ISTO SERÁ MESMO NECESSÁRIO? Senhores Deputados Sabemos que, só a partir de 2003, começaram a ser tomadas medidas no sentido de tornar sustentável o sistema de aposentações da função pública, numa clara e pública confissão da incompetência dos sucessivos governos para encarar um problema que já era previsível nos fins da década de 80 (ver adiante)! Desde 2003, o “ataque” aos aposentados intensificou-se, nalguns casos com justificações aceitáveis. Foi assim que a idade da aposentação e o tempo para a atingir se foi alterando e aumentando, ao mesmo tempo que as regras de cálculo das pensões eram também alteradas. Acabou-se, e bem, com a possibilidade de um aposentado do Estado poder acumular a sua pensão com qualquer forma de remuneração atribuída por esse mesmo Estado. Chegou-se, porém, ao exagero de as gratificações, ou senhas de presença, por se ser membro de uma Comissão qualquer, prevista na lei, não poderem ser recebidas quando se é pensionista. Há, assim, aposentados a trabalhar em Comissões legalmente criadas, sem poderem sequer receber senhas de presença, por exemplo. A irresponsabilidade dos sucessivos governos acabou por nos levar à situação de dependência em que nos encontramos, com a obrigação de cumprir um Memorando de Entendimento que tem trazido a miséria a muitos portugueses. A convergência dos sistemas, público e privado de pensões, estava entre as medidas previstas no Memorando, não dando, contudo, indicações específicas sobre o modo de o fazer. O atual governo demonstrou, há mais de um ano, em especial através do Primeiro-Ministro, uma propensão para lançar privados contra públicos e novos contra velhos, manifestando claramente uma aversão aos aposentados em geral (Contribuição Extraordinária de Solidariedade) e, de entre estes, aos da função pública. Não admira, portanto, que tente levar avante a sua ideia de penalizar estes últimos, através de uma proposta de legislação, ontem aprovada, que lhes retira, de um dia para o outro, uma parte considerável das suas pensões, sem qualquer preocupação com uma transição a que o Estado nos tem habituado. Dir-se-á que, na situação em que o país se encontra, tal seria inevitável, mais tarde ou mais cedo. Mas não basta afirmar: é necessário provar. Sejamos claros. Não me custa, absolutamente nada, admitir que, numa situação de emergência, como a atual, o Estado se veja obrigado a quebrar algumas partes dos seus contratos e não faço disso um segredo. Escandaliza-me muito, porém, que esse mesmo Estado ataque de maneira despudorada os que menos recebem, os desempregados e os doentes. Escandaliza-me que esse Estado determine cortes, recorrendo ao fomento da discórdia entre gerações e entre diferentes grupos de trabalhadores. Escandaliza-me que esse Estado “esqueça” a sua própria responsabilidade na situação criada e venha, agora, querer dar a entender que são os reformados e os funcionários públicos a origem de todos os males e os culpados pela situação, como se tivessem sido eles a elaborar as leis que os conduziram à condição de “privilegiados”. Escandaliza-me que um Estado responsável admita, em nome de uma equidade que só ele entende, tratar os atuais funcionários públicos como uma classe a abater. Aceito mal que, numa deriva de “tiro aos reformados”, esse Estado tenha até admitido a existência de uma “TSU” (aparentemente abandonada, por agora) com um valor não justificado, porque não sustentado em estudos, e, portanto, arbitrário, criando uma situação de desconfiança que, para além da injustiça a criar, pode gerar uma grave convulsão social. Mas não devem restar dúvidas de que há desigualdades que importa diminuir ou eliminar, sendo a fórmula de cálculo das pensões dos atuais aposentados, que entraram para o Estado antes de 1993, uma das que deve ser discutida e encarada. A correção pode, ou não, ser gradual. Tal depende da real situação das “finanças” da CGA, mas tendo muito em conta os constrangimentos que lhe têm sido impostos (por exemplo, não recebe subscritores desde 2005, creio eu). Dito isto, é claro que considero saudável que essa discussão se faça e que sejam encontradas soluções que podem passar por um corte imediato ou progressivo, com a correção da fórmula de cálculo. Mas tal só deve ser feito após se esclarecerem algumas questões e se desfazerem algumas mentiras: 1. Afirma-se que a CGA está sem dinheiro para pagar pensões. Tal não é de espantar – o patrão Estado, só a partir de meados desta década, começou a pagar a sua parte, como fazem os privados, não podendo, por isso essa verba ter sido capitalizada quando tal ainda era possível; desde 2005 não há novos funcionários a descontar, pelo que, aumentando o número de aposentados, o sistema vai mirrando. Será que o governo será capaz de dizer isso aos contribuintes, isto é, que foi o Estado que criou esta situação? 2. As regras da aposentação dos funcionários públicos têm vindo a ser apertadas (e bem) desde 2003, em mudanças sucessivas da lei, aproximando os regimes. Está o governo em condições de informar quanto já se “poupou” com estas alterações e por que razão elas ainda não chegam? Suponho que sei, mas a maioria dos aposentados, que já sentiram as consequências das diferentes medidas, pensava que estas eram suficientes. Se não eram, por que razão não lhes foi dito e explicado atempadamente, apanhando-os agora desprevenidos? E será que eram mesmo insuficientes? Ou aproveita-se a onda de cortes e põe-se tudo no mesmo saco? Não se trata de uma medida estrutural pois só durará enquanto eles vivem e não é de esperar que seja, em média, muito mais do que uma década. 3. Tem o Primeiro-Ministro razão quando diz que descontámos para ter pensões (CGA e regime geral), mas não “estas pensões”. Na verdade, não é preciso ser cínico para dizer que era possível prever que tal iria acontecer – o Estado deixou de ser pessoa de bem há muito tempo e isso prova-se pelas malfeitorias que tem aplicado aos cidadãos, forçado, pela incompetência dos governos, a cortar nas despesas e a aumentar as receitas (estas são só algumas entre outras). No limite, se o Primeiro-Ministro não clarifica, a conclusão a que se pode chegar é que descontámos (os atuais aposentados e os que virão a aposentar-se) uma brutalidade para ter pensões não compatíveis com esses descontos. Quererá o PrimeiroMinistro explicar, se for esse o caso, que a sua intenção não era pôr novos contra velhos? Se não era, tiveram esse efeito. 4. Na primeira parte da década de 90 (ou fim da década de 80!), o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, prevendo que se poderia chegar ao ponto a que chegámos (não tão grave, pois era precisa muita imaginação) propôs ao Governo que permitisse que se pudesse pôr, a título voluntário, um limite às pensões (neste caso dos membros das Universidades, pois só para isso tinham legitimidade), com a redução correspondente nos descontos, deixando a possibilidade de se poder, naturalmente, aderir a um sistema de seguro, ou algo semelhante. Concorde-se, ou não, com a proposta, verifica-se hoje que ela tinha a sua razão de ser e até já foi uma hipótese avançada por alguém do atual executivo (neste momento já é impossível sem riscos apreciáveis). O governo não viabilizou a proposta e, como tinha a faca e o queijo na mão, ficou tudo na mesma. Convém referir que, na altura, o sistema da CGA não tinha, de modo algum, um problema semelhante ao de hoje. Com a negação da hipótese, pelo governo, ficou, naturalmente a convicção de que o Estado asseguraria o cumprimento do que estava na lei, na altura. Vê-se! Alguém explica isto? Estou certo que ninguém quer falar do assunto. 5. A situação do país é aquela que se sabe. A incompetência dos governos é a maior responsável por ela. Não se toca, ou toca-se a fingir, nas PPP’s e nas rendas elétricas. Poucos são responsabilizados pelos desmandos. Há, diz-se sem que seja negado, centenas ou milhares de milhões de euros que estão perdidos por negligência ou por ações criminosas. Vai buscar-se dinheiro sempre aos mesmos, “confiscando-lhes” a sua propriedade, mas não se cuida de o ir buscar a quem o terá subtraído. Quererá o governo, em nome do Estado, pedir desculpa aos portugueses pelo descalabro? E mostrar a sua determinação em corrigir o rumo, sem se esconder numa putativa reforma do Estado? Haverá, seguramente, mais perguntas a fazer. Porém, se tiver respostas a estas, e elas forem convincentes, dar-me-ei por minimamente esclarecido. Pelo menos, servir-me-ão de justificação para, sem grandes problemas de consciência, poder afirmar que a dita convergência gradual, ou imediata, tem sentido. Até ter respostas, recuso-me a ser conivente com esta hipocrisia. Felizmente para mim, porque no meio desta miséria moral e material ainda sou dos menos prejudicados, não tomo esta atitude por temer que os cortes me venham a afetar irreversivelmente (repare-se que aceito o princípio). Tomo-a por entender que os princípios são mais importantes do que o dinheiro, e devem ser recordados por quem ainda tem a liberdade de os defender (os que foram levados ao limiar da pobreza estão muito limitados na sua liberdade de expressão). Os direitos adquiridos não são todos sagrados, mas a confiança nas instituições que nos governam é (ou deveria ser). E só essa confiança legitima que alguns desses direitos sejam retirados. Ao que se constata, tudo está invertido: corta-se primeiro e depois quer-se legitimidade. Já não é só incompetência – é estupidez, teimosia, miopia ou má-fé. Resta-nos apelar para os deputados para que tenham a coragem de tornar este processo racional e inteligível, que é o que deles se espera, e porque o governo não o faz nem quer fazer. Por isso me dirijo a vós. Lisboa, 12 de Setembro de 2013 Virgílio Meira Soares Professor Catedrático Aposentado e ex-reitor da Universidade de Lisboa P.S. – A recente notícia daquilo que já se chama a TSU das viúvas é uma medida abjecta e em nada contribui para me descansar sobre a boa-fé do governo. Marcar, com estrela, ou sem estrela, os mais idosos e os mortos, começa a ser demasiadamente preocupante.