Boaventura de Sousa Santos
Visão, 19 Setembro 2014
O que está em jogo no Brasil
Escrevo esta crónica de Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso e
que é também a capital do que no Brasil se designa por agronegócio
(agricultura industrial de monocultura: soja, algodão, milho cana do
açúcar), a capital do consumo de agrotóxicos que envenenam a cadeia
alimentar e da violência contra líderes camponeses e indígenas que
defendem as suas terras da invasão e do desmatamento ilegais. Reúno-me
com líderes de movimentos sociais, um deles (indígena Xavante) chegado à
reunião clandestinamente por estar sob ameaça de morte. Deste lugar e
desta reunião torna-se particularmente claro o que está em jogo nas
próximas eleições no Brasil.
As classes populares – o vasto grupo social de pobres, excluídos e
discriminados que viu o seu nível de vida melhorado nos últimos doze anos
com as políticas de redistribuição social iniciadas pelo Presidente Lula e
continuadas pela Presidente Dilma – estão perplexas mas têm os pés bem
assentes no chão e não me parece que sejam facilmente iludidas. Sabem
que as forças conservadoras que se opõem à Presidente Dilma estão
apostadas em recuperar o poder político que perderam há doze anos.
Conscientes de que a época Lula transformou ideologicamente o país, não
o poderão fazer pelos meios e com os protagonistas habituais. Para pôr fim
a essa época é necessário recorrer a alguém que a evoque, Marina Silva, o
desvio contra-natura para chegar ao poder. A pouco e pouco as classes
1
populares vão conhecendo o programa de Marina Silva e identificando,
tanto o que nele é transparente, quanto o que nele é mistificatório. É
transparente o regresso ao neoliberalismo que permita os lucros
extraordinários decorrentes das grandes privatizações (da Petrobras ao présal) e da eliminação da regulação macroeconómica e social do Estado. Para
isso se propõe a total independência do Banco Central e a eliminação das
diplomacias paralelas (leia-se, total alinhamento com as políticas
neoliberais dos EUA e da EU). É mistificatório o recurso a conceitos como
o de “democracia de alta intensidade” e de “democratizar a democracia” –
conceitos muito identificados com o meu trabalho mas de que é feito um
uso totalmente oportunístico – como se fosse uma novidade política
quando, de facto, do que se trata é, no seu melhor, a continuação do que
tem vindo a ser feito em alguns estados de que é exemplo mais notável o do
Rio Grande do Sul.
Acresce a tudo isto que o que há de verdadeiramente novo na
candidatura de Marina Silva significa um retrocesso não só político como
civilizacional. Trata-se da certificação da maioridade política do
evangelismo conservador. O grupo parlamentar evangélico é já hoje
poderoso no Congresso e o seu poder está totalmente alinhado, não só com
o poder económico mais predador (a bancada ruralista), a que a teologia da
prosperidade confere desígnio divino, como com as ideologias mais
reacionárias do criacionismo e da homofobia. Marina, se eleita, levará tais
espantalhos ideológicos para o Palácio do Planalto para que de lá façam a
pregação do fim da política, da ilusão da diferença entre esquerda e direita,
da união entre ricos e pobres. Tirando o verniz religioso, trata-se do
regresso democrático à ideologia da ditadura, no ano em que o Brasil
celebra o mais longo e mais brilhante período de normalidade democrática
da sua história (1985-2015).
2
Em face disto, por que estão perplexas as classes populares? Porque
a Presidente Dilma nada faz ou diz para lhes mostrar que está menos refém
do agronegócio que Marina Silva. Nada faz ou diz para mostrar que é
urgente iniciar a transição para um modelo de desenvolvimento menos
centrado na exploração voraz dos recursos naturais que destrói o meio
ambiente, expulsa camponeses e indígenas das suas terras e assassina os
que lhe oferecem resistência. Bastaria um pequeno-grande gesto para que,
por exemplo, os povos indígenas e afrodescendentes se sentissem
protegidos pela sua Presidente: mandar publicar as portarias de
identificação, de declaração e de homologação de terras ancestrais,
portarias que estão prontas, livres de qualquer impedimento jurídico e
apenas engavetadas por decisão política.
O que as classes populares e os seus aliados parecem não saber é que
não basta querer que a Presidente Dilma ganhe as eleições. É necessário vir
para a rua lutar por isso. Ao contrário, os adversários dela sabem isso muito
bem.
3
Download

está em jogo no Brasil