UNIVERSIDADE DE CABO VERDE
INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO
Departamento de História e Filosofia
Dionísio Gomes Da Costa
Metafísica da Música na Filosofia de Arthur
Schopenhauer
Licenciatura em Filosofia
UNI-CV/ISE, Setembro de 2008
Dionísio Gomes Da Costa
Metafísica da Música na Filosofia de Arthur
Schopenhauer
Trabalho científico apresentado no ISE para obtenção do grau de Licenciado em
Ensino de Filosofia sob orientação do Mestre Rui Manuel Da Veiga Pereira
2
INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO
Departamento de História e Filosofia
Trabalho científico:
Metafísica da Música na Filosofia de Arthur Schopenhauer
Elaborado por:
Dionísio Gomes Da Costa
Orientado por:
Mestre Rui Manuel da Veiga Pereira
Aprovado pelos membros do Júri, homologado pelo conselho científico aos
___/___/___.
O Júri
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Praia, aos _____de__________________ de 2008.
3
Dedicatória
Dedico este trabalho à minha família, à minha namorada, ao meu orientador e a
todos os meus amigos por todo o apoio material e incentivo moral, sem os quais não
teria condições de prosseguir esta caminhada.
4
Agradecimentos:
O meu agradecimento destina-se:
A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a
realização deste trabalho, que hoje mais do que um projecto, tornou-se uma realidade;
- À minha família, por todo o apoio material e incentivo moral, sem os quais
não teria condições de prosseguir;
- A minha namorada e a todos os meus amigos, sobretudo, os mais próximos,
pelos favores prestados e todas as formas de ajuda, sinto-me também na obrigação de
reconhecer devedor de preciosos favores resultantes desses laços da pura amizade;
- A todos os professores que me ajudaram durante o curso, pois, a minha
dívida pessoal para com eles é enorme;
Ao meu orientador, Prof. Mestre Rui Manuel da Veiga Pereira, pela genial e
especial orientação. Foi sempre o primeiro, o mais atento e crítico leitor deste
trabalho, pelo que me sinto profundamente endividado, mas também totalmente
agradecido;
Mas, de qualquer modo, estou ciente que, as verdadeiras e calorosas
expressões aqui proferidas, ainda que plenamente verdadeiras e sentidas não
transmitem totalmente o meu profundo apreço e agradecimento.
Contudo, espero que, ao menos conservem o valor simbólico da sua
enunciação e da sua anunciação.
5
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 7
CAPÍTULO I. PARA UMA METAFÍSICA DO TRÁGICO. ......................................... 9
SCHOPENHAUER: CONTEXTO E VIVÊNCIA ........................................................... 9
§1. O MUNDO E A SUA ESTRUTURA ONTOLÓGICA (VONTADE) E
FENOMENAL (REPRESENTAÇÃO): ENTRE O SOFRIMENTO E A TRAGÉDIA. 11
O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO [Die Welt als Vorstellung] .......................... 14
O MUNDO COMO VONTADE [Die Welt als Wille] ................................................... 16
O SOFRIMENTO ....................................................................................................... 18
§2. O MUNDO COMO PROBLEMA ESTÉTICO: SCHOPENHAUER /
NIETZSCHE. ............................................................................................................. 25
CAPÍTULO II. A CAMINHO DA METAFÍSICA DA MÚSICA ................................. 28
§1. DA ESTÉTICA DO TRÁGICO À METAFÍSICA DA MÚSICA: MÚSICA E AS
OUTRAS ARTES – A ESTÉTICA DE SCHOPENHAUER. ................................... 28
METAFÍSICA DA MÚSICA ..................................................................................... 32
HIERARQUIA DAS ARTES..................................................................................... 38
§2. QUAL A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA FILOSOFIA DE
SCHOPENHAUER? .................................................................................................. 40
§3. A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA MÚSICA OU DA MÚSICA COMO
REVELAÇÃO DA VONTADE. ................................................................................ 43
§4. O PENSAMENTO DA MÚSICA OU FILOSOFIA DA MÚSICA: PITÁGORAS,
PLATÃO, WAGNER, NIETZSCHE, BEETHOVEN, GEORGE STEINER,
VLADIMIR JANKÉLÉVITCH, MICHEL SERRES. ............................................... 45
CAPÍTULO III. PARA UMA ONTO-EST-ÉTICA DA MÚSICA ............................... 53
§1. A EXPERIÊNCIA ONT-EST-ÉTICA DA MÚSICA. ......................................... 53
§2. ELEMENTOS PARA UMA “ONTO-EST-ÉTICA” DA MÚSICA. ................... 59
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 63
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 66
6
INTRODUÇÃO
A escolha do tema «A Metafísica da Música» foi preferida pela satisfação e pela
sua extraordinária relevância. Mais do que uma psicologia da música, estamos perante
uma metafísica da música.
A nossa intenção é, apresentar uma leitura própria do problema em análise,
mostrando como é que através da metafísica da música, Schopenhauer nos conduz para
o coração do problema do Ser, uma vez que a música exprime o poder da Vontade e
revela essa “vontade de viver”, que caracteriza as coisas mundanas cujo devir significa a
manifestação fenomenal do verdadeiro Ser: a Vontade (Wille). A música exprime o Ser
e o seu devir, exprime o devir do sublime que se afigura no belo. O poder da música é o
devir concreto do poder do Ser ou Vontade na e através da sinestesia.
Não sendo possível aqui apresentar uma análise profunda de todos os filósofos que
falaram da música, o presente trabalho irá incidir apenas sobre alguns filósofos da
música e, com maior relevância, sobre Arthur Schopenhauer.
Por isso, esperamos apresentar uma abordagem original e fidedigna. A sua
efectuação basear-se-á num método analítico, de modo que esperamos apresentar uma
abordagem sintética e expressiva, tomando como base o livro “O Mundo como Vontade
e Representação” de Arthur Schopenhauer.
Tendo em vista o objectivo básico deste trabalho, que está estruturado em três
capítulos e para que ele seja mais eficaz e eficiente, achamos por bem delinear um
conjunto de questões que irão nortear o desenvolvimento do mesmo. São elas:
- O Mundo: Sua estrutura Ontológica (Vontade) e Fenomenal (Representação);
- O Mundo como problema estético: Schopenhauer/ Nietzsche;
- O que é a Música para Schopenhauer?
- Qual a importância da Música na filosofia de Schopenhauer? Dimensão
ontológica da música;
- Música e outras artes;
- Qual o papel da música na tragedia grega? Nietzsche/Schopenhauer;
- O pensamento da música ou Filosofia da música: Platão, Pitágoras, Wagner,
Nietzsche, Beethoven, George Steiner, Vladimir Jankélévitch, Michel Serres.
- A experiência onto-est-ética na música.
7
- Elementos para uma onto-est-ética da música;
Estas e outras questões servirão de base para a efectivação deste ensaio de
investigação filosófica cuja questão se resume nesta interrogação fundamental: Em que
sentido a música exprime a
estrutura ontológica (Vontade) e Fenomenal
(Representação) do Mundo?
8
CAPÍTULO I. PARA UMA METAFÍSICA DO TRÁGICO.
SCHOPENHAUER: CONTEXTO E VIVÊNCIA
Poder-se-ia supor, que de entre todas as matérias, a filosofia estaria isenta dos
caprichos da moda, mas não é assim. Em filosofia, tal como noutras actividades
humanas, parece verificar-se em cada geração uma reacção aos valores da geração
precedente. Em resultado disso, escritos largamente estudados até então caem no
esquecimento, e novas figuras aparecem em primeiro plano. E, como consequência,
pode acontecer que em qualquer tempo e lugar dados, é em grande medida o mesmo
punhado de filósofo que se torna objecto de estudo, enquanto um certo número de
outros filósofos proeminentes é comparativamente negligenciado. Mas vem uma nova
geração e dá de novo valor a um ou dois desses Filósofos esquecidos, pelo que voltam a
então a estar em moda. E, assim indefinidamente.
Entre esses Filósofos a quem isso aconteceu visivelmente nos últimos duzentos anos
encontra-se Arthur Schopenhauer. Em vida – mais ou menos durante a primeira metade
do século XIX – foi, devido ao seu pessimismo, quase inteiramente negligenciado.
Depois, na segunda metade do século XIX, foi, em conjunto com Hegel, Schelling e
Ficthe a quem chamava “os três sofistas modernos”, um dos Filósofos mais famosos e
influentes. Mas logo, na primeira metade do século XX cai, de novo, num esquecimento
tão profundo, que nem mesmo os professores de filosofia se davam, por vezes, ao
trabalho de o ler. E, agora, no nosso tempo, volta a ser alvo de atenção – entre outras
razões, por ter contribuído para o surgimento do existencialismo na sobrevalorização do
“irracional” e por ter contribuído para a de alguns filósofos como Nietzsche e
Wittgenstein.
9
Arthur Schopenhauer nasceu em Danzig na Alemanha, hoje Gdansk, em 1788. Era
de uma família de ricos mercadores, recebeu uma educação que visava não uma vida
académica, mas o seu treino para o comércio internacional. Porém, a firma da família
não lhe interessa e insistiu em ir para universidade, aplicando meios próprios no
financiamento de toda uma vida de estudo independente e de escrita. A sua tese de
doutoramento, Sobre a Quádrupla Raiz do Principio Suficiente, tornou-se um clássico,
embora de importância menor. Ainda estava na casa dos vinte quando compôs a sua
obra-prima, O Mundo como Vontade e Representação (MCVR), que levou quatro anos a
elaborar e foi publicado em 1818, precisamente no ano em que fez 30 anos. Depois, até
a sua morte, em 1860, com 72 anos de idade, publicou muita coisa, que todavia se
destinava a ampliar, aperfeiçoar ou enriquecer o sistema filosófico construído quando
tinha vinte e tal anos, e depois nunca se afastou. Assim, produziu uma colecção de
ensaios chamada Parerga e Paralipomena e dois breves livros pungentes sobre ética
intitulados Os Dois Problemas Fundamentais Da Ética e A Liberdade Da Vontade.
Escreveu também um livrinho chamado Da Vontade Na Natureza, que tinha como
objectivo, mostrar que as suas ideias eram apoiadas pelas novas descobertas da ciência.
Mas, mais importante que tudo, em 1844 publicou uma edição revista d`O Mundo Como
Vontade e Representação com mais de duas vezes, que o tamanho do volume original.
Há vários aspectos notáveis em Schopenhauer, embora no seguimento directo de
Kant, a sua obra se encontre, sem dúvida, dentro da corrente principal da filosofia
ocidental. Era versado no hinduísmo e no budismo, sendo o único filósofo ocidental, de
primeiro plano, a estabelecer paralelos significativos entre o pensamento ocidental e o
oriental. De entre os filósofos ocidentais, admirava Platão, Kant, mas também Thomas
Hobbes, que segundo ele, foi o primeiro filósofo ocidental de importância a ser aberto e
explicitamente ateu. No esquema das coisas, Schopenhauer colocou as artes no plano
mais elevado e disse mais sobre elas que qualquer outro grande filósofo – sendo em
parte por esta razão, sem dúvida, que a influência que exerceu é, de longe, maior do que
aquela exercida por qualquer outro filósofo da época moderna iniciada com Descartes.
Também se pode dizer que se encontra entre os escritores supremos da prosa em língua
alemã. Muitas das suas frases constituem aforismos tão brilhantes, que foram retidas do
seu contexto e publicadas separadamente, em pequenos livros de epigramas.1
1
Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos, Tradução de Alexandra Tavares, Ed. Europa – América,
Lisboa, 1998.
10
§1. O MUNDO E A SUA ESTRUTURA ONTOLÓGICA
(VONTADE) E FENOMENAL (REPRESENTAÇÃO): ENTRE O
SOFRIMENTO E A TRAGÉDIA.
Schopenhauer pretendia compreender o mundo em que se encontrava, o mundo em
que vivia e do qual tentou elaborar uma interpretação coerente e unificada da
experiência humana. Pretendia adquirir o domínio conceptual do mundo dos
fenómenos, isto é, da pluralidade dos fenómenos. Para o fazer, pensava ser necessário
identificar a realidade subjacente (Vontade)2 do mundo que seria a expressão fenomenal
dessa realidade primeira. Se perguntasse porque pensava ele que havia uma realidade
subjacente a identificar, suponhamos poder dizer, que uma das principais razões foi ter
partido das premissas de Immanuel Kant: a distinção entre fenómeno e númeno. Com
efeito, pensava que a maneira como vemos o mundo é uma perspectiva humana, que a
mente humana está programada para ver o mundo de determinadas maneiras. Por
exemplo, só podemos fazer a experiência dos objectos enquanto situados no espaço e no
tempo, sujeitos a relações espacio-temporais e como exemplificadores da relação de
causalidade. Mas obviamente, não decorre daí que, por as coisas nos surgirem de
determinada maneira, elas sejam assim em si próprias, independentemente do modo
como aparecem.
O conceito de fenómeno (Phänomen), de algo tal como aparece a um sujeito
humano, exige como conceito correlativo a ideia da coisa em si, a coisa como existe em
si própria, independentemente da maneira como ela nos aparece. Todavia, embora Kant
se recusasse, decididamente, a abandonar esta ideia da ciosa em si, afirmou
repetidamente que não podia saber algo de positivo sobre a sua natureza. Na perspectiva
de Kant (KrV), o conhecimento teórico do ser humano está confinado ao mundo
fenoménico. Quanto a Schopenhauer, visava identificar a coisa em si, tanto quanto fosse
possível faze-lo. Essa é uma ideia muito importante que vale a pena determo-nos nela,
sobretudo porque as pessoas que a desconheciam terão dificuldade em entende-la.
2
Quando escrevemos «Vontade», referimo-nos à estrutura metafísica do mundo e quando escrevemos
«vontade», referimo-nos ao desejo humano.
11
Kant havia argumentado que a experiência só pode chegar até nós por intermédio
das nossas faculdades, do nosso aparelho sensorial e mental. Assim, aquilo de que
podemos a experiência depende não apenas do que existe «lá fora» para experimentar
mas, também, da natureza das nossas faculdades, daquilo com que elas podem lidar e do
que fazem àquilo com que lidam. Isto significa que as formas concretas que a
experiência assume dependem do sujeito. Nisto está a grandeza da “revolução
coperniciana”.
Daí, Kant passou ao argumento de que podemos conceber a realidade total como
sendo constituída por dois mundos. Há o mundo da nossa experiência, que é como é
porque nós somos como somos, e não podemos conceber doutra maneira. A este ele
chama de mundo dos fenómenos ou fenoménicos. Depois, há o mundo das coisas como
elas são efectivamente em si próprias, independentemente de nós e das formas da nossa
experiência. A este mundo chama ele de mundo dos «noumenos», significando a
palavra «noumeno» «a coisa tal como é em si». Segundo Kant, deste último reino não
podemos dada a natureza das coisas, adquirir concepção directa. O nosso mundo – o
mundo empírico, o mundo da vida quotidiana e do senso comum, o mundo que interessa
a ciência - é o primeiro, o mundo dos fenómenos. É importante compreender que para
Filósofos como Kant e Schopenhauer, o mundo empírico e o mundo dos fenómenos são
a mesma coisa, no sentido em que não há, aqui, um dualismo cosmológico como em
Platão. Para estes filósofos, as formas desse mundo são dependentes do sujeito.
Ora, Schopenhauer retomou toda esta análise de Kant, dando voltas à cabeça a
procura de qual poderia ser a conexão entre o mundo tal como ela é em si e o mundo tal
como aparece. Aceitou a afirmação de Kant de que o primeiro nunca pode ser
directamente conhecido, mas pôs-se a pensar se uma análise aprofundada do segundo
nos não forneceria indicações importantes acerca do que ele deve ser – deve porque, no
fim de contas, o segundo é em certo sentido uma manifestação do primeiro. Assim,
desta maneira indirecta, procurava chegar à natureza da realidade subjacente: O Mundo
é representação fenomenal da vontade, a sua manifestação concreta e originária.
É importante recordar que para Schopenhauer só pode haver uma realidade
subjacente. Kant considerava uma questão do senso comum, pensamos nós, que existe a
mesa tal como nos aparece, então deve existir a mesa tal como é em si; e se existe uma
cadeira tal como aparece, então existe uma cadeira tal como é em si – que há uma
quantidade de coisa em si. Mas, como é evidente, se pensarmos em relação espaciais e
temporais, e na relação causal, então não há um meio para distinguir uma coisa da outra.
12
Portanto, se a realidade subjacente transcende o tempo e o espaço e a causalidade, e é
perfeitamente distinta do mundo dos fenómenos, então só pode haver uma. A
pluralidade ou a multiplicidade pertencem ao mundo dos fenómenos. Todavia, seria um
erro supor que Schopenhauer concebeu a realidade subjacente como a causa externa do
mundo, uma causa que se situasse para além do mundo espacio-temporal e o
transcendesse.
Para Schopenhauer, tal como para Kant, a categoria da causalidade aplica-se apenas
ao mundo empírico, dos fenómenos. A realidade subjacente (Vontade) é «a coisa em si
ou em si das coisas»3, o “númeno” kantiano seria, para Schopenhauer, o interior do
mundo (do mundo tal como aparece), quer dizer, seria de facto, aquilo que aparece, mas
aquilo que aparece é, se assim podemos dizer, a realidade interna do mundo, não algo
que transcende completamente o mundo.
Ao contrário de Kant que diz, que só podemos conhecer o mundo fenoménico e que
o númeno está para além da nossa capacidade, Schopenhauer vem dizer que podemos
conhecer o númeno que ele identifica com a Vontade que é a coisa em si: «a coisa em si
é unicamente a Vontade. Ela não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto
genere»4. Segundo ele, é ao reflectir sobre todos estes factos que, ultrapassando o
fenómeno, nós chegamos à coisa em si.
De entre as muitas definições que possamos dar da Vontade, podemos dar esta: «A
vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do
conjunto. É ela que se manifesta na força natural cega. Ela encontra-se na conduta
racional do homem».5
A Vontade é a coisa em si kantiana, ou seja, “A coisa em si (...) que como tal, nunca
é um objecto, - visto que todo o objecto já não é mais do que o seu fenómeno e não ela
mesma, tem necessidade, para ser pensada objectivamente de pedir emprestado um
nome e uma noção a qualquer coisa de objectivamente dada, por consequência a um
dos seus fenómenos; mas este para prover a inteligência, deve ser mais perfeito de
todos, isto é, o mais evidente, o mais desenvolvido e além disso directamente iluminado
pelo conhecimento. Ora, é nesta condições que se encontra a vontade humana”.6
3
SCHOPENHAUER, A, Die Welt als Wille und Vorstellung (1818). O Mundo como Vontade e
Representação, Trad. de M. F. Sá Nogueira, Rés, Porto, p. 146.
4
Ibidem, Op. cit., p. 146.
5
Idem.
6
Ibidem, Op. cit., p. 146.
13
Podemos, ainda, identificar a vontade com a força: «a palavra vontade designa
aquilo que nos deve descobrir, como uma palavra mágica, a essência de toda as coisas
na natureza».7 Numa posição de corroboração, Schopenhauer diz: «considero toda a
força da natureza como vontade»8.
O conceito de Vontade é único. Entre todos os conceitos possíveis, encontramos um
que não tem a sua origem no fenómeno, numa simples representação intuitiva, mas vem
do próprio fundo, da consciência imediata do indivíduo, na qual ele reconhece ele
mesmo na sua essência. O que conhece e o conhecido coincide. Tanto o indivíduo como
o mundo são representações fenomenais da Vontade que é a essência em si dos
fenómenos. Mas o que é afinal a representação?
O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO [Die Welt als Vorstellung]
Schopenhauer começa a sua obra, afirmando categoricamente aquilo que para ele
era uma evidência: “O mundo é a minha representação”.9 A representação implica dois
aspectos importantes: o sujeito da representação, que é o que tudo conhece e não é
conhecido por ninguém; e o objecto da representação que é condicionado pelo tempo,
pelo espaço e pela causalidade. O sujeito, para ele, estaria fora do tempo, sendo uno,
indiviso, em todos os seres humanos capazes de representação. Caso o sujeito deixe de
existir, deixa de existir com ele o mundo representado. O homem, como representação é
um fenómeno, assim como o mundo. Ambos são expressões concretas da Vontade. O
corpo do homem, para este autor, é a objectivação da vontade, ou seja, do em-si do
homem. A realidade interna do homem, representada pelo fenómeno, é sua aparência.
Vontade e corpo são inseparáveis, compondo um todo. A Vontade, por sua vez,
representa o querer viver, é o querer realizar-se. A Vontade é a coisa em-si mesma,
irredutível a qualquer outra coisa, sem causa, independente do tempo e do espaço, e das
categorias. A vontade seria então, o fundamento [Grund] do mundo.
7
Ibidem, Op. Cit., p. 148.
Ibidem, Op. Cit., p. 148.
9
Ibidem, Op. Cit., p. 7.
8
14
A Vontade não se desloca e se extingue passando da coisa desejada para a coisa
conquistada. A vontade quer sempre afirmar-se; é avassaladora e sem sentido
(irracional). Toda a vida é sofrimento porque é um constante querer eternamente
insatisfeito, que leva ao amor, ao ódio, ao desejo ou à rejeição. Para Schopenhauer, a
Vontade estava presente no mundo como se fosse a própria alma do universo, e era a
força total pela qual o mundo existia e se movia. Ele fez da Vontade um ser à parte, que
se manifestava em toda a natureza como o substrato de todas as coisas. A vida é a
manifestação da vontade. Schopenhauer considera como materialização, realização em
força ou materialização da Vontade, todas as forças e objectos da natureza como a
gravidade, o magnetismo, os instintos animais, as forças de reacção química, etc.
Schopenhauer elimina Deus como explicação causal do mundo e, no seu lugar
coloca uma "Vontade universal" que é a força voraz e indomável da própria natureza. A
Vontade nada tem a ver com a decisão racional por uma opção de agir (vontade
humana), mas trata-se de um ser absoluto, essência primeira, a coisa em si, o númeno ou
estrutura ontológica do mundo, que é irredutível e gera todas as coisas deste mundo,
Essa fome insaciável da Vontade faz do mundo uma realidade anárquica e cruel. Essa
Vontade, que é também um substrato, a coisa em si, no homem, é responsável pelos
seus apetites incontroláveis. A filosofia de Schopenhauer é tida como pessimista10, pois
o homem está enquanto finito, na condição de mortal; a vontade, muitas vezes, não
possui nem meta nem finalidade, sendo insaciável. Isto tudo gera dor ao homem, o que
leva o autor a pressupor que "Viver é sofrer". A vontade pode ser temporariamente
saciada, causando tédio ao homem, e logo em seguida, passa novamente à sua condição
de falta. A vida do homem, que é movida pelo desejo, oscila então entre a dor e o tédio.
10
Para aqueles que vêem o pessimismo na sua filosofia, Schopenhauer afirma: “As almas nobres,
sentimentais, eternamente apaixonadas, podem protestar contra o áspero realismo da minha teoria”. Cf.
Arthur Schopenhauer, Metafísica do Amor, trad. de Delfim de Brito, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p.
17.
15
O MUNDO COMO VONTADE [Die Welt als Wille]
Segundo Schopenhauer, temos que abandonar a ideia de que o homem é um “animal
racional” e considerar esta ideia como o “proton pseudo” isto é, como a primeira
mentira ou erro inicial.
Ele diz, que podemos comparar a nossa mente com a terra, uma vez que não
sabemos o que está no seu interior, mas que conhecemos a sua crosta.
Ele identifica a Vontade [Wille] com algo que está sob o intelecto consciente. A
vontade é, de forma consciente ou inconsciente, uma força vital esforçada, persistente,
uma actividade espontânea e uma vontade de desejo imperioso.
Por isso, pensamos que o intelecto conduz a Vontade, isto é, que a vontade está ao
serviço do intelecto, mas não é verdade, pois é o intelecto que dirige a vontade, mas só
como um guia conduz o seu mestre “a vontade”. A Vontade transcende a própria razão.
Schopenhauer identifica o intelecto com o forte homem cego que carrega nos
ombros o homem que coxeia e que enxerga. Para clarificar esta ideia diz, que nós não
queremos uma coisa porque encontramos motivos para ela, mas que encontramos
motivos para ela porque a queremos. Chegamos até a elaborar filosofias e teologias para
disfarçar os nossos desejos. Por isso, Schopenhauer chama o homem de «animal
metafísico». Segundo ele, nada é mais provocante, quando estamos discutindo com um
homem usando razões e explicações e fazendo todos os esforço para o convencê-lo
descobrir, no final de contas que ele não quer compreender, que temos que nos entender
com a vontade dele.
Consequentemente, diz que «estudar a lógica tendo em vista as suas vantagens
práticas, seria querer ensinar ao castor a construir a sua cabana. Mas, embora uma tal
ciência seja inútil, ela não deve deixar de ser mantida pelo interesse filosófico que
apresenta, a título de conhecimento especial da essência e da marcha da razão»11.
Daí, o seu ponto de vista sobre a inutilidade prática da lógica. Segundo ele,
ninguém convenceu alguém utilizando a lógica, nem os lógicos conseguiram, até hoje,
usar os seus argumentos como fonte de renda. Para convencer um homem, é preciso
11
SCHOPENHAUER, O Mundo Como Vontade e Representação, Op. cit., p.65.
16
apelar para o seu interesse pessoal, seus desejos e sua vontade. Por conseguinte, a
memória é, entendida por Schopenhauer, como uma criada (serva) da vontade, uma vez
que costumamos gastar mais tempo a lembrar de nossas vitórias e menos tempo com as
nossas derrotas. Também diz, que os mais estúpidos tornam menos estúpidos e
compreendem algo que lhes interessam de perto os seus desejos. Para ele, o intelecto é
desenvolvido pelo perigo, mas está sempre subordinado ao desejo e quando ele tenta
tirar o lugar da vontade, dá por si numa tremenda uma confusão. Ninguém está mais
sujeito a erros do que aquele que só age por reflexo! Na luta por alimentos,
companheiras ou filhos, o homem não é obra da reflexão, mas sim, do semiconsciente, i.
é, da vontade de viver e de viver plenamente.
Segundo Schopenhauer, só aparentemente é que os homens são puxados para frente
porque na realidade são empurrados para trás. Eles pensam que são conduzidos pelo que
vêem, quando na verdade, são levados adiante por aquilo que sentem. O intelecto é
meramente um “ministro das relações exteriores”.
A natureza criou o intelecto para servir à vontade individual. Portanto, o intelecto
está projectado para saber e apreender as coisas apenas, na medida em que elas
ofereçam motivos à Vontade, mas não para sondá-las ou para compreender a sua
verdadeira essência. É neste sentido, que ele diz: “O conhecimento que tenho da minha
vontade, embora imediato é inseparável do conhecimento que tenho do meu corpo. Não
conheço a minha vontade na sua totalidade. Não a conheço na sua unidade mais do que
a conheço perfeitamente na sua essência. Ela somente me aparece nos seus actos
isolados, por consequência no tempo, que é a forma fenomenal do meu corpo como de
todo o objecto. Alem disso, o meu corpo é a condição do conhecimento da minha
vontade”.12
A Vontade é o único elemento permanente e imutável da mente. Para fundamentar
esta afirmação, Schopenhauer diz que «fora da vontade e da representação nós não
podemos pensar nada».13 É a Vontade que dá unidade à consciência e mantém em
conexão todas as ideias e todos os pensamentos, acompanhando-os como uma harmonia
contínua. É, nestes termos, o pedal de tónica do pensamento.
Segundo Schopenhauer, o carácter está na vontade e não no intelecto. A linguagem
popular está certa quando prefere o «coração» à «cabeça». Ela sabe (porque não
raciocinou sobre o assunto) que uma boa vontade é mais profunda e mais confiavel do
12
13
Ibidem, Op. cit., p.135.
Ibidem, Op. cit., p.140.
17
que uma mente lúcida. Sendo assim, Blaisse Pascal tinha razão quando afirmara nos
seus Pensamentos, que “o coração possui razões que a razão desconhece”!
Existem vários argumentos de que a vontade é aquilo que reina. Até o corpo é o
produto da Vontade, pois o sangue é empurrado por aquela Vontade que chamamos de
vida. A vontade de saber constrói o cérebro, assim como a vontade de agarrar constrói a
mão ou como a vontade de comer desenvolve o aparelho digestivo. O intelecto cansa-se,
mas a vontade nunca. O intelecto precisa de sono, mas a vontade trabalha até mesmo
durante o sono.
Depois de tudo que dissemos e apresentamos, podemos então afirmar que a Vontade
é a essência do mundo, que é como a realidade transfenomenal, a coisa em si mesma, a
realidade última, a essência última de todas as coisas. A Vontade [Wille] é a essência do
mundo [Welt], a verdadeira natureza (ú) como diziam os Pré-Socráticos.
O SOFRIMENTO
A Vontade é um querer incessante, e todo o querer procede de uma necessidade, isto
é, de uma privação e de um sofrimento. Por isso, o sentido imediato do mundo é o do
sofrimento. Schopenhauer afirma que “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida
é o sofrimento e se não fosse assim, a nossa existência seria o maior dos contra-sensos
pois é absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida,
da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido”.14
Quanto à vontade ou desejo humano, a satisfação põe-lhe um fim, mas por um
desejo satisfeito, dez pelo menos são contrariados. Além disso, o desejo é demorado e
as suas exigências tendem para o infinito. A satisfação é curta e é, parcimoniosamente,
medida. Mas este contentamento supremo é apenas aparente, porque o desejo satisfeito
dá lugar em breve a um novo desejo. O primeiro é uma decepção reconhecida enquanto
que o segundo é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo
pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um
mendigo: ela salva-lhe a vida para prolongar a sua miséria até amanhã!
14
SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte, Metafísica, Do Amor, Do Sofrimento Do Mundo, tradução de
Pietro Nassetti, Editora Martin Claret, S. Paulo – SP, 2002, p.113.
18
Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos
subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele
faz nascer, enquanto somos súbditos do querer, não existe para nós nem felicidade
duradoura, nem repouso.
Segundo Schopenhauer, continuar ou fugir, temer a infelicidade ou procurar o gozo
é, na realidade, tudo o mesmo. A inquietude duma vontade sempre exigente, que sob
qualquer forma se manifesta, enche e perturba sem cessar a consciência. Ora, sem o
repouso, a verdadeira felicidade é impossível.
O desejo é sofrimento, uma vez que todo o desejo nasce de uma falta, de um estado
que não nos satisfaz. Portanto, é sofrimento enquanto não é satisfeito. Ora, nenhuma
satisfação dura. Ela é apenas o ponto de partida de um novo desejo. Vemos o desejo em
toda a parte travando, em toda a parte em luta, portanto sempre no estado de sofrimento.
Não existe fim último para o esforço. Portanto, não existe medida e termo para o
sofrimento. Segundo Schopenhauer, «Qui auget scientiam, auget et dolorem»15, isto é, à
medida que a vontade reveste uma forma fenomenal mais conseguida, também o
sofrimento se torna mais evidente. O sofrimento é o fundo de toda a vida. A sua
existência é uma queda perpétua na morte. É neste sentido que Martin Heidegger viria a
pensar o Dasein (Ser e Tempo, 1927) como um “ser-para-a-morte” [Sein-in-der-Töt],
uma vez que a morte se lhe apresenta como a sua possibilidade mais própria que se pode
efectivar a qualquer instante e sob todas as formas possíveis, sendo a consciência dessa
eventualidade, o fundamento da angústia que se apresenta como o verdadeiro caminho
para o nada.16
O desejo é um querer inextinguível, uma vez que todo o querer tem um princípio
uma necessidade, uma falta, portanto, uma dor. É por natureza, necessariamente, que
eles devem tornar-se a presa da dor. Por conseguinte, a vida oscila como um pêndulo, de
direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento. Segundo ele, fugir do
sofrimento é fugir do inevitável, porque segundo ele, tendo o homem colocado todas as
dores e todos os sofrimentos no inferno para encheram o céu, não encontraram mais do
que o aborrecimento. É por isso, segundo ele, o inferno de Dante é este próprio mundo.
A vida é, como já, frisamos, essencialmente, um sofrimento constante, uma vez que
entre os desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo é pela sua
15
“Quem aumenta a sua ciência, aumenta também a sua dor”. Cf. Schopenhauer, MCVR, p. 409.
Cf. HEIDEGGER, Sein und Zeit (1297). Ser e Tempo, Parte II, trad. de Mª de Sá Cavalcante, 4ª
Edição, Vozes, Petropólis, 1996, §§ 46-62, sobretudo §§ 46-53.
16
19
natureza um sofrimento. O desejo renasce sob uma forma nova e com ele a necessidade.
Não é senão é tédio, vazio, aborrecimento e um inimigo ainda mais violento do que a
necessidade.
Sobre o sentido do mundo como sofrimento, Schopenhauer pensava que o
sofrimento é universal e, como tal, a essência da vida da qual ninguém escapa. Nem os
homens nem os semideuses lhe escapam: «Nessa altura o filho de Peleus gemia, os
olhos levantados para o céu imenso» «Eu era filho de Júpiter, o filho de Kronos, e
contudo, a dor que sentia era insuportável».17
Segundo Schopenhauer, o esforço incessante dos homens para banir a dor, apenas
conseguem fazê-la mudar de face, porque ela volta na figura da insatisfação do desejo.
Na sua origem, a dor é privação, necessidade, preocupação com a conservação da vida.
Se conseguirem (difícil tarefa) evitar a dor sob esta forma, ela regressa sob outra forma
sob mil outras aspectos, mudando com a idade e as circunstâncias. Ela faz-se de desejo
carnal, amor apaixonado, ciúme, inveja, ódio, ambição, doença, entre outros males. Na
rota do desejo estão a dor e o sofrimento, pois o sofrimento é essência da vida, visto que
o grau que ele deve alcançar está fixado pela natureza do sujeito: Por isso, «é ilusão
pensarmos que resolvermos os nossos problemas do desejo».18
A dor é, portanto, inevitável e os sofrimentos banam-se uns aos outros. Este apenas
vem para tomar o lugar do precedente. Daí resulta uma hipótese paradoxal, não absurda
contudo. Por essência, cada indivíduo teria uma parte determinada de sofrimento. É a
sua natureza que, de uma vez por todas, fixar-lhe-ia a sua medida. Esta medida não
poderia nem ficar vazia, nem transbordar qualquer que fosse aliás a forma que a dor
pudesse tomar. O que determina a quantidade de males e de bens que lhe estavam
reservados não seria, portanto, um poder exterior, mas essa mesma medida, essa
disposição inata. Sofrer é a própria essência da vida, que por consequência do
sofrimento não se infiltra em nós vindo de fora. É que nós trazemos connosco a
inesgotável fonte de que ele sai. Para esta dor, da qual nossos inseparáveis estamos
sempre a procurar-lhe uma causa estranha, como um pretexto, semelhantes a um homem
livre que constrói para si um ídolo, para não ficar sem sonhar. Sem cansarmos,
corremos de desejo em desejo - vida é corrida interminável que tenta encher o sem
17
Ibidem, Op. cit. p. 415. Isto para mostrar que todos estão sujeitos ao sofrimento, até os filhos dos
deuses.
18
Ibidem, Op. cit.,p. 419.
20
fundo. É este o saber do homem enquanto ser racional! A felicidade que ele procura
encontrar não é mais produtiva do que tentar encher a peneira com água.
A vontade de viver em todo o seu furor, sentimentos sem número, sem medida,
depois no fim do desenlace durante muito tempo receado, finalmente inevitável, essa
coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. A vida humana é composto por:
necessidade miséria, lamentos, dor, morte. Globalmente é uma tragédia e
individualmente, uma comédia! Por isso, é como problema estético que se deve pensar o
mundo. Mas antes de pensarmos o mundo como problema estético, ouçamos as
considerações do próprio Schopenhauer sobre a ideia do mundo como tragédia.
Afirmava ele que “A vida de cada um de nós se a abarcamos no seu conjunto com um
só olhar, se apenas considerarmos os traços marcantes, é uma verdadeira tragédia.
Mas quando é preciso, passo a passo esgota-la em pormenor, ela toma aparência duma
comédia. Mas os desejos nunca atendidos, a dor sempre gasta em vão, as esperanças
quebradas por um destino impiedoso, os desenganos cruéis que compõem a vida
inteira, o sofrimento que vai aumentando, e na extremidade de tudo, a morte, eis o
bastante para fazer uma tragédia. Dir-se-á que a fatalidade quer na nossa existência,
completar a tortura com o escárnio. Ela coloca-lhe todas as dores da tragédia, mas
para não deixar ao menos a dignidade da personagem trágica, reduz-nos nos
pormenores da vida, ao papel do bobo”.19
De acordo com esta passagem, e sem rodeios, podemos dizer que a vida é uma
verdadeira tragédia.
A tragédia mostra-nos isso, descrevendo os sofrimentos humanos quer eles
provenham do acaso ou do erro, que governam o mundo sob a forma duma necessidade
inevitável e com uma perfídia que quase podia ser tomada por perseguição voluntária.
De acordo com Nietzsche “a tragédia nasceu do génio da música”.20 Pode-se
questionar como os gregos sendo, perfeitos, belos, invejados e sedutores, teriam
necessidade da tragédia. Bem, o próprio Nietzsche irá responder essa sua preocupação
quando escreve: “Donde viria então a tendência contrária e cronologicamente anterior,
o desejo do horrível, a sincera e acre inclinação dos primeiros Helenos para o
pessimismo, o mito trágico, a representação de tudo quanto há de terrível, de cruento,
19
SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., p. 426.
A música foi muito avaliada pelos grandes alemães de altura, cada um a seu modo, mas em todos esses
modos, viu-se a admiração concedida. Além de Nietzsche, temos Wagner, (também ele influenciado por
Schopenhauer) para quem a música é a arte suprema e companheira de todas as horas. Para
Schopenhauer, a música liberta-nos do mundo material e abre-nos um novo horizonte. Temos ainda
Hegel, para quem a musica é entendida como expressão do espírito.
20
21
de misterioso, de aniquilante, de fatal no fundo de tudo quanto é vivo – donde viria
então a tragédia? Talvez mesmo da alegria, da força, da saúde exuberante, do excesso
de vitalidade!”21
A tragédia pode assumir um valor estético ao nos livrar da luta da vontade
individual e habilita-nos a ver o nosso sofrimento com uma visão mais ampla.
Nietzsche apresenta-nos os dois deuses contemplados na arte grega: Dionísio e
Apolo.
Dionísio é deus do vinho, da folia, da vida superior, do prazer na acção, da
emoção arrebatada, e da inspiração, do instinto, da aventura e do sofrimento destemido,
o deus da canção, da música, da dança e do drama, enquanto que Apolo é deus da paz,
do lazer e do repouso, da emoção estética e da contemplação intelectual, da ordem
lógica e da calma filosófica, o deus da pintura, escultura e da poesia épica.22
Notemos, que Dionísio e Apolo correspondem à Vontade e à Representação,
respectivamente. Esta é maior dívida do jovem Nietzsche para com o seu mestre de
então, Arthur Schopenhauer.
Segundo Nietzsche, a mais perfeita arte, é a união dos dois, e inquieta força
masculina de Dionísio e a tranquila beleza feminina de Apolo. No drama cada um
inspira uma coisa. Dionísio inspira o coro que desenvolveu na procissão dos seus
devotos fantasiados de sátiros e Apolo inspirou o diálogo que foi uma reflexão
posterior, um apêndice reflexivo a uma experiência emocional. Em relação ao drama
grego, o aspecto mais profundo é a conquista feita por Dionísio que não é mais do que a
conquista do pessimismo na arte. A apresentação dos gregos não é tão transparente
como poderemos supor. Diferentes do que somos, muitas vezes, informados, não são
tão alegres e optimistas. Tinham noção da brevidade da vida, e de seus consequentes
desencantos. Esta leitura é apresentada numa resposta de Sileno a um questionamento
de Midas. Para responder a pergunta de Midas sobre o qual seria o destino principal do
homem, Sileno convictamente respondeu: “Raça efémera, e miserável, filha do acaso e
da dor! E tu, porque me obrigas a revelar-te o que mais te valeria ignorar? O que tu
deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres, seres nada. Já
21
NIETZSCHE, W. F. A Origem da Tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães
Editores, Lisboa, 1999, p.24.
22
Apolo representa uma conciliação de vários credenciais. São vários atributos que dá impressão que é
um conjunto de divindades, sintetizando num único deus, um complexo de opostos.
Dionísio é também composto por vários atributos. Mas importante para a nossa análise é que Apolo é
deus das artes plásticas e Dionísio é o deus da música.
22
que isso te é impossível conseguir, o melhor que podes desejar é morrer, morrer
depressa”.23
Esta expressão diz tudo. O conhecimento da vida como um castigo, uma desgraça.
Estes homens, provavelmente nada ou pouco tinham para aprender com Schopenhauer.
Só que os gregos eram geniais, não se estagnaram perante o excesso da vitalidade. Não
ficaram impávidos face à ruína. Venceram a sombra de sua desilusão, com o
brilhantismo de sua arte, partindo do seu real sofrimento, promoveram a dramaturgia e
explicaram o mundo através da arte. A existência e o mundo são assim justificados,
como fenómenos estéticos, como objecto de contemplação ou reconstrução artística. O
sublime é a sujeição artística do horrível, a transfiguração que a arte concede ao trágico,
pois só ela tem o poder de fazer com que o trágico (o mundo) apareça como Belo. Eis
porque Nietzsche pressupusera em A Origem na Tragédia que o mundo só pode ser
questionado como problema estético.24
Se o pessimismo é amostra de decadência, o cepticismo de superficialidade, o
optimismo trágico não é mais do que um estado do espírito do homem forte que procura
de modo intenso, na sua realidade, a extensão da experiência, mesmo à custa da
desgraça, e fica feliz mesmo sabendo que, a luta é a lei da vida. A tragédia, ela própria,
mostra que os gregos não eram pessimistas, mas ásperos realistas que souberam
transfigurar o trágico em belo.
Na sua própria e íntima vivência, a tragédia descobrira, o inevitável e admirável
fenómeno dionisíaco, segundo o qual a vida deve ser aceite por tudo que ela é e tem.
Quem assim não crê e aceita é porque é um fraco. Nietzsche advoga o direito de se
considerar o primeiro filósofo trágico, que é o extremo contraste e antípoda de um
filósofo pessimista. Nos gregos encontrou, o protótipo da verdadeira arte. A evolução
artística progressiva tem como pano de fundo o duplo carácter: Apolíneo e Dionisíaco.
Eles tornaram inteligível as mais profundas e ocultas verdades existente na arte.
Opõem-se, mutuamente, numa luta infernal.
Sendo Apolo, o representante da arte plástica e Dionísio, o da arte musical, após
uma guerra aberta, por fim se abraçam e dão vida à tragédia ática. Uma melhor
compreensão desta abordagem implica compreender, estes diferentes instintos, o do
sonho e o da embriaguez, como mundos diferentes. Quando o homem toma o sonho
23
NIETZSCHE. A Origem da tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães Editores,
Lisboa, 1999, p.51.
24
NIETZSCHE. A Origem da Tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães Editores,
Lisboa, 1999, p. 65.
23
como realidade, temos assim a sensibilidade transfigurado na aparência.25 A embriaguez
revela melhor a verdadeira natureza da arte. O embriagado não tem medo de procurar e
afirmar tudo que lhe vai na alma. Bem entendidas as coisas, o sonho (a representação ou
véu de maia em Schopenhauer) é marco próprio do apolíneo, e embriaguez (a
irracionalidade da Vontade em Schopenhauer) do dionisíaco. Com a união de ambos a
arte assegura seu elevado poder de expressão. É por isso, que tanto Schopenhauer como
Nietzsche anda em voltas com a música cujo alcance é, para eles, ontológico.
Nós sonhamos e sabemos que nos sonhos, nestas fantasias, nestas pinturas,
interpretamos a vida, e entrámos em contacto com ela. E, dela percebemos não somente
a imagem agradável e deliciosa mas também o severo, o sombrio o triste, o sinistro,
numa palavra, a divina comédia com todo o seu inferno. Os homens insistem em voltar
os olhos ao irreal, mas de modo algum, Nietzsche deixa de acreditar no princípio da
individuação.26 A vida esta inexoravelmente votada ao sofrimento. “O espírito
dionisíaco arranca o homem da sua individualidade…com espírito dionisíaco
desaparece a individuação, o homem sente-se idêntico a tudo o que vive sofre”.27 Arte
dionisíaca é essencialmente a música, mas esta viria superar os limites da individuação,
assegurando a unidade total de todo o existente. A música tem um grande poder:
“porém, a música atribui o mito uma dimensão metafísica, manifestando a voz mais
secreta das coisas que irrompem do fundo do abismo, e é, por isso, que o espectador se
sente invadido por um sentimento de alegria e liberdade”.28
Relativamente ao futuro da música, deixemos Nietzsche expressar mais uma vez,
as suas ideias: “Ao fim e ao resto, não tenho qualquer fundamento para não retomar a
esperança num futuro dionisíaco da música (…). Prometo uma idade trágica: a arte
mais elevada no dizer sim a vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade tiver por
detrás de si, sem sofrer, a consciência das mais duras, porém, mais necessárias
guerras”.29
Bem, agora que Nietzsche se foi, podemos reavaliar, se de facto, isto ocorreu, ou
pelo menos se desenvolveram condições que permitam seu reinício. Claro que não
25
O sonho não nos oferece mais do que aparência. Só que há que saber que em Nietzsche, a verdade
existe por detrás da própria aparência, ainda que ele questiona a lógica dos “outros mundos”.
26
- A individuação é um princípio enganador, toma aparência por realidade, e divide tanto o homem
como o mundo.
27
O espírito trágico implica aceitação total da vida. É fidelidade, a terra, a vida e a força. “Daí a sua
afirmação”.
28
Ibidem, p. 66.
29
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, testos filosóficos, Edições 70, Tradução de Artur Morão, Lisboa,
s/d p. 67.
24
somos experts, e que nossas afirmações não passam de ilações subjectivas, que podem
perfeitamente chocar com outras convicções, mas nisto encontramos a beleza artística
da diversidade, as diferentes maneiras de olhar e de compreender este mundo
maravilhoso que se aparenta aos nossos olhos, do qual temos que apresentar nossa
leitura, que pode não ser a única, nem a melhor. Contudo, não deixa de ser nossa. Se
tivermos a oportunidade de progredir, tanto melhor, se não, não morreremos.30 A
própria compreensão nietzschiana não opõe, ou pelo menos não seria totalmente contra
esta referenciação. Isto porque Nietzsche tinha em má conta os artistas subjectivos, mas
também não escapa deste veredicto a própria arte puramente objectiva. A arte não se
reduz nem ao eu, nem a mera matéria. Não há objectividade, nem subjectividade, mas a
arte como expressão daquilo que é, da vida. A vida não pode ser compreendida somente
a partir da ordem. Existe também a desordem, o trágico. A verdade é multiplicidade,
aceitação do devir. Não existe nada universal, absoluto, mas perspectivas. O que existe
é uma infinidade de pontos de vista, reconhece o perspectivismo. A verdade não é mais
identidade, mas sim contradição e diferença. Opõe radicalmente a toda a ideia préconcebida, não passam de superstição lógica, pois onde está tudo pré-concebido, não há
de criatividade.31
§2. O MUNDO COMO PROBLEMA ESTÉTICO: SCHOPENHAUER
/ NIETZSCHE.
Tal como a orgia dionisíaca dos gregos permite o acesso à globalidade do Ser,
também a arte é, sobretudo, a efectivação do todo. Reunindo em si as tendências do
Apolíneo e do dionisíaco, a tragédia exprime esta natureza da arte.
30
Com isto não significa que defendemos o comodismo. Pelo contrário, pensamos que a vida é uma luta
incessante para compreender, e mesmo contemplar e avaliar o mundo circundante, mas sempre que o
faremos, tenhamos também em mente a consciência de nossa capacidade, pois acaso não sabemos, pelo
menos supomos o que valemos.
31
Nietzsche afirmara que ele não era um filósofo, mas um “dinamite” e um “analista químico dos
sentimentos morais”. Portanto, aquele que arrebenta com tudo, motivo pelo qual sua filosofia é
apresentada, como filosofia das marteladas e modelo de toda a “desconstrução”. Nega todas as verdades
inquestionadas. Devido ao perspectivismo, o conceito total de verdade, bom, belo deixam de fazer sentido
neste pensador.
25
É pela arte, essencialmente pela arte trágica, que se produz e se esclarece tudo o
que existe. É por ela, que se apreende e compreende verdadeiramente o mundo. É
particularmente a tragédia, que possui este olhar penetrante e transfenomenal.
Nietzsche vê o mundo como um jogo trágico, um jogo de forças em conflito, e
ao apreender a essência do mundo com o olhar da tragedia decifra na obra de arte
trágica a chave que abre o acesso à verdadeira compreensão do mundo e do existente
em geral. Neste sentido, o trágico é entendido como um princípio cósmico.
Nietzsche interessou-se sempre por encontrar um ponto seguro por onde pudesse
justificar a existência do mundo e dos indivíduos.
Ora, o mundo concebido como fenómeno estético bane a moral e qualquer
crença metafísica tradicional em geral. Contudo, oferece, precisamente, uma teoria
metafísica: o mundo como fenómeno estético, fundado no elemento dionisíaco, fonte da
dor e do sofrimento do devir e simultaneamente do prazer extático e do reencontro com
a unidade primordial; e manifestado constantemente através do fluir ininterrupto de
formas e indivíduos, absorvidos por ilusões e ficções, aprisionados nos seus mundos
particulares estruturados sobre imagens e metáforas da verdadeira realidade.
O tema estético adquire, aos olhos de Nietzsche, a condição de um verdadeiro
princípio ontológico. É pela arte, pela poesia trágica que se manifesta a vida essência do
mundo que se apreende o ser.
A arte, não constitui, para Nietzsche, uma experiência particular ao lado de
outros, é através dela que pretende o seu reencontro, com a grecidade do período Pré socrático. Tal como para os gregos, também para Nietzsche, a arte é efectivação, é levar
a cabo a totalidade do mundo, e acesso a globalidade do ser.
É pela arte, essencialmente pela arte trágica, que se produz e se esclarece tudo o
que existe, é por ela que se apreende e compreende verdadeiramente o mundo. É
particularmente a tragedia antiga que possui este olhar penetrante.
Nietzsche vê o mundo como um jogo trágico, um jogo de forças em conflito, e,
ao apreender a essência do mundo com o olhar da tragedia, decifra na obra de arte
trágica a chave que abre o acesso à verdadeira compreensão do mundo e da existente em
geral. Neste sentido o trágico é entendido como um princípio cósmico.
26
A arte é a justificação estética da essência. Só como fenómeno estético é
possível que o mundo existe realmente. Dai a afirmação «só como fenómeno estético
nos é possível justificar que o mundo exista eternamente»32
É pela arte que o aborrecimento relativamente ao mundo é superado. A arte,
como salvação, transforma o aborrecimento em imagens ideais que tornam possível a
vida. Daí a expressão, «temos a arte para que a verdade não nos mate» (A Origem da
Tragédia, introdução).
A arte é, sobretudo, suplemento da realidade natural e não simples imitação da
realidade a qual se sobrepõe para a tornar suportável. « o mito trágico, como parte
integrante da arte, emprega-se plenamente também para suscitar esta transfiguração que
é o fim metafísico da arte em geral.»33
A arte transfigura, precisamente, a realidade do mundo da aparência.
Se o espectáculo gera alegria estética, muitas cenas, porém, podem produzir uma
delícia moral. Por exemplo, através da compaixão e do triunfo duma lei social. Fazer
derivar o efeito do trágico de causas morais, não aperfeiçoa a arte, pois esta exige a
pureza. «…a arte exige e deve exigir a pureza, antes de tudo o mais.»34 Nietzsche
afirma que procurar a alegria na esfera estética, sem intervenção dos sentimentos morais
(compaixão, medo, coragem) é a condição indispensável para entender o mito trágico.35
A concepção metafísica da arte responde à questão de saber «como é que o
horrível, e o monstruoso que são a matéria do mito trágico, podem suscitar uma alegria
estética.»36
Isto quer dizer que só se justifica o mundo e a existência como fenómeno estético e que
o mito trágico quer mostrar que o que parece horrível e monstruoso não é senão uma
representação estética
32
NIETZSCHE, A Origem da Tragédia, op. cit., p.187.
Idem, Op. cit., p.186.
34
NIETZSCHE, A Origem da Tragédia, op. cit., p.187.
35
Idem.
36
Idem.
33
27
CAPÍTULO II. A CAMINHO DA METAFÍSICA DA
MÚSICA
§1. DA ESTÉTICA DO TRÁGICO À METAFÍSICA DA MÚSICA:
MÚSICA E AS OUTRAS ARTES – A ESTÉTICA DE
SCHOPENHAUER.
Nietzsche distingue na cultura grega dois princípios fundamentais: O apolíneo e
o dionisíaco. Nas palavras do próprio filósofo vem a explicação: “Que significam as
oposições de ideias entre apolíneo e dionisíaco que introduzi na estética, ambas
consideradas como categorias de embriaguez? A embriaguez apolínea produz, acima
de tudo, a irritação dos olhos que confere aos olhos a faculdade da visão. O pintor, o
escultor, o poeta épico são visionários por excelência. Em contrapartida, no estado
dionisíaco, todo o sistema emotivo está irritado e amplificado: de modo que descarrega
de um só golpe todos os seus meios de expressão, expulsando sua força de imitação, de
reprodução, de transfiguração, de metamorfose, toda espécie de mímica e de arte de
imitação".37
Segundo Nietzsche, a tragédia grega nasce a partir do coro dos sátiros e
desenvolve-se na luta entre as duas pulsões estéticas – a apolínea e a dionisíaca. Sendo
Apolo o deus da clareza, da harmonia e da ordem e Dionísio, o deus da exuberância, da
desordem e da música. Nietzsche conclui, que os dois princípios são, na verdade,
complementares entre si e, não sendo antagónicos, formam uma aliança. Essa ligação
37
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, Edições 70, Lisboa, 1985, p. 70.
28
estabelecida entre o culto dionisíaco e a arte trágica fornecerá a hipótese necessária à
sua teoria da tragédia.
Como já tínhamos dito antes, a tragédia grega é gerada tanto pela duplicidade
dos dois impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco, provenientes desses deuses da
arte, tanto pela “vontade” helénica de vencer a condição mortal do homem.
Muito se tem a dizer sobre a relação desses dois impulsos artísticos da tragédia.
Ao caracterizar o encantamento como o pressuposto de toda arte dramática e explicar o
verdadeiro papel do coro na tragédia, Nietzsche nos oferece uma explicação dessa
relação, quando diz que “Nos termos desse entendimento devemos compreender a
tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um
mundo de imagens apolíneo. Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada
são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, que dizer, do
mundo cénico inteiro, do verdadeiro drama. Esse substrato da tragédia irradia, em
várias descargas consecutivas, a visão do drama, que é no todo uma aparição de sonho
e, nessa medida, uma natureza épica, mas que, de outro lado, como objectivação de
estados dionisíacos, representa não a redenção apolínea na aparência, porém ao
contrário, o quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial”.38
Nesse sentido, Nietzsche concebe a tragédia grega tendo como único herói
trágico no fundo de todas as máscaras o deus Dionísio. No entanto, este Dionísio
sofredor se dá no palco helénico em várias configurações, mas aparece apenas de
maneira nitidamente épica através do apolíneo que interpreta para o coro o seu estado
dionisíaco, ou seja, naquele estado do “quebrantamento do indivíduo e sua unificação
com o Ser primordial”, situação que os budistas descrevem como o Nirvana – união do
indivíduo com o absoluto.
Para ilustrar a aliança desses estados artísticos, vale citar outra passagem
nietzscheana que explicita melhor a consideração trágica do mundo: «... Nos pontos de
vista aduzidos temos já todas as partes componentes de uma profunda e pessimista
consideração do mundo e ao mesmo tempo a doutrina dos mistérios da tragédia: o
conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação
38
NIETZSCHE, Fredrich. A Origem Da Tragédia, Tradução de Sofia Ribeiro, Publicações Europa América, Lda, Lisboa, 2005, pp. 55-60.
29
como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido
o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida».39
Mesmo com a sua consideração pessimista do mundo, apenas através da tragédia
os gregos conseguiam excitar, purificar e descarregar a sua existência, o que confere à
arte trágica uma força de transformação necessária à vida.
Para o filósofo, o que torna a arte trágica possível é a música e ele busca a
valorização da música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente
musical ou com origem no espírito da música. O mito trágico, enquanto símbolo
sublime oriundo da música, arranca o ouvinte espectador de seu sonho de aniquilação
orgiástico, fundindo-o à natureza, diluindo a sua individualidade. Aí reside o fascínio da
música. Na sua análise, Nietzsche denuncia a percepção do valor íntimo do trágico,
captável através da música conjugada com a força plástica do mito.
O objectivo metafísico supremo da tragédia e da arte em geral era, portanto, que
a imagem apolínea protegesse e revelasse – tal qual um véu que mostra e esconde – a
força destrutiva do dionisíaco. Desse modo, podemos dizer que Dionísio fala a língua de
Apolo, e Apolo, por sua vez, fala a língua de Dionísio.
Os conceitos de apolíneo e dionisíaco aparecem no sentido da essência e da
aparência, i.é, da Vontade e da representação em Schopenhauer. Lembremo-nos da
analogia á efectuada entre o dionisíaco e o apolíneo nietzschianos e a Vontade e a
representação shopenhauerianas, ou seja, assim como no transfenomenal do apolíneo
encontrámos o dionisíaco, no transfenomenal da representação encontramos a Vontade
que é a essência e o ser profundo que se revela somente na música, sendo esta, portanto
de essência, ontológica, pois expressa o verdadeiro ser do mundo: a Vontade. O poder
irracional da música é, na verdade, um epifenómeno do Vontade, que só por si já é
poder e a força originária donde tudo emana.
Segundo Nietzsche, os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas, que
tornam a vida desejável, encobrem o sofrimento pela criação de uma ilusão, ou seja, é o
princípio da individuação, processo de criação do indivíduo. Já o dionisíaco é a
harmonia universal dada pela experiência de reconciliação das pessoas com as pessoas e
com a natureza. O dionisíaco tem um sentido místico de unidade e escapa da
individuação, fundindo-se ao Uno, ao Ser e integrando a parte com o todo ou a
totalidade – a Vontade.
39
Ibidem, Op. cit., p. 69.
30
O apolíneo, enquanto princípio da individuação, determina as formas da
aparência e proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se, sobretudo,
na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. O dionisíaco, enquanto uno
primordial, diz respeito à destruição de toda individuação, a uma total e desmedida
embriaguez, manifestando-se, principalmente, na melodia e na harmonia dissonante,
presentes na música cantada pelo coro dos sátiros.
A concepção que Nietzsche tinha da tragédia baseada numa visão
fundamentalmente nova da Grécia, ou seja, no sentimento trágico da vida é, antes
demais, a aceitação e celebração dessa jubilosa adesão ao horrível e ao medonho, à
morte e ao declínio. Ao resgatar o valor do homem trágico grego, Nietzsche elege a
música e seus significados para a afirmação da vida: amor, instintos, liberdade,
fatalismo e morte.
A música, enquanto arte essencialmente dionisíaca, é o meio para se desfazer da
individualidade. O fascínio da música exprime a nossa união com o originário ou
absoluto: a Vontade. Nesse caso, ela é acrescentada de componentes apolíneos – cena e
palavra – e o coro dionisíaco se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. O mito
trágico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisíaca através do aniquilamento
do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o uno originário (Vontade). A
finalidade é “aceitar o sofrimento com alegria” como parte integrante da vida, uma vez
que o aniquilamento do indivíduo nada afecta a essência da vida. Teria sido esta a
profunda intuição do Estoicismo: suportar e resistir ao sofrimento com alegria. Aliás,
esta atitude da resignação e do fatalismo teriam sido duas características chaves do
pensamento de Schopenhauer para quem, na maioria das vezes, a infelicidade humana,
reside na não aceitação de que as coisas são tal como são. Contra este pensamento de
resignação reagiria energicamente o existencialismo, sobretudo, o de Sartre, quando no
O Existencialismo é um Humanismo, afirma que o existencialismo é uma filosofia do
optimismo que deixa ao homem a possibilidade de criar os seus próprios valores (neste
aspecto Sartre reencontra Nietzsche) e a si mesmo, sendo portanto, um humanismo que
pode transformar o absurdo (a inexistência de um sentido do mundo) em algo com
sentido.40
Conforme afirma Nietzsche, a música oferece-nos momentos de verdadeiro
sentimento, pois só a música colocada ao lado do mundo pode nos dar uma ideia do que
40
Cf. SARTRE, Jean-Paul. L`Existencialisme est un Humainsime, Gallimard, 1946.
31
deve ser entendido por justificação do mundo como fenómeno estético. Só assim se
pode perceber, que a vida sem música é, simplesmente, um erro, uma tarefa cansativa.
Daí que o filósofo atribua à música, uma importância essencial para o pensamento e
para a vida e para a existência humana em geral.
Por sua vez, Nietzsche acreditava, que apenas mediante a arte, a existência
humana poderia se justificar e, por isso, revia o auge da cultura grega para tentar
explicar como se originou e se desenvolveu a arte trágica. No entanto, a tragédia teria os
seus dias contados, pois com Eurípides e Sócrates ela sucumbiu-se diante da tentativa
de entendimento da arte. A partir daí, a estética é revista por um socratismo estético que
tenta tornar toda a arte consciente, o que vai acarretar não só em uma mudança estética,
mas também cultural, pois o racionalismo e absolutismo gnoseológico e moral
tornaram-se paradigmas da cultura da razão desprezadora dos instintos que ao fim ao
cabo, expressam a essência profunda da vida cuja força se revela na música cuja
significação é metafísica com.
METAFÍSICA DA MÚSICA
A significação metafísica dada à música é a parte mais original e a mais
conhecida da filosofia da arte em Schopenhauer. A filosofia da arte schopenhaueriana
caracteriza-se não apenas por uma superioridade da música, mas sobretudo por uma
diferença de natureza entre ela e outros domínios artísticos. Para realçar a nossa
afirmação, começaremos por ouvir o próprio Schopenhauer: “O que distingue a música
das outras artes é que ela não é uma reprodução do fenómeno ou, melhor dizendo, da
objectividade adequada da vontade; ela exprime o que há de metafísica no mundo
físico, a coisa em si de cada fenómeno. Consequentemente, o mundo poderia chamar-se
tanto uma incarnação da música como uma incarnação da vontade.”41
Se identificamos o belo com a própria ideia aprendida intuitivamente no
espectáculo natural produzido pela arte, a metafísica do belo, em termos estritos, deixa
de fora uma metafísica da música como a expressão mais original da própria Vontade.
Dá-se, por assim dizer, uma ruptura de nível, que exige uma consideração filosófica
41
SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., p. 347.
32
própria. Dizemos com razão, uma consideração filosófica da arte, e não estética. Por
quê? Se por estética compreendemos, até hoje, um conhecimento intuitivo, a música
escapa a um conhecimento como este, pois “Nela não reconhecemos a reprodução, a
repetição de uma ideia dos seres do mundo. É uma arte tão grande, tão elevada, age
tão poderosamente sobre a vida interior dos seres humanos, é compreendida de modo
tão completo e tão profundo, que se assemelha a uma língua absolutamente universal
cujo sentido ultrapassa o do mundo da intuição”.42
Eis nos então perante um paradoxo: a música proporciona-nos um prazer
estético desinteressado e mantém, ainda, com o mundo uma relação de representação. A
música pode depender de uma estética que, por extensão, não seria apenas definida por
relação à ideia. Daí a pergunta: como é que a música pode ser uma arte fora de todas as
artes?
O princípio da resposta está no facto de a música representar a vontade, mas
imediatamente e não mais por intermédio da ideia: “Ela não é como as outras artes,
uma reprodução das ideias, mas uma reprodução da vontade como as próprias ideias.
É por isso que a influencia da música é mais poderosa e mais penetrante que a das
outras artes. Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do
ser”.43
Se ela fala do ser já não se trata meramente de uma estética, mas de uma ontoestética. A relação da música com as outras artes é, portanto, exactamente a relação da
Vontade com as ideia, que é em tudo, análoga àquela relação que o “divino Platão”
atribuíra à relação entre o a Ideia do Bem e as Ideias.
Sem dúvida, que há sempre, o conhecimento da objectividade do querer, ou
directa ou indirectamente, mas o conhecimento das ideias vem da intuição, isto é, supõe
uma exterioridade, um sair da Vontade para fora da de si mesma indo ao mundo dos
fenómenos. Mas a música não pode ser representado desta maneira. A música deve ser
representativa de uma coisa-em-si que como tal, não pode constituir objecto de uma
representação, a não ser precisamente pela objectivação da ideia. Noutros termos, o
ponto comum do mundo real e da música é, directamente, o Ser em si. Não se pode
provar este carácter representativo particular da música; pode-se, porém, senti-lo na
experiência subjectiva, imediata do querer-viver ou vontade de viver.
42
43
Ibidem, Op. cit., p.338.
Ibidem, Op. cit., p. 338.
33
Por conseguinte, a musica é a arte correspondente ao conhecimento imediato,
não intuitivo do querer, atingida directamente na experiência interior, mas ela é sempre
uma arte que nos propõe um conhecimento, uma contemplação, e não simplesmente
uma emoção que tocaria o querer individual. Ela é uma linguagem universal que se abre
na intuição.
O fenómeno mais próximo do ser em si, a experiência mais íntima deste querer
que deu seu o nome à coisa-em-si, veio a ser, pela música puro objecto para um sujeito.
A música tem tanta realidade quanto o mundo visível, mundo este que tem
apenas a realidade de um sonho.
Ela é até mais real, dado que exprime directamente o Ser em si [Sein in Sich].
Deve-se compreender que a música não representa as emoções, esta alegria ou aquele
sofrimento. Ela é a alegria, ela é o sofrimento essencial, na objectividade primeira do
querer, fora de qualquer encadeamento de causas e motivos.
Agora, compreendemos melhor a superioridade da música em relação às outras
artes. Ela é, por essência, ontológica porque as outras artes falam da representação,
enquanto que ela fala do Ser, ou seja, se as restantes artes se cingem ao domínio da
representação ou aparência, a música se estende ao domínio da essência ou
fundamento originário: a Vontade que é a estrutura ontológica última e o fundamento
(razão de ser) do mundo.
Contudo, as artes têm um papel emancipador na medida em que nos permitem
aceder ao fundamento primeiro e incondicionado que é a Vontade. Como afirma
Schopenhauer, “(…) Não seria o livre produto de nosso espírito plasmador, e por
conseguinte não poderia ter o benéfico efeito da arte, que consiste na liberdade. Seria,
sim, todavia penosa, a disposição de ânimo com a qual nos deixa um tal artista e um tal
dramaturgo. Através da própria arte, que nos deveria libertar, vemo-nos
desagradavelmente reintegrados na estreita e ordinária realidade”. 44
Apesar de todo o seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer aponta
algumas vias para a suspensão da dor. Num primeiro momento, o caminho para a
supressão da dor, segundo Schopenhauer, encontra-se na contemplação estética. A
contemplação desinteressada das ideias seria um acto de intuição artística e permitiria a
contemplação da Vontade em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da
própria vontade. Na arte, a relação entre a Vontade e a representação inverte-se, pois a
44
SCHILLER, Friedrich. Teoria da Tragédia, tradução portuguesa de Flávio Meurer, Editora Pedagógica
e Universitária Lda. São Paulo, 1992, p.74.
34
inteligência passa a uma posição superior e auxiliar à história de sua própria vontade.
Por outras palavras, a inteligência deixa de ser actriz para ser espectadora. A actividade
artística revelaria as ideias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente
pela arquitectura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica, e, finalmente, pela
música.
Essa libertação do conhecimento da escravidão da vontade, esse esquecimento
do eu individual e de seu interesse material, essa elevação da mente à contemplação da
verdade sem influência da vontade representam o comprimento integral das funções da
arte.
Mas como se procede a arte? Uns crêem que ela imita a natureza e outras que ela
a exprime.
Mas como reconhecerá o artista na natureza a obra-prima, o modelo a imitar,
como distinguirá entre a multidão de seres defeituosos se não há uma concepção de
beleza anterior à experiência? Aliás, alguma vez a natureza produziu um homem
perfeitamente belo em todas as suas partes? Como se pode reconhecer que tais formas
são precisamente as formas belas e que outras não o são?
Como sabemos, não podemos adquirir puramente a posteriori unicamente pela
experiência, nenhum conhecimento de beleza. Este conhecimento vem nos sempre, pelo
menos em parte, a priori ainda que seja dum outro género diferente dos expressões do
princípio da razão que conhecemos igualmente a priori. Estas dizem respeito à forma
geral do fenómeno considerado como fenómeno, enquanto esta forma constitui a
condição geral da possibilidade do conhecimento e diz respeito ao «como» enquanto
questão geral e universal que visa o fenómeno. É deste género de conhecimento, que
provêm as matemáticas e as ciências naturais puras. Pelo contrário, este outro género de
conhecimento a priori, que torna possível a realização do belo diz respeito não à forma,
mas ao conteúdo dos fenómenos, não ao como, mas à própria natureza da representação.
Todos nós sabemos reconhecer a beleza humana, quando a vemos, mas o verdadeiro
artista sabe reconhecê-la com um tal clareza, que a mostra tal como ele nunca a viu. A
sua criação ultrapassa a natureza. Semelhante coisa é possível apenas porque nós
próprios somos essa vontade que se trata aqui de analisar e de criar a objectivação
adequada nos seus graus superiores. Isto é suficiente para nós, um verdadeiro
pressentimento daquilo que a natureza idêntica à vontade constitutiva da nossa própria
essência, se esforça por realizar.
35
Por conseguinte, a arte não imita a natureza, mas sim representa uma vez que: “
(…) O objecto da arte, o objecto que o artista se esforça por representar, o objecto cujo
conhecimento deve proceder e engendrar a obra, como o germe precede deve preceder
e engendrar a obra, como o germe precede e engendra a planta, esse objecto é uma
ideia, no sentido platónico do termo, e absolutamente mais nada, não é a coisa
particular, visto que não é o objecto da nossa concepção vulgar; também não é o
conceito, visto que não é o objecto do entendimento nem da ciência”. 45
O objectivo da ciência é o universal que contém os particulares e se apresenta
neles, mas o objectivo da arte é o particular que contem um universal. Graças à sua
força criativa, pode levá-lo à imaginação, tornando-se assim mais verdadeira de que
toda a realidade e mais real do que toda a experiência. Por exemplo, ao pintar animais, o
mais característico é considerado o mais bonito porque revela melhor a espécie.
Toda as artes têm como finalidade comum, revelar e esclarecer a ideia que se
constitui a obra de arte, i.é, a vontade em cada grau da sua objectivação. Uma vez
concebida, ela comunica então a ideia. Ora, a ideia como tudo o que é intuitivo,
exprime-se por si mesma de uma maneira completamente directa e perfeita. Segundo
Schopenhauer, “a ideia torna se a fonte verdadeira e única de toda a obra de arte
digna deste nome”.46
Por conseguinte, é na obra de arte, que a ideia aparece com mais clareza, distinta
do conceito.
Uma obra de arte obtém sucesso, então, na proporção em que a ideia platónica,
ou universal, do grupo ao qual o objecto representado pertence. A arte é maior do que a
ciência porque esta avança através do acumulo de raciocínio cauteloso, enquanto aquela
atinge o seu objectivo de imediato, pela intuição e pela apresentação. Por isso, “a
ciência pode se dar bem com o talento, mas a arte requer o génio47.
A teoria do génio em Schopenhauer não é, portanto, como se diz um
complemento romântico de uma filosofia da arte. Muito pelo contrário, é somente do
génio que a arte recebe seu o significado metafísico além da satisfação dos desejos, que
tornariam a obra no máximo interessante. Como sabemos, «a verdadeira arte é aquela
45
SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., 308.
Ibidem, Op. cit., 310.
47
“O génio, tal como o apresentamos, consiste na aptidão para se libertar do principio de razão, sem
fazer abstracção das coisas particulares, que existem apenas em virtude das relações, reconhecer as
ideias, e enfim, colocar-se a si mesmo face a elas como seu correlativo, já não a titulo de individuo, mas
a titulo de puro sujeito que conhece.”. Cf. SCHOPENHAUER, MCVR, p.254
46
36
que produz a máxima satisfação. A máxima satisfação, porém, é a liberdade da alma no
activo estado lúdico de todas as suas faculdades».48
O génio não é somente uma aptidão para a arte, mas para todo o conhecimento
das ideias e, em particular, da filosofia. Um sábio pode alcançar a ideia além da sua
objectividade simplesmente conceptual. Por outro lado, o artista, tal como o sábio é, na
maioria das vezes, apenas um homem de talento e não um génio. O homem dotado de
talento possui mais rapidez e precisão de pensamento que os outros, mas o génio, ao
contrário, contempla um outro mundo diverso daquele do resto dos homens.
É, sobretudo, pela obra de arte que o génio pode comunicar ao homem ordinário,
não genial um conhecimento das ideias, que considerado em si mesmo, não tem nada de
artístico. O génio define-se pela sua capacidade de conhecimento metafísico, e não pelo
meio privilegiado que utiliza para transmiti-lo.
O génio não está em fazer, mas sim num conhecer. Para Schopenhauer, a
genialidade consiste, inteiramente, na aptidão para contemplar. Pode-se conceber que
um asceta49 renuncie a toda a obra, e mesmo a qualquer forma de expressão sem deixar
de ser génio. Só pelo desenvolvimento das suas faculdades de conhecimento é que o
génio se distingue do homem ordinário, em termos fisiológicos por sua capacidade
cerebral. Atrevemo-nos a dizer, que o génio é um “monstro excepcional” por excesso de
cerebralidade. É que a força representativa do cérebro possui um tal excedente, que
produz uma imagem pura, precisa, objectiva e desinteressada do mundo, imagem inútil
para as intenções da vontade. Existe uma certa analogia do homem génio com a criança
e o louco, ou ainda o sombrio destino do homem de excepção no meio de uma multidão
que o ignora. De acordo com Schopenhauer, o génio não é aliás tão banalmente
romântico como parece. Ele é ao contrário de um inspirado, de um mago que fala de um
outro mundo, o antípoda de um criador de alguma imprevisível novidade qualquer. Ele
é quem dá à luz o sentido do próprio ser deste mundo.
Será o homem do génio, homem de imaginação? Sem dúvida, mas de
imaginação completamente convertida. Ela não se acha mais ao serviço da
subjectividade do desejo, mas da subjectividade da ideia. Notemos que tal como Kant,
Schopenhauer também concebia a imaginação como a faculdade de possibilidades.
48
SCHILLER, F. Teoria da Tragédia, Op. cit., p.72.
- Deriva de “ascetismo” que é uma doutrina que preconiza o desprezo do corpo e a renúncia dos bens
materiais, defendendo as mortificações corporais com vista a alcançar a perfeição moral.
49
37
A grandeza do génio reside na sua submissão à ideia, da qual se faz o puro
espelho. A grandeza do artista consiste em deixar ver essa ideia.
Por consequência, a não ser que existam pessoas completamente incapazes de
qualquer prazer estético, devemos conceder a todos os homens esse poder de separar as
ideias das coisas e, por esse facto, elevarem-se momentaneamente acima da sua
personalidade.
Assim, o nosso prazer na natureza, como na poesia ou na pintura, é derivado da
contemplação do objecto sem participação da vontade pessoal. Ao contrário de uma
pessoa normal, o artista se liberta tanto das preocupações pessoais, que para a percepção
artística tanto faz vermos o pôr-do-sol de dentro de uma prisão ou de um palácio. “O
artista empresta-nos os seus olhos para vermos o mundo”.50
É essa bênção de percepção sem interferência da vontade que cobre com uma
encantadora atracção do passado e o distante, apresentando-os a nós sob uma luz tão
clara, que constitui a essência da contemplação estética. Mesmo os objectos hostis,
quando os contemplamos sem a excitação da vontade e sem perigo imediato, tornam-se
sublimes. Da mesma forma, a tragédia pode assumir um valor estético ao nos livrar da
luta da vontade individual e habilitar-nos quando nos mostra o eterno e o universal por
detrás do transitório e do individual.
HIERARQUIA DAS ARTES
Como já frisamos, para estudar as diversas artes Schopenhauer ordena-as
hierarquicamente no sentido crescente do grau de objectivação da Vontade.
Arquitectura, escultura, pintura, poesia, e música. Por outro lado, Schopenhauer
consagra um parágrafo à arte de jardinagem, depois da arquitectura, dado que a natureza
vegetal se eleva acima da natureza inanimada. Esses paralelos são artificiais, uma vez
que não há, verdadeiramente, uma classificação das belas artes segundo Schopenhauer.
Falando sobre este assunto, Schopenhauer afirmou o seguinte: “A arte, em todas as suas
formas, tem, portanto sempre por finalidade exprimir a ideia. O que distingue as
50
SCHOPENHAUER, MCVR,Op. cit., p. 255.
38
diferentes artes é o grau de objectivação de vontade, representado pela ideia em cada
uma delas; disso depende também a matéria própria de cada arte. Além disso, as artes,
mesmo as mais diferentes, podem explicar-se pela sua aproximação”.51
Numa primeira abordagem, as artes parecem hierarquizadas segundo os
diferentes graus de objectivação da Vontade: “A arquitectura artística tem como
finalidade estética exprimir a vontade objectivada no baixo grau que nos é dado
aprender, isto é, a tendência surda, inconsciente, necessária, da matéria”.52 A
arquitectura corresponde assim à gravidade, à coesão, à resistência e à dureza das
matérias. Ela representa o grau mais baixo da hierarquia. A isso se deve também
acrescentar a hidráulica artística (a arte das fontes) que associa a gravidade à fluidez e à
transparência.
Num grau mais elevado, vamos encontrar a arte da jardinagem que corresponde
à natureza vegetal, mas as ideias de ordem superior manifestar-se pela escultura e a
pintura.
Trata-se então da natureza animal em geral, mas sobretudo da natureza humana.
Ora, sabe-se que no homem, o carácter individual se distingue nitidamente do carácter
específico. “Na escultura a beleza53 e a graça são o principal, mas, na pintura, a
expressão, a paixão, o carácter vêm em primeiro lugar”54.
O domínio da poesia é ainda mais vasto que o da pintura: toda a natureza pode
ser expressa por ela, mas quando se trata do ser humano ela supera qualquer outra forma
de arte objectivando a ideia de humanidade através dos caracteres mais individuais. Do
que já dissemos, pode se constatar que seguir uma hierarquia das artes é o mesmo que
seguir uma hierarquia das ideias.
Mas um sistema como este só aparentemente é rigoroso, pois existe uma pintura
animalista de paisagem e de natureza morta, e o lugar da arte do actor, por exemplo, não
está muito claro. Mas sobretudo, a um mesmo grau da vontade podem corresponder
51
Ibidem, Op. cit., p. 333.
Ibidem, Op. cit., p. 337.
53
«A beleza é representação exacta da vontade, em geral por meio de um fenómeno, puramente
especial.». Cf. SCHOPENHAUER, MCVR, p. 293; “A beleza junta a graça que constitui o objecto
principal da cultura”. Ibidem, p. 301.
54
“Graça consiste numa relação particular da pessoa que actua com a acção...Graça consiste segundo o
que dissemos em que cada movimento ou produção se produz da maneira mais fácil. (…) A graça
pressupõe uma proporção rigorosa de todos os membros, um corpo construído regular e
harmoniosamente. Tal é a sua condição, visto que é apenas por este preço que se obtêm a vontade
perfeita, a harmonia evidente de todos os movimentos e de todas as posições, segue se que a graça não
pode existir sem um certo grau da beleza corporal. Unam a beleza e a graça perfeita tereis a
movimentação mais clara da vontade, no grau superior da sua objectivação.” Ibidem, pp. 294 – 295.
52
39
diferentes formas de artes. Vejamos o exemplo da natureza vegetal: podemos antes de
tudo contemplar directamente a beleza sem a mediação da arte.
A arquitectura e a arte da jardinagem apresentam-nos a coisa como tal, mas de
tal maneira que a intuição da sua ideia seja facilitada. Estas formas de arte situam-se
aquém da representação da ideia, assim como a musica estaria além da representação.
Eis porque falamos de uma metafísica da música.
A contemplação da obra não se separa, então, da contemplação do real e não
passa pela mediação da imagem. É sem dúvida por isso que o aspecto subjectivo do
prazer estético (a serenidade devida à libertação do querer) aí domina o aspecto
objectivo do conhecimento das ideias. Deve-se observar, aliás, que a atitude do
espectador diante dessas produções artísticas não difere, essencialmente, da sua atitude
diante da beleza natural. Muito pelo contrário, as artes, agora chamadas, “figurativas”
apresenta-nos uma coisa diferente de uma cópia da beleza natural, i.é, uma imagem da
beleza ideal. Como sabem, todos nós sabemos reconhecer a beleza humana55 quando a
vemos. Mas, o verdadeiro artista sabe reconhecê-la com tal clareza, que mostra tal qual
nunca a viu. Tal coisa só é possível, porque nós mesmos somos esta Vontade.
§2. QUAL A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA FILOSOFIA DE
SCHOPENHAUER?
Como vimos, Schopenhauer reserva alguns capítulos para falar sobre as artes no
qual começa pela arquitectura que é o grau mais baixo depois seguindo com a escultura
pintura e termina com a poesia que é o mais alto grau desse grupo. Se repararmos bem
constatamos que uma arte, aquela que não é representativa, ficou excluída do nosso
estudo e isso tinha que acontecer fatalmente, visto que uma dedução rigorosa deste
sistema não lhe deixava nenhum lugar: esta arte é a música.
55
- Segundo Schopenhauer, “a beleza humana como a mais perfeita objectivação da vontade nos graus
mais elevados em que ela é até aqui conhecível (...), exprime se por meio da forma, ora a forma reside
exclusivamente no espaço. Ela não tem com o tempo relações necessárias, como por exemplo o
movimento tem”. Ibidem, Op. cit., p. 293.
40
Pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar entre
todas as artes. Arthur Schopenhauer eleva a música à “Magna Arte”. Com isso, ela
assume um papel de extrema importância na sua filosofia.
Schopenhauer coloca a música completamente fora das outras artes, que se
cingem à representação. Para justificar a sua decisão ele afirma que nela “já não
podemos encontrar nela a cópia, a reprodução da ideia do ser tal como ele se
manifesta no mundo; e por outro lado, é uma arte tão elevada e tão admirável, tão
própria para comover os nossos sentimentos mais íntimo, tão profunda e inteiramente
compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à
própria intuição”.56
Já vimos que a música é a metafísica ou filosofia primeira, mas qual é a sua
com as outras artes?
A relação da música com as outras artes é portanto, exactamente a relação da
vontade com as ideias. Sem duvida há sempre conhecimento da objectividade do querer,
ou directa ou indirectamente, mas o conhecimento das ideias vem da intuição, isto é,
supõe uma exterioridade, um saída da Vontade para fora da de si mesma em direcção ao
mundo dos fenómenos. Mas, a música não pode ser representada desta maneira. A
música deve ser representativa de uma coisa-em-si que como tal, não pode constituir
objecto de uma representação, a não ser precisamente pela objectivação da ideia.
Noutros termos, o ponto comum do mundo real, e da música é directamente o Ser em si.
De todas as artes, Schopenhauer exalta a música como sendo a mais grandiosa e a
mais majestosa. Além disso, ela possui um poder especial, devido ao facto de ter um
aspecto universalizante que ultrapassa qualquer tipo de individualidade, constituindo
assim, uma linguagem universal acessível a todos, independentemente das culturas.
A referência da música é o efeito estético derivado de uma percepção ontológica,
i.é, da Vontade ou Ser em si: “Sob este ponto de vista temos que reconhecer na música
uma significação mais geral e mais profunda, em relação com a essência no mundo e
com a nossa própria essência”.57
É importante realçar, como acabamos de referenciar, que existe em todos os
homens a capacidade de conhecer as ideias nas coisas, exteriorizando-se
momentaneamente, de sua personalidade. É inerente a todas às pessoas essa faculdade,
sem a qual não teriam receptividade para o belo. Esquecendo-se de si mesmo através da
56
57
Ibidem, Op. cit., 338.
Idem.
41
música, o Homem liberta se do sofrimento ao qual estava sujeito no seu trabalho
serviçal em relação à Vontade. Essa libertação dá-se pelo puro som, devido ao facto
deste obter influência imediata sobre a Vontade, produzindo no indivíduo um prazer
estético que é o contentamento quanto ao conhecimento puro, intuitivo e, como tal, em
oposição à Vontade.
Em suma, a música atinge a todos, até aos menos sensíveis. Toda arte tem como
fim estimular o conhecimento das ideias. As ideias localizam-se totalmente fora da
esfera do conhecimento do sujeito como tal. São formas imutáveis, o em – si do mundo.
O mundo é o fenómeno delas em multiplicidade. Visto que todas as artes estimulam o
conhecimento das ideias, a música possui particularidades que a diferenciam de todas as
outras artes. Isso porque ela segue além das ideias, ganhando assim independência do
mundo aparente. A sua existência seria possível mesmo com a inexistência do mundo.
A Vontade é a coisa em-si, logo, a ideia é a objectividade imediata da Vontade. As artes
reproduzem as ideias. A música é a reprodução da própria Vontade, justamente, por se
referir à essência da Vontade. Esse é o diferencial da música para com as demais artes.
Ou seja, a música reproduz todos os movimentos da mais íntima essência humana, por
ser destituída de realidade e sofrimento. Enfim, a música tem como objecto a Vontade, a
partir do momento em que ela expressa o em-si do mundo, isto é, a própria Vontade,
que pode e deve ser reconhecida como a verdadeira filosofia. A música é, então a
verdadeira filosofia e a estética uma ontologia. Por isso, falamos de uma onto-estética,
i.é, de uma aliança entre o Ser e o Sublime. Aliás, o próprio conceito da Beleza como
um transcendental58 (conceito que tem a mesma extensão que o ser e que lhe é
convertível) exprime essa significação.
Liberta de toda referência específica aos diversos objectos da vontade, a música
exprime a Vontade na sua essência em geral e indiferenciada, constituindo assim, um
meio capaz de propor a libertação do homem, em face dos diferentes aspectos
assumidos pela Vontade como Ser ou fundamento incondicionado.
58
CF. MAFALDA BLANC, ESTUDOS SOBRE O SER II, «Da Beleza como Modelo da Humanidade à
Beleza como Transcendental do Ser», Gulbenkian, Lisboa, 1998, p. 123.
42
§3. A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA MÚSICA OU DA MÚSICA
COMO REVELAÇÃO DA VONTADE.
Confirmada está então, a tese da superioridade da música sobre as outras artes.
Ela é até, mais real dado que exprime directamente o ser em si: “Esta relação estreita
entre a música e o verdadeiro ser das coisas explica-nos o facto seguinte: se em
presença de um espectáculo qualquer, duma acção, dum acontecimento, de qualquer
circunstância, percebemos os sons de uma música apropriada, essa música parece
revelar-nos o seu sentido mais profundo, dar-nos a sua ilustração mais exacta e mais
clara.”59
Confirmada também está a ideia de que a arte atenua os males da vida60 ao
mostrar-nos o eterno e o universal por detrás do transitório e do individual. Não há
melhor libertação do mundo, do aquela conseguida através da arte. A arte tem um poder
de nos elevar acima da competição da vontade. Esse poder é possuído acima de tudo
pela música. A música não é, em absoluto como as outras artes que são a cópia das
ideias ou essência das coisas, mas, a cópia da própria vontade. Ela nos mostra a vontade
eternamente em movimento, lutando, vagando, sempre voltando, afinal, para si mesma,
a fim de recomeçar a batalha. É por isso, que o efeito da música é mais poderoso e
penetrante do que o das outras artes, pois estas só falam de sombras, enquanto ela fala
da coisa em si mesma. Ela difere também das outras artes porque afecta directamente os
nossos sentimentos, e não por intermédio de ideias. Ao contrário das outras as artes que
não objectivam portanto directamente, mas por intermédio das ideias, à «música vai
pala além das ideias»61. A música fala a algo mais subtil que do que o intelecto, ela é
uma reprodução da Vontade.
Deve-se compreender que a música não representa as emoções, esta alegria ou
aquele sofrimento, mas sim, ela é a alegria e o sofrimento essencial, na objectividade
59
SCHOPENHAUER, MCVR, p. 346.
- Cf. Esta ideia purificadora e emancipadora da arte (catarse/expurgação) aparece de forma originária
na Poética de Aristóteles. Cf. Aristóteles, Vol. II, trad. de Eudoro de Sousa, Nova Cultural, Col. Os
Pensadores, 1991.
61
SCHOPENHAUER, MCVR, p. 340.
60
43
primeira do querer, fora de qualquer encadeamento de causas e motivos. A música é de
certo modo ontológica uma vez que há uma relação estreita entre a música e o
verdadeiro ser das coisas.
Devido a sua dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder. Um
dos efeitos que ela causa em nós é que «ela não exprime tal ou tal alegria, tal ou tal
aflição, tal ou tal dor, terror, encantamento, vivacidade ou calma do espírito. Ela pinta a
própria alegria, a própria aflição e todos esses outros sentimentos por assim dizer,
abstractamente».62 Ela tem uma capacidade, tão própria para comover os nossos
sentimentos mais íntimos, tão profundo e inteiramente compreendida, semelhante a uma
língua universal que não é inferior em clareza à própria intuição. A música é uma
revelação da vontade.
Assim, “o que distingue a música das outras artes é que ela não é uma
reprodução do fenómeno ou, melhor dizendo, da objectividade adequada da vontade;
ela exprime o que há de metafísica no mundo físico, a coisa em si de cada fenómeno.
Consequentemente, o mundo poderia chamar-se tanto uma incarnação da música como
uma incarnação da vontade.63
É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a
das outras artes. «Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do
ser»64. Daí resulta que a imaginação é tão facilmente despertada pela música. É difícil
ficar indiferente face a música. A nossa fantasia procura dar uma figura a esse mundo de
espíritos invisível e contudo tão animado, tão inquieto que nos fala directamente.
A música com efeito, exprime a vida e dos seus acontecimentos apenas a quintaessência, ela é quase sempre indiferente a todas as variações que aí se possam
apresentar.
62
Ibidem, p. 345.
Ibidem, p. 347.
64
Ibidem, p.340.
63
44
§4. O PENSAMENTO DA MÚSICA OU FILOSOFIA DA MÚSICA:
PITÁGORAS, PLATÃO, WAGNER, NIETZSCHE, BEETHOVEN,
GEORGE STEINER, VLADIMIR JANKÉLÉVITCH, MICHEL
SERRES.
No mundo grego, nenhum músico teve tanta importância quanto o filósofo e
matemático de Samos, Pitágoras. Pitágoras foi guiado pelos deuses na descoberta das
razões matemáticas por trás dos sons depois de observar o comprimento dos martelos
dos ferreiros. Por isso acredita na existência de uma música cósmica cuja auscultação se
traduzia na génese oculta da música humana feita a partir das acusmata (coisas
ouvidas). Entre as suas grandes descobertas poder citar a descoberta do intervalo de uma
oitava como sendo referente a uma relação de frequência de 2:1, uma quinta em 3:2,
uma quarta em 4:3, e um tom em 9:8. Os seguidores de Pitágoras aplicaram estas razões
ao comprimento de fios de corda em um instrumento chamado cânon, ou monocorda, e,
portanto, foram capazes de determinar matematicamente a entonação de todo um
sistema musical. À ideia de uma música cósmica, os pitagóricos acrescentaram a ideia
da matematização do real muito antes de Platão, Galileu e Descartes.
Os pitagóricos viam estas razões como governando todo o Cosmos assim como
o som, e Platão descreve na sua obra, Timeu, a alma do mundo como estando
estruturada de acordo com estas mesmas razões. Para os pitagóricos, assim como para
Platão, a música tornou-se uma natural extensão da matemática, bem como uma arte – a
da harmonia que, segundo, Pitágoras, é a coisa mais bela65. A matemática e as
descobertas musicais de Pitágoras foram, desta forma, uma crucial influência no
desenvolvimento da música através da idade média na Europa de tal forma que o
cálculo infinitesimal que encontrámos em Leibniz resulta, precisamente e em parte,
desse cálculo matemático dos acusmatas, neste caso, das notas e sons musicais.66
Por conseguinte, o que a musica seja, dificilmente se pode saber ou dizer. A
música é sempre plural, não significa de um mesmo modo para dois sujeitos, pois a
experiência de ouvir musica que é o ponto originário a partir do qual assenta todo este
65
Kirk, G. S. Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. de Carlos A. L. Fonseca, Gulbenkian, 1994, p. 242.
Cf. Norbert Dufourcq, Pequena história da História da Música, trad. de Mª Carmo e Carlos de Brito,
Edições 70, Lisboa, pp. 12-13.
66
45
ensaio, é uma experiência eminentemente subjectiva. Porém, duas são as definições
filosóficas fundamentais que foram dadas da música.
A primeira é a que a considera como a revelação ao homem de uma realidade
privilegiada e divina; revelação que pode assumir ou a forma do conhecimento ou do
sentimento; a segunda é aquela que a considera como uma técnica ou um conjunto de
técnicas expressivas, que concernem à sintaxe dos sons.
Contudo, vamos debruçar sobre a primeira definição que passa por ser a única
que é, verdadeiramente, “filosófica” mas que na verdade é metafísica ou teologizante.
Consiste em julgar, que a música é uma ciência ou arte privilegiada enquanto tem por
objecto a realidade suprema e divina ou uma sua característica fundamental. Desta
concepção, podem-se distinguir duas fases: a) a primeira vê o objecto da música na
harmonia como característica divina do universo e considera, portanto, a música como
uma das ciências supremas; b) para a segunda, o objecto da música é o próprio princípio
cósmico (Deus, ou a Razão autoconsciente, ou a Vontade infinita, etc.) e a música é a
auto-revelação deste princípio na forma do sentimento. Ambas as concepções têm um
traço fundamental em comum: a separação da música como arte “pura”, das técnicas em
que esta se realiza. Platão polemiza contra os músicos que vão à procura de novos
acordes nos instrumentos.67 Schopenhauer fala da “essência” da música, da sua natureza
universal e eterna, enquanto é separável dos meios expressivos nos quais toma corpo
como fenómeno artístico.
Como dissemos antes, a doutrina da música como ciência da harmonia, e de
harmonia como ordem divina do cosmos nasceu com os Pitagóricos para quem a beleza
musical é a expressão da harmonia e da ordem cósmica. Desta forma, a função e os
caracteres da harmonia musical são os mesmos que a função e os caracteres da
harmonia cósmica. A música seria, portanto, o meio directo para se elevar ao
conhecimento desta harmonia. Esta é razão pela qual Platão incluía a música entre as
ciências propedêuticas no quarto lugar (depois da aritmética, da geometria plana e
sólida e da astronomia) e, portanto, considerava-a a mais próxima à dialéctica e a mais
filosófica. Como ciência autêntica, a música todavia não consiste, segundo Platão, em
procurar com o ouvido novos acordes sobre os instrumentos. Deste modo, antepor-seiam os ouvidos à inteligência.68 Para Platão, aqueles que assim fazem “se regulam como
os astrónomos porque procuram os números nos acordes acessíveis ao ouvido, mas não
67
68
PLATÃO. República, Livro, VII, Gulbenkian, 531 b.
PLATÃO, Rep., VII, Op.cit., 531 a.
46
remontam aos problemas, não indagam quais números são harmoniosos e quais não o
são e de onde vem a sua diferença”.69
A doutrina da Música como auto – revelação do Princípio cósmico tende a
privilegiar a Música acima de todas as outras artes ou ciências e a fazer dela a mais
directa via de acesso ao Absoluto. Estas são as características próprias da concepção
romântica da Música, características que se encontram bem realizadas na teoria de
Schopenhauer. Segundo Schopenhauer, enquanto a arte em geral é a objectivação da
Vontade de viver (que é o Princípio cósmico infinito) em tipos ou formas universais (as
Ideias platónicas), que cada arte reproduz à sua maneira. Como já dissemos também, a
Música é revelação imediata ou directa da própria Vontade. “A Música, diz ele, é uma
objectividade, uma cópia tão imediata de toda a vontade como o é, como o são as
próprias ideias cujo fenómeno múltiplo constitui o mundo dos objectos individuais. Ela
não é portanto, como as outras artes, uma reprodução das ideias, mas uma reprodução
da vontade como as próprias ideias. É por isso que a influencia da música é mais
poderosa e mais penetrante que as outras artes: estas exprimem apenas a sombra,
enquanto que ela fala do ser.70
Isto quer dizer que na Música, diferentemente, das outras artes, a forma sensível
em que a Ideia se manifesta e exprime é, inteiramente, superada como tal e resolvida
em pura interioridade e em puro sentimento.
Sendo, definida como arte, a música exige que se diga antes de mais que ela é
uma hermenêutica, uma forma de compreender o mundo que nos é traduzida sob forma
de relação com três elementos fundamentais da música: o ritmo, a melodia e a harmonia
que se nos apresentam também como formas de se aceder ao ser. A música é essa
iniciação à acusmata.
Se compreendermos, que a arte consiste como nos diz Arnold Hausser71 em
compreender a relação entre seus elementos formais e materiais e sentir a harmonia
desta relação na sua evidência, isto é, perceber que os seus elementos formais
desempenham alguma função, na música esta relação não é de todo evidente, pois que
aquilo a partir do qual a musica é feita e o significado que ela encerra em si, e ou,
69
Ibidem, 531 b-c.
SCHOPENHAUER, MCVR, p. 340. Esta exaltação da Música coincide com a doutrina de Hegel que
acrescenta, todavia, a importante determinação de que a Música é a expressão do absoluto na forma do
sentimento. Sob este ponto de vista, diz Hegel, que o sentimento é a forma própria da Música. Cf. Hegel,
Estética, Guimarães Editores, s/d.
71
HAUSSER, Arnold. Teorias da Arte, Edições Presença, p.313.
70
47
desperta em nós, permanece oculto e misterioso. Mas o que é esse mistério, ou seja, será
a musica interferência – uma manifestação do fundo acústico do universo (M. Serres),
uma aventura sobre o inefável (V. Jankélévitch) uma manifestação da vontade ou da
essência do mundo como pensava Schopenhauer, uma manifestação exterior da dança
do espírito de que fala Nietzsche (A. F Zaratustra) e G. Steiner (Quatro Entrevista com
G. Steiner)? Será a musica um problema matemático da alma (Leibniz) ou será ela uma
simples sintonia emotivo, ou seja, um simples equivalente passional que se afigura
como uma simples imitação ou expressões das paixões, ou será ela uma expressão da
“interioridade ressoante” (Hegel)?
Tentemos
responder
algumas destas
questões. Assim, para
Vladimir
Jankélévitch (L`Inefáble) - a música exprime o inefável, razão pela qual ela desperta
um fascínio que é quase inexplicável como o próprio Inefável. O inefável é aquilo que é
misterioso, ou seja, aquilo que como afirma Rudolf Otto (O Sagrado), constitui um
“tremendo Mistério e um mistério fascinante” e que é, simultaneamente sentimental e
mental, i.é, “senti-mental”, o que significa que é, simultaneamente, racional e irracional.
Inefável é aquilo que resiste a uma explicação racional evidente. Por conseguinte, o
fascínio que a música pode despertar não é total e racionalmente explicável.
Já para Michel Serres, (Hermes II, Interferência), a música teria sido a primeira
física, ou seja, a primeira acústica na medida em que com ela, os homens cedo tentaram
auscultar “o ruído do fundo” (o som) e as interferências existentes na natureza espáciotemporal. Esse ruído de fundo é o a priori de toda a comunicação, pois sem o som não
há comunicação. A experiência do ouvir, quando dizemos “não ouvi, fale mais alto/
baixo se faz favor” atesta que o som – esse ruído de fundo, é essencial à comunicação.
A música ocupa, sobretudo, daquilo que está no espaço entre, i.é, das interferências,
razão pela qual as notas musicais ocupam esse espaço mediado pelo tom, i.é, a escala. A
música não cria o som como se tratasse de uma criação ex-nihlo, mas compõe-no a
partir dessa acústica originária que é a experiência do ouvir. É com genialidade que se
fala de aspectos como notas, tons e escalas musicais e, sobretudo, da composição e da
não da criação. Por isso, o músico é um Hermes, i.é, um intérprete das mensagens
(interferências) que circulam nesse espaço entre as notas e escalas. É com genialidade,
que também falamos de intérprete que se torna cantor quando a sua interpretação
desperta o encanto e ocupar esse espaço entre, i.é, interpreta as interferências e manda
mensagens.
48
Um outro autor que fala muito da música é George Steiner. Segundo ele, a
questão da música é decisiva nos termos das significações humanas e no que se refere o
acesso ou à abstenção de experiência metafísica no homem. Desta forma, a nossa
capacidade para compor ou reagir à forma e sentido musicais põe directamente em
causa o mistério da condição humana. Para ele, Perguntar «o que é a música?» pode ser
muito bem uma maneira de perguntar «o que é o homem?». Daí não devemos recuar
perante a estes termos nem perante as impropriedades semânticas fundamentais que eles
talvez impliquem. Estas interrogações possuem os seus imperativos e clareza próprios.
A questão está em perguntar o que são as categorias que devem ser vividas antes de ser
possível defini-las.72
Podemos tentar responder esta questão, utilizando a afirmação de Claude LéviStrauss de que «a invenção da melodia é o mistério supremo do homem»,73 pois ela
afigura-se numa tranquila evidência de que as verdades, a necessidade da ordenação do
sentimento na experiência musical não são irracionais nem irredutíveis à razão ou a uma
avaliação pragmática. Daí que Lévi-Strauss afirma que «tal irredutibilidade anima a
origem da minha argumentação»74. Segundo ele, é muito possível que o homem seja
homem, e que o homem «toque» os limites de uma «alteridade» peculiar e aberta, por
ser capaz de produzir a música e de ser possuído por ela! Para comprovar a sua tese,
Lévi-Strauss recorre ao célebre aforismo de Schopenhauer de que a música «manifestase como metafísica de tudo o que é físico no mundo».75 Podemos, portanto, dizer que o
mundo é a música encarnada ou Vontade encarnada.
Ele defende a universalidade da música e que esta universalidade, declara a
humanidade do homem. Para ele «um mundo sem a música, estritamente falando, é algo
exterior às nossas noções de ordem e desejo»76.
Por outro lado, existem numerosos homens e mulheres para quem uma
existência sem a musica séria de uma desolação invencível: Bach, Haydn, Mozart,
Beethoven e ooutos mestres do canto e da ópera representam para um sem número de
intérpretes, ainda que amadores, para um sem-número de ouvinte, outras tantas
presenças tutelares, homens que se enquadram nessa categoria. Daí, afirma Steiner:
72
Cf. George STEINER. Presenças Reais, Tradução e Posfácio de Miguel Serras Pereira Editorial
Presença, Lisboa, 1993, p. 17.
73
Ibidem, p. 28.
74
Ibidem, p. 28.
75
Idem.
76
Ibidem, p.176.
49
«creio que a entoação da música é essencial na nossa apreensão da morte e da sua
dor».77
Podemos dizer, que a música é tempo organizado, o que significa «tornado
organizado». Igualmente, podemos dizer «que este acto de organização é um acto de
liberdade essencial, que nos liberta do ritmo forçado dos relógios biológicos e físicomatemáticos. O tempo que a musica «toma», e o tempo que nos traz enquanto a
interpretamos ou ouvimos, é o único tempo livre que nos está garantido antes da
morte.»78.
Por outro lado, conhecemos em todo o caso o poder da música. Sabemos que a
música pode «literalmente enlouquecer-nos, pode fazer vibrar a violência, pode
consolar, exaltar curar, despertar, «Lear» da sua demência sombria. Há cadências,
cordas, modulações que quebram ou reparam o coração, ou, melhor, que o repara
quebrando-o.»79
A música traz à nossa vida de todos os dias um encontro imediato com uma
lógica do sentido diferente da razão, i.é, com a lógica daquilo é “senti-mental”.
A música põe o nosso ser em contacto com algo que transcende o dizível, com
algo que ultrapassa o analisável. Ela não se deixa, simplesmente, circunscrever pelo
mundo tal como este é enquanto objecto de determinação científica e de exploração
prática. Os sentidos do sentido da música são transcendentes. Segundo Steiner, ela foi
durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou
recusam qualquer crença formal. Para grande número de seres humanos, a religião tem
sido a música em que acreditam. Nos êxtases do Pop e do Rock, a sobreposição é Tal
com o espírito báquico, estridente.80
Assim, para Steiner a música é o complemento existencial: «Ouvir música e
assistir a concertos são elementos capitais da minha experiência pessoal».81 Por isso,
acredita que só a música põe na sua pureza última, o sentido da existência humana: «A
música é qualquer coisa que se compreende, mas que não pode ser traduzido nem
parafraseada».82
77
Ibidem, pp. 65-66.
Ibidem, p. 176.
79
Ibidem, p.177.
80
Ibidem, p. 194.
81
JAHANBEGLOO, Ramim. George Steiner, Entrevista com Ramin Jahanbegloo, tradução de Miguel
Serras Pereira, Fenda Edições Lda., Lisboa 2000, p. 174.
82
Ibidem, p. 178
78
50
Muito antes deste pensadores, Beethoven inaugurara na história da música, a era
do Romantismo83 que seria a da supremacia alemã. Com ele aparece uma concepção
que vem substituir ao equilíbrio soberano e a sociedade dos clássicos uma liberdade
maior e uma expressão mais intensa. Por isso, é considerado um músico filósofo para
quem a música revela os estados da alma, as alegrias e os desgostos do compositor. Ela
insufla em tudo o que cria lago de mais humano, que nos mostra as amarguras, o trágico
da sua existência, ou até mesmo as suas paixões, os seus sonhos.
Em 1800 num concerto, ele executou a sua Primeira Sinfonia e, Beethoven
afirmava: «esta sinfonia conquanto lembrasse ainda a música do passado, era uma
tentativa de instintiva no sentido de um género deferente de música. Uma velha
linguagem com uma nova expressão»84.
Mergulhado na paixão, em 1801, Beethoven escrevia a sua Segunda Sinfonia
«que era um afastamento ainda maior das convenções musicais e dos conselhos dos
críticos».85 Ele foi muito criticado e entre as várias críticas, encontramos essa: «se
Beethoven continuar com essa espécie de lixo, degenerarão as nossas orquestras em
sociedades instrumentais de debates».86 Os críticos porém insistiam, afirmando «que a
música de Beethoven não era apenas uma conversa, mas também uma conversa sem
gramática. Uma linguagem de um homem inculto».87 Beethoven retorquia que, «de
facto eles estão pasmado e conspiram porque nunca encontraram o que faço em
nenhum livro».88
Os críticos observaram e com razão que algumas das suas passagens musicais
ultrapassavam a capacidade dos instrumentos para os quais tinham sido escritas. Ele deu
uma resposta totalmente ilógica, mas adequadamente artística: «acreditarão, acaso que
posso pensar num miserável violino quando converso com o espírito?» Segundo ele
seria «o mesmo que esperar que um vulcão vertesse as suas lavas em moldes artificiais,
preparados por mãos humanos».89
Depois de um período de grandes dificuldades o homem que vive separado do
mundo exterior, vira-se para si próprio, medita, liberta das fórmulas tradicionais,
83
Romantismo provém do conjunto dos movimentos intelectuais que, a partir do final do séc. XVIII
fizeram prevalecer o sentimento sobre a razão e a imaginação sobre a análise crítica.
84
HENRY,Thomas. LEE, Thomas Dana. Vida de Grandes Compositores, tradução de Octávio Mendes
cajado, Livros do Brasil, Lda., Lisboa, s/d, p. 73.
85
Ibidem, p.74.
86
Ibidem, p. 74.
87
Idem.
88
Idem.
89
Idem.
51
introduz novos elementos na sua música. Regressa, todavia, à fuga ao recitativo
dramático, cria a forma de grande variação nas cinco últimas sonatas para o piano
(1815-1822), a Missa em Ré, obra vigorosa e ousada (1823), a Nona Sinfonia com coros
fresco magnifico coroado pelo hino à alegria (1823). A nona sinfonia só ficou pronta em
1824. Porquê fazemos referências a coisas, aparentemente, banais? Devido a
importância histórica e musical da Nona Sinfonia. Como afirmou, certa vez, o Prof.
Santayana, «Deus criou o Mundo, afim de que pudesse ser escrita a Nona
Sinfonia».90Ainda sobre ela, R. Wagner disse o seguinte: «vemo-nos hoje diante dela
como diante de Como uma baliza de um período inteiramente novo na historia da arte
universal, pois surgiu no mundo, por intermédio, um fenómeno que nem remotamente
pode ser comprado a coisa alguma que a arte de qualquer período ou de qualquer
idade tenha para mostrar-nos».91
A 9ª Sinfonia, opus. 129 é a obra mais popular de Beethoven e traduz o
pensamento musical abstracto, marcando assim a influência de Beethoven e do
Idealismo filosófico e cultural Alemão. Foi entre os alemães, uma espécie de “BuliMundo”!
Se Beethoven reinou com a música instrumental, o passo seguinte tinha de ser
«a música fertilizada pela poesia»92. Tal é a espécie de poesia musical, ou drama
musical, que Wagner se oferecera para dar ao mundo. Segundo ele, «as palavras não
logram, por si só, exprimir a espécie mais alta da poesia. As palavras são as raízes, e a
música, a flor».93 Contudo era a flor, para Wagner, mais importante do que a raiz, pois
era, fundamentalmente, como Beethoven, um compositor instrumental.
Wagner defendeu uma nova forma de ópera, o "drama musical", em que todos os
elementos musicais e dramáticos são fundidos. Diferente de outros compositores de
ópera de até então, que geralmente delegavam a tarefa da escrita do libreto, Wagner era
responsável pelos seus, os quais eram referidos como "poemas". Wagner também
desenvolveu um estilo de composição em que o papel da orquestra é igual ao dos
cantores.
90
Ibidem, p. 82.
Idem.
92
Ibidem, p. 167.
93
Idem.
91
52
CAPÍTULO III. PARA UMA ONTO-EST-ÉTICA DA
MÚSICA
§1. A EXPERIÊNCIA ONT-EST-ÉTICA DA MÚSICA.
Falar da experiência “Onto-est-ética” da música é falar, simultaneamente, da
“dimensão ontológica”, da “dimensão estética” e da “dimensão ética da música”.
A dimensão ontológica tem a ver com a manifestação do Ser na música. Como
vimos há uma certa superioridade da música em relação às outras artes, uma vez que ela
é mais real, dado que exprime directamente o Ser em si.
Devido à sua dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder. Um
dos efeitos que ela causa em nós é que «ela não exprime tal ou tal alegria, tal ou tal
aflição, tal ou tal dor, terror, encantamento, vivacidade ou calma do espírito. Ela pinta
a própria alegria, a própria aflição e todos esses outros sentimentos por assim dizer,
abstractamente».94 Ela tem uma capacidade, tão própria para comover os nossos
sentimentos mais íntimos, tão profundo e inteiramente compreendida, semelhante a uma
língua universal que não é inferior em clareza à própria intuição.
É difícil ficar indiferente face à música. A nossa fantasia procura dar uma figura
a esse mundo de espíritos invisível e, contudo, tão animado, tão inquieto que nos fala
directamente a partir do abismo ou sem fundo: o Ser designado por Vontade.
94
- SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto s/d.
p. 345
53
O que caracteriza a música enquanto tal é o fenómeno de “estranhamento”,
porque a música como dissemos, captura-nos e penetra em nós através das vibrações
que percorrendo o nosso corpo, provocam afectos e ideias, o que em suma, poderíamos
chamar uma coreografia do pensar que atesta uma intensidade do pensamento.
Estranhamente, esta coreografia não dança mas sim escuta. Escuta porque a música
traduz a linguagem das próprias coisas e é aí que funda a universal compreensão, ou
seja, a sua consideração como sendo uma linguagem universal. É este sentido universal
que encontramos nas expressões já referidas: interferência (M. Serres), Vontade
(Schopenhauer), universalidade, expressa esta que nas palavras de Edevard Elgar traduz
assim: “penso que há música no ar, que estamos rodeados de música, que o mundo está
cheio dela, e que cada um, simplesmente, toma o que quer”95.
Sim é exactamente isto que acontece, pois cada um toma aquela música que se
adequa com ele harmoniosamente, isto é, só aquelas que connosco se sintonizam,
constituem a “nossa música”, ou seja, cada um de nós, gosta daquelas músicas que nos
aparecem à nossa medida, fazendo-nos “passear por um mundo diferente”. Esse
“passeio” é uma escuta do tecido das interferências, uma vez que a música selecciona
harmoniosamente “o fundo acústico do universo” (M. Serres), dando nos o Ser através
do som. Esta espécie de filosofia da natureza, ou melhor, esta “ontologia” opera pelo
som que compõe, pelo som que descobre e inventa, actuando sobre o corpo e de uma
forma mais geral sobre o “ senti-mental” produzindo vibrações.
Assim, a música é um acto de penetração que torna o sentido sensível,
misturando o corpóreo com a energia da razão. Como dissemos, esta pulsação ou
energética, constitui o seu segredo, e parece-nos ser a sua incidência sobre o nosso
«senti-mental» que fez dela uma arte privilegiada nos rituais iniciáticos cujo fim é
conduzir ao êxtase.
O fenómeno de estranhamento inerente à música constitui o seu «punctum» – o
que fere, o que provoca uma agitação interior, e tal existe ou não existe para cada um de
nós, pois como dissemos, pensamos que a experiência do ouvir a musica é
eminentemente subjectiva, porque ouvir Wagner, Schubert, Mozart, Beethoven, etc.,
pode ser a experiência mais desconfortante possível para um não europeu com uma
educação estética completamente diferente, e o contrário também poderá acontecer. É
95
ELGAR, Edevard. A Música Clássica, Uma Nova Forma de Ouvir a Música, Alexander, Tradução
Temas de Actualidade, ASA, 1995, p. 45.
54
claro que existem aquelas músicas que conseguem captar a universalidade sensorial a
ponto de conter um punctum, universalmente.
Mas, o fenómeno de estranhamento permanece presente na nossa relação com a
música, pois não é fácil dizer o que numa música nos inquieta e nos faz gostar dela. O
seu «punctum» simplesmente nos fere e é, neste sentido, que Schopenhauer alertava
para o inefável musical quando afirma «a música é para nós perfeitamente intelegível e
completamente inexplicável».96
Da mesma forma, Jankélévitch (L`Inefable)97 fala-nos do ponto intraduzível da
música que ele expressa tanto pelo conceito de «expressivo inexpressivo» (o profundo
musical que se manifesta), como pelo conceito de «expressivo inexpressivo» que se
aproximam do conceito, inefável. O inefável tem a ver com o que a música tem para nos
dizer, isto é, com o infinito interminável, tal como o insondável mistério de Deus, ou o
mistério do amor. Isto faz com que a riqueza comunicativa da música ultrapasse os
poderes de interpretação e de análise da linguagem, pois a música como algo que nos
põe em contacto com a nossa consciência só admite a “interpretação infinita” como a
única forma de nos aproximarmos da energia ou intuição que lhe fez emergir no tempo
(o tempo vivido), energia esta que quando em nós penetra, é capaz de provocar a
experiência estética.
É, sobretudo, a noção de «punctum» que nos serve de base para explicação
daquilo que podemos chamar de experiência estética musical, pois se atendermos que
esta experiência é a sensação do belo em nós, aquilo que nos comove e move o nosso
interior, isso se justifica porque o som musical nos dá a ver o sublime, pois sentimos a
presença de uma certa presença invisível que habita esse som.
Essa aventura ou «agitação interior» que experimentamos deve-se àquilo que
Roland Barthes (Câmara Clara) chama de «punctum», o acontecimento da música em
nós, a nossa animação pela música, a produção de um afecto ou sentimento em nós.
«Studium» e «punctum» são as noções utilizadas por Barthes para a descrição
deste afecto, que experimentamos perante certas músicas, querendo o primeiro,
significar um afecto médio – um investimento geral geralmente relacionado com as
intenções do ouvinte ou o próprio acontecimento algo que nos chama atenção e, o
96
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto, p.
348.
97
JANKÉLEVICH, Vladimir. La Musique et L`Inefable, Flammarion.
55
segundo, o «acaso que nos fere» e que prefigura a imprevisibilidade da experiência
estética.
O princípio da experiência estética musical pode ser o raro, o aparentemente
impossível, o que reflecte a nossa experiência, o que supera a nossa experiência, mas
não nenhuma experiência estética sem a experiência cinestésica.
Assim, o punctum musical pode ter como causa, outras razões: o contacto da
música com a consciência (G. Steiner), o contacto com a nossa alma (Platão), o facto
dela expressar a harmonia (Pitágoras), a melodia, etc., o facto dela poder revelar a
essência do mundo (Schopenhauer), o facto dela seleccionar as interferências (M.
Serres), etc. Por exemplo, Steiner advoga que a musica é a arte que nos torna vizinho da
transcendência por pressupor aquilo que nomeia a vida e que é a condição de todo o
sentido: o absoluto.
A música é essa filosofia da natureza, essa “acustologia” que opera pelo som, e
tenta transformar o ser inefável em forma «viva e vivida». Sem ou com a mistificação,
muitos reconheceram desde há muito esta ideia: por exemplo, sabe se que Plotino e
Santo Agostinho concebiam a música como imitação da música supra-sensível – «a
histórica música das esferas celestes»; para além da forma viva e vivida, Hegel
(Estética) e Kandinsky, falam-nos de uma «interioridade ressonante e espiritual» (Do
espiritual na Arte) de que a musica é a expressão.
A música que nos fere contém uma certa energia do inexplicável, mas sensível, e
é essa sua bela «violência ontológica» que desperta a experiência estética musical. É por
isso, que Steiner nos diz que «é na e através da música que acedemos mais e
imediatamente a presença dessa energia do Ser, lógica e verbalmente inexprimível, mas
plenamente sensível que comunica aos nossos sentimentos e ao nosso pensamento o
pouco que somos capazes de aprender da maravilha nua da vida»98.
A enigmaticidade da música faz dela ser, frequentemente, uma arte «séria e
frívola, profunda e superficial» como dizia Jankélévitch99, pois a música pode tudo
dizer quando contem um «punctum» ou nada dizer em caso contrário. Esse «punctum» é
imprevisível, pois nenhum músico ao compor a sua música sabe de antemão que quando
actualizada tal terá um impacto social ou individual profundo.
A música opera com som e com silêncio, e é o seu trabalho em tons que nos
encanta quando antes era somente nós que a cantava, ou seja, aquilo que cantamos,
98
99
STEINER, George. Presença Reais, Op. cit., p. 193.
JNKÉLEVITCH,V., Op.cit. p. 17.
56
agora nos encanta! Esta é o mistério da música, porque ela mistura afectos e ideias,
transborda de sentidos e apela o nosso sentido, expressa sentimentos e desperta
sentimentos.
Enquanto actividade que se inicia com a justaposição de sons interiores
(emoções) derivados de acontecimentos que são um «studium», a música desperta a
experiência estética - a agitação interior quando nos faz passear por um mundo que era
anteriormente desconhecido.
A sua incidência sobre os nossos afectos e as nossas ideias explicam o seu
punctum. Entendemos por afectos, as afeições do corpo que aumentam ou diminuem a
nossa potência de agir. Mas não é verdade que a música tem esta capacidade? Claro que
sim, pois a sua incidência sobre o nosso «senti-mental», sobre a nossa dimensão
somática e espiritual explica todo o seu «punctum», mas o «punctum» é singular e
imprevisível.
Em suma, a experiência estética musical acontece porque a experiência do ouvir
embora seja uma experiência subjectiva, expressa um momento em que não é apenas
um instante no qual se investe valores previamente existentes, mas sim «um momento
de acontecimento de coisas que nos acontecem aí, face à obra (sensações, afecções,
sentimentos e pensamentos) e a tornam por isso relevantes».100
Mas em que medida a música pode ser uma obra? Porém antes de responder esta
questão, gostaríamos de dizer que «os seres humanos não são ao que parece os únicos
seres que respondem positivamente a musica»101.
Por agora, passemos à dimensão ética da música, uma vez que assim como em
qualquer área precisamos da ética, também na música é preciso ter em conta a dimensão
ética.
100
CRUZ, Maria Teresa. Percepção Estética E Publico Da Cultura: A Arte, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1992, p.53.
101
- Em Música Clássica, uma Nova Forma de Ouvir a Música, Op.cit. (p. 34) pode se ler o seguinte:
«numa experiência cientifica na universidade de Annamalai, na Índia por exemplo as plantas de
balsamina sujeitas a gravações de música de alaúde cresciam mais e eram mais viçosas do que as que
não tinham música. Também as colheitas de arroz eram, consideravelmente, superiores quando as
plantas eram cultivadas ao som da música. Mais estranho ainda, uma investigação levada a cabo na
Universidade de Denver nos anos oitenta, conclui que as plantas preferem à música clássica, à música
rock. As sujeitas ao rock e haevy-matal cresciam ou anormalmente grandes ou então enfezadas e ambas
morriam no espaço de duas semanas. Inversamente, as plantas que cresciam sob o mesmo tipo de
condições, mas a música de Handel e Bach, floresceram e até se inclinaram para a fonte do som
musical».
57
A música é, por excelência, o meio mais democratizado de transmissão de ideias
e convicções. O dom de poder ser passivamente absorvida por nós faz dela a mais
poderosa ferramenta para juntar comunidades, etnias, grupos de opiniões, etc.
Não necessitamos de entrar em contextualização histórica para descrever a
importância que a ética e a consciência social tem perante o homem.
Em nome da ciência e graças a ela, já se cometeram as maiores atrocidades de
que o nosso planeta tem memória. Com todo o conhecimento que deu origem à bomba
atómica é usado, hoje em dia, para curar com sucesso muitas formas de cancro. Citamos
apenas um exemplo mais óbvio para dizer, que o facto de se possuir um poder
conferido, quer pelo conhecimento, quer pelo dom, nos dá uma chave que poderá abrir
duas portas: uma catastrófica, e outra que pode não resolver muitos problemas, mas que
abre caminhos para um mundo melhor. É neste sentido, que existe um juramento
assinado por todos os médicos, cientistas engenheiros tecnológicos etc. Defendemos
também uma cultura de transmissão de ética em todas as profissões, até porque a música
também está dentro das margens que comprimem a relação entre o Bem e o Mal.
Se vertente comercial da música tem como consequência inicial a oferta do fácil,
de consumo imediato e uma diminuição global da qualidade da nossa música na rádio,
promovendo a preguiça intelectual e a mediocridade ao longo prazo transforma-se numa
maquiavélica ferramenta de manipulação. Criam-se estéticas em defesas de regimes
(todas as ditaduras tem uma estética própria associada) defendem-se ideologias
duvidosas e maléficas. E, estranha é, que autores dessas manifestações de arte defendem
o seu trabalho como “a arte pela arte”, ignorando o facto de que a arte é feita por
homens para os homens.
Sendo a música usada e abusada pelos piores fins, cabe à comunidade musical
contrariar esta terrível tendência e agir activamente no sentido de uma evolução social.
Sendo os músicos seres humanos indissociáveis do seu trabalho, eles têm o
dever, a obrigação, de influenciar o meio em que vivem, já que foi este que lhe deu a
inspiração e o reconhecimento que têm.
A consciência social ética a isto obriga, e é para isso que serve a música: para
numa harmonia perfeita entre o belo e a vontade de mudança, tentar fazer deste mundo
mais justo. Eis porque, em tempos difíceis, a música anuncia quase sempre uma
mensagem para o futuro.
58
§2. ELEMENTOS PARA UMA “ONTO-EST-ÉTICA” DA MÚSICA.
Como já frisamos no capítulo anterior, falar da experiência “Onto-est-ética” da
música é o mesmo que falar da “dimensão ontológica”, da “dimensão estética” e da
“dimensão ética”. Daí que para se obter uma verdadeira onto-est-ética da música sejam
necessários alguns elementos, tais como: Ser (Ontologia), Sensibilidade, Emoção,
Percepção Sensível (Estética) e o Bem e o mal (Ética).
Como sabemos existe uma relação entre esses elementos e a música.
Como já disse anteriormente a uma certa superioridade da música em relação as
outras artes uma vez que ela exprime directamente o ser em si. A música não é, como as
outras artes, a cópia das ideias mas, a cópia da própria vontade. Ela nos apresenta a
vontade eternamente em movimento, lutando, vagando, sempre voltando, afinal, para si
mesma, a fim de recomeçar a batalha. É por isso, que o efeito da música é mais
poderoso e penetrante do que o das outras artes, pois estas só falam de sombras,
enquanto ela fala da coisa em si mesma. O ser manifestado na música expressa a
dimensão ontológica da música. A música é de certa maneira ontológica uma vez que há
uma relação estreita entre a música e o verdadeiro ser das coisas. Devido a sua
dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder.
É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a
das outras artes. «Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do
ser»102.
Outros
dos
elementos
que faz
parte da
“Dimensão Estética”
são:
Sensibilidade103, Emoção104 e Percepção105 Sensível. Como sabemos a arte esta
102
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto s/d.
p.340
103
De forma mais simplista é capacidade de captar e expressar sentimentos e coisas. E esta habilidade de
lidar com o sentir não é de todo inata. Ela é educada, estimulada pela vida e suas experiências. Sua
condição passa directamente pelo trato do egoísmo ou pela socialização do ser.
104
Não sei bem se é o correto mas vejo da seguinte forma.Estado sentimental momentâneo em que o
indivíduo tem seu organismo excitado. Há diversos tipos de emoção: medo, cólera, alegria, tristeza,
piedade, felicidade, remorso, admiração, amor, ódio, culpa, vergonha etc. As emoções podem verificar-se
como: experiências emocionais (quando o indivíduo sente a emoção), comportamento emocional (quando
59
relacionada com a estética. E a estética como sabemos vem do grego Aisthêsis,
faculdade de sentir, que é a ciência que trata do belo e do sentimento que ele faz nascer
em nós.
Os problemas da estética podem agrupar-se em duas rubricas: uma a da criação e
outra a da percepção estética. Temos assim: a obra de arte que é uma forma de
expressão muito completa e muito profunda; ela apela para que o espectador se
empenhe na ordem do sentimento. E uma teoria da percepção, isto é, do juízo do gosto
ou do sentimento do prazer. Identificamos, deste modo, dois tipos de experiência: o da
criação e o da percepção. Quando falamos da criação, estamos a pensar na criação
artística, portanto, nas manifestações da arte: escultura, pintura, arquitectura, cinema,
dança, música, teatro, etc., que revelam uma transfiguração da experiência que,
simultaneamente, a retoma e reconstrói, quer no plano da racionalidade quer no plano
da criatividade. Quando falamos da percepção estética, queremos dizer que pretendemos
entrar no mundo da arte como espectadores atentos, pela aprendizagem do olhar e pela
educação da sensibilidade, no sentido da formação do gosto e da abertura de novos
horizontes, que nos revelam novas dimensões da realidade, alargando a nossa área de
sentido do real.
A experiência estética constitui, portanto, uma das vivências do ser humano, que
pode ser desenvolvida, por exemplo, a partir das: artes do som e do movimento como a
música e a dança.
A música tem o poder de causar em nós sensações, emoções e mexer com a
nossa sensibilidade. Mas devemos compreender que a música não representa as
emoções, esta alegria ou aquele sofrimento, mas sim, ela é a alegria e o sofrimento
essencial, na objectividade primeira do querer, fora de qualquer encadeamento de
causas e motivos.
é levado, pelo sentimento, a fazer algo), além de se notarem também alterações fisiológicas que
correspondem ou são provocadas diretamente pela própria emoção: ficar "vermelho" de vergonha, ficar
"branco" de susto, ter batidas do coração aceleradas por causa do medo etc. Logo se vê que toda emoção é
um sentimento que pode levar a uma acção (preparação motora): um sentimento de cólera leva ao ataque,
um sentimento de grande tristeza provoca o choro "para desabafar". Evidentemente, a intensidade das
emoções varia muito, e se a tensão resultante da emoção for muito alta, haverá o impulso para uma ação
correspondente.
105
- Representação do mundo exterior a partir das impressões sensíveis.
60
Ela difere também das outras artes porque afecta directamente os nossos
sentimentos, e não por intermédio de ideias. Ao contrário das outras as artes que não
objectivam portanto directamente, mas por intermédio das ideias, à «música vai pala
além das ideias». A música fala a algo mais subtil que do que o intelecto, ela é uma
reprodução da vontade.
Música é, antes de mais nada, arte. E, quanto a nós, homens, quanto mais
conseguirmos desfrutar da música como quem contempla uma obra de arte, mais
teremos condições de evoluir. Ao mesmo tempo, quanto mais evoluídos formos, mais
teremos condições e alcance para detectar em qualquer tipo de manifestação musical o
que legitimamente ela contém em qualquer instância: uma obra de arte.
Por fim temos os elementos que fazem parte da “dimensão ética da música” que
são o bem e o mal. Assim como já referi anteriormente assim como em qualquer área
precisamos da ética também na música é preciso ter em conta a dimensão ética.
A música é por excelência o meio mais democratizado de transmissão de ideias e
convicções.
A música pode ser utilizado tanto para o bem como também para o mal. Muitos
utilizam a música como forma de crítica contra os males da sociedade.
Segundo a sabedoria dos antigos a toda música cabe o papel de esteticamente
transmitir verdades eternas e influir no carácter do homem visando a torná-lo melhor,
mas que em decorrência da polaridade das coisas existentes ela também sempre foi
usada para fins opostos.
Aonde quer que estamos ou formos estaremos em contacto com a música
devidos as gravações acessíveis a todos, aparelhos de som de todos os tipos, rádio,
cinema, televisão, etc., portanto existindo um fundo musical em tudo. Não se passa um
momento sem que se esteja escutando algum tipo de música através de rádios, de
aparelhos de som, etc., nas lojas, em casa, no carro, nos autocarros, nas ruas...
Actualmente em tudo se faz sentir um fundo musical. O pior é que se tem que escutar
música quer queira quer não queira e o que é pior escutar sem o direito de fazer uso do
direito de escolher o que se quer ou não se quer ouvir.
Por isto os “sábios filósofos chineses” estavam certos de que toda música
sensual exercia uma influência imoral sobre o ouvinte, razão pela qual os governantes
estabeleciam métodos de fiscalização visando que as músicas tocadas fossem
estreitamente vigiadas de modo a se identificar se ela tendia para a degradação moral ou
61
se direccionava à espiritualidade, em outras palavras, visava saber se ela tendia ao bem
ou para o mal.
Que seria da terra sem ela, a música, que nos acompanha por eras, que permeia a
estratosfera com suas notas coloridas e tons contrastantes, que rega nossas almas
quando secas, que afugenta tristezas.
62
CONCLUSÃO
Em termos conclusivos, resta-nos somente apresentar alguns comentários finais,
sobre o tema exposto.
No término deste trabalho, concluímos que pela primeira vez na história da
filosofia depois dos Pitagóricos, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes.
Com Arthur Schopenhauer, a música é elevada à “ Magma Arte”. Com isso, ela assume
um papel de extrema importância na sua filosofia, uma vez que revela a estrutura
profunda do real: a Vontade.
Para compreender melhor o grau de importância que ele atribui à música, tivemos
que compreender o conceito de Vontade [Wille] e Representação [Vorstellung], aspecto
vital na compreensão do seu pensamento filosófico.
Schopenhauer supera o Kantismo assumindo um posicionamento metafísico,
reclamando a necessidade e a possibilidade da metafísica como ciência. Para ele, o
fenómeno é tudo aquilo que é percebido e pensado e, o númeno é a Vontade
cognoscível por uma intuição imediata. Com isso supera o kantismo, ao elaborar uma
metafísica imanente, submetendo a razão à Vontade. Uma vez que a própria Vontade se
situa no plano metafísico e representa um querer viver essencial sob o qual o homem
está e do qual não pode se livrar, a metafísica é essencial ao homem.
A Vontade é a raiz metafísica do mundo. É o próprio poder da vida universal,
anterior ao princípio da razão. Ela tem a característica de ser sem finalidade, irracional e
inconsciente, além de possuir um poder cego e irresistível que gera a dor. A Vontade é,
sobretudo, o substrato de todos os fenómenos. Ela é o númeno, mas ao se mostrar,
torna-se fenómeno. Aliás, todo o fenómeno é vontade na sua forma objectiva. A partir
daí, é possível dizer que o homem age porque é movido pela Vontade, que, por sua vez,
nada tem de racional.
Porém, a acção do homem, diferentemente da Vontade, transcorre racionalmente.
Este é, por sua vez, a unidade do mundo, justamente, por estar presente em todas as
pessoas, sem excepção. Se a Vontade gera a dor, fazendo do viver um sofrimento, a
63
única forma de superar essa dor é eliminando a Vontade. E isto pode dar-se pela
contemplação artística, para Schopenhauer, todas as artes são libertadoras.
De todas as artes, Schopenhauer exalta a música como sendo a mais grandiosa e a
mais majestosa. Além disso, ela possui um poder especial, devido ao facto de ter um
aspecto universalizante que ultrapassa qualquer tipo de individualidade.
A referência da música é o efeito estético. É importante ressaltar que existe em
todos os homens a capacidade de conhecer as ideias nas coisas, exteriorizando-se
momentaneamente, de sua personalidade. É inerente a todas às pessoas essa faculdade,
sem a qual não teriam receptividade para o belo. Esquecendo-se de si mesmo através da
música, o homem liberta-se do sofrimento ao qual estava sujeito no seu trabalho
serviçal em relação à Vontade. Essa libertação se dá pelo puro som, devido ao facto
deste obter influência imediata sobre a vontade, produzindo no indivíduo um prazer
estético que é o contentamento quanto ao conhecimento puro, intuitivo e, como tal, em
oposição à Vontade.
Em suma, a música atinge a todos, até aos menos sensíveis. Toda arte tem como
fim, estimular o conhecimento das ideias. As ideias localizam-se totalmente, fora da
esfera do conhecimento do sujeito como tal. São formas imutáveis, o em-si do mundo.
O mundo é o fenómeno delas em multiplicidade. Visto que todas as artes estimulam o
conhecimento das ideias, a música possui particularidades que a diferenciam de todas as
outras artes. Isso porque ela segue além das ideias, ganhando assim independência do
mundo aparente. A sua existência seria possível mesmo com a inexistência do mundo.
A Vontade é a coisa em-si, logo, a ideia é a objectividade imediata da Vontade. As artes
reproduzem as ideias. A música é a reprodução da própria Vontade, justamente, por se
referir à essência da Vontade. Esse é o diferencial da música para com as demais artes.
A música reproduz todos os movimentos da mais íntima essência humana, por ser
destituída de realidade e sofrimento. Enfim, a música tem como objecto a Vontade, a
partir do momento em que ela expressa o em-si do mundo, isto é, a própria Vontade,
que pode e deve ser reconhecida como a verdadeira filosofia. A música é, então a
verdadeira filosofia e a estética uma ontologia.
Gostaríamos de realçar que este tema está longe de se esgotar, sendo assim, nunca
foi nossa pretensão resolver de uma vez para sempre a questão, o que seria absurdo da
nossa parte, a nossa intenção foi desde inicio apresentar uma leitura própria do
problema em análise.
64
Esperamos ter alcançado os objectivos propostos, despertado interesse para o
estudo da filosofia schopenhaueriana. Ainda, esperamos que este trabalho venha a servir
como um importante instrumento de pesquisa para todos aqueles que queiram
aprofundar os seus conhecimentos sobre a filosofia de Schopenhauer e sirva de auxílio
para todos que venham a Trabalhar esse tema.
65
BIBLIOGRAFIA
- COUTO, Carlos, Tópica Estética, Filosofia – Música – Pintura, Imprensa
Nacional - Casa Moeda, Lisboa, 2001.
DAHLHAUS, Carl. Estética Musical, Tradução de Artur Morão, Lisboa,
Edições 70, 1991.
DUFRENNE, Mikel. Estética E Filosofia, S. Paulo - Brasil, 2ª Edição Editorial
Perspectiva,1981.
- KIRK, G. RAVEN, J. E., SCHOLFIELD, Malcom. Os Filósofos Pré Socráticos, 4ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1994.
- MOORE, Douglas; Guias Dos Estilos Musicais, Edições 70.
- NIETZSCHE, Friedrich. A Origem Da Tragédia, Guimarães Editores, Nona
Edição, Lisboa, 1999.
- NIETZSCHE, Friedrich, Ecce Homo, Textos Filosóficos, Tradução de Artur
Morão, Edições 70, Lisboa.
- PLATÃO, A República, tradução de Maria Helena da Rocha Pereira Ed.
Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, Lisboa, s/d.
- SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos, Tradução de Alexandra Tavares,
Livros de bolso, Publicação Europa-America, s/d.
- SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos Para A Sabedorias de Vida, Prefácios
e Notas de Jair Barboza, 1ª Edição, Ed. Martins Fontes, 2002.
- SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte, Metafísica Do Amor, Do Sofrimento
Do Mundo, Texto Integral, Tradução de Pietro Nassetti, Ed. Martin Claret, s/d.
- SCHOPENHAUER, Arthur. Da Necessidade Metafísica, 2ª Edição, Tradução
de Lobo Vilela, Cadernos Culturais, Ed. Inquérito, s/d.
- SCHOPENHAUER, Arthur. Contestação Ao Livre – Arbítrio, tradução de
Lurdes Martins, Rés – Editora, 2002.
- SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés –
Editora, Lda. Porto s/d.
- SERRES, Michel. Hermes II, L`interférence, Minuit,1972.
66
- STEINER George. Ramin Jahanbegloo, Entrevista com Ramin Jahanbegloo,
tradução: Miguel Serras Pereira, Fenda Edições Lda. Lisboa 2000.
- SCHILLER, Friedrich. Teoria da Tragédia, Tradução e Nota de Anatol
Rosenfeld, 2ª Edição, Editora E.P.U. Lda, São Paulo, 1992.
STEINER, George. Presenças Reais, Tradução e Posfácio de: Miguel Serras
Pereira Editorial Presença, Lisboa, 1993.
- THOMAS, Henry, THOMAS Dana Lee, Vida de Grandes Compositores,
Tradução de Octávio Mendes cajado, Revista por A. Vieira D´areia, Livros do Brasil,
Lda, Lisboa.
- VECCHITTI, Icilio, Schopenhauer, Tradução de Dr. João Gama, Edições 70,
s/d.
- VLADIMIR, Jankélévitch, La Musique et L`Ineffable, Flammarion.
67
Download

Metafisica da Música Na Filosofia de Arthur Schopenhauer