Debate: Como deve ser o Ensino de Língua (materna e estrangeira) diante de questões sociais no contexto contemporâneo? ENTRE DISCURSOS MERCADOLÓGICOS E NACIONALISTAS: APONTAMENTOS PARA O ENSINOAPRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS PARA FALANTES DE OUTRAS LÍNGUAS LEANDRO RODRIGUES ALVES DINIZ Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627 – 31270-901 Pampulha, Belo Horizonte-MG – Brasil [email protected] “O governo federal e a sociedade civil começam a encarar o idioma como peça importante para o país ocupar seu lugar em tempos de globalização”, anunciou uma matéria jornalística publicada em 2005 (Língua Portuguesa, 2005, p. 40). Segundo tal texto, “uma série de iniciativas, do governo e da sociedade civil, promete fugir dos tímidos resultados da patriotada infrutífera, que em geral marcam ações do gênero no Brasil” (ibidem). De fato, ainda que tateantes se comparadas a políticas concernentes a línguas como o inglês, o espanhol e o francês, as políticas linguísticas – explícitas ou implícitas – para a promoção internacional do português têm se recrudescido significativamente nas duas últimas décadas. Aprovam-se leis que tornam obrigatória a oferta do português em currículos escolares de países que não têm esse idioma entre suas línguas oficiais; a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ganha novos membros e observadores; criam-se exames de proficiência em português; fortalecem-se iniciativas acadêmicas para a formação de professores e pesquisadores na área conhecida como Português Língua Estrangeira, Português Língua Adicional, Português para Falantes de Outras Línguas ou Português para Estrangeiros1; cresce a produção de livros didáticos e a oferta de cursos para aqueles que não têm o português como língua materna; (re)estruturam-se políticas estatais e supra-estatais para a divulgação do português no exterior (cf. Diniz, 2010, 2012; Oliveira, 2010; Zoppi-Fontana, 2009). Nesse movimento de instrumentalização e institucionalização sem precedentes do português como língua não-só-nacional, naturalizam-se alguns discursos, com fortes tintas mercadológicas e nacionalistas, que aqui focalizaremos visando a tecer algumas considerações sobre o ensino-aprendizagem de português para falantes de outras línguas. 1 A escolha de uma ou outra designação sinaliza diferentes movimentos teóricos, epistemológicos e políticos, sobre os quais não nos deteremos neste texto. 5 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.10, jan.- jun./2015 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > “O português é falado em quatro continentes, por 244 milhões de pessoas”. “O português é a quinta língua mais falada no mundo”. “17% do PIB dos países de língua portuguesa vêm de atividades ligadas ao idioma”2. Enunciados como esses ganham força em discursos políticos, midiáticos e acadêmicos, significando o português como uma língua “do mundo da comunicação”, que “está em toda parte”, como um “ativo econômico”, como “instrumento estratégico” de penetração do Estado e do Mercado no mundo globalizado; seu “domínio” seria uma ferramenta para o “sucesso” (Payer, 2005) no mundo contemporâneo (cf. Diniz, 2010, 2012). O português passa, assim, por um processo de “capitalização linguística”, que, conforme Zoppi-Fontana (2009, p. 37), “se caracteriza por investir uma língua de valor de troca, tornando-a ao mesmo tempo em bem de consumo atual (mercadoria) e um investimento em mercado de futuros, isto é, cotando seu valor simbólico em termos econômicos” [grifos da autora]. Essa mercantilização do português ocorre na esteira da atualização de discursos fundadores (Orlandi, 1993) sobre o Brasil, ao qual, frequentemente, se atribuem os “louros” da “vitória” do português no mundo contemporâneo. Atributos como “país do futuro” ou “gigante adormecido” são deslocados em formulações como “Para o Brasil, é finalmente amanhã” e “Brasil, o gigante desperta”3, dando indícios de novas práticas discursivas que passam a constituir, contemporaneamente, o imaginário do Brasil no exterior (cf. Diniz, 2012). Nesse processo, o português brasileiro, outrora significado como um “desvio” da “língua de Camões”, como “um crioulo”, “um patoá qualquer”, passa, com alguma frequência, a perfilar como mais propício à internacionalização do que o português europeu; aquele seria mais “fácil”, “mais bem pronunciado” e mais “articulado” do que este, o que facilitaria sua aprendizagem por parte daqueles que não o falam como língua materna (ibidem). Gestos de descolonização linguística ganham, dessa forma, contornos de uma “colonização linguística às avessas” (Zoppi-Fontana, 2009; Diniz, 2012). Na contramão de certos discursos de promoção do português – em particular, os observados no âmbito da CPLP, que, muitas vezes, acabam por apagar as contradições constitutivas da “lusofonia” (cf. Silva, 2011) –, fortalecem nacionalismos brasileiros, que participam de um trabalho simbólico de mudança do eixo da “lusofonia” – historicamente situado em Portugal – para o Brasil. O espaço de enunciação (Guimarães, 2002) do português continua, assim, representado como monocêntrico, e não como uma rede de vários nós, policêntrica. A esse respeito, chamamos a atenção, em particular, para a exigência, recentemente aprovada, de que todos os candidatos ao Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G)4, aí compreendidos os oriundos de países da CPLP, apresentem o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras), do Ministério da Educação brasileiro5. Sem questionar a necessidade de que alguns 2 Cf., por exemplo, Guerreiro & Pereira Junior (2011). Cf., por exemplo, Phillips (2008). 4 Conforme o Decreto n. 7948, de 12 de março de 2013, o PEC-G “destina-se à formação e qualificação de estudantes estrangeiros por meio de oferta de vagas gratuitas em cursos de graduação em Instituições de Ensino Superior - IES brasileiras”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2013/Decreto/D7948.htm>. Acesso em: 20 dez. 2014. 5 Tal exigência foi estabelecida pelo Decreto n. 7948, cujo artigo 6º estabelece, como um dos requisitos para a inscrição no PEC-G, a apresentação do Celpe-Bras, exceto se o candidato for oriundo de países onde não se aplica o Celpe-Bras – caso em que o exame poderá ser feito no Brasil, após a realização de um curso 3 6 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.10, jan.- jun./2015 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > candidatos a esse programa oriundos de países “lusófonos” realizem cursos de português, e mesmo que se submetam a algum exame, antes de iniciarem suas graduações no Brasil, a exigência do Celpe-Bras dá, a nosso ver, indícios de uma posição neo-colonizadora. O Brasil passa, pois, a avaliar o nível de proficiência em português inclusive daqueles para quem essa não é uma língua estrangeira (podendo ser, em alguns casos, sua língua de escolarização ou, no limite, sua língua materna). Retomando Bizon (2013, p. 207), tal gesto mostra o funcionamento do imaginário de que “a ‘língua deles lá’ não seria a língua ‘pura’ daqui: a língua portuguesa de ‘verdade’, que deveriam ‘dominar’ para se fazerem entender”, para realizarem um curso de graduação no Brasil. Pensar o ensino-aprendizagem de português para falantes de outras línguas em condições de produção contemporâneas implica, assim, desnaturalizar o discurso de que o valor de um idioma é medido em função de seu potencial econômico, que abre pouco espaço para se trabalhar a relação entre língua e sujeito. No lugar de subordinarmos nossas práticas pedagógicas e acadêmicas aos interesses mercadológicos dominantes, parece-nos fundamental trabalhar o português como uma “língua de saber”, como uma “língua científica” e como uma “forma singular no modo de conhecer e interpretar o mundo”, em direção análoga ao que propõe Tatián (2013) em relação ao espanhol. Isso implica afastarse de posições nacionalistas – no limite, xenófobas – de valorização de determinadas variedades do português (em detrimento de outras), de forma a abrir espaço para práticas que possibilitem o desenvolvimento da proficiência nessa língua por meio de experiências de sensibilização para a discursividade e heterogeneidade constitutivas das práticas linguageiras, visibilizando vozes e culturas historicamente silenciadas. Num momento de notável fortalecimento das políticas de difusão do português no exterior e de “internacionalização” das universidades brasileiras, não podemos nos furtar a analisar criticamente as próprias bases que hoje impulsionam a institucionalização da área de Português Língua Estrangeira/Adicional, sob pena de reproduzirmos, sob a aparência do novo, práticas homogeneizantes. Referências BIZON, A. C. C. Narrando o Celpe-Bras e o convênio PEC-G: a construção de territorialidades em tempos de internacionalização. Tese. Doutorado em Linguística Aplicada. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2013. DINIZ, L. R. Mercado de línguas: a instrumentalização brasileira do português como língua estrangeira. Campinas: RG; FAPESP, 2010. _____. Política linguística do Estado brasileiro na Contemporaneidade: a institucionalização de mecanismos de promoção da língua nacional no exterior. Tese. Doutorado em Linguística. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2012. de Português em uma instituição de ensino superior credenciada. Antes desse decreto, a exigência do CelpeBras não se aplicava aos candidatos oriundos de países da CPLP. 7 Entremeios: revista de estudos do discurso. v.10, jan.- jun./2015 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > GUERREIRO, C.; PEREIRA JUNIOR, L. C. O valor do idioma. Revista Língua Portuguesa, dez. 2011. Disponível em: <http://revistalingua.uol.com.br/textos/72/ovalor-do-idioma-249210-1.asp>. Acesso em: 20 dez. 2014. GUIMARÃES, E. 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