Fechar os Olhos para Ver ”O sonho uma palavra no corpo/ A palavra sonhada/Fechar os olhos para ver/ De onde vem a palavra quando sinto o que digo/E agora você abre os olhos/ A cada minuto você abre funda matéria pétala”. Estas frases gravadas, escritas, apresentadas na exposição individual “Fechar os olhos para ver”, da artista Ana Miguel na galeria Laura Marsiaj, podem nos servir como manual de instruções. Tal qual Claude Lefort, a artista se coloca diante do enigma da linguagem: ser interior e exterior ao sujeito que fala. Assim, gravuras em ponta seca, camas em miniatura, feitas de madeira, vidro, açúcar, massa de modelar, frases em fios de metal, palavras sobre palavras ambientam o espaço interstício, já que o principal convite é, como nos incita o titulo, fechar os olhos para ver, entrar e sair de si. O trabalho da artista Ana Miguel é eminentemente uma demarcação de territórios. Deste mistério entre o mundo interior e exterior aos sujeitos, o que nos restam são territórios marcados por vestígios, índices. Assim, precisamos entrar no mundo proposto por Ana. Um mundo de criação de personagens. Fábula ou ficção? A exposição que Ana Miguel nos apresenta é uma fábula e, por conta disso, sua arte submerge como arqueologias da ficção, já que, como nos explica Foucault, fábula é o que se conta e ficção é a trama das relações. Diante das obras, quando menos esperamos, estamos encarnando personagens com gestos anti-naturais, meneando a cabeça para melhor observar, agachando o corpo, caminhando, com zelo, na ponta dos pés. Como espectador, exercemos o papel de intruso. Sim, intromissão seria a melhor palavra para definir nosso lugar, nosso território ao encontrarmos os objetos da artista. Ela abre malas, gavetas, cestos de costura, vira folhas de caderno, mostra-nos caminhas, incluindo a ficção de seu próprio berço. O território, segundo Deleuze e Guattari, seria o “efeito da arte”. O artista reorganiza funções, reagrupa forças. Sem dúvida, as proposições de Ana Miguel criam forças gravitacionais, fato nem sempre conseguido pelos artistas. Com trabalhos em escalas non gratas à geração dos anos 1980, Ana foi precursora desta mirada fabulística que caracterizaria parte da geração vindoura na arte contemporânea brasileira. O uso da gravura, ao mesmo tempo que a ligava às escolas e ambientes históricos, a colocava originalmente diferenciada. Além disso, viver na infância e matar a infância foram estratégias cada vez mais utilizadas pelas gerações subsequentes. Aqui, os vídeos Afogada no inverno e Afogada na primavera dão asas a esta duplicidade de sentimentos sobre a infância. Vida e morte. O ponto de vista de quem filma ficciona alguém que, caminhando pelo regaço de um lago, encontra vestígios, lãs vermelhas, sapatinhos de boneca, e, finalmente, uma roupa branca de criança. Uma atmosfera de crime ambienta o vídeo. Um bilhete, ao lado dos achados, quebra a infantilidade da suposta personagem. Lemos uma carta de Silvia ao pai, agradecendo pela festa de casamento. A caligrafia é infantil, mas o fato adulto. Este deambular por estórias, tempo, lugares é bem característico nos trabalhos da artista. Para a exposição Fechar os olhos para ver, o que parece afetuoso e terno é, ao mesmo tempo, torturante, as escalas são diminutas (ovos, caminhas, pés de bonecas), as letras, enevoadas pelo efeito aveludado dos arranhados da ponta seca no metal, brigam com o contraste da luz. Assim, percorremos claudicantes as trilhas propostas por fios de arames vermelhos, por escritos de grafite sobre papéis pautados, pelas frases em gravuras cujas palavras se superpõem atrapalhadas por manchas fingindo líquidos, fluidos avermelhados. As imagens apresentadas fomentam forças germinativas: o ovo, o berço, o caderno infantil, o livro. Territórios germinativos a partir dos quais reorganizamos alguns caos e fundamos outros. “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranqüiliza-se cantarolando (...) a canção salta do caos a um começo de ordem no caos”. Deleuze e Guattari disseram que tanto a criança quanto a dona de casa têm plena consciência do caos que terão de dar conta. Com isso, cantarolam. “Uma criança cantarola para arregimentar em si as forças do trabalho escolar a ser feito. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rádio, ao mesmo tempo que erige as forças anti-caos de seus afazeres”. A estratégia artística de Ana Miguel parece empreender forças anti-caos, consciente da fronteira fictícia que separa o mundo adulto do mundo infantil. O trabalho escolar, os livros nomeando os reinos mineral, vegetal, animal, a redação, nosso exercício primeiro de organização do caos. Dali, Ana retira palavras das páginas de um livro escolar – Nosso Planeta - misterioso como bem convém aos livros que tentam explicar às crianças o que nem os adultos sabem ao certo. Do livro, a artista destaca o nome das pedras preciosas: turmalina, ametista, rubi. Destaca a beleza. Esta atitude arqueológica, revelando palimpsestos, é feita com fios vermelhos de metal ligados a cada um dos nomes, retirando-os da escuridão para as luzes, possibilitandonos a leitura, a decifração. Cadernos, livros, berços, camas são sono e sonho, são mergulhos no medo escuro da criança, na força da fábula que nos acompanha até a velhice. E nós, criando mecanismos de proteção, guardamos a esperança de acordar, fingindo ser tudo de mentira. “A arte não espera o homem para começar”, as plantas, tanto quanto a metafísica, são próximas às crianças. Sobre um alto berço de metal com pés cobertos de crochê rosa e finalizados com pés de bonecas, Ana Miguel coloca sobre o bercinho quatro cascas de ovo, onde é plantada uma dormideira. Ao lado, uma carta de jogo da memória mostrando uma papagaia e seus ovinhos, futuros filhotes. Dormideiras são como o “era uma vez...” para a estória. A partir daquele abrir e fechar de folhas, como pétalas, a estória pode começar, mas, como na desolação da vida, a mágica acaba, e, nós, perversos e ávidos pelo entorpecimento, queremos mais, bulimos mais na plantinha frágil, quase morta. Como nos ensinaram os filósofos, o artista é o pássaro Scenopoïtes dentiostris que rasga, todas as manhãs, as folhas das árvores lançando-as ao chão, depois, desce dos galhos e as vira pelo avesso. Fingindo nos mostrar a compreensível narrativa, a estória, Ana Miguel nos apresenta caminhos por labirintos de avessos, seduzindo-nos a penetrá-los. Ao sair da visita a seu ateliê, caminhando em direção à Praia do Flamengo, percebi o âmbar das tardes no Rio de Janeiro recortando a paisagem como se estas fossem recortes de papel, envolvendo de maneira um tanto suspeita a pedra que chamam: Pão-de-açúcar. Marcelo Campos, 2010