Desejo e linguagem nas bordas de um corpo Viviane Espírito Santo dos Santos A partir da escuta psicanalítica de mães e seus bebês internados na UTI-Neonatal fazse uma questão: o que possibilita a circunscrição das bordas do corpo no infans? Pensamos a partir da repetição de inúmeros casos relacionados à borda oral. No contexto hospitalar, mais particularmente na UTI-Neonatal, o sugar, sustentado pelo discurso médico como o único reflexo da ordem do instinto na criança, torna-se condição para a alta do recém-nascido. Muitas vezes o ato de sugar pode apresentar problemas. Sustentamos uma escuta onde algo do desejo da mãe em direção ao bebê possa aparecer, pois isso é o que possibilita sua inscrição na linguagem. O que invoca o infans a se inscrever no campo do Outro é o desejo, que faz ecoar os sons nos orifícios do corpo, escrevendo sobre as bordas do corpo os significantes da linguagem. Nasce Vitória. Uma recém nascida de 750g, nasce aos 6 meses de gestação, pois sua mãe desenvolve um quadro de “pressão alta” gestacional. Vitória não foi planejada, mas desejada por sua mãe. Já o pai, entra em sua história com muitas dificuldades. Ao engravidar e contar a notícia ao namorado, Sofia* descobre que o mesmo é casado, e quer que ela aborte o bebê. A história de Vitória começa com uma reviravolta na vida de sua mãe. Sofia* sustenta a gestação sozinha. O pai é representado pela avó paterna, que também deseja o nascimento de Vitória. O quadro de pressão alta se inscreve na cadeia significante, a pressão ficou muito alta para Sofia, que não consegue levar a gestação até seus 9 meses. Ela era o menor bebê na UTI-Neo. Os médicos dizem da possibilidade de ela não sobreviver ou desenvolver algum quadro grave por conta de sua prematuridade. Na primeira semana de vida, chega a 680g. Mas Sofia é uma mãe muito presente. Sabe quando sua filha está bem, quando não está explica-lhe os procedimentos da enfermagem, fala o tempo todo com “sua princesa”. Sofia tem de reestruturar sua vida, mas somente pensará nisso depois de sua saída do hospital. Passa a morar no Alojamento Conjunto, durante a internação de Vitória. A internação é uma reclusão necessária para Sofia. “Ela é tudo para mim agora”, diz a mãe em um dos atendimentos. Com isso, Vitória vai se desenvolvendo. Alguns obstáculos no percurso, precisa do respirador por um longo tempo, chega a ter paradas cardiorrespiratórias. Mas a mãe está sempre com ela, sustentando sua importância no mundo. Elas permanecem internadas por 6 meses no hospital. E Vitória é uma vitória. O bebê se desenvolve bem, passa a respirar sozinha, passa a mamar sem a ajuda da sonda e aos 2kg e 100g, aos seus 6 meses de vida elas saem do hospital. Reencontro Sofia e Vitória, já com 10 meses, está grande e forte no ambulatório do hospital. A mãe está muito contente, radiante com sua filha no colo. “Já fiz todos os exames, ela não tem nenhum problema, nem neurológico, nem de visão ou audição, nenhuma sequela da prematuridade”, diz a mãe. Vitória reconhece minha voz. Permanece me olhando durante o atendimento com elas. Ao me despedir delas, ambas me seguem com o olhar. Seguiremos agora com um outro caso. Bruno é um bebê grande, nasce com mais de 3 kg, destoa dos outros bebês da UTI Neo. Chama a atenção da equipe que a mãe pouco aparece para visitá-lo. Ele precisa ficar na UTI porque engoliu mecônio, um dos componentes do líquido da bolsa aminiótica. Um procedimento simples, onde o bebê fica em observação e com suspensão da dieta por alguns dias e normalmente sai sem maiores problemas. Mas esse não foi o caso de Bruno. Ele ficou por mais ou menos 5 meses na UTI. A mãe, com quem falei por 2 vezes somente, mora em Angra dos Reis e tem um outro bebê em casa, uma menina de 2 anos e meio. Fala que é muito difícil para ela vir visitar Bruno. A criança passa os 5 meses praticamente sozinha. Percebe-se que Bruno não mama, não faz o reflexo de sugar, mesmo quando já poderia mamar. É necessário fazer gastrostomia, onde uma sonda é introduzida no estômago do bebê e o alimento passa por ali, sem se alimentar pela boca. Ele pega uma infecção e não resiste. Uma criança que previamente se tornaria saudável, mas que a recusa ou impossibilidade em mamar não o permite sobreviver. Esses dois casos são paradoxais e extremamente opostos. Vitória que teria mais dificuldades para se desenvolver devido à extrema prematuridade consegue crescer e sai do hospital muito bem. Bruno, que teria maiores chances, visto que seu problema era menos grave não consegue sair com vida do hospital. O que marca a diferença nesses casos? O filhote humano é sempre prematuro. Ao nascer, diferente de alguns animais, ainda precisa de cuidados, precisa de alguém junto dele. Esses cuidados são acompanhados, na maioria das vezes, de uma pessoa que faz a intermediação do bebê com o mundo. Essa pessoa encarna a o campo da linguagem, fala com o infans, nomeia para ele, a cada dia, seu lugar no mundo. Freud fala desse momento inicial da constituição do sujeito a partir da experiência de satisfação, que se liga ao desamparo do ser humano1. Nesse sentido que dissemos que o filhote humano é prematuro. Nasce em um desamparo que possibilita a instauração do Outro. O desamparo funda a posição do Outro, como alteridade que se instaura diante desse desamparo primordial. De acordo com Garcia-Roza2, “A experiência de satisfação, a partir da qual podemos entender os afetos e os estados de desejo, está ligada à concepção freudiana de um estado de desamparo original do ser humano” 3. Nessa experiência, há uma tensão interna que necessita ser descarregada e que o bebê não sabe nomear. O bebê sente um desconforto, fome, por exemplo. Ao grito de fome, um alguém vem e o alimenta. Mas somente o alimentar não é o que funda o campo da linguagem. Na UTI Neonatal, uma sonda alimenta o recém-nascido a cada 3 horas. Em alguns casos, não há grito de desconforto, como em Bruno, por exemplo. Era um bebê que não chorava. Esse alguém que alimenta o bebê precisa ocupar uma função lógica: o desejo do Outro. “O desejo é a presença de uma ausência, não é uma realidade empírica, não existe de maneira positiva no presente natural. Ele é (...) como uma lacuna ou um 'furo' no Espaço - um vazio, um nada”4. O desejo é instaurado a partir de uma demanda. No seminário 5, “As formações do inconsciente” (1957-58), Lacan apresenta a demanda e o desejo. Na lição de 4 de dezembro de 1957 pergunta: O que é a demanda? E responde: “é aquilo que a partir de uma necessidade, passa por meio do significante dirigido ao Outro” 5. A demanda se instaura a partir da necessidade. A necessidade, a fome por exemplo, é perdida com a entrada da linguagem e a instauração do Outro. Poizat (1996) expõe que há uma diferença do “grito puro” para o “grito para”. No “grito puro” há um desconforto e o bebê grita como resposta à fome que não sabe nomear. No “grito para”, já há uma demanda, um grito direcionado à alguém. “Não é mais 1 LAPLANCHE, 2004, p. 133. 2005, p. 54. 3 Ibid. 4 Kojève apud Almeida, 2005, p.110 5 LACAN, 1957-58/1999, p.91. 2 simples expressão vocal, mas demanda para obter o retorno do objeto desse gozo inicial, ele é, de agora em diante, elevado ao grau de significante”67. E o desejo? O desejo é uma interrogação sobre o que o outro deseja, depende de um outro instituído, encarnado na posição do cuidador. Esse lugar com um furo vazio, permite uma questão em direção ao desejo: Que Queres? (Che Vuoi?). Dessa interrogação sobre o que o Outro quer de mim que o sujeito vai buscar responder. Demanda e desejo caminham juntos. Com a entrada na linguagem, a demanda se instaura, a partir do Outro. Surge a tentativa de responder ao “Que queres?”, pergunta que instaura um movimento entre infans e Outro e que marca o impossível de satisfazer, o desejo. “A demanda exige, por natureza, para se sustentar como demanda, que haja uma oposição a ela”8. O desejo é definido por uma defasagem essencial em relação a tudo o que é, pura e simplesmente, da ordem da direção imaginária da necessidade – necessidade que a demanda introduz numa ordem outra, a ordem simbólica, com tudo o que ela pode introduzir aqui de perturbações9. Podemos associar a demanda à ação específica. É necessário que haja um outro que responda ao grito do bebê interpretando-o e transformando-o em uma demanda. Trata-se de alguém que possa funcionar como outro para a criança e também possa lhe introduzir no campo da linguagem pela via da interpretação de seu grito. O campo da linguagem é o campo do Outro e da alteridade. A ação grito/resposta do Outro insere o bebê na linguagem. “O grito do bebê faz signo para o Outro materno”10. O grito adquire um estatuto de linguagem, a partir dele o bebê faz signo para o outro. A demanda em direção ao Outro passa a vigorar, sustentada pela posição de quem cuida do bebê. Há o Outro, que deseja que este bebê seja, e não importa o que seja, mas sim o ato de ser. Esse desejo insere esse bebê no discurso, articula o corpo do infans, à linguagem, sustenta uma posição na constituição do sujeito. Nesse momento, infans em posição de objeto de desejo do Outro. 6 O texto em língua estrangeira é: «Il n’est plus simple expression. Vocale, mais demande pour obtenir le retour de l’objet de cette jouissance initiale, il est d’ores et déjà élevé au rang de signifiant ». 7 Poizat, 1996, p.191 8 LACAN, 1957-58/1999, p.92. 9 Ibid. p.96. 10 CATÃO, 2009, p. 55. Desejo do Outro instaura a posição de objeto para o infans – desejado pelo Outro. Nesse assujeitamento ao Outro, algo do sujeito já começa a surgir. O importante para nós, é que vemos aqui o nível em que – antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador11. Palavras, coisas ditas pela mãe ao alimentar e cuidar do bebê retornam junto com a cessação do desconforto para o bebê. Coisas ditas que se registram. São restos de palavras que se associam à experiência de satisfação. Há um registro nesse processo. Restam coisas ouvidas, palavras, sons. Algo do desejo passa ao infans pelos significantes. As modulações, tom de voz, escansão entre uma palavra e outra são mais importantes do que o conteúdo da fala. O desejo aparece. Freud, em “A Interpretação dos sonhos (1900)” expõe que um componente essencial dessa experiência [de satisfação] é a aparição de uma certa percepção (a nutrição, em nosso exemplo) cuja imagem mnêmica resta, daqui a diante, associada a um traço que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade”1213. O aparelho psíquico se funda na experiência de satisfação. Dessa experiência restam inscrições, traços, reinvestidos de forma alucinatória pelo infans a partir de então. Os recém-nascidos que necessitam ficar na UTI, precisam dos aparelhos que os cercam para sobreviver. Respirador, sonda para se alimentar, acesso para o soro, antibióticos. A cessação do desconforto vem por meio de sondas e aparelhos. O bebê é manipulado por pessoas, médicos, enfermeiros, mas se não há alguém que ocupe a posição de desejo do Outro para ele, a constituição do sujeito pode apresentar problemas. É necessário que haja um outro que responda ao grito do bebê interpretando-o e transformando-o em uma demanda. Trata-se de alguém que possa funcionar como Outro para a criança e também possa lhe introduzir no campo da linguagem pela via da interpretação de seu grito. O campo da linguagem é o campo do Outro e da alteridade. 11 LACAN, 1963-64/1998, p.26. FREUD, 1900/1992b, p.557 e 558, tradução nossa 13 O texto em língua estrangeira é: “Un componente esencial de esta vivencia es la aparición de una cierta percepción (la nutrición, en nuestro ejemplo) cuya imagen mnémica queda, de ahí en adelante, asociada a la huella que dejó en la memoria la excitación producida por la necesidad”). 12 Retomemos os casos apresentados. Parece que Vitória, com toda a prematuridade que apresentava, com grandes chances de não sobreviver, consegue acoplar-se ao aparelho de linguagem, pois o operador desejo do Outro se apresenta encarnado na mãe, com isso, entra na linguagem, pode mamar, olhar, caminhar em sua constituição. Já Bruno não teve esse gancho ao qual se segurar. Algo na relação dele com sua mãe não o possibilitou mamar, havia uma recusa ativa por parte dele que o impediu seu desenvolvimento. Encerro aqui o trabalho, apostando que mesmo com toda a aparelhagem médica que se apresenta em uma UTI Neonatal, há um aparelho imprescindível para a constituição do sujeito: o aparelho psíquico, aparelho de linguagem. É preciso que alguém sustente esse lugar da linguagem para o infans. O que marca a diferença desses dois casos é o desejo do Outro, encarnado na função materna. Para que haja constituição de um sujeito, é necessário haver um Outro, um operador que possibilite a entrada na linguagem, a constituição do aparelho psíquico. Para que um bebê possa mamar, para além do reflexo de sugar, para a circunscrição da boca como borda oral no corpo, é necessário haver a linguagem. O corpo não está dado desde o início. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA, João José Rodrigues Lima de. Lacan e o desejo do desejo de Kojève (2005). Disponível em: http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp42art08.pdf. Acesso em: 29/08/2012. CATAO, Inês. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage, 2009. FREUD, Sigmund. Proyecto de psicologia (1950[1895]). In: Sigmund Freud – Obras Completas. Volume I. Buenos Aires: Amorrortu: 1992a. ______. La interpretación de los sueños (1900[1899]). In: Sigmund Freud – Obras Completas. Volume V. Buenos Aires: Amorrortu: 1992b. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. “Freud e o Inconsciente”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. LACAN, Jacques. O seminário livro 5 – As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ______. “O seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1963-64). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LAPLANCHE, Jean, PONTALIS, Jean-Bertrand, LAGACHE, Daniel. Diccionario de Psicoanalisis. Buenos Aires: Paidós, 2004. POIZAT, Michel. La voix sourde – La societé face à la surdité.Paris : Métailié, 1996.