Sobre o devir-criança ou discursos sobre as infâncias1 Leni Vieira Dornelles Resumo: Discutir o tema que versa sobre as infâncias carrega consigo o paradoxo que atravessa a relação entre o novo e velho fantasma das histórias e Acontecimentos que tratam deste momento da vida das crianças. É sobre o devir-criança ou dos discursos sobre infâncias que tratarei de discutir na Comunicação do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação. Para tal, busco entender como os discursos que constituem as infâncias se apresentam hoje. Trato de uma ordem discursiva a partir de Foucault (2000), quando afirma que a ordem dos discursos, no caso, aqueles que produzem os infantis, referemse não às palavras, mas aos poderes que o envolvem, ao que é controlado, interditado, regulado em diferentes lugares. Como cada sociedade enuncia a infância que lhe convém, que lhe é interessante, penso acerca da desconstrução dos discursos sobre as infâncias, ou seja, daquilo que eles nos possibilitam desfazer sem nunca destruir, ferir ou desmanchar a força ou necessidade de uma ação. Reinterpretar as infâncias fazendo transbordá-las de significados, na tentativa de mostrá-las como uma outra possibilidade de viver e, viver de outra forma o ser criança. Para tanto reflito sobre as diferentes infâncias que emergem na atualidade, buscando desconstruir conceitos que perfazem os discursos que as inventam, por exemplo, infâncias daguerra, dadisciplina, dareligiosidade, dotrabalho, doperigo, darua, daciberinfância, dosbonecos e dosbrinquedos. Ao descontruir tais discursos, problematizo a fabricação do sujeito infantil e sua imersão no jogo entre infância e poder. Trato destas infâncias como produto de uma trama histórica, cultural e social na qual o adulto que com ela convive busca gerenciá-la através da produção de saberes e poderes. Encerro este texto questionando: quais as possibilidades que as crianças têm hoje de constituir seu criançar, seu devir-criança? Palavras-chaves: infâncias, devir-criança, criançar, discursos Discussing the subject about childhood has a paradox cutting across the relationship 1 DORNELLES, Leni Vieira. Sobre o devir-criança ou discursos sobre as infâncias. In: V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação, 2010, Rio de Janeiro. Anais do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2010. between the new and old ghost of histories and happenings relating this moment of children’s life. I will address the becoming-a-child or discourses of childhood in the Communication of the Fifth International Colloquy on Philosophy of Education. For this I have sought to understand how discourses shaping childhood look like today. I will lead with a discourse order drawing on Foucault (2000) when he states discourse order, that is, those producing children, do not refer to words but power around them, to what is controlled, regulated in different places. As each society enunciates childhood the way it wants to, I reflect upon deconstruction of childhood discourses, that is, that which they allow us to undo without ever destroying, hurting or breaking up the strength or need of a particular action. I wish to reinterpret childhood making them to come out from its meanings, so as to introduce them as another way to live and live the children-being in another way. Therefore I reflect upon different childhoods emerging today to deconstruct concepts shaping discourses inventing them, such as childhoods in war, discipline, religiosity, work, danger, street, cyberchildhood, puppets and toys. By deconstructing these discourses, I problematise the making of the infant-subject and its entrance in the game between childhood and power. I treat these childhoods as a product of social, cultural and historic plot in which the adult it lives with seeks to manager it by producing knowledge and power. I conclude this text asking: what are the possibilities for children to shape their own child-being, their own becoming-a-child? Keywords: childhoods, becoming-a-child, child-being, discourses Discutir el tema de las infancias lleva consigo una paradoja que atraviesa la relación entre lo nuevo y el viejo fantasma de las historias y de los acontecimientos acerca de la vida de los niños y niñas. Es sobre el devenir-infancia o los discursos sobre las infancias que discuto en esta comunicación para el V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação. Con tal fin, busco entender cómo son presentados los discursos que producen la infancia hoy. Se trata de un análisis del orden discursivo, desde la perspectiva de Foucault (2000), un orden del discurso que, para el caso se refiere a los infantes, y que trata no sólo de las palabras sino de los poderes que ese orden discursivo envuelve, de lo que con él es controlado, prohibido y regulado en diferentes lugares. Como cada sociedad enuncia la infancia que le conviene, que le interesa, propongo la deconstrucción de los discursos sobre las infancias, o sea, la deconstrucción de aquello que esos discursos posibilitan, eso sin disminuir, destruir o apaciguar la fuerza necesaria para una acción. Se trata de reinterpretar las infancias, transbordándolas de significados, para mostrarlas como otra posibilidad de vivir y, para vivir de otra forma el ser infancia. Con ese fin reflexiono sobre diferentes infancias que emergen en la actualidad, buscando deconstruir conceptos que atraviesan y modifican los mismos discursos que las inventan, por ejemplo, infancias delaguerra, deladisciplina, delareligiosidad, deltrabajo, delpeligro, delacalle, delacibernética, delosmuñecos y delojuegos. Al deconstruir tales discursos, problematizo la fabricación del sujeto infantil y su inmersión en el juego entre infancia y poder. Trato de esas infancias como producto de una trama histórica, cultural y social en la cual el adulto que con ella convive busca dirigirla a través de la producción de saberes y poderes. Cierro el texto preguntando sobre ¿Cuáles son las posibilidades que los niños y niñas tiene hoy de constituir su infantilidad, su devenir-infancia? Palabras-clave: infancias, devenir-infancia, infantilidad, discursos Sobre crianças e Acontecimentos Entender as infâncias como Acontecimento é poder tratá-las na materialização da imprevisibilidade, da mobilidade atentando para os devires das movimentações que atravessam este Acontecimento que é a infância. Pensar a partir daí é pensar em sua singularidade como aquilo que toma a diferença com relação a ela mesma e não a uma outra. Por isso este conceito me serve, pois sob a érige das múltiplas classificações que se faz das infâncias hoje, elenco algumas para discussão e questiono: que tipo de criança se produz nas guerras diárias daqui, do leste europeu, da Africa, da China, ou da fome, das drogas, da prostituição? Pensar sobre estas infãncia nos coloca frente a um outro paradoxo, de um lado, onde fica a garantia das constituições dos países, dos direitos internacionais de proteção e amparo às crianças? Por outro: como cada sociedade modifica seus discursos e passa a inventar novas verdades que garantam a governamentalidade das crianças? Ao se mudar os discursos, se mostra a provisoriedade das verdades modernas sobre os infantis, ou seja, de que toda criança deva ser protegida. Se deduz daí que, as sociedades encontram diferentes formas de exercer o governo da população infanti, isto é o que Foucault denomina como um dispositivo de poder por meio do direito de fazer viver ou deixar morrer. No entanto, para tratar das questões que envolvem o deixar viver das crianças na atualidade, penso no devir-criança no criançar, mas para experimentar o devir-criança é necessário problematizar pela criança que habita seus plenos direitos. Tudo isto porque o devir-criança como aponta Leclercq (2002) é o que mobiliza o Outro da pedagogia “e com isto injeta vida no desejo de alteridade” (p.43). E assim perguntar: Como os educadores das infâncias vivem os processos de ser criança hoje? Quais os modos de ser sujeito que se produz com e para elas? Hoje muitas crianças são fabricadas como sujeitos que escolhem, decidem, optam e, de alguma maneira, muito cedo precisam assumir os efeitos de suas decisões. Estas práticas de certa forma fabricam infâncias de um jeito. Acredito, queiramos ou não que, nesta sociedade é para isto que se vem trabalhando, para que as crianças cada vez mais governem a si mesmas, tenham autonomia e assumam suas decisões. Sobre o devir-criança ou discursos sobre as infâncias Discutir o tema que versa sobre as infâncias carrega consigo o paradoxo que atravessa a relação entre o novo e velho fantasma das histórias e Acontecimentos que tratam deste momento da vida das crianças. È sobre este novo-velho ou velho-novo das infâncias que discutirei neste momento do texto. Para tal, busco entender como os discursos que constituem as infâncias se apresentam hoje. Trato de uma ordem discursiva a partir de Foucault (2000), quando afirma que a ordem dos discursos, no caso, aqueles que produzem os infantis referem-se não às palavras, mas aos poderes que a envolvem, ao que é controlado, interditado, regulado em diferentes lugares. Isto se faz necessário para que se possa entender como cada sociedade enuncia a infância que lhe convém, que lhe é interessante e desse modo, pensar acerca da desconstrução dos discursos sobre as infâncias, ou seja, daquilo que eles nos possibilita desfazer sem nunca destruir, ferir ou desmanchar a força ou necessidade de uma ação. Reinterpretar as infâncias fazendo transbordá-las de significados, na tentativa de mostrá-las como uma outra possibilidade de viver e, viver de outra forma o ser criança. Para tanto reflito sobre as diferentes infâncias que emergem na atualidade, buscando desconstruir conceitos que perfazem os discursos que as inventam. Por exemplo, infâncias daguerra, dareligiosidade, doperigo, narua, nacyberinfância, dosbonecos. Ao tentar descontruir tais discursos, problematizo a fabricação do sujeito infantil e sua imersão no jogo entre infância e poder. Trato destas infâncias como produto de uma trama histórica, cultural e social na qual o adulto que com ela convive busca gerenciá-la através da produção de saberes e poderes. Das infâncias e seus modos de fabricação Para se capturar os fantasmas de histórias e Acontecimentos que cercam as infâncias vimos enquadrado-as e capturado-as a determinados regimes de visibilidade. Quando as classificamos, o poder disciplinar se exerce de uma forma invisível, impondo àqueles nos quais se exercita, uma visibilidade obrigatória. Ou seja, “[...] o poder que fica invisível e os objetos de poder - aqueles sobre os quais funciona - se tornam mais visíveis” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 175). Ao se classificar as infâncias hoje, as enquadramos à conceitos que a determinam como uma infância normal ou anormal. Disso advém uma contradição, ou seja, esta normalidade tem a norma como medida comum e que deverá ser seguida por todos. Para modernidade, a infância normal era a infância do sujeito soberano, a infância universal que se podia encontrar em todas as épocas e sociedades. A normalização da infância acaba, portanto, por estabelecer padrões de referências que precisam ser seguidos e, todos a eles afetos devem estar conformes para serem considerados ‘normais’. Assim, normalizando, é possível medir seus desvios, “determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras” (FOUCAULT, 1998, p. 154). Ao ser classificada, as infâncias são escrutinadas como membro de uma família, de uma escola, de uma sociedade. Por conseguinte, a classificação produz uma infância econômica, social, afetiva e culturalmente dependente, ou seja, uma infância que precisa ser governada para produzir sujeitos uteis, dóceis para a sociedade. A invenção da infância moderna trouxe consigo a atribuição de um estatuto de criança que por muito tempo a excluiu das práticas cotidianas da comunidade, tornandoa passível de controle e normatizações específicas. Contudo, não se pode esquecer que em muitos casos o controle e os modos de visibilizar as crianças passam pelas formas como se produzem seus corpos, corpos a serem gerenciados e governados por um poder que se exerce também em sua alma. Poder que funciona através de microníveis, pois nasguerras atuais que se impõem sobre as infâncias, são constantes as imagens que invadem nosso cotidiano e, que dão visibilidade a um corpo infantil preparado para o combate, para ação e controle de si mesmo e do outro, seja o seu inimigo um adulto ou uma criança. O que lembra Ewald (1993), quando afirma que: “somos aquilo que somos em função da visibilidade que recebemos do poder - somos essa parte de visibilidade” (p. 85). Visibilizar a criança daguerra é mirar onde o poder se opera, é fazer aparecer uma infância nas multiplas guerras que lhes são impostas nas diferentes sociedades. As infâncias daguerra Como fui levando, Não sei lhe explicar... Fui assim levando, Ele a me levar... E na sua meninice. Ele um dia me disse, Que chegava lá... Chico Buarque A música de Chico, de algum modo me toma neste texto que trata das infâncias. Chico com sua força poética nos apresenta a infância darua, a infância dasinaleira, a infância damarginalidade, ou melhor, aquela que está à margem de tudo. Aquela dos meninos capazes de envolver suas mães mostrando a elas que um dia eles chegam lá! É a infância que esta fora de casa, que acessa os materiais a serem consumidos via contravenção, que sobrevive e vive apesar dos riscos de seu cotidiano. Sobrevive nos bueiros e esgotos da vida urbana, mora embaixo de viadutos, pontes ou marquises de prédios. Dela fazem parte sujeitos que compõem uma infância bélica, perigosa. Como afirmam Díaz e Ramirez (2007), “A infância parecer haver mudado de vítima para vitimador: estamos frente à infância perigosa, e mais além da violência dos infantis de rua, dos subúrbios, temos agora os infantis de classes pobres que se somam a escalada de violência” (p.110)2. São aquelas que por um acaso, “se deixam viver ou escapam com vida”. Aquela infância como afirma a música de Chico, que tem seus meninos e meninas que ao nasceram rebento, não era o momento de rebentar. Infância que compõem o batalhão de excluídos, exclusão esta materializada também na prostituição, no trabalho infantil, nas instituições de enclausuramento como a das crianças que vivem em presídios com suas mães (DORNELLES, 2005). É a infância dos enjeitados e, se voltarmos no tempo, ela já aparecia na Antiguidade clássica quando os gregos procuravam modos de fazer viver os infantis “enjeitados”, preparando-os para serem futuros guerreiros soldados que pudessem viver e lutar pela pátria. Capturando os fantasmas que rodeiam estas infâncias não é de se estranhar que o Brasil colocasse nas linhas de frente, como bucha de canhões, os meninos rodeiros, das 2 Tradução livre. crianças da guerra do Paraguai. Exemplos de infâncias enjeitadas podem ser encontrados em nossa história a partir do século XVIII, na Roda dos Expostos ou nos hospícios para crianças abandonadas. Alguns autores preferem chamá-las de crianças em situação de risco ou àquelas encontradas à margem. Outros afirmam que situações como as questões da marginalização econômica, social e afetiva acabam produzindo crianças e adolescentes em situação de risco nasguerras das ruas de nossas cidades. Crianças brasileiras – meninos, meninas, adolescentes – que fazem parte de um país desigual e armado, como afirmei em outro lugar. Segundo os dados do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)3, órgão que mede as condições de vida em 173 países. Desigualdade e armamento que na cotidianamente se naturaliza produzindo execução ou exclusão. Essas são vistas diariamente nas esquinas com sinaleiras fazendo malabarismos, vendendo frutas, pedindo esmolas, isso certamente marca um tipo de infância inventada como marginal, perigosa, contudo, aquela que mesmo sem o adulto para protegê-la e ampará-la, produz um cotidiano que possibilite sua sobrevivência e a eles se deixa viver. Para isso, muitas vezes exercem atividades ilícitas como roubo, compra, venda e intermediação de drogas. Outras para viverem na rua são expostas à exploração sexual, prostituição e pedofilia. Uma infância diferente que brinca, trabalha e age muitas vezes sem um cuidador adulto. Uma infância que nada mais é do que uma forma diferente de infância que envolve ao mesmo tempo prejuízos e vantagens, exigências e atribuições, sofrimento e satisfação. Infância que se diferencia por não colaborar com o “desenvolvimento sustentável” do país, tendo em vista que é excluída por não consumir. Sobre isto Bauman (2005) afirma que numa sociedade onde há muitos consumidores deste tipo, eles são os “consumidores falhos”, ou seja, são os carentes do dinheiro que lhes permitiria ampliar a capacidade do mercado consumidor, ampliariam as demandas de consumo, que buscam efetivamente o lucro. Sem o adulto provedor de seu consumo e que vive numa sociedade que torna imprescindível a capacidade de adquirir, muitas vezes é por vias ilícitas que esta encontra a saída para seus prazeres e necessidades. Bauman (idem.) nos remete a questão de que as crianças também são afetadas pelo mundo do consumo, contudo, as crianças pobres que compõem o refugo humano 3 Segundo cálculos do PNUD, cerca de 2.000 pessoas morrem todos os dias vítimas de arma de fogo, a maioria delas civil. A violência armada também é associada à violação de direitos humanos, à exacerbação da desigualdade de gênero, à insegurança judicial e à falta de oferta de serviços básicos à população, como educação e saúde. http://www.pnud.org.br/seguranca/reportagens/index.php?id01=3492&lay=jse Em 10/07/2010,8:45. passam a ser, o excluído, o diferente deste mundo. Embora diferente esta continua sendo um tipo de infância. Infância que como fala o poeta, “[...] no sinal fechado vende chiclete, capricha na flanela, tem as pernas tortas e se chama Pelé” e que apavora porque consegue viver sem o adulto. Infância e religiosidade Atento para um outro modo de ser infantil que se opera hoje, ou sobre a infância dareligiosidade. A religião desde a infância funcina em muitas culturas, não só no sentido instrumentalizar a criança a servir, mas também, capaz de produzir um extremista religioso. Sujeito que junto ao adulto que o dirige faz uso das armas modernas como a da “espetacularização” mediática [...] da tele-tecnocência”, como afirma Rouanet (2002, p.111). Ou seja, a religião também se serve das inovações científicas para visibilizar seus discursos, convidando as crianças a desde muito cedo delas fazerem uso como modo de atração de seus fieis. Diariamente assistimos a uma imensa legião de Pastores Mirins que fazem de seus cultos um grande espetáculo na Internet. A mídia virtual funciona nestes casos, como um lugar privilegiado de superposição de verdades, de produção, circulação e veiculação de enunciados religiosos, que através das crianças dizem a verdade sobre a salvação da vida por meio da religião4. Diante do “declinio de valores” morais, os cultos religiosos usam conceitos modernos de infância como: ingenuidade, pureza, acesso a Deus, para recriar nexos de solidariedade, cura, salvação; e assim “inventa[m] um passado mítico em que não existiam as tensões e as incertezas do mundo contemporâneo” (ROUANET, 2002, p.126). Esta “modificação” apresentada pelas infâncias me faz buscar novamente Bauman (2007) quando disserta o mundo contemporâneo com seus mistérios, sua fluidez, suas ameaças e amedrontamentos, mundo que se ergue à nossa volta e aponta que precisamos aprender a pensar e “andar sobre a areia movediça” (p.152). É movediça a verdade que trata as crianças pastoras que constituem a religião hoje pois, nela está expressa uma tecnologia de governo dos infantis em que a crença se forma e reforma a cada culto. A mídia compõe na atualidade, via meios de comunicação (rádio, Internet, televisão, etc), uma expertise religiosa que captura as 4 Ver vídeos no youtube: “menina pastora”, “ menino pastorinho”, “ a pregadora mirim Ana Carolina Gideões, “missionarinha Alani”, “www.danielpentecoste.com”, etc. crianças a uma aliança entre seus desejos, os desejos sociais e os desejos de Deus. Fischer (2002) mostra que a mídia torna-se um dispositivo pedagógico na medida em que ela participa da constituição de identidades e subjetividades por veicular imagens que “de alguma forma se dirigem à ‘educação’ das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem” ( p. 153). Pensar como vivem as crianças religiosas hoje é problematizar sobre as infâncias religiosas pós-modernas é indagar o próprio conceito de pós-modernidade. Lyon (1996) afirma que pensar a pós-modernidade é tratar da valiosa problemática “que nos alerta sobre questões chaves relativas às mudanças sociais contemporâneas [...] nos convida a um debate sobre a natureza e a direção das sociedades atuais em um contexto globalizado” (p.149)5. Observa-se hoje que as religiões possibilitam a constituição de um ciberinfantes cristão. Crianças pastoras que se tornam visíveis, quando tomadas em sua visibilidade, pois, só quando o olho do poder incide sobre elas, tornam-se visíveis. A visibilidade destas crianças é a visibilidade do poder. Tornam, por seu lado, o poder visível na medida em que são capturadas por ele, pela instância do poder que sobre ela constitui imagens e ditos (ver e dizer). Como afirma Foucault (1999, p.393)6: Todas essas vidas que estavam destinadas a transcorrer à margem de qualquer discurso e a desaparecer sem que jamais fossem mencionadas, deixaram traços – breves, incisivos e com frequência enigmáticos – graças a seu trato instantâneo com o poder, de forma que seja impossível reconstruí-las tal como o puderam ser ‘em estado livre’. Podemos chegar a elas unicamente através das declarações, das táticas parciais, das mentiras impostas e que supõem os jogos de poder e as relações de poder. Poderes religiosos que fazem parte de uma trama social, econômica e política que capturam os infantis com vistas a seu controle, regulação e governo. Poder que produz crianças, tecnologias e crenças. Quando se trata da política ou da maneira como a conduta de um conjunto de crianças está implicada, o exercício de poder é cada vez mais marcado, seja sobre os pequenos, seja sobre a arte de bem governar sua alma, sua vida ou mesmo sua cotidianidade religiosa. Sua infância esta cevada de significados que tem um caráter político e esta política é constituída por práticas sociais presentes na sua vivência cotidiana nos cultos religiosos que para ela planejados. Sobre estas práticas 5 6 Tradução livre. Tradução livre. sociais infantis se articulam cultura, economia e política de constituição de sujeitos religiosos. Infância Ciber Vendo como imprescindível à necessidade da reflexão acerca das cultura que produz a criança pós-moderna hoje, busco tratar aqui, de uma criança que faz parte de uma das muitas infâncias brasileiras, ou seja, das crianças que fazem parte de uma instância chamada de ciberinfância. Chamo de ciberinfância alguns discursos que tratam da infância globalizada contemporânea, ou seja, aquela infância afeta às novas tecnologias (DORNELLES, 2005). As crianças contemporâneas fazem parte de uma geração que nasceu em contato com diferentes tecnologias e descobriu o mundo por meio de diversas mídias. Algumas pesquisas têm problematizado esta infância e analisado suas relações com o meio que a cerca, como o caso dos nativos digitais caracterizados por Prensky (2001) em uma perspectiva psicológica; sobre a ciberinfância estudada por Dornelles (2005) na dimensão cultural e dos homo zappiens enfocados por Veen e Vrakking (2009) em suas relações com a escola. Esses autores buscam entender como estas crianças estão lidando com o fluxo constante de informações e suas implicações na aprendizagem Nessa perspectiva, é preciso compreender o que essa nova geração de criança traz para as escolas e como os professores podem aliar-se as potencialidades das redes e dos softwares sociais. É interessante o que discutem Veen e Vrakking (2009) quando chamam esta geração de crianças de homo zappiens, ou seja, crianças que demandam novas abordagens e métodos de ensino para que se consiga manter a atenção e a motivação na escola. Esses autores (VEEN e VRAKKING, 2009) ouviram relatos de professores que contavam sobre a mudança dos alunos que chegavam às escolas públicas de Estocolmo, na Suécia, no final da década de 1990. Comentavam que, repentinamente, as crianças que chegavam à escola demonstravam um comportamento bastante diferente, mais direto, ativo, impaciente e, de certa forma, indisciplinado. Parecia que algo diferente havia acontecido durante as férias. Para eles as crianças, com auxílio dos recursos computacionais, entraram em contato com um mundo sem fronteiras e com respostas instantâneas. Afirmam que ao utilizar as ferramentas de comunicação e colaboração da web, elas processam uma quantidade enorme de informações, por meio de uma grande variedade de tecnologias. Portanto, pensar sobre os ciberinfantes, aqueles das tecnologias digitais, é se tentar problematizar o que acontece com estas crianças frente ao ciberespaço. Por outro, alguns autores vêm tratando da infânciaciber como a infância de um tempo perigoso como afirmei anteriormente. De algum modo, principalmente a mídia vem colaborando para produzir nos adultos, um certo sentimento de ‘medo’ em relação a ciberinfância, pois ainda pouco se sabe como diante dela proceder. Vê-se na nesta um perigo, talvez porque, aquele que o adulto que a cerca, ainda não produziu ‘um saber’ suficiente para controlá-la ou, porque, não se consiga ainda, melhor governá-la. De algum modo os discursos de ‘crianças perigosas’, ‘crianças esperta demais’, ‘crianças que escapam’ acabam produzindo o que Foucault chama de: efeito que produzem verdades e, que acabam tornando-se verdades incontestáveis. Talvez por isso, se tenha, em muitos casos, tratado os ciberinfans como ‘anormais’. Esta infância vem desestabilizando as pedagogias como vimos no exemplo anteriores. Nos inquietam porque minam o nosso pensamento binário, cartesiano, porque não é mais possível simplesmente tentarmos classificá-las, enquadrá-las nos lugares tradicionalmente designados para os infantis. São infantis plurais, zappiens, mutantes que se apresentam com diferentes e distintas formas ao mesmo tempo e, no momento seguinte, já mostram outros modos de ser, antes mesmo que seja possível conhecê-las e apreendê-las. As crianças pós-modernas são um desafio para a educação da ordem. Steinberg e Kincheloe (2001) por outro lado, nos instigam a pensar em modos de se auxiliar a criança e provê-la de suporte que lhe possibilite lidar com estas novas descobertas e empreendimentos frente às novas tecnologias que invadem diariamente o seu cotidiano. Enquanto educadora de crianças pequena e pesquisadora da infância, sinto que se faz urgente o investimento em novas pesquisas que tratem dos efeitos das novas tecnologias culturais sobre a infância hoje, como a que vimos em relação aos alunos e o ciberespaço. Bem como, se investigue acerca das propostas de entretenimento que produzem crianças nestes softwares sociais. Também se incentive estudos que tratem das novas tecnologias e das práticas discursivas ou não que inventam as crianças pós-modernas. Pensar acerca da ciberinfância na pós-modernidade é pensar problematizando os efeitos dos fenômenos intelectuais e culturais das infâncias atuais. Ou melhor, pensar sobre estas infâncias é pensar como nos ensina Foucault, pensar diferente do que se pensava antes. Pensar a infância naquilo que ela nos incita, nos perturba, nos marca, nos atormenta, nos cativa. Estamos construindo uma nova categorização de infantis e tratando os ciberinfantes como os que escapam. Destes, pouco ou quase nada se sabe, se têm medo pois estes nos obrigam a sair da tranqüilidade de nossas verdades. Daí que, sobre a infância que escapa e passa a ser um outro em sua alteridade. Talvez por isso, os adultos que convivem com os ciberinfantes pretendam impor normas e regras para um jogo aos quais estão fora e por fora. Talvez exista nos adultos um sentimento de inadaptação “frente à imagem de um mundo virtual que não pode ser materialmente controlado. [Onde] a maioria dos jogos eletrônicos atuais, caracterizam-se por exibirem histórias geralmente não lineares e por apresentarem uma visão ‘confusa’ e ‘descontrolada’ de mundo” (COUTINHO, 2002, p. 127). Talvez, em função de um duplo discurso entre ser bibelot e irracional, protegido e independente, a mídia na contemporaneidade acabe fabricando um determinado pânico moral como mostra Walkerdine (1995). De algum modo, produz-se hoje uma criança como um sujeito sem controle e normatividade, cujas brincadeiras são perigosas, ou melhor, crianças perversas - futuros agressivos em potencial. Talvez, se tenha ‘medo’ de algumas crianças que têm poder, visto que, as crianças com poder como mostra Steinberg e Kincheloe (2001), são especialmente ameaçadoras para os adultos. Muitos adultos por não terem know how suficiente para participar das brincadeira tecnológicas das crianças da atualidade vêem seus jogos e games como algo imersos no caos, na desordem, como uma atividade sem nexo e nem linearidade. Acreditam que a as crianças por brincarem com games acabarão sendo adultos agressivos, descompassados no mundo por não construírem uma organização interna. No entanto, muitas vezes a criança vê todo este ‘caos informe’ do game como parte do processo de evolução do próprio jogo. Isto mostra como somos frágeis e continuamos fazer conjecturas acerca do brincar sem muitas vezes aprendermos com ela a jogar, a ouvi-las em suas descobertas e possibilidades de interagir com estes materiais. Contudo, precisamos estar atentos a seus entretenimentos, visto que a sua fabricação para as crianças hoje, é um espaço de poder e de políticas de produção de sujeitos infantis. Infância dobrinquedo: Além de seus jogos de game, fazem parte de suas brincadeiras os bonecos e as bonecas, procuro agora tecer algumas considerações sobre os mesmos, com vistas a problematizar este artefato e sua relação com a produção do corpo infantil. Os brinquedos acredito eu, precisam ser cada vez mais tomados como um bloco tático de uma estratégia mais ampla de produção do ‘ser criança’ hoje. Estratégia essa que comporta outros blocos táticos em sua luta para tornar hegemônica a forma de subjetividade assim produzida (DORNELLES, 2003). O brinquedo, e aqui trato muito especialmente dos bonecos e bonecas que fazem parte do cotidiano do brincar das crianças na contemporaneidade, vem servindo de algum modo, para ‘educar’ as crianças ao como se deva ter um corpo. Assim como o que é ensinado para meninas e meninos, os bonecos e bonecas também apresentam-se para as crianças com um corpo que precisa ser consumido. Para tal, precisa ser magro, alto, músculo, jovem, e branco para ser belo. Este corpo-brinquedo é consumido em série pelas crianças. Se aliarmos a esta reflexão os estudos acerca da emergência do corpo7, se pode observar que há uma produção de determinadas práticas disciplinares que agem sobre esses corpos. Assim, observo que bonecas e bonecos apresentam em seus corpos uma estética marcada a um determinado modelo de corpo. A indústria cultural dos brinquedos se preocupa cada vez mais com os detalhes dos corpos dos bonecos a serem apresentados às crianças. Fazem uso de variadas tecnologias para que eles possam se movimentar, falar, estar envolvidos nas atividades das crianças. Investe-se cada vez mais nos corpos dos bonecos da infância contemporânea e assim como nos corpos dos body-building-bonecos, há um detalhamento de sua massa muscular e neles se investem uma cultura dos músculos builb como dos Street Fighter e os Max Steel. Parece que também esses bonecos foram submetidos às praticas de jogging, aeróbica, musculação, regimes de baixas calorias, botox, lipo-aspiração e cirurgias plásticas, sendo que, [...] todas essas técnicas de gerenciamento do corpo que floresceram no decorrer dos anos 80, são sustentadas por uma obsessão dos invólucros corporais: o desejo de obter uma tensão máxima da pele; o amor pelo liso, pelo polido, pelo fresco, pelo esbelto, pelo jovem; ansiedade frente a tudo o que na aparência pareça relaxado, franzido, machucado, amarrotado, enrugado, pesado, amolecido ou distendido; uma contestação ativa das marcas do envelhecimento no organismo [...] (COURTINE, In: SANT’ANNA, 1995, p. 86). Além dos bonecos apresentados na Internet como Bonecos de Ação, há também outros tipos de corpos, como por exemplo, o casal de avós da Barbie. Tais bonecos não fogem da estética corporal apresentada no corpo de sua neta. Seus avós são magros, 7 Ver Dornelles, Leni Vieira. Meninas no Papel (Tese de Doutorado) quando estuda a emergência do corpo feminino infantil no papel (Revistas Femininas Infantis). elegantes, altos, cabelos com reflexos e luzes em tons clareados. Poucas são as marcas do tempo por eles apresentados sutilmente e seus rostos. A indústria mostra o corpo dos bonecos dentro dos acontecimentos sociais vigentes. Isto nos lembra FOUCAULT (2000b), quando diz que “o corpo e tudo o que se refere ao corpo: a alimentação, o clima, o solo – é o lugar da Herkunft [proveniência]: no corpo se encontra o estigma dos acontecimentos” (p. 267). Os brinquedos através dos bonecos vêm apresentando às crianças, os acontecimentos de seu tempo. O corpo que “de modo cada vez mais vasculhado e detalhado na da transformação e ‘perfeição’” (DORNELLES, 2002., p. 115). As crianças não têm tido muitas possibilidades de brincar com bonecos ‘diferentes’, sejam estas diferenças raciais, de gênero, geração ou étnicas. Pode-se perguntar a seus pais ou professores: onde estão os bonecos com corpos gordos, os cegos, os cadeiras de roda, os portadores de síndrome de down, os idosos, os gays, os que usam óculos, etc., nas salas de aulas de nossas crianças? As crianças brincam apenas com um tipo de boneca: corpo estilo Barbie ou bonecos corpo estilo Max Steel. No entanto, nos últimos anos no Brasil, a indústria, o comércio, o consumo estão atentas à produção de um conjunto de enunciados relativos à infância e ao que ela deva consumir, numa relação transpassada por um poder que é microfísico. Contudo, vê-se uma fabricação ainda que lenta mas, cada vez maior, de materiais e objetos de consumo que atendam a toda e qualquer diferença. Por exemplo, a primeira linha de bonecas da Mattel Barbie So In Style, lançada no Brasil em 2010, como a primeira coleção de bonecas negras da linha Black Barbie, onde suas personagens são uma cheerleader, uma apaixonada por música e apaixonada por arte acompanhadas por suas irmãs. Entram nesta coleção, no mercado brasileiro, bonecas e bonecos negros com fenótipos da raça negra. Entretanto, este material ainda não chegou nas salas de aula pois, o que se observa na mídia, na publicidade dos brinquedos ou mesmo na sala de aula de crianças pequenas é que elas têm tido oportunidade construir relações com corpos diferentes dos habituais e suas brincadeiras são permeadas por bonecos que representam a raça branca. Não há ou existe pouca possibilidade de brincar com outro tipo de corpo. Há uma naturalização e generalização do sujeito branco também em seus brinquedos que é elencado como “o mais belo”, “o melhor” (o que tem visibilidade na mídia, nas propagandas de brinquedo). Tenho tido oportunidade de ver crianças brincando com estes bonecos “diferentes”, tenho visto como as crianças neste brincar vêem estes bonecos como alguém que tem o corpo errado. Chegam a expressar que se deveria tirar a sua pele preta e colocar uma pele branca. Como o diferente dele se torna “o negativo”, “o outro”, aquele que precisa viver com e através da diferença. Repete-se constantemente em suas brincadeiras aquilo que se apresenta na mídia, os bonecos e bonecas negros exercem a função de: motoristas, babás, faxineiras. As mulheres negras não são as protagonistas8. Em muitos momentos de suas brincadeiras com bonecos as crianças nos mostram um paradoxo de atitudes e sentimentos no que diz respeito à raça. Em alguns momentos, mostram-se racistas, preconceituosas e dizem que não irão brincar com o boneco por ele ser preto, e, em outros, a raça não é o mais importante a ser considerada nas brincadeiras e sim seus adereços são mais significativos. Por exemplo, se a boneca estiver luxuosamente vestida isso vale mais do que a sua cor. Contudo, se algum colega disser que não combina a cor com o luxo da roupa, imediatamente ela muda de idéia ou deixa a boneca de lado. O importante acredito eu, ao se conviver com as crianças, é que se possa problematizar, examinar o como a constituição da infância negra esteve e está relacionada à continuada elaboração de um discurso sobre raça; como operam de forma correlata um corpo de saberes sobre o sujeito negro infantil e um conjunto de dispositivo hegemônico na compreensão desse constructo que é o do ser negro. É investigar esse tema tal como Foucault (1995, p.232), que nos ensina a “estudar o modo pelo qual um ser humano torna-se sujeito”, o modo como esse sujeito negro infantil é produzido no interior das articulações de poder-saber. Portanto, para nós professores de crianças, há uma necessidade de se estranhar cada vez mais os brinquedos fabricados para as crianças. É preciso estranhar os discursos que produzem efeitos e formam um determinado tipo de sujeito e que, portanto, produzem determinadas práticas e não outras. Estranhar o que está habituado a acontecer nas brincadeiras com bonecos e bonecas fabricados para as crianças. Infâncias e as políticas do Criançar Ao encerrar este texto gostaria de destacar que a criança que compõem as mais diversas infâncias aqui apresentadas – daguerra, dareligiosidade, daciberinfância e dobrinquedo, não esgotam este tema que tanto nos incita a pensar. A infância e todos os 8 Na “novela dás 20 horas, da Rede Globo, Viver a Vida”, pela primeira vez se apresentou uma protagonista negra vivida pela atriz Taís Araújo. discursos que as inventam nos instigam a ver a criança numa cartografia onde são traçados caminhos múltiplos para entendê-las e, para tal, é preciso explorar os mais diversos trajetos, desvendar e se afetar pelos diferentes segredos dos mapas que compõem as trilhas do ser infantil. Como afirma Deleuze (1997): [...] Os mapas não devem ser compreendidos só em extensão, em relação a um espaço constituído por trajetos. Existem também mapas de intensidade, de densidade, que dizem respeito ao que preenche o espaço, ao que subtende o trajeto. [...] É essa distribuição de afectos [...] que constitui um mapa de intensidade. É sempre uma constelação afetiva. [...] o mapa das forças ou intensidades tampouco é uma derivação do corpo, uma extensão de uma imagem prévia, um suplemento ou um depois. [...] Pelo contrário, é o mapa de intensidades que distribui os afectos, cuja ligação e valência constituem a cada vez a imagem do corpo, imagem sempre remanejável ou transformável em função das constelações afetivas que a determinam. (DELEUZE, p. 73, 76-77). Cito extensamente o autor porque nos ajuda a pensar acerca da infância, das política do criançar e da forma como esta nos afeta e a afetamos. Onde se produz uma criança num mapa composto de trajetórias, traçados, caminhos, percursos que marcam distâncias e proximidades capazes de constituírem suas subjetividades. A partir das intensidades de afectos como aponta Deleuze, a criança constituiu o si e o outro. A criança é devir, devir é experimentar a alteridade do ser Homem. Devir é sempre ação, nem começo, meio ou final da viagem – é um eterno processo de tornar-se, na ética de afirmações da vida (DELEUZE, 1997). Criançar é devir-criança, é estar na zona de vizinhança e indiscernibilidade. É ser em movimento. É ser vivendo. É ser Outrem. Outrem [que] surge neste caso como a expressão de um mundo possível. Outrem é um mundo possível, tal como existe num rosto que exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá realidade. [...] Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. (DELEUZE e GUATARRI, 1997, 29-30). No entanto, para tratar das questões que envolvem o criançar, para experimentar o devir-criança é necessário pensar pela e com a criança que habita seus plenos direitos. Tudo isto porque o devir-criança como aponta Leclercq (2002) é o que mobiliza o Outro da pedagogia “e com isto injeta vida no desejo de alteridade” (p.43). Daí perguntar: Como os educadores das infâncias vivem os processos de ser criança hoje? Quais os modos de ser sujeito que se produz com e para elas? Hoje muitas crianças como apontei neste texto, são fabricadas como sujeitos que escolhem, decidem, optam e de alguma maneira muito cedo precisam assumir os efeitos de suas decisões. Estas práticas de certa forma fabricam infâncias de um jeito. Infância daguerra, dasescolas, dasigrejas, daciberinfância ou até mesmo darua têm oportunidade de participar de suas decisões, como me referi no início deste texto. Contudo, atento para quais são as possibilidades de se constituírem no seu criançar? De algum modo, pensar sobre as infâncias e suas interações com o mundo de crianças ou adultos, nos impulsiona a refletir sobre a alteridade da infância e o quanto ela nos escapa. Pensar sobre estas infâncias nos instiga e incita a pensar e tratar da infância de um outro jeito. Olhá-la com os olhos de Alice, “[...] e ver que, tudo que se vive nela, vive-se com os olhos fechados e, basta abri-los para que a vida desponte à nossa frente” (DORNELLES, 2007). Fica o convite de se pensar de um outro jeito os modo de ser infantil hoje, pois continuo apostando em políticas do criançar que recriem a vida infantil. Convido-os a pensar no devir infantil como criançar, como possibilidade de viver o criançar, viver intensamente o processo de ser criança como uma prática de potencialização da Alegria da vida. Convido-os a ver a vida das crianças como a recriação de si. O criançar - o devir-criança como uma política de afirmação da vida. REFERÊNCIAS BHABA, Homi. Democracia des-realizada. In: Revista Sociedade e Saber. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, nº148, p. 67-80. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. COUTINHO, Karyne Dias. Lugares de criança: shopping centers e o disciplinamento dos corpos infantis. Porto Alegre: UFRGS. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação. Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002. COURTINE. Jean-Jaques. Os stakhnovistas do narcismo: body-building e puritanismo ostentatório na cultura Americana do corpo. In: SANT’ANNA, Denise. Políticas do Corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Nova Fronterira, 1992. DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro, Ed. 34, 1997. ______. 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