VIII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Panamá, 28-31 Oct. 2003
Responsabilidade pública: os reflexos da diversidade ética na gestão pública
Paulo Roberto Motta
Mariana Lima Bandeira
I INTRODUÇÃO: A responsabilidade na nova gestão pública
Como resultado do ritmo mais intenso do desenvolvimento socioeconômico, a gestão pública
tem apresentado necessidades de mudanças, não só em seus papéis e funções mas também em seus
valores e filosofia. As propostas contemporâneas relacionadas ao public management, à governança e
às estratégias de criar valor público apresentam novos desafios em relação à responsabilidade
administrativa.
As reformas, inspiradas no modelo de public management, trazem maior autonomia e
flexibilidade em seus propósitos e extrapolam a esfera estrutural, para incorporar com mais cuidado
princípios éticos e a dimensão política (BRESSER-PEREIRA, 1998, 2001). A maior autonomia
administrativa repercute numa responsabilização política mais abrangente e com características
diferentes dos modelos anteriores.
Ao reconhecerem a variedade de idéias, valores, regras e procedimentos produzidos pela
descentralização, os modelos de governança propõem uma reconfiguração desses elementos com um
direcionamento identificado com fins políticos (HEIRICH e LYNN, 2000) e, portanto, uma nova visão
de responsabilidade administrativa.
As propostas de se criar valor público, por meio de uma nova gestão estratégica na área
governamental, baseiam-se em primeiro lugar na filosofia de uma nova responsabilidade ética para a
administração pública (MOORE, 1995). Ademais, as transformações relativas às novas funções do
Estado redimensionaram os conceitos tradicionais sobre a amplitude do domínio público e da ação
governamental e, conseqüentemente, dos padrões de responsabilidade (RANSON e STEWART, 1994).
As mudanças mais recentes levam à concessão de maior poder discricionário aos agentes
públicos, quase similar ao existente em empresas privadas, sobretudo na prestação de serviços sociais.
Pressupõem um maior número de servidores trabalhando diretamente com a população e com maior
autonomia de ação. Como agentes do Estado, esses funcionários possuem delegação e agem em nome
da coletividade: fazem julgamentos morais e opções sobre formas de utilizar recursos públicos sobre os
quais devem ser responsabilizados perante a comunidade.
Na perspectiva do public management, a organização pública tende a incorporar práticas e
valores da gestão privada mesmo na prestação de serviços de natureza pública. Quando valores da
administração privada começam a influenciar a administração pública, alteram-se não só o próprio
conceito sobre a natureza da coisa pública mas também as formas de ação e de consideração das
demandas comunitárias.
A individualidade do cliente é reconhecida na customização e a do administrador público, no
seu maior poder de decisão e ação. A legitimidade da ação pública presume algum consenso sobre
escolhas e valores, uma vez que o objetivo é atender à coletividade. Mas a consideração
individualizada da demanda de usuários altera valores na prestação dos serviços.
De um lado, espera-se que os cidadãos respeitem as leis porque elas procuram expressar valores
e preferências comunitárias. São as dimensões coletivas e o compromisso com outros que instituem o
sentido de responsabilidade, de cooperação, de eqüidade e justiça com relação aos direitos individuais e
às formas de definição de consensos. Por outro lado, progride a idéia da satisfação de demandas
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individuais similares à área privada, o que altera princípios de valores comunitários para reforçar a
preferência individual na forma de receber o serviço.
Ao fazer variações na prestação de serviços, o funcionário está decidindo sobre alocação de
recursos, variações na natureza do serviço e prioridades de atendimento. Essas decisões implicam
alterações de critérios de igualdade e eqüidade – para melhor ou pior – mas que incidem sobre fatores
antes pensados como exclusivos de governantes eleitos.
Vale notar que, na maioria dos países, persistem e mostram-se fundadas as críticas sobre a
qualidade dos serviços no atendimento a clientes. As críticas se avolumam mais pela não-atenção
individual e menos pela forma das opções coletivas. Nessa direção, crescem as pressões para a maior
responsabilização dos administradores públicos.
Por concederem maior autonomia aos funcionários sobre decisões que afetam a coletividade, as
mudanças recentes instituem novas dimensões de responsabilidade decorrentes não somente das
expectativas que o público possui com relação à administração pública como também das tarefas
definidas estrutural e politicamente.
Presume-se não ser fácil a tarefa de se responsabilizar a administração pública por decisões e
atos de seus agentes individuais e institucionais. Contudo, se a administração pública amplia suas
funções para a prestação de serviços, há o compromisso com a eqüidade e a qualidade de serviços.
Assim sendo, a responsabilização individual por decisões que afetam a coletividade torna-se inevitável.
Uma vez que a autonomia dada ao agente público permite que ele faça julgamentos com base no seu
sistema de valores, é preciso que o Estado pense formas e possibilidades de estabelecer critérios de
responsabilização individual.
Objetivou-se neste texto apresentar reflexões sobre as formas e possibilidades de
responsabilização da gestão pública quanto aos atos praticados por seus servidores, associando-as à
questão dos valores individuais. A proposta centrou-se em entender como a diversidade de valores que
orienta o comportamento do servidor afeta os critérios de responsabilização. Procurou-se analisar os
conflitos e paradoxos existentes entre os juízos valorativo e ético de cada indivíduo e suas obrigações
valorativas impostas pelas dimensões política, normativa e legal da administração pública.
II Administração Pública e Responsabilidade
As dificuldades em definir critérios e formas de responsabilidade na administração pública têm
a ver não somente com os problemas de definição do próprio conceito, como também com as
constantes evoluções que marcam a prática administrativa no mundo contemporâneo.
Com relação ao conceito, vale recordar o esforço de Waldo (1964) que, ao procurar esclarecer o
conceito de administração pública, reconheceu a amplitude de tal empreitada. Para ele, a administração
pública consiste numa ação racional – calculada corretamente – com o objetivo de maximizar a
realização de objetivos que são públicos por definição. Nesse sentido, o esforço humano cooperativo é
condição sine qua non para se entender a administração, ainda que essa cooperação não seja
necessariamente voluntária.
O significado de público extrapola a definição comum que envolve o governo, o Estado e
conseqüentes terminologias associadas, como soberania, legalidade e democracia, por exemplo, que
são controversas na origem e, assim, criam variedades de conceitos na definição da dimensão pública
em administração. Ademais, as novidades nas práticas administrativas, principalmente as inspiradas no
modelo de public management, acentuaram as dificuldades na conceituação e delimitação da dimensão
pública nos esforços racionais cooperativos para a produção de bens e serviços.
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Os problemas levantados por Waldo (1964) continuam presentes e, em conseqüência, as
dificuldades na definição de objetivos, critérios e limites da responsabilidade na administração pública.
Apesar dos esforços em rever os valores, sobretudo nas propostas de reforma, o conceito de
responsabilidade gerencial, ainda hoje, permanece nebuloso e evasivo (BERTELLI E LYNN JR. 2003).
Em uma elaboração mais cuidadosa, Michael Harmon (1995) mostra o conceito de
responsabilidade como contendo três dimensões em seu significado: Agency, Accountability e
Obligation.
Agency está associada à idéia do livre-arbítrio, no sentido de que o indivíduo é livre para fazer
suas escolhas conforme seus valores pessoais e, agindo assim, produz resultados. Accountability se
refere à capacidade de responder por alguma ação, perante alguma autoridade e por ordens formais e
expressas. Obligation, finalmente, constitui o aspecto da responsabilidade encontrado nas leis ou
princípios morais institucionalizados.
A proposta de Harmon deixa claro que o administrador público tem um grau de
responsabilidade ao mesmo tempo amplo, definido pelo seu arbítrio e contaminação de seus valores em
suas opções (agency), como também restrito por valores impostos externamente (obligation) e
possibilidade de ser questionado e sancionado pelas suas ações (accountability).
Paralelamente a Harmon, Bertelli e Lynn Jr. (2003) vêem quatro componentes no conceito de
responsabilidade: julgamento, accountability, equilíbrio e racionalidade. Accountability e racionalidade
aparecem como os conceitos mais externos. Accountability é entendida como os limites externos
advindos de regras, regulamentos, leis e todos os mecanismos de controle formal que direcionam as
decisões públicas. A racionalidade é o pré-requisito para um gestor público lidar com a
responsabilidade: permite a ponderação sobre o custo-benefício e a capacidade de se perceber as
possibilidades de uma decisão e, ainda, antecipar algumas de suas conseqüências. Os julgamentos
morais são tanto externos quanto internos ao indivíduo. Bertelli e Lynn, Jr (2003) defendem o
equilíbrio ou a comunhão entre o pensamento político e administrativo, por meio da integração das
diversas lideranças existentes no segmento público.
Portanto, a responsabilidade possui uma dimensão mais interna e outra mais externa. Na
verdade, a maioria dos modelos que analisa a responsabilidade administrativa define categorias
facilmente enquadráveis nessas duas dimensões – uma mais moral interna e outra mais impositiva
oriunda das obrigações legais, políticas e comunitárias da gestão pública. Por exemplo, recuperando o
clássico Frederick Mosher (1968), Bertelli e Lynn, Jr. (2003) defendem a responsabilidade como
possuindo uma dimensão extrínseca e objetiva (política) e outra dimensão intrínseca e subjetiva, que se
refere ao aspecto psicológico do indivíduo (pessoal e profissional).
A responsabilidade externa ou extrínseca representa a obrigação política e administrativa. A
responsabilidade interna ou intrínseca representa o julgamento de valores por opção individual. Na
prática, essas responsabilidades não são estanques e se mesclam, e podem mesmo ser conflitantes.
1 RESPONSABILIDADE EXTRÍNSECA: A resposta aos valores coletivos
Duas características centrais da administração pública − ideais democráticos e ideais
burocráticos − eram tratadas anteriormente em separado, nas abordagens ortodoxas (LYNN JR., 2001),
dificultando a inclusão do indivíduo nas propostas de responsabilização pública (BURKE, 1996).
No entanto, essa integração não se faz tão facilmente, uma vez que os valores que subjazem aos
ideais democráticos e burocráticos são por vezes contraditórios (DENHARDT, 1989). Os ideais
burocráticos, cuja ênfase concentra-se em delimitar rigorosamente uma uniformidade de tratamento aos
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clientes, podem ser contrários aos ideais democráticos, que prezam pelos direitos individuais, liberdade
e justiça. O administrador fica entre a decisão de valorizar a liberdade individual de cada cidadão e a
decisão de seguir restritamente os procedimentos de uniformidade, ditados pelos ideais burocráticos.
Nesse sentido, Denhardt (1989) observa que a violação de um implica o cumprimento do outro,
constituindo um dilema para a gestão pública. Reforça, ainda, que princípios éticos do Estado podem
estar em desacordo com situações e decisões específicas. Além disso, códigos de ética não funcionam
em ambientes políticos desenvolvidos. Esses aspectos geram muitas contradições, que devem ser
levadas em consideração na discussão sobre responsabilização pública.
Mesmo assim, a administração pública tem se tornado mais complexa a partir de um cenário
mais competitivo, mostrando que essas dimensões – política e administrativa – são interdependentes e
não podem ser dicotomizadas. A política precisa dos mecanismos instrumentais para se sustentar, ao
mesmo tempo que a organização e distribuição do poder pelos elementos burocráticos permitem que a
política transite e organize a administração pública.
Considera-se, então, que a responsabilidade extrínseca se refere aos compromissos do
funcionário com as decisões políticas e administrativas e com as quais ele está obrigado,
independentemente de suas próprias opções ou preferências valorativas.
A responsabilidade administrativa do funcionário significa a sua capacidade de responder por
uma decisão e ação pública que decorrem dos procedimentos e estrutura organizacionais adotados. A
responsabilidade administrativa se insere nas relações burocráticas, hierárquicas, jogos de poder,
pluralidade e variedade de demandas e questionada pela mídia. Portanto, a responsabilidade extrínseca
contém elementos administrativos como os de desempenho, inovação, eficiência, atendimento dos
cidadãos, uso de recursos públicos e escolhas entre alternativas de ação.
Na sua dimensão mais política, a responsabilidade extrínseca origina-se das imposições
governamentais, das leis e da vontade e preferência dos representantes eleitos. Espera-se que o
administrador contenha seu espírito de busca e seja obediente aos desígnios políticos. A submissão à
vontade política significa a garantia da prática democrática (WALDO, 1964). Nesse sentido, vê-se o
administrador inserido em um contexto político, em que deve agir com a máxima neutralidade,
enquadrando suas opções e ações às políticas já formuladas nas áreas hierárquicas superiores.
Portanto, a responsabilidade política contém elementos de resposta às preferências comunitárias
expressas pelos políticos eleitos; propriedade dos atos da administração em função das leis e normas
escritas; e adequação dos comportamentos administrativos ao comedimento e à submissão aos
controles democráticos superiores.
Valoriza-se a política na determinação e na condução da coisa comunitária, ou seja, a visão
coletiva sobre a individualidade; o processo político eleitoral determina o que deve, pode e será
produzido para a comunidade; demandas e apoios devem ser conhecidos somente através dos processos
eleitorais. A dimensão política reflete, dessa forma, os valores subjacentes à administração pública que,
pressupõe-se, sejam retornados para o coletivo.
2 RESPONSABILIDADE INTRÍNSECA: A resposta aos valores individuais
A responsabilidade intrínseca está associada aos julgamentos e opções morais do funcionário
com os quais se sente comprometido e independente dos valores externos, implícitos nas decisões
políticas e administrativas e determinados pela gestão pública.
Rescher (1969) já denunciava que a palavra “valor” tinha uso indiscriminado por causa de sua
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intangibilidade e de seu significado de difícil delimitação. Percebe ser mais fácil descrever suas
manifestações, importância, funções, processos de construção e motivações do que necessariamente
apresentar uma sólida definição de valor. A concepção de valor embute desejos, interesses, motivações,
padrões sociais, modos de interpretação e influências das mais diversas.
Os valores exercem um papel fundamental de limitar e estimular as pessoas em suas decisões e
ações. Outrossim, os valores não são independentes: possuem uma relação de interdependência com o
meio social. Para Rescher (1969), os valores são construídos socialmente, ao mesmo tempo em que
ajudam a constituir o indivíduo e suas relações. Por esse motivo, uma decisão, por meio de valores,
repercute inevitavelmente no indivíduo e também em seu contexto social. Valores ocupam espaço
central nas decisões: orientam escolhas e, muitas vezes, ultrapassam as justificativas e os limites da
razão.
Por se tratar de uma escolha e de um compromisso individual, a responsabilidade intrínseca
enfrenta o problema da alta diversidade e pluralidade dos valores quase que conforme o número de
pessoas ou funcionários.
Ao procurar explicar essa diversidade, Lewis (1995) admite os seres humanos como livres para
escolher suas crenças e valores pessoais.
Para ele, há seis formas de construção dessas crenças e valores, ou seja, modos de adquirir,
desenvolver e escolher o que irá nortear as escolhas e o comportamento do indivíduo. Essas formas não
são excludentes, e pode haver predominância de uma delas ou a predisposição para valores específicos.
Há simultaneidade e priorização de certos valores, revelando a pluralidade, a diversidade e a
complexidade de analisar a temática e suas conseqüências para a responsabilidade individual.
Essa complexidade deve-se não só à pluralidade de fontes na construção dos valores individuais
mas também à prática administrativa, que aloca valores para as pessoas e para a sociedade.
2.1 Fonte dos valores
Segundo Lewis (1995), o sistema de valores pode estar pautado em fontes diversas, como:
a autoridade: a fonte do sistema de valores é externa ao indivíduo, ainda que a legitimidade seja
construída internamente. Trata-se de uma crença incondicional, e, portanto, não há
discernimento na formação dos valores: a autoridade pode ser legitimada por um livro (a Bíblia,
por exemplo), uma pessoa, um grupo, uma instituição, uma convenção, um costume social.
a lógica dedutiva: o sistema de valores sustentado pela lógica como uma técnica de clarificar
pensamento e discurso. Faz-se uso de dispositivos matemáticos para construir e avaliar os
valores Por exemplo: um fato aparentemente considerado consistente pode ser testado até
demonstrar inconsistências, seja por dedução falaciosa ou não.
a experiência: experimentando-se, aprende-se; assim, passa-se a acreditar e a conhecer. A
vivência promove respostas a questões para essas pessoas que precisam de uma razão empírica
e se abrem a novas experiências.
as emoções: valores coletivos surgem pela via da emoção e do sentimento, por meio de
interações com grupos sociais, como a família, o grupo de trabalho, a vizinhança, a nação. Por
ser mais constante do que instável, esse sistema promove segurança emocional pelo
pertencimento a um grupo ou por proporcionar um modo de vida – identidade. Ainda que o
termo emoção traga uma conotação negativa, Lewis (1995) se refere a um sistema de valores
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baseado na emoção como “a faculdade que o homem tem em conhecer pelo sentimento,
especialmente sentimentos refinados; o tipo de conhecimento que as pessoas cuidam
profundamente, uma vez que podem construir um modo de vida e especialmente uma
comunidade, que elas estão preparadas para defender, ainda que seja com suas próprias vidas”
(p.93).
a intuição: emoção e intuição são aspectos sem controle direto, uma vez que habitam no
inconsciente do indivíduo. Para Lewis, a intuição é uma forma de pensamento abstrato e
especulativo, não-verbal, e que surge inesperadamente, como se emergisse de um profundo
inconsciente.
a ciência: pela atribuição de validade científica a uma experiência. Essa validação pode se dar
por diferentes modos: ciência exata, inexata – combinação de experiência, intuição e lógica – e
pseudociência.
Dadas sua intangibilidade e fluidez, presume-se que a construção dos valores não segue um
processo fixo, padronizado e previsível, mas se faz de forma assistemática ao longo da vida e através
da interatividade entre pessoas. Assim, o sistema de valores de um indivíduo está em constante
produção, e é fruto do contexto social no qual se insere e da singularidade de sua história pessoal.
Ao ingressar na instituição pública, a pessoa passa a interagir em um ambiente em que seus
valores singulares passam a influenciar e a serem influenciados por esse novo contexto. Essa influência
é fluida: origina-se nos valores dos dirigentes públicos, dos colegas, da forma de se organizar o poder, a
autoridade e responsabilidades do cidadão, dos clientes e usuários dos serviços prestados, enfim, de
uma diversidade de “agentes morais”.
A prática de sistematizar valores vem adquirindo maior relevância na gestão pública não só para
referenciar objetivos estratégicos mas também como fonte de responsabilização e de prestação de
contas à sociedade.
2.2 Alocação e sistematização de valores pela prática administrativa
Ao implementar decisões políticas e ao fazer escolhas, a administração pública não só aloca
valores como também produz alguns valores para a sociedade. Transações com clientelas e
interpretações de direções políticas são exemplos da produção de valores para a comunidade. Assim, há
uma pluralidade de valores inserida na prática administrativa. Ademais, pela prática do public
management se descentraliza a gestão e, portanto, aumenta-se a capacidade de decisão e ação de
organizações e unidades administrativas e sua potencialidade de produção de novos valores.
Valores colaboram na construção da consistência organizacional, do sentido de missão e do
consenso entre participantes de processos de trabalho. Um forte conjunto de valores ajuda a:
contrabalançar a perspectiva individualista e de auto-interesse pela construção de uma
consciência coletiva sobre a responsabilidade;
tornar as pessoas mais conscientes e responsáveis de seus próprios valores e daqueles que
transmitem através de suas ações e decisões;
impor uma preocupação e uma dimensão moral ao comportamento administrativo;
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obter o comprometimento dos funcionários empregados em relação a valores comuns;
criar uma forma ética de comunicação tanto interna quanto externa à organização;
manter um sentido de responsabilidade, conservando as práticas administrativas nos limites
lícitos;
incentivar os funcionários a procurar uma nova dimensão de responsabilidade individual e
um novo significado no trabalho.
III Dimensão Extrínseca versus Intrínseca: A base da controvérsia sobre a
responsabilidade
As grandes controvérsias sobre responsabilização do administrador público originam-se
exatamente no equilíbrio e na simultaneidade das duas dimensões: extrínseca e intrínseca. O
administrador seria orientado ao mesmo tempo tanto pela política quanto pela consciência pessoal e
profissional, o que levaria a alguns conflitos em determinadas situações.
Administradores públicos agem em uma arena política em que existem demandas conflitantes e
contraditórias sobre as possibilidades de ação. Tais demandas causam pressões inclusive sobre a
hierarquização de valores, gerando diferentes formas de se definir e de se enfatizar responsabilidades.
Por exemplo, onde priorizar referências para se medir a responsabilidade: nas leis, na Constituição, nas
religiões, nas práticas administrativas ou, mesmo, nas definições sobre o interesse público?
Tais questões refletem uma preocupação que Harmon (1995) levantou e rotulou de paradoxos
da responsabilidade.
1 Paradoxos de Harmon
A partir da definição tridimensional da responsabilidade, Harmon (1995) apresenta e discute as
contradições inerentes a cada uma das dimensões: agency, accountability e obligation. Os três
paradoxos identificados por Harmon giram em torno da necessidade de conciliar a responsabilidade
pessoal com a responsabilidade administrativa. Essa necessidade esteve negligenciada por muito
tempo, fortalecendo o discurso racionalista do governo. Para Burke (1996), essa lacuna se deveu ao
fato de haver uma barreira entre as esferas política e administrativa da gestão pública.
A responsabilidade pessoal consiste no “mais básico dos paradoxos” (HARMON, 1995: 68). No
sentido pessoal, considera-se responsável a ação que apresenta as forças de auto-reflexão e de
relacionamento. A ação existe por estar baseada no comprometimento e cuidado com outra pessoa, e
não exclusivamente por adesão a regras e regulamentos externos: a auto-reflexão está diretamente
vinculada à qualidade do relacionamento em determinado contexto.
Como forças opostas, a auto-reflexão e o relacionamento produzem uma tensão que fundamenta
as controvérsias inerentes à responsabilização. Assim, a ação individual reflete ao mesmo tempo
valores singulares, discernimento individual e qualidade de relacionamento.
O primeiro paradoxo trata a responsabilidade como obrigação (Obligation), imposta por uma
autoridade legítima, que toma uma decisão independente dos valores de seus funcionários. Com esse
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direcionamento, os funcionários podem se sentir no direito de serem irresponsáveis, justificando sua
ação pelo fato de estarem seguindo ordens. O paradoxo está no conceito de liberdade, que se apresenta
limitado à autoridade e legitimidade de ordens, regulamentos e leis.
Esse paradoxo mostra uma exclusão da influência múltipla e complexa dos valores individuais e
do contexto. Elimina também a capacidade de reflexão e interatividade pessoal, inerente ao indivíduo,
denotando uma visão mecanicista do ser humano.
O paradoxo da Agency é composto de dois pontos de tensão: o primeiro consiste numa diferença
entre agente moral e agente que responde pela ação; o segundo diz respeito às possibilidades de
integrar responsabilidade individual e responsabilidade coletiva.
Nessa primeira instância do paradoxo da ação está embutido o discernimento da pessoa sobre
suas decisões. O agente não se sente responsável pela ação porque não entra em contato com os
aspectos morais dessa ação. Para Harmon (1995), o desprezo ou a ignorância quanto aos resultados de
uma ação previamente estabelecida por regras não implicam irresponsabilidade, mas obediência.
A exclusão da dimensão individual é dual: por um lado, a gestão pode não levar em conta os
valores individuais; por outro, o próprio indivíduo pode, intencionalmente, excluir seus valores das
decisões. Nesse caso, a questão consiste em saber a quem cabe a responsabilidade pela ação. Será que o
fato de não reconhecer seu papel e sua responsabilidade em uma ação exime a pessoa dessa
responsabilidade?
Por outro lado, para Harmon (1995), a concentração da responsabilidade exclusivamente no
indivíduo implica o não-reconhecimento das condições sustentadoras das decisões. Ao mesmo tempo,
quando a responsabilidade é direcionada essencialmente para a instituição pública, ignora-se o papel
relevante do indivíduo na ação que procede à decisão.
Admitindo-se que o indivíduo constrói e reconstrói seus valores a partir de relacionamentos
interpessoais, e nesse processo remodela valores em seu ambiente social, entende-se por que a
responsabilidade precisa ser compartilhada.
Finalmente, o terceiro e último paradoxo foca a separação entre a intencionalidade do agente e a
accountability. O argumento de Harmon (1995) é que a accountability não pode ser entendida apenas
como uma resposta direcionada por e para objetivos preestabelecidos. Inclui um aspecto político:
emerge de relações sociais que permitiram a construção desses objetivos.
2 Dificuldades de Responsabilização
A dualidade moral e ética é inerente à prática administrativa. A expressão de valores públicos
fundados na democracia e cidadania coexiste com valores individuais e gerenciais, praticados tanto
pela administração quanto pelos clientes que demandam e usufruem dos serviços. A diversidade de
valores cria convivências e misturas complexas, inevitáveis e, mesmo, paradoxais.
A controvérsia permanece desde as primeiras formulações de Waldo (1948), em que a
autocracia (subordinação às imposições políticas superiores) durante o expediente é o preço a pagar
para se ter democracia fora dele. Como a maioria, Lynn Jr. (2001) dedica-se a uma visão de equilíbrio.
Ao aceitar o dilema, propõe para uma administração democrática a conciliação da dimensão política
com a administrativa.
Responsabilidade do administrador implica a possibilidade irrecusável de ser questionado sobre
a gestão, de ser avaliado quanto às decisões tomadas e se colocar à disposição para receber
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recompensas ou sanções como resultado de sua ação.
Práticas anteriores, baseadas na centralização e na hierarquização rígida da administração
pública, tendiam a reduzir e mesmo a negar a responsabilidade intrínseca de funcionários pela
referência à dimensão hierárquica e a ordens superiores. Funcionários sentiam-se vítimas das ordens e,
portanto, menos responsáveis por seus atos, atribuindo à estrutura e à organização a responsabilidade
pelos resultados alcançados.
Por causa das inovações crescentes na administração pública, avolumaram-se também as
propostas para novas medidas de responsabilidade e de conscientização do administrador sobre seus
juízos éticos e morais. Se de fato participa em um jogo do poder, responde prioritariamente a que
interesses: comunitários ou de grupos preferenciais? Como partícipe de um jogo político, o local, as
informações, a organização do processo de decidir, as autoridades envolvidas, os dados, as pressões e
sugestões da mídia, tudo se torna premissa para as decisões (BOWMAN, 1990, 1991). Administradores
não podem ordenar ilegalidades, distorcer informações ou suprimir dados.
Sabe-se que gestores públicos, mesmo com maior delegação de poderes, possuem uma fração
mínima de delegação se comparados aos gestores privados. Participam de forma localizada, pontual, de
influência menor na política e, por conseguinte, tendem a se sentir mais vítimas de decisões superiores
do que responsáveis por escolhas públicas. Contudo, o administrador age em meio a maiores
informações e conhecimento e, por meio de contatos diretos e constantes com a clientela ou inclusive
por pesquisa eletrônica, tem condições de conhecer melhor as preferências comunitárias do que por
representantes eleitos. Ademais, o administrador público trabalha com os desígnios políticos já
transformados em diretrizes mais tangíveis e verificáveis.
Deve o administrador público, ao formular decisões públicas, valorizar mais as imposições
comunitárias internas ou os seus julgamentos morais? Deve o administrador público ser cegamente
obediente aos desígnios externos? Pode a administração pública contrariar princípios morais de seus
funcionários? Podem os funcionários ferir princípios morais definidos pela comunidade? As
dificuldades nascem exatamente da impossibilidade de se tratar as duas categorias de forma estanque.
Definições morais não são facilmente limitáveis e conhecidas em todas as decisões. Além do mais, a
contaminação de valores dos funcionários, assim como dos decisores políticos, se faz, em parte, de
forma inconsciente durante todo o processo decisório. Não só na captação de demandas e necessidades
comunitárias como também nas formas de selecionar e analisar informações, há uma dimensão
valorativa inalienável e parcialmente inconsciente do processo.
Se a responsabilidade por decisões públicas está também com o administrador, a ética se insere
no julgamento moral do indivíduo. Portanto, a pessoa é responsável pela ética nas decisões, e a
responsabilidade individual por escolhas não pode ser escondida, reduzida ou anulada atrás de decisões
coletivas de organizações públicas. Além disso, conforme Bowman (1991), o indivíduo é o responsável
último pelas decisões, apesar de as organizações definirem e controlarem o contexto onde são tomadas.
As novas perspectivas sobre a responsabilidade administrativa indicam caminhos para reduzir a
lacuna entre as necessidades do cidadão e o desempenho do governo. A dualidade gera uma perspectiva
de reciprocidade na responsabilidade. Cidadãos possuem direitos e demandam serviços, mas devem
deveres e respeito à comunidade. Preservar eqüidade e direitos alheios é uma forma de assumir a
responsabilidade pelo domínio público.
Encontrar critérios que integrem essas instâncias da responsabilização constitui-se um desafio e
vem sendo perseguido pela administração pública.
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IV REFLEXÕES FINAIS
A formulação da política pública e as decisões administrativas não são propriedade de uma
única pessoa: fazem parte de um processo coletivo e de uma multiplicidade de etapas seqüenciais e
concomitantes. Assim, as decisões administrativas se passam em meio a intensas interações pessoais
em que se espera não só algum grau de cooperação mas também de compartilhamento de valores.
Na política pública, pretende-se a prevalência de valores comunitários e da clientela, mas os
valores dos funcionários não são reflexos naturais dos valores da comunidade. Pela maior
descentralização, modulação e fragmentação da gestão pública, a perspectiva do public management
dificulta a existência de referências valorativas mais universais e compartilhadas. Há tendência a
definir valores mais localmente e tentar projetá-los para as decisões mais amplas de política pública.
A modulação e o individualismo contemporâneos enfraquecem os laços entre os funcionários e
suas instituições, favorecendo a exploração da racionalidade e dos valores individuais como se fossem
melhores e mais úteis para a coletividade. Ademais, o public management intensifica posturas
individualistas dos usuários dos serviços. Incentivam-se cada dia mais as práticas de customização ou
satisfação das aspirações individuais da clientela. Assim, a localização da decisão e o individualismo
florescem, alimentados pelas transações internas e externas da instituição.
Privilegia-se, portanto, o não-coletivo e prejudica-se o direcionamento estratégico referenciado
em valores comunitários ou organizacionais mais amplos.
Como há maior individualização e fragmentação, a administração pública não pode persistir em
critérios de responsabilização apenas genéricos e únicos. Devem-se instituir novos critérios
complementares de responsabilidade que contemplem a pluralidade de valores inerentes à
fragmentação da gestão pública. Essa nova consideração da responsabilidade deve valorizar a sua
dimensão intrínseca e ser específica para cada organização pública ou área de política pública.
Em uma administração pública mais fragmentada e em organizações públicas mais autônomas,
há maior liberdade nos diferentes objetivos individuais e setoriais. Apesar de sua importância, objetivos
são limitados em revelar seu significado social: por vezes, são meras expressões de uma demanda
específica e sem muita clareza sobre seus impactos colaterais.
Nesse sentido, valores passam a ser uma referência importante para dar um sentido comum,
além dos objetivos a atingir. Valores colaboram na construção da consistência na decisão e ação
públicas e, portanto, na definição de critérios de responsabilização.
Como ideação, os valores agregam um novo sentido ao destino das instituições públicas e das
pessoas: ajudam a reativar o otimismo e as preocupações morais, bem como as possibilidades de
encantamento com a contribuição social, através do trabalho. Por isso, os valores estabelecem uma
forma privilegiada de instituir e reforçar o sentido de responsabilidade individual em relação à coisa
pública. Quanto maior o comprometimento com valores compartilhados, maior a possibilidade de os
funcionários sentirem-se responsáveis pela formulação e implementação da política pública.
Como a gestão pública moderna é uma mescla de ideação e técnicas utilitárias com a finalidade
de responder às demandas e necessidades da sociedade, valores e realidades se chocam no cotidiano da
administração. Valores fornecem aos funcionários um sentido de inserção social e servem como
reguladores de todo o processo de formular políticas e de agir na administração pública.
Assim, pretende-se do funcionário maior consciência de seu papel de agente responsável por
suas decisões e ações. Ao refletir sobre a dimensão social de seu trabalho e de sua responsabilidade, as
pessoas se projetam como cidadãos. Questionamentos sobre legitimidade servem não só para
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incrementar a qualidade do serviço, mas também possibilitar novas análises sobre a responsabilização
dos agentes públicos. Ressalta-se que novos posicionamentos diante da mudança não devem ocorrer
livre de comprometimento de valores para não se criar um ambiente propício a irresponsabilidade com
a coisa pública. Reconhecer na função de público o sentido do trabalho socialmente comprometido com
as demandas públicas sugere uma visão diferente da responsabilidade.
Na perspectiva valorativa, ressalta-se sempre o estímulo ao discernimento com o intuito de
legitimar a ética tanto como meio quanto como fim. A imposição de um código de ética não
necessariamente sustenta a ideologia da organização, mas o inverso pode parecer ser mais coerente.
As novas formas acesso e seleção das informações um maior posicionamento crítico diante do
trabalho permite ao indivíduo desenvolver uma atitude proativa e promover uma melhor integração de
valores às práticas administrativas.
Ainda que desafiadora, a proposta de integração da ética privada com a pública remete a mais
pesquisas e trocas de experiências e idéias. Pretende-se que essas reflexões forneçam subsídios para se
pensar como a prática administrativa pode ser remodelada, no sentido de resgatar sua credibilidade pela
responsabilidade.
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Reseña Biografica
Paulo R. Motta
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