua imagem por alguns instantes. Este olhar não poderia ser interpretado como uma demanda de amor, ou como um esforço no 8 sentido de oferecer amor ao outro? É significativo que esta comprovação ocorra em silêncio, que mãe e filho não se falem na cena que finalmente dá ao espectador a impressão de que algo além da conduta anti-social habita o jovem. Se o investimento libidinal de Kevin em sua mãe aparece às avessas, se o erotismo só pode aparecer na brecha do ódio, não seria por não terem nunca se falado sobre isto? Referências Bonnet, G. (1996). As perversões sexuais. Porto: RÉS-Editora. _________ (2008). La perversion: se venger pour survivre. Paris: Presses Universitaires de France. Ramsay, L. (2011). Precisamos falar sobre o Kevin. Paris Filmes. EUA/ Inglaterra. Filme. Winnicott, D. W. (2002) Agressão e suas raízes. In: Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes. Winnicott, D. W. (2001) O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê. In: A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes. Winnicott, D. W. (1975) O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade psíquica. Rio de Janeiro: Imago.