Medeia: uma mulher muito além das fronteiras
Valesca Campista1 e Heloisa Caldas2
[...] E, cedo descobri que as paixões, muitas
vezes, levam à dor.
Freud, 1900
Crês que é pequena a dor para as mulheres?
Medeia
Afinal o que querem as mulheres? Esse foi o tema de um programa de TV que faz eco
à questão atribuída a Freud, no qual um homem faz um estudo sobre o que querem as
mulheres e estas apontam para o enigma e o desejo do que lhe falta, como já anunciava
Camile Claudel na carta endereçada a Rodin (1886) : “Há sempre algo de ausente que me
atormenta” (Rivière & Gaudichon, 2003).
As mulheres são infinitas, muitas, amantes, apaixonadas, levianas, recatadas,
confiáveis, inconstantes; segundo a psicanálise lacaniana, elas só podem ser tomadas uma a
uma como, por exemplo, sinalizam os Contos de Canterbury, escritos pelo inglês, Geoffey
Chaucer (1386/1987). Esses contos, narram acontecimentos curiosos em textos recheados de
passagens pitorescas, citações clássicas, ensinamentos morais, relacionados à vida e aos
costumes do século XIV na região da Cantuária e, por extensão, no resto da ilha britânica. No
conto, há um rapaz que violou uma jovem e escapou da morte imediata, graças à rainha que
decidiu absolvê-lo caso ele conseguisse responder a seguinte pergunta: o que as mulheres
mais querem? O rapaz saiu então pelo mundo, propondo a questão a todas as mulheres que
encontrava, sem jamais encontrar uma resposta que se repetisse. Entretanto, num determinado
momento, ele se depara com uma senhora que parecia bem idosa (em torno de cem anos) e
esta lhe dá uma resposta convincente: o que as mulheres mais querem é a liberdade, querem
ser livres para fazerem o que bem entenderem. Quando o rapaz reproduziu essa resposta para
1
Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, Seção Campos dos Goytacazes; Doutoranda
em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ, sob orientação da Profª Drª Heloisa Caldas; Mestre em
Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ; Professora da Universidade Estácio de Sá; Professora Temporária
da Universidade Federal Fluminense Pólo Campos dos Goytacazes.
2
Psicanalista; Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise; Membro da Escola Brasileira de Psicanálise – EBP e da Associação Mundial de Psicanálise – AMP.
Autora de: Da voz à escrita. Clínica psicanalítica e literatura. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.
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a rainha, o silêncio tomou conta do salão. Como nenhuma das mulheres presentes (casadas,
solteiras ou viúvas) discordou dessa afirmativa a pena de morte foi suspensa. O conto
permanece contemporâneo ao desejo feminino.
A mulher vive, portanto, uma experiência extenuante, que Lemoine-Luccioni (1995, p.
73) denominou de “prosopopeia da feminilidade”, quando a autora destaca que a mulher
espera tudo do outro como objeto exterior de amor e por esse motivo ela “erra como uma
alma penada”.
A feminilidade diz:
[...] sou fraca, um nada. Sou o dom feito mulher. Não me pertenço. Sem você não
sou nada. Espero tudo de você. Sobretudo não se afaste. Quando você não está aí
não vivo mais. Serei como você quiser, bela, infantil, mas também apaixonada. Serei
sua amante, sua esposa, sua irmã e sua mãe, tudo junto e mesmo sua amiga. Mas,
sob a condição que você me ame (Idem, p. 74).
Na posição feminina parece haver uma “barganha”, na qual a mulher se oferece inteira
para o amor. A mulher fica, portanto, inteiramente suspensa no que se refere ao desejo do
Outro, sem descobrir o seu próprio desejo; afinal como Lacan afirma em um de seus axiomas,
o “desejo do homem é desejo do Outro” (Lacan, 1962-63/2005, p. 31).
Para Lacan, ao abordar a dialética demanda/desejo, a demanda se distingue da
satisfação, na medida em que ela é presença ou ausência, situando-se aquém das necessidades.
A demanda constitui o Outro como aquele que tem o privilégio de propiciar a satisfação das
necessidades. “Esse privilégio do Outro, assim, desenha a forma radical do dom daquilo que
ele não tem, ou seja, o que chamamos de seu amor”. Lacan prossegue articulando que ao
incondicionado da demanda o desejo não é “nem o apetite de satisfação, nem a demanda de
amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à segunda, o próprio fenômeno de
sua fenda” (Lacan, 1958/1998, p. 698).
O que está em jogo na dialética demanda/desejo é o falo. Para Lacan, o falo é um
significante que de um lado protege e do outro mascara. Como significante, o falo dá razão ao
desejo e “é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do outro que a mulher vai rejeitar
uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada.
É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada” (Idem, p.
701). O falo como significante privilegiado determina um “não há”, um lugar vazio que
convoca sempre uma suplência. Isso levou Lacan (1972-73/1985, p. 62) a formular que como
entre os sexos não há relação sexual “o que vem em suplência a relação sexual, precisamente
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é o amor”. É no ponto em que algo não se inscreve que o amor e a arte podem ter função de
suplência, suplência no sentido de suprir algo que não se deu, como uma criação que permita
cercar o impossível do saber inconsciente.
O falo denota o poder de significação que é vazio de conteúdo e se articula ao
nonsense, no qual significação e sentido se enlaçam. Lacan (1958/1998) mostra que o falo na
doutrina freudiana não é uma fantasia nem um objeto parcial, muito menos um órgão que ele
possa simbolizar. Lacan descreve o falo como um significante velado, destinado a designar os
seus efeitos de significado e, dessa forma, garantir a possibilidade dos objetos serem tomados
como equivalentes na ordem do desejo.
O falo como um significante permite que o furo permaneça na cadeia, porém bastardo,
um filho fora da cadeia, ilegítimo. É ele, entretanto, que promove a cadeia discursiva. O falo é
visado pelo sujeito por ser exatamente o que lhe falta e é preciso reconhecer a condição de
que todo sujeito está submetido a uma falta que se situa alhures e que se refere ao desejo. É o
falo que empresta brilho aos objetos e a todas as fantasias relativas ao desejo. Ele não tem
consistência, aponta para o acesso ao simbólico, pois é uma ausência presente que impulsiona
o desejo a ir além.
O feminino na vida amorosa
Na clínica, é muito comum ouvir queixas sobre as dificuldades amorosas, sobre a falta
de atenção dos parceiros, de serem incompreendidas, de não serem amadas. As mulheres
insistem em saber o que é uma mulher para um homem, além do que ela possa lhe oferecer
como falo. Elas o convocam a responder pelo seu valor, além da satisfação fálica que ele
possa obter com elas. O desejo de ser amada, mais do que de amar, é encontrado,
principalmente, nas mulheres. E, caso esse desejo ocorra de forma muito intensa em um
homem, podemos dizer, em consonância com Lacan (1960/1998), que ele está numa posição
feminina frente ao Outro.
Com Lacan, a lógica da vida amorosa é trabalhada em dois momentos de sua teoria.
Primeiramente, ele desdobra a vacilação subjetiva entre ter ou não ter o falo acrescentando a
de sê-lo ou não. Posteriormente, ele ultrapassa a referência exclusiva ao falo para propor a
coexistência de duas lógicas: uma fálica que organiza, com recursos do simbólico e do
imaginário, o circuito do desejo e a contabilidade do gozo; e outra, mais própria ao real, na
qual não há nome, nem medida, para o gozo. A partilha sexual pensada em função dessas
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lógicas situa o masculino naquilo que o falo rege e o feminino no desmesurado (Lacan, 1973).
Como coexistem, pode-se verificar, caso a caso, como um sujeito se arranja, tendendo mais
para uma ou outra. A predominância de uma é o malefício da outra. A força do falo defende o
sujeito do gozo sem limites, mas mortifica o vivo do gozo. O gozo desenfreado não localiza o
sujeito, tampouco o defende da pulsão de morte que excede à vida.
Lacan adjetivou a lógica fálica de para todos, uma vez que o falo como significante
permite agrupar elementos em função de um traço que vale para todos. Na outra lógica, ao
contrário, o falo não conta, portanto não se tem um traço para formar conjunto; cada elemento
submetido a ela é impar. Em função disso, ele adjetivou-a como não toda, situando nela o
objeto a de gozo e o enigma do Outro ( A/ ), vivido especialmente no corpo como alteridade.
Para o sujeito feminino, na neurose, a erotomania é também a estrutura de sua forma
de amar. Lacan (1960) distingue duas formas de amor, elucidadas por Jacques Alain-Miller
(2003) – o amor fetichista e a erotomania. Na forma fetichista de amar, a lógica fálica
predomina. O fetiche, significante fixado da fantasia, comanda o objeto de gozo e pretende
responder à falta do Outro – S( A/ ) – sem deixar resto. Seu relativo sucesso em cifrar o desejo
que acede ao gozo faz com que sirva, repetidas vezes, para o mesmo fim. Na erotomania, a
lógica do não todo predomina, a operação fálica é precária. Trata-se de um amor que pretende
remediar a falha do significante, pois este não recobre a falta do Outro. Verifica-se, nessa
forma de amor, a demanda por uma identificação relativa ao ser. A erotomania – ainda que
deduzida a partir da construção de delírios psicóticos que expressam certeza quanto ao Outro
como em “ele me ama, estou certo disso” – não é exclusividade da psicose. Poderíamos
ensaiar um cogito amoroso para a erotomania, mais trans-estrutural, formulado nos termos “se
amada, logo sou”. Torna-se evidente a demanda de um significante do campo do Outro que
possa nomear e circunscrever o campo de gozo do sujeito. A demanda de amor clama, em
última instância, por um nome próprio que nomeie o ser.
No amor busca-se então uma completude ilusória porque impossível. Motor das mais
variadas paixões humanas, responsável por guerras, uniões, encontros, desencontros, tragédias
e nos inquieta, o amor nos leva a interrogar sobre algo que talvez, como disse Freud, os poetas
respondam melhor.
O amor, poderíamos dizer, é o que faz com que uma mulher, a exemplo de Medeia,
heroína da tragédia grega, explore uma zona desconhecida, ultrapasse todos os limites, “uma
região sem marcas, mais além das fronteiras” (Miller, 2010, p. 9).
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A paixão exacerba o sentimento inerente ao amor, conferindo ao sujeito uma ilusão de
completude como efeito derradeiro da estrutura. A paixão torna o objeto imprescindível, razão
pela qual a sua perda provoca no sujeito, uma tentativa desesperada de mantê-lo. Diante da
perda do objeto amoroso da paixão, modos distintos de enfrentamento podem ocorrer, pois,
como afirma Lacan (1974/2003: 538) as mulheres “são conciliadoras, a ponto de não haver
limites para as concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, de sua alma, de
seus bens”.
O feminino é o que excede ao campo fálico, ou seja, a posição feminina está referida
ao campo relativo a uma indiferenciação originária, ao real, assim como, a uma
suplementação, que se impõe frente à limitação do universo fálico da representação. Miller
(2010) afirma que as mulheres são “amigas do real” e esse sentido pode ser atribuído a elas
um “saber-fazer”, savoir-faire, saber implicado na ação, na vida, saber irrepresentável, mas
que nem por isso é impossível de ser experimentado. É esse saber que encontramos em
Medeia, uma mulher além do falo, além das fronteiras.
Medeia, uma mulher além do falo
A tragédia grega de Eurípedes foi apresentada, pela primeira vez, em 431 a. C. Encena
a história de Jasão, argonauta e marido de Medeia, que a abandona para se casar com Glauce,
filha de Creonte. Na peça narra-se o sofrimento de Medeia que, entregue às dores, é capaz de
tudo ao descobrir que seu homem não mais a desejava.
Ela havia abandonado a família, traído seu pai, seu país, fugido com o amado Jasão,
com quem, por isso, vivia no exílio, em Corinto. Durante a fuga matara seu irmão que havia
levado consigo para despistar o pai. Medeia consentira com tudo o que Jasão quisera, não
havendo desavenças entre eles. Ela havia sido uma esposa e mãe perfeita. O paraíso despenca
quando Jasão, ao invés de honrá-la e faze-la honrada em Corinto, anuncia que vai se casar
com outra mulher, a filha de Creonte, rei de Corinto. Medeia afirma que essa situação é um
ultraje. Ela perde a alegria de viver e é tomada pelo pranto.
Pobre de mim triste de dores [...]. Esta sorte que rui sobre mim súbita rompeu-me o
peito; parto pois perdi o prazer de vida: quero a morte amigas! O esposo que era
tudo para mim tornou-se – bem o sabe – o pior dos homens. De quantos seres alma e
mente têm, nós os mais míseros, mulheres, somos [...] (Oliveira, 2006, p. 33).
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Para que Medeia vá embora, Jasão lhe faz todas as ofertas possíveis, assegurando que
nada faltará a ela e aos filhos. Medeia se recusa a aceitar qualquer oferta e afirma que o ter já
não tem nenhum valor para ela. Propõe-se então a elaborar sua vingança que consiste em
retirar de Jasão o que ele mais ama: sua atual mulher e seus filhos. Medeia mata, assim, com
um punhal, os filhos mesmo os amando profundamente, como destaca Eurípedes. Além disso,
Creonte e Glauce também morrem vítimas do seu veneno enviado em grinaldas de ouro.
Miller (2010, p. 8) destaca que o que há de mulher nela supera o que há de mãe, que
não se deve imitá-la, mas ela constitui o exemplo radical do que significa ser mulher mais
além de ser mãe, a saber, que é capaz de sacrificar o que tem de mais precioso para abrir no
homem um buraco que jamais será preenchido.
É a voracidade da pulsão em Medeia que desvela o trágico, não em sua dimensão de
horror e sim, no sentido grego, tragikós, a saber, o que evidencia o desejo. A heroína da
tragédia grega é movida, então, por uma fúria sanguinária e uma paixão desmesurada em que
ser o objeto de gozo de um homem atualiza a perda de uma libra de carne, lançando-a no
limite do intolerável.
Uma mulher amar mais do que ser amada revela a sua posição frente ao falo. A função
fálica pode falhar naquilo que é sua atribuição, a saber, regulação simbólica - das palavras e do
pensamento; imaginária – da realidade psíquica e fantasmática; real - da regulação do gozo.
Diante da falha o que temos é uma irrupção do real como se pode perceber em Medeia, um
exemplo da mulher devastada, quando só a carnificina pode lhe fazer resgatar o desejo. E, é o ato
de medeia que resgata a dimensão do seu desejo, ela sai do seu enorme sofrimento e foge para
Atenas, onde é acolhida, pelo rei Egeu e se lança numa nova trilha.
Para encerrar, faço nossas as palavras de Miller: “pobres dos homens que não
conseguem reconhecer nas esposas as Medeias”.
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REFERÊNCIAS
CALDAS, H. (2009) “Cartas de amor semblante”. Latusa, Revista da EBP-Rio: Sintoma e
semblantes na vida e na análise, n. 14. Rio de Janeiro: EBP-Rio.
CHAUCER, J. (1386/1987) Contos de Cantuária, T. A. Queiroz, Editor. Disponível em
http://pt.scribd.com/doc/37155310/Geofrey-Chaucer-Os-contos-de-Cantuaria.
FREUD, S. (1932/1990) “A feminilidade”. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XXII.
LACAN, J. (1958/1998) “A significação do falo”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor.
_________ (1960/1998) “Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina”. Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_________ (1962-63/2005) A angústia. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor.
_________ (1973/2003) “O aturdito”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
________ (1974/2003) “Televisão”. Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LEMOINE-LUCCIONI, E. (1995) A mulher não-toda. Rio de Janeiro: Revinter.
MILLER, J-A. (2003) “Uma partilha sexual”. In: Clique, nº 2. Revista dos Institutos
Brasileiros do Campo Freudiano: O sexo e seus furos. Belo-Horizonte: Instituto de
Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
__________ (2010) “Mulheres e semblantes II”. Opção Lacaniana online nova série, ano 1,
número 1. Rio de Janeiro: EBP.
OLIVEIRA, F. R. (2006) Medeia de Eurípedes. São Paulo: Odysseus Editora.
RIVIÈRE, A. & GAUDICHON, B. (2003) “Carta de Camille Claudel a Rodin,
1886”. Camille Claudel: correspondance. Paris: Gallimard.
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