Resignação Theodor W. Adorno* A nós, primeiros representantes do que se convencionou chamar de Escola de Frankfurt, atribuem recentemente a pecha de sermos acomodados. Dizem que desenvolvemos elementos para uma teoria crítica da sociedade, mas que não nos encontrávamos preparados para dela extrair conseqüências práticas. Não apenas deixamos de indicar programas para ação como ainda não demos apoio àqueles que se sentiram inspirados pela teoria crítica. Vou pular a questão se esta cobrança pode mesmo ser feita a pensadores teóricos que sempre se mantêm, em certa medida, sensíveis e. em nenhuma medida, instrumentos inabaláveis. A tarefa atribuída a tais indivíduos dentro de uma sociedade caracterizada pela divisão do trabalho poderia, realmente, ser questionada; eles mesmos poderiam muito bem estarem deformados por ela. Mas, eles também foram formados por ela. E não existe meio para que possam simplesmente por um ato de sua própria vontade livrar-se daquilo em que se tornaram. Não quero negar o impulso de fraqueza subjetiva inerente ao confinamento à teoria. A objeção levantada contra nós poderia ser posta aproximadamente nas seguintes palavras: quem, no presente momento, duvida da possibilidade de mudança radical na sociedade e que por tal razão nem participa nem aconselha a que se proceda a ações espetaculares e violentas é culpado de resignação.Tal pessoa não considera a visão de mudança que uma vez sustentou capaz de ser realizada; na verdade e acima de tudo , não tem desejo real de vê-la realizada. Ao deixar as coisas como estão manifesta sua tácita aprovação. Distanciar-se da prática é desonroso aos olhos de todos. Qualquer um que não faça ação imediata e que não se mostre disposto a sujar as mãos torna-se objeto de suspeita; temse a impressão de que sua aversão a tal ação não é legítima e, ainda mais, que sua visão está até distorcida pelos privilégios que de desfruta. Desconfiança quanto aos que não confiam na prática estende-se a partir daqueles que, do lado oposto, repetem o velho slogan “Já falamos demais” o tempo todo no espírito objetivo da propaganda que divulga o quadro ⎯ * Publicado na revista Telos, por Wes Blomster 35, Spring 1978, p. 165-168 e em Bernstein, J.J. Adorno: the Culture Industry, Londres: New Fetter Lane, 1996.. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira e revisão de Antonio Álvaro Soares Zuin, Fábio Akcelrud Durão e Paula Ramos de Oliveira. 1 que se chama Leitbild ou “fio condutor”⎯ do ser humano que está ativamente envolvido, pouco importando se sua atividade está no campo da economia ou do atletismo. Deve-se participar. Quem quer que se restrinja a pensar, e que não se envolve é um fraco, covarde e virtualmente um traidor. Este clichê hostil ao intelectual pode ser encontrado com raízes profundas naquele campo da oposição que ⎯ por sua vez e sem disso tomar consciência ⎯ são insultados como intelectuais. Os ativistas que pensam respondem: entre o que deve ser mudado está a própria separação entre teoria e prática. A prática é essencial se queremos em algum tempo liberarmo-nos do domínio das pessoas práticas e dos ideais práticos. O problema com esta visão acima é que resulta na proibição do pensamento. Precisa-se de muito pouco para virar a resistência contra a repressão repressivamente contra aqueles que ⎯ por menos que queiram glorificar seu status de ser ⎯ não abandonam o ponto de vista que vieram a assumir.A tão freqüentemente evocada unidade de teoria e prática tem a tendência de abrir caminho para o predomínio da prática. Numerosos pontos de vista definem a teoria como uma forma de repressão ⎯ como se a prática não estivesse em relação muito mais direta com a repressão. Para Marx, o dogma dessa unidade era animado pela possibilidade imanente da ação que mesmo naquela ocasião não era de se realizar. Hoje, ao contrário, prevalece a situação oposta. Agarram-se à ação por causa da impossibilidade da ação. Mas há em Marx uma ferida escondida a esse respeito. Sem dúvida divulgou a décima-primeira tese Ad Feuerbach de uma maneira tão autoritária porque pessoalmente não se encontrava tão seguro. Em sua juventude, demandava pela “implacável crítica de tudo que existe”. Depois caçoava da crítica. Mas sua famosa piada sobre os Jovens Hegelianos ⎯ a expressão ‘crítica crítica’ ⎯ foi uma besteira e dissolveuse no ar como nada mais que uma tautologia. A precedência forçada da prática imobilizou irracionalmente a própria crítica que Marx praticava. Na Rússia e na ortodoxia de outros países, a maliciosa caçoada da crítica crítica tornou-se o instrumento que permitiu que o status quo se estabelecesse de uma maneira tão horripilante. O único sentido retido pela crítica foi este: aumento da produção dos meios de produção. A única crítica que se permitia era que as pessoas precisavam trabalhar ainda mais arduamente. Isto demonstra com que facilidade a subordinação da teoria à prática acaba apoiando uma repressão renovada. 2 A intolerância repressiva a um pensamento que não se acompanhe imediatamente de instruções para a ação fundamenta-se no medo. O pensamento não-manipulado e a posição que não permite que nada seja deduzido deste pensamento sempre é temido porque o que não pode ser permitido está bem claro: este pensamento está certo. Um antigo mecanismo burguês com o qual os homens do Iluminismo do século XVIII estavam bem familiarizados apresenta-se e se reapresenta imutável: o sofrimento causado por uma condição negativa ⎯ no nosso caso, a realidade obstruída ⎯ vira a raiva contra a pessoa que o expresse. O pensamento, iluminismo cônscio de si mesmo, ameaça desencantar a pseudo-realidade dentro do que, na formulação de Habermas, se move o ativismo. Este ativismo só é tolerado porque é visto como pseudo-atividade. A pseudo-atividade alia-se à pseudo-realidade no desígnio de uma posição subjetiva; uma atividade que se suplanta e se incendeia por causa de sua própria publicidade sem admitir em qual grau serve como um substituto para a satisfação e, assim, eleva-se a um fim em si mesma. Todos que estão atrás de grades desanimam-se quanto ao desejo de se libertarem. Em tais circunstâncias, a pessoa não mais pensa ou pensa apenas com postulados fictícios. Dentro de uma prática tornada absoluta a única coisa possível é a reação e, por tal motivo, a reação é falsa. Só o pensamento poderia oferecer uma saída, e, então, apenas este pensamento, cujos resultados não estão previstos, ⎯ como é tão freqüentemente o caso nas discussões em que está predeterminado quem está certo e que, portanto, não avançam no tema ⎯ mas que sempre se degeneram em tática. Quando as portas estão em barricadas torna-se duplamente importante que o pensamento não seja interrompido. A tarefa do pensamento é muito mais analisar as razões por trás desta situação e extrair as conseqüências de tais razões. É responsabilidade do pensamento não aceitar uma situação como acabada. Se há qualquer chance de mudar a situação, isto se dá apenas por um insight não diminuído. O salto à prática não vai curar o pensamento da resignação enquanto for pago com o conhecimento de que este curso simplesmente não é o correto. Falando de maneira geral, a pseudo-atividade é a tentativa de preservar enclaves do imediato no meio de uma sociedade completamente mediada e obstinada. Esse processo é racionalizado através da aceitação de uma pequena mudança como um passo no longo caminho na direção de uma mudança total. O infeliz modelo de pseudo-atividade é a síndrome do “faça isso você mesmo” ⎯ atividades de fazer aquilo que há tempos tem sido 3 feito melhor por meio da produção industrial; tais atividades despertam nos indivíduos nãolivres , prejudicados em sua espontaneidade, o sentimento confiante de que são de interesse central. A bobagem da abordagem “faça isso você mesmo” à produção de bens materiais e na execução de muitos consertos é igualmente óbvia. No entanto, não é total. Considerando-se a redução dos assim chamados serviços às vezes, supérfluos em termos dos padrões técnicos, as medidas tomadas por uma pessoa preenchem um propósito semiracional. Na política, no entanto, a atitude do “faça isso você mesmo”não tem o mesmo caráter. A sociedade que afronta os seres humanos de maneira tão impenetrável é constituída por eles mesmos. Confiança na ação limitada de pequenos grupos é lembrança da espontaneidade que se atrofia sob a totalidade encrustada e sem a qual esta totalidade não pode tornar-se diferente. O mundo administrado tem uma tendência de sufocar toda espontaneidade ou de, pelo menos, canaliza-la em pseudo-atividade. Isto, contudo, não se atinge tão totalmente sem dificuldade como os agentes do mundo administrado gostariam de imaginar. De qualquer maneira, a espontaneidade não deve ser absolutizada ⎯ justamente pelo pouco como se separa da situação objetiva e se torna ídolo exatamente como o próprio mundo administrado. Caso contrário, o eixo vai quebrar a porta da casa ⎯ um processo que nunca poupa o carpinteiro ⎯ e a turma do tumulto vai aparecer na mesma hora. Atos políticos de violência também podem mergulhar no nível da pseudo-atividade, resultando em mero teatro. Quase nem chega a ser algo espantoso que o ideal da ação direta e da propaganda que glorifica o dado tenham renascido, nos calcanhares da desejada integração das organizações antes progressistas que, em todos os países da terra, manifestam o caráter daquilo contra o qual uma vez se dirigiam. Tal processo, no entanto, não enfraqueceu a crítica da anarquia, cujo retorno é a volta de um fantasma. A impaciência quanto a teoria que se manifesta nessa volta nada contribui para o avanço do pensamento para além de si mesmo. A teoria fica atrás do pensamento que ela esquece. Para o indivíduo, a vida é facilitada pela capitulação ao coletivo, com o que ele se identifica. Poupam-lhe o conhecimento de sua impotência; dentro do círculo de sua própria companhia, os poucos se tornam os muitos. É este ato ⎯ não o pensamento sem confusão ⎯ que é resignação. Nenhuma relação transparente prevalece entre os interesses do ego e o coletivo a que ele se aplica. O ego deve anular-se a si mesmo, se é para compartilhar da predestinação do coletivo. Manifesta-se aqui um remanescente do imperativo categórico 4 kantiano: requer-se sua assinatura. O sentimento de uma nova segurança é adquirido com o sacrifício do pensamento autônomo. O consolo de que o pensamento dentro da ação coletiva é um aperfeiçoamento revela-se um engano: o pensamento utilizado apenas como instrumento da ação fica obscurecido do mesmo jeito que todas as razões instrumentais. No presente momento, não é visível qualquer forma superior de sociedade; por tal razão, tudo que pareça bem ao alcance é regressivo. Segundo Freud, no entanto, quem quer que regresse não atingiu o objetivo de seus impulsos. Visto de maneira objetiva, a rebelião é renúncia, mesmo que se considere o oposto e se propague inocentemente o princípio do prazer. Em contraste, o pensador descomprometido e crítico, que nem subscreve sua consciência e nem se permite aterrorizar-se na ação, é na verdade aquele que não capitula. Além disso, o pensar não é a reprodução daquilo que existe. Enquanto o pensar não for interrompido terá um forte contato com o possível. Sua qualidade insaciável, a resistência contra a saciedade mesquinha, rejeita a tola sabedoria da resignação. O impulso utópico no pensamento é totalmente forte, quanto menos se objetiva como utopia ⎯ uma forma posterior de regressão ⎯ por meio do que ele sabota sua própria realização. O pensamento aberto aponta-se para além de si mesmo. Quanto a si, tal pensamento assume uma posição como figuração da prática que é mais intimamente ligada com uma prática realmente comprometida com a mudança do que uma posição de simples obediência em nome da prática. Além de todo conteúdo especial e especializado, o pensar é realmente e, acima de tudo, a força da resistência e só com grande esforço dela pode se separar. Tal conceito enfático de pensar não é de jeito algum seguro; não se garante nenhuma segurança nas condições existentes nem pelos fins que ainda se objetiva nem por qualquer tipo de força organizada. Qualquer que tenha sido outrora o pensamento, no entanto, pode ser suprimido; pode ser esquecido e até desaparecer. Mas não pode ser negado que algo dele sobrevive. Pois o pensar tem o momento do geral. O que foi irrefutavelmente pensado com certeza será pensado em algum outro lugar e por outras pessoas. Esta confiança acompanha até o pensamento mais solitário e mais impotente. Quem quer que pense o faz sem raiva em toda 5 a crítica1: o pensamento sublima a raiva. Porque a pessoa que pensa não tem que infligir a raiva sobre si mesmo e, além disso, nem às demais pessoas. A felicidade que se vê nos olhos de alguém que pensa é a felicidade da humanidade. A tendência universal para a exclusão vai contra tal pensamento como pensamento. O pensamento é felicidade, mesmo onde predomina a infelicidade; alcança a felicidade na expressão da infelicidade. Quem quer que se recuse a deixar que este pensamento lhe seja arrebatado é alguém que não se resignou. 1 Esta sentença foi usada no Der Spiegel (1977, 43: 214) como manchete de um breve artigo sobre o relacionamento da Escola de Frankfurt com o terror que, na época, acontecia na então República Federal Alemã. (nota de J.M. Bernstein). 6