OS DESATINOS DA PAIXÃO LIDIA LEVY ISABEL CRISTINA GOMES Na tentativa de compreender o universo feminino, Freud, ao longo de sua obra, faz algumas significativas revisões sobre o tema. Partimos de sua hipótese de que a angústia experimentada pela mulher não está referida à perda real do objeto, mas à perda do amor por parte do objeto (Freud,1926). Ampliando esta afirmação, Ligeiro e Barros (2008) enfatizam que o medo de ser abandonada pelo parceiro e perder seu amor é uma invariável na vida psíquica feminina. Para as autoras, enquanto o homem está submetido à função fálica, nela encontrando um apoio para atravessar os momentos de angústia, a mulher experimenta uma espécie de dissolução de si, perdendo as fronteiras do seu ser. Diante de um não saber sobre a própria feminilidade, a mulher tentará fazer suplência a essa falta por meio do amor e buscará exclusividade no desejo de um homem. Assim sendo, o amor, sobretudo a perda do amor, é por ela sentida como uma devastação. Ela se perde ao perder o amor do homem. Para Santos e Sartori (2007), a mulher estar amando é um vício, de modo que amar demais, enlouquecer de amor, é uma vicissitude comum na vida erótica feminina. Também para Zalcberg (2008), a necessidade de amor e a total dependência em relação ao amado, vão se impondo historicamente como constitutivos da identidade feminina. O culto ao amor permanece até hoje, pois a saída pela vertente do “ter’ não soluciona sua questão, na medida em que as conquistas fálicas obtidas pela mulher na atualidade não superam a pendência identificatória na ordem do “ser’. A mulher precisa ser amada para “ser”, assim, sua feminilidade é definida através da parceria com um homem. Ao abdicar de sua própria vida em favor do amado, torna maior sua exigência amorosa. Pretendemos neste trabalho abordar algumas situações nas quais ocorre um “enlouquecimento” da mulher pela perda do amor, com reflexos tanto no lugar que ocupa como mãe quanto nas exigências feitas ao parceiro. Em seu “enlouquecimento”, exige do parceiro “provas de amor” que transcendem os limites da lei. Utilizamos um fragmento clínico e o relato de um crime passional retirado da mídia para reflexão. Partimos das contribuições de psicanalistas que utilizam o mito de Medeia, como designativo da “verdadeira mulher” (Lacan, 1966), ou seja, aquela que coloca o amor de um homem acima da maternidade. 1- MEDEIA Medeia está entre as figuras míticas de mulheres que tudo sacrificaram em nome de sua exigência de amor por um homem. Para obter o amor de Jasão não hesitou em perpetrar todo tipo de transgressão, inclusive, matar os próprios filhos. Zalcberg (2008) nos lembra que este é um personagem que, para Lacan, corresponde à “verdadeira mulher” porque para ela ser mulher era superior a ser mãe. Diante da traição do amado, matar os filhos que com ele tivera, visava despojá-lo de tudo, feri-lo no que lhe era mais caro. A autora compara a mulher freudiana, essencialmente fálica, visto o filho ter um valor de compensação fálica, com a mulher em Lacan, que escolhe ser mais mulher que mãe, relegando sua condição materna a um segundo plano. É o amor e não a criança que possui um valor fálico. Schaffa (2009:52) também propõe uma releitura de Medeia, reconhecendo na heroína de Eurípedes, “a menininha freudiana, atormentada pelas forças das moções pulsionais que, fora do recalcamento, se erguem frente às ameaças da perda de amor”. Um “complexo de Medeia” (Depaulis, A., 2008) é também identificado em processos cada vez mais comuns nas Varas de Família, que têm revelado um número crescente de mulheres usando os filhos como uma arma para atingirem os ex-maridos. Questões mal resolvidas no processo de separação, a inveja, sentimentos de solidão, o abandono, a vivência da traição, entre outras motivações provocam a animosidade, liberam o ódio, a vontade de vingança e provocam destruição. O fragmento de um caso clínico apresentado a seguir ilustra a utilização de uma criança como instrumento de vingança perpetrado por uma mãe biológica e uma mãe adotiva pela perda do amor do pai biológico e do pai adotivo da criança. Um adolescente de 14 anos é levado ao analista com a queixa de dificuldades de aprendizagem. Na primeira entrevista este é informado que o menino, quando recém nascido, havia sido deixado ainda com o cordão umbilical no estacionamento de uma empresa com um bilhete indicando o nome do pai e o setor da empresa no qual trabalhava. Descobre-se, posteriormente, que a mãe da criança, ferida com a recusa do amante em abandonar a esposa, decide vingar-se, expondo-o em seu ambiente laboral e familiar. Esta criança foi adotada por um casal cujo marido não compartilhava do mesmo desejo de adoção da esposa, pois esperava gerar um filho. Após o término da relação conjugal, também em decorrência de uma traição, a mãe adotiva deixa a criança com o ex-marido, quando este se casa novamente. A mãe biológica procurou, através da maternidade, conquistar um lugar de esposa. Não atingindo seu intento, expõe o amante em seu ambiente de trabalho e familiar, mesmo que para isto abandone o filho em um estacionamento. A mãe adotiva, revoltada com a traição, parece acreditar que deixando o menino com o pai conseguirá dele se vingar. Assim é que, o rompimento da relação amorosa, o abandono imputado ao outro, principalmente em decorrência de uma traição e o sentimento de perda de amor levou-as a reduzir o filho a um objeto de vingança. 2- CRIMES PASSIONAIS Como vimos anteriormente, a mulher anseia que o homem lhe destine sua castração e lhe forneça provas de amor. Constatar que estas são oferecidas a outra mulher, desperta emoções que podem chegar ao extremo de um crime passional. Barros e Silva (2002) nos lembram que Freud utiliza o termo verliebtheit, paixão amorosa, para uma emoção que domina o sujeito sem o controle da razão, podendo chegar ao excesso de uma transgressão ou de uma perversão. Já que a paixão encerra uma ilusão de completude, sua possível perda pode levar a passagens ao ato de diferentes graus de destrutividade. Zalcberg (2008:146) comenta que: “Tanto na clínica como na vida cotidiana se constata a presença de manifestações de excesso na dialética pulsional feminina e que se apresentam de modo inversamente proporcional a uma resolução simbólica”. O fato relatado a seguir foi publicado na mídia. Uma "prova de amor" levou um casal a ser preso em Resende, no Sul Fluminense. Os dois são acusados de matar a tiros a vizinha, de 24 anos. “Eles acabaram confessando que a mataram porque ela era amante dele. Foi uma jura de amor do marido em troca de uma reconciliação, depois que a esposa exigiu que ele desse cabo da vida da amante, que foi morta de forma cruel, com quatro tiros na nuca, ajoelhada. Neri (2007), realizando um trabalho em instituição prisional de mulheres, teoriza sobre a relação do feminino com o crime passional. A autora observa que, o amor, o ciúme, a vingança são fatores recorrentes na delinqüência feminina. Uma das hipóteses para o crime passional é que ele é cometido como reação por aquele que sente o outro como seu objeto de posse, quando este opta por romper a relação. Concluindo, se recorrermos ao imaginário social, a condição maternal sempre esteve atrelada à condição da mulher. É somente na atualidade que essa dissociação se torna cada vez mais presente, trazendo à tona as vicissitudes do ser mulher. Em algumas, os desatinos de uma paixão atualizam o mito de Medeia e podem levar e à transgressão e ao descontrole dos crimes passionais. Referências Barros e Silva, M.H. A paixão silenciosa: uma leitura psicanalítica sobre as paixões amorosas. São Paulo: Escuta. 2002. Depaulis, A. Le complexe de Médée. Quand une mère prive le père de ses enfants. Leuven: De Boeck Université, 2008 Lacan, J. Écrits. Paris: Ed.du Seuil, 1966. Ligeiro, V.M. e Barros, R.M.M. Mesa-redonda: Violência e poder: repercussões no feminino - A violência do abandono na mulher. www.fundamentalpsychopathology.org/8_cong_anais/MR_395a.pdf, 2008. Neri, H. O feminino e o crime passional. Psicanálise & Barroco - Revista de Psicanálise. V. 5, n.2, dez. 2007, p. 07-23. Santos, T.C. e Sartori, A. P. Loucos de amor! Neuroses narcísicas, melancolia e erotomania feminina. Tempo Psicanalítico, v. 39, 2007: 13-33. Schaffa, S. Medeia, o feminino. Jornal de Psicanálise. v.42 n.76, São Paulo, jun. 2009: 51-64 Zalcberg, M. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro, Elsevier, 2008.