Existe um facto para o qual também devemos dar atenção: o agressor
poderá estar numa posição de solidão. Poucos serão os agressores que
terão a consciência do problema que têm, a agressividade que não
conseguem controlar. Por vergonha ou por não saberem a quem recorrer,
não pedem ajuda. Contudo também é um facto que estão sozinhos na
decisão de pedir ajuda.
A família, um lugar de aprendizagem de valores, normas sociais e
culturais é vista como o primeiro agente de socialização. É considerada a base
de desenvolvimento do pequeno adulto que, no fundo, em contacto com a
sociedade exibe o que aprendeu na família. Considera-se família o conjunto de
pessoas que vivem sobre o mesmo tecto e possuem laços sanguíneos, mas
também aqueles que contraem matrimónio e iniciam um novo lar. A família
sofreu grandes alterações ao longo dos tempos. As normas e os valores
alteraram-se e mesmo as funções que cada membro desempenhava na família
já não são as mesmas. Um lar e uma família deveriam ser sinónimos de
segurança, afecto, carinho, compreensão. Contudo, nalguns lares isso não
acontece. Actos de violência no contexto do lar estão cada vez mais presentes.
Não é um problema social novo, contudo continua encoberto, talvez por
vergonha ou medo da rejeição dos outros. A sociedade em geral afirma “a
minha família é perfeita”, mas a grande maioria dos rostos esconde a tristeza
do que se passa dentro das quatro paredes. As mulheres que estão envolvidas
em relações onde a violência é comum têm muitas vezes dificuldades de
abandonar o lar por uma serie de razões. Alguns autores tentam explicar a
razão porquê o homem bate na mulher, outros procuram explicar o porque da
mulher continuar no sitio onde é mal tratada. Contudo, são muito poucos os
que tentam perceber a solidão sentida pela mulher na tomada desta decisão.
Pensar em casar é pensar num parceiro com quem se possa contar para
tudo, momentos melhores e piores, ter a possibilidade de se ser quem é em
qualquer lugar e mesmo assim contar com o parceiro. Alguém por quem se
sente uma atracção, mas não só física, alguém por quem temos amor, mas
também amizade e companheirismo.
A vivência na conjugalidade é todo um processo que engloba outros
processos como a intimidade, a vida sexual, o trabalho, a procriação, a partilha
de responsabilidade económica, entre outros, que formam o que se chama
casamento, relação na qual os cônjuges se empenham nos objectivos e
sonhos em comum. Misturam-se as individualidades, dividem o mesmo espaço,
um novo projecto de vida constrói assim a identidade conjugal. Cada um dos
membros do casal possuía um conjunto de valores e normas, o qual regia o
seu dia-a-dia, e essas normas e valores vão-se adequando com o passar do
tempo de acordo com as situações que vão surgindo.
Á medida que as individualidades de cada um vão surgindo, isso permite
que se conheçam cada vez melhor. Talvez esta seja a função do namoro, a
convivência permite que cada um se conheça, feitios, objectivos e normas
pelas quais cada um se rege, assim ainda estão a tempo de seguirem rumos
diferentes, evitando surpresas após o casamento. Nas famílias onde a violência
conjugal surge pela primeira vez, por vezes é comum ouvir da boca da vítima:
”já tinha acontecido no namoro ele deu-me um estalo mas não dei importância,
mostrou-se arrependido, perdoei”, outras vezes ouvimos: “ele já era agressivo
no namoro, mas pensei que com o casamento melhorasse, mas piorou e agora
tenho de suportar, estou casada e seria uma vergonha para a minha família a
separação”. Um homem que maltrata a mulher, seja qual for o tipo de violência,
desde sempre foi violento, os sinais estão lá, na maioria das vezes não são
interpretados, não se lhes dá importância. O homem não se torna violento de
um dia para o outro, aprendeu a ser assim (com familiares, viu-os a fazes igual,
no grupo social onde esteve ou está inserido, onde a violência é frequente), faz
parte da personalidade dele, das “normas” dele.
A violência conjugal não é um problema social novo. Sempre existiu,
mas o problema é que sempre que eram chamadas as autoridades nas
situações de crise, estas não podiam fazer nada porque era algo que ocorria no
interior da família dentro do lar, o qual não podiam invadir. Hoje é considerado
um crime público, ou seja, qualquer pessoa que tenha conhecimento de factos
que levam a considerar que existe violência conjugal tem por obrigação
denunciar.
O principal problema é que a sociedade não esquece o provérbio “entre
marido e mulher não metas a colher”. A mulher após o acto violento de que foi
vitima fica assustada não entende o porquê de tal reacção agressiva, pensa
que talvez tenha sido um acto passageiro e que não voltara a acontecer, por
vezes até considera que foi ela que provocou a situação. O pior é que não é
uma situação passageira e passa a ser constante. Na maioria das vezes não
sabe a quem recorrer, por vezes, isolada da família e amigos, não tem com
quem desabafar. Devido às agressões, por vezes é obrigada a recorrer a
entidades públicas como uma unidade hospitalar, a quando confrontada com
as evidencias nega. Outras vezes, farta de tanta humilhação e dor, resolve
pedir ajuda nas entidades policiais ou perde a coragem e recua, ou com a
promessa de mudança do agressor retira a queixa.
Os vizinhos sabem, na maioria das vezes, o que se passa dentro das
quatro paredes. Uns fingem não saber, outros têm a coragem de falar com a
vítima ou a vítima sente confiança para desabafar. A situação mais comum é a
vítima desabafar com a família mais próxima. O mais certo dos conselhos que
pode receber é para pôr termo à situação e sair de casa. Mas não está posta
de parte a possibilidade de ouvir a resposta: “aguenta que eu também
aguentei, foi com ele com quem casaste, agora aguenta”. Contudo, seja lá o
conselho que lhe dê, por mais que lhe digam o que deve fazer só ela pode ter
uma atitude, só ela pode tomar uma decisão de pôr termo àquele drama que se
tornou o seu dia-a-dia. A decisão é algo que vem de dentro dela, vem do
íntimo, o qual é muito difícil de ser controlado. Só de dentro dela que pode vir a
consciência que aquilo não é vida e que não fez nada de errado para se manter
ali. Existem sítios e pessoas que a podem ajudar. Assim percebe-se a solidão
de uma mulher vítima de violência conjugal. Por vezes, a mulher tem
motivações para as quais não consegue virar as costas e que fazem com que
se mantenha no lar.
Existe um facto para o qual também devemos dar atenção: o agressor
também poderá estar numa posição de solidão. Poucos serão os agressores
que terão a consciência do problema que têm, a agressividade que não
conseguem controlar. Por vergonha ou por não saberem a quem recorrer, não
pedem ajuda. Contudo também é um facto que estão sozinhos na decisão de
pedir ajuda. Será que podemos falar em solidão dos homens agressores?
Uma grande parte destas mulheres vítimas deixa a situação prolongarse e não toma nenhuma atitude, sendo vítima uma vida inteira. Algumas,
mesmo tendo demorado a tomar a decisão, acabam por pedir ajuda, mas
sentem que apesar de terem abandonado o lar continuam a ser ameaçadas e
agredidas
pelos
ex-companheiros.
A
maioria
das
vezes
acaba
em
assassinatos, o homem não aceita que tenha perdido o controlo da situação e
tenta de tudo para descobrir a localização da vítima. Com o pensamento “não
és minha, não és de mais ninguém”, num acto de desespero põe termo à vida
da vítima. Existem já situações em que mulheres saturadas das situações de
violência põem elas termo à vida do agressor. Será justo condena-las? Se não
fossem elas a fazê-lo, mais cedo ou mais tarde seria o agressor a pôr termo à
situação. Mas, adoptando este tipo de medida, não estará a mulher a ser igual
ou até pior que o agressor, que tanto condenou?
A verdade é que as funções atribuídas ao casamento se alteraram.
Antigamente, o casamento tinha a função da procriação, a criação dos filhos, a
transmissão de valores, tinha a função de núcleo económico. Actualmente são
várias as motivações que levam as pessoas a uma busca da vida em comum.
O casamento ocupa um lugar de importância na vida das pessoas por ser um
tipo de relação aceite pela sociedade. Quantas são as pessoas que olham com
desconfiança para casais que optam a viver em uniões de facto sem ter feito os
votos de casamento na igreja ou mesmo no civil.
Uma motivação para casar diz respeito ao preconceito de algumas
pessoas em relação àquelas que não se casam. Assim, para não sejam
reconhecidos na rua como “solteirões” ou “solteironas”, como se fossem
incapazes de gostar de alguém, casam mesmo sabendo que não vai dar certo
a nova relação. O casamento para muitas pessoas significa um apoio, uma
segurança emocional, um evitar de solidão, a busca do amor eterno, o
companheirismo, a construção de uma família.
Seja qual o for o motivo, a pessoa idealiza sempre que é algo que vai
durar para sempre, mas surgem as dificuldades na vivência a dois que nem
sempre são resolvidas da melhor forma, o que deixa marcas. Estas marcas
surgem noutras alturas da vida que podem levar a conflitos. Entre casal
existem sempre momentos com atritos. A sabedoria popular costuma dizer que
“faz parte do casamento”, “todos os casais tem os seus arrufos”. Por vezes
basta apenas um comportamento diferente daquele que se tornou costume,
para ser sentido como uma ofensa, ou uma traição, mesmo que nenhum dos
cônjuges tenha consciência do que seja o problema…
Uma das maiores dificuldades vividas actualmente na vida conjugal
reside na falta de tempo livre dos casais para se amarem. Os casais não têm
tempo para manter um relacionamento íntimo, estão presos aos loucos
horários de trabalho, à educação dos filhos, aos problemas para resolver. A
intimidade requer tempo para amadurecer, é necessário haver tempo destinado
à convivência, à troca de experiências e ao amor, de forma que o casal se
fortaleça a partir desses momentos que irão imprimir particularidades e
estabilidade ao relacionamento conjugal.
Os casais passam a sustentar-se tão só de satisfação sexual como
emocional, a qual revela a sua face instável, pois é permeada pela falta de
abertura para viver a intimidade. No fundo, apesar de estarem juntos, sentemse sós. O facto de viverem juntos, de se terem um ao outro, não é obstáculo a
não sentirem solidão. Não se compreendem. O que dão por vezes não é o que
recebem em troca. A intimidade vem do íntimo, do particular, do pessoal.
Cultivar a intimidade vai muito além de simplesmente privar, é proporcionar que
o outro abra o coração, expresse as emoções, pensamentos, sentimentos,
desilusões, desejos, sonhos e ideais. Assim, permitir que o outro possa
compreender a plenitude da pessoa que ama, proporcionando cumplicidade e
não isolamento.
A verdade é que as funções que cada um desempenhava na família
mudaram. Antes o homem era considerado o “ganha-pão”, ou seja, o
responsável por sustentar a família enquanto as mulheres cuidavam do lar, do
marido e dos filhos, mas tudo mudou. A mulher surge no mercado de trabalho
e, por vezes, em cargos superiores ao dos homens, o que implica um salário
mais elevado do que o homem, o que para eles se torna uma humilhação.
Instala-se uma crise de papéis que marca uma transformação na relação
homem - mulher. O homem já não é a figura dominadora, capaz de fazer o seu
desejo prevalecer sobre o da esposa. Esta poderá ser uma das razões para
que o homem maltrate a mulher: o facto de não ser o sexo dominante. Em
criança, o agressor via o pai a maltratar a mãe sempre que esta lhe fazia frente
e mostrava opinião contrária e adopta essa atitude em adulto, como se tivesse
de educar a esposa, caso esta não tenha o comportamento que este comporte
como adequado. As motivações que levam o homem a maltratar a mulher
continuaram a ser estudadas e provavelmente novos resultados surgirão. A
solidão, avançou-se neste estudo, pode ser uma delas.
In Barbosa, H (2012). Violência Conjugal: a Solidão da Vítima. Dissertação de Mestrado em
Trabalho Social e Intervenção Socioeducativa, ISCET: Porto.
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Violência Conjugal: a Solidão da Vítima. Excerto de