O discurso de mídia em relação a mulher1 GLÁUCIA PEREIRA DE SOUZA UNIVERSIDADE CATOLICA DE BRASILIA O objetivo desta comunicação é fazer uma primeira discussão sobre o discurso da mídia em relação à mulher, através da análise de um comercial de shampoo veiculado na televisão para o público feminino, envolvendo a linguagem verbal e não-verbal, tendo como referencial teórico e metodológico a Análise de discurso, criada por Michel Pechêux na França na década de 60 do século XX. A análise é feita a partir dos recursos que a publicidade usa, para manipular e seduzir o seu público-alvo, e assim colocar os processos históricos e ideológicos de construção e representação de sujeito e de sentidos em funcionamento para que haja uma re-interpretação do que está sendo transmitido para o telespectador, considerando as diferentes posições de sujeito aí envolvidas. A linguagem publicitária usa recursos estilísticos e argumentos da linguagem cotidiana para informar e manipular o comportamento e a mentalidade do usuário. Portanto, ela tenta convencer e mudar (ou conservar) a opinião do público, estabelecer relações de sentido com o sujeito-leitor a partir de um discurso que, no caso da propaganda que irei analisar, é direcionado, quase exclusivamente, às mulheres com a finalidade de persuadi-las ao consumo em determinada direção, através de processos de identificação. Para a Análise do Discurso, o discurso não é apenas a transmissão de informação, é “efeito de sentido entre locutores” (Pêcheux: 1990). O discurso não é a fala, não é o texto. Mas é através da fala e dos textos que atingimos o discurso fazendo sentido, e analisamos as situações em que é produzido; analisamos como a ideologia existente em toda mensagem, que não é mera transmissão de informação, significa para e na relação entre sujeitos, levando em consideração as várias posições enunciativas e o contexto histórico mais amplo em que se produz o discurso. Assim começo minha análise mencionando o contexto imediato – uma das condições de produção do discurso - visto nos comerciais do shampoo Seda, que circulou 1 Comunicação apresentada na IV Semana Universitária da Universidade Católica de Brasília, em 2003. 2 em vários canais de televisão. Gostaria de dizer que, nesta comunicação, com resultados iniciais de uma pesquisa maior, vou me deter mais na análise da linguagem verbal, deixando para outra ocasião uma analise mais especifica da linguagem não-verbal e das relações entre as duas. Como disse no início, este trabalho busca compreender como a mulher, o feminino, circula em uma sociedade chamada da informação, do conhecimento, mas também uma sociedade do mercado, do consumo. Quem será essa mulher do início do século XXI no Brasil? Que tipo de subjetividade a mídia ajuda a construir, a reproduzir? Sabemos que a mulher, principalmente a partir de meados do século XX, passou a participar mais da vida pública e social, reivindicando direitos e assumindo posições de luta contra o preconceito e a dependência masculina. Trabalhar fora, exigir melhores salários e se firmar como chefe de família foram acontecimentos que começaram a revolucionar a história, mudando o conceito de sexo frágil que vigorava até então e justificava as atitudes violentas e machistas dos homens que subjugavam a mulher, condicionando-a a posição de mãe e esposa sem direito de participação. Mas existe uma ambigüidade na noção de sujeito que precisa ser compreendido através de sua historicidade, indicando que as mudanças não se acontecem tão tranqüilamente nem de forma linear. É o que pretendemos com a análise desse comercial.Vejamos então, como essa subjetividade irá ser trabalhada em seu funcionamento. O comercial inicia com quatro amigas reunidas em uma sala de estar, trocando experiências intimas relativas ao cotidiano do casamento. Uma delas conta que para sair da rotina realiza as fantasias do marido. E começa a descrever de como se veste toda vez que precisa usar de artifícios para quebrar o gelo do relacionamento e fazer o seu casamento (o seu marido) pegar fogo. Enquanto ela vai falando são apresentados vários flashes em quadros que mostram cenas nas quais ela usou vestimentas diferentes para seduzir e satisfazer o seu parceiro. Diz as amigas: “ontem eu me vesti de camareira”, e a cena a mostra vestida de camareira arrumando a cama. Quando ela volta à cena, diz: “serviço completo”. Noutra ela aparece vestida de vaqueira, bebendo leite, toda vestida de couro de vaca e tendo o som de um mugido de fundo; voltando à cena ela diz: “bobeou, eu laço”. Na última cena, ela aparece como mulher fatal vestida com roupas sensuais, levando um chicote na mão e dizendo: “faça comigo o que quiser”. O discurso de mídia em relação a mulher – Gláucia Pereira de Souza 3 Em cada um desses quadros, ela aparece com um penteado de cabelo diferente, ou seja, a realização dessas fantasias implicou na modificação do cabelo, e para isso teve que recorrer a vários recursos, como escovas e penteados que estragam as madeixas. Assim, logo depois que ela termina de narrar as suas façanhas, uma das amigas comenta: “mas o seu cabelo está todo detonado!” Ela então responde: “pois é, detonei!”. O comercial fecha esse quadro da conversa entre as mulheres e dá início a um outro quadro em que mostra a personagem lavando os cabelos danificados com o shampoo Seda e, logo em seguida, o resultado obtido com a lavagem: os cabelos ficaram macios, soltos e brilhantes. A finalização do comercial é dada a partir da chegada do marido, surpreso e feliz, por ver que a esposa, que o espera, está com cabelos sedosos e bonitos. O quadro da encenação é fechado com uma pergunta seguida de resposta. “Seus cabelos estão danificados? Use shampoo Seda Ceramidas e troque seu cabelo danificado por um saudável”. Como o pensar esse comercial em um contexto-histórico e ideológico, que nos remete a um discurso determinado mais amplo da cidadania, da emancipação, dos direitos adquiridos da mulher, mencionado no início do nosso trabalho? O papel ou função da mulher na sociedade mudou, ou parece que mudou (o comercial nos deixa em dúvida), a partir dos anos 60, no século passado, com os movimentos feministas e, principalmente, com a invenção da pílula anticoncepcional, que proporcionou a revolução cultural na família e no ambiente doméstico, trazendo liberdade, colocando fim ao sexo com finalidade exclusiva de procriação. A propaganda do shampoo, em uma primeira leitura parece estar afinada com essas mudanças, pois valoriza a mulher liberada que fala abertamente de sexo, de fantasias e, mais, que faz, que pratica outros modos de relacionamento íntimo. Uma mulher que nada mais tem, parece, daquela mulher reprimida, que não tinha liberdade e era dominada pelo poder machista; uma mulher que deixou a posição de “Amélia” e passou a ser mulher de verdade, responsável pelos seus próprios atos e decisões. Mas numa volta ao texto, em uma leitura mais atenta, observamos, contudo, que existem ali dizeres que retomam outros dizeres produzidos antes e em outros lugares, como “serviço completo”, que estão filiados a formações discursivas, referidas a formações ideológicas, extremamente conservadoras. A AD relaciona, pois, o dito com o já-dito Grupo de Estudos Discursivos – www.ged/letras/ucb.br 4 histórico, mostrando a presença de posições de sujeito e de ideologias diferentes. Quando se veste de camareira para satisfazer as fantasias do marido, o sujeito retorna à posição de submissão que era imposta as mulheres; e para serem boas esposas teriam que ser prendadas, domésticas, ou seja, fazer o serviço completo. Neste processo de mudança da condição feminina no decorrer da história, coexistem posições de sujeito contrárias em uma mesma mulher. Existe o sujeito que se determina pelo que diz, como na frase do comercial: “ontem me vesti de camareira...” e que, ao mesmo tempo, é determinado pela exterioridade, o que fica evidente na próxima frase: “serviço completo”, remetendo a um sentido instituído pela história na relação do sujeito com a língua e que faz parte das condições de produção do discurso. Na fantasia de mulher fatal, o sujeito se coloca como objeto sexual, à disposição das fantasias masculinas: uma mulher usável e descartável. Traz também vestígios de um tempo em que mulher era sinônimo de pecado. Santa ou prostituta. Propaga o sexo pelo sexo, satisfazendo apenas às vontades do companheiro e anulando os seus desejos. Já na fantasia de vaqueira ela se mostra como posse do seu marido, como um animal de lucro a ser vendido por cabeça. A posição de sujeito feminino moderno é, na verdade, ambígua, dividida, pois com as transformações da sociedade dita do conhecimento, da tecnologia, diferentemente do que pensam–dizem as próprias mulheres, continua funcionando, ao mesmo tempo, um imaginário de sentidos estabilizados sobre a mulher, e sobre o homem e suas relações. Agora é mais complexo, pois não se pode negar certos direitos, mas permanecem alianças, conflitos e confrontos com velhos dizeres e fazeres. Houve um deslocamento da submissão que deixou de vir dos pais ou marido e, agora, é exercida pela mídia e publicidade: a mulher se submete livremente aos encantos e miragens da beleza, vendida em qualquer farmácia ou supermercado. Virou escrava do consumo e o produto é vendido usando a imagem antiga para significar a imagem moderna enunciada. Podemos concluir, provisoriamente, que o shampoo, na verdade, é a personagem principal, uma posição-sujeito, a do mercado, que passa a funcionar como elemento dominante e a estabelecer significado na e para a vida de outros sujeitos. É remédio para quebrar a rotina do casamento que não está bem - uma relação entre sujeitos -, e transformá-lo no casamento dos sonhos. O shampoo-sujeito sabe diagnosticar os problemas O discurso de mídia em relação a mulher – Gláucia Pereira de Souza 5 e apresentar as soluções. Constitui-se e se reproduz como posição na e para a ideologia das classes dominantes com seus valores, gostos, atitudes, e comportamentos. Bibliografia ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani ... [et al.]. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1990, 61162. Grupo de Estudos Discursivos – www.ged/letras/ucb.br