UNIVERSIDADE DE CABO VERDE INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO Departamento de História e Filosofia Dionísio Gomes Da Costa Metafísica da Música na Filosofia de Arthur Schopenhauer Licenciatura em Filosofia UNI-CV/ISE, Setembro de 2008 Dionísio Gomes Da Costa Metafísica da Música na Filosofia de Arthur Schopenhauer Trabalho científico apresentado no ISE para obtenção do grau de Licenciado em Ensino de Filosofia sob orientação do Mestre Rui Manuel Da Veiga Pereira 2 INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO Departamento de História e Filosofia Trabalho científico: Metafísica da Música na Filosofia de Arthur Schopenhauer Elaborado por: Dionísio Gomes Da Costa Orientado por: Mestre Rui Manuel da Veiga Pereira Aprovado pelos membros do Júri, homologado pelo conselho científico aos ___/___/___. O Júri ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Praia, aos _____de__________________ de 2008. 3 Dedicatória Dedico este trabalho à minha família, à minha namorada, ao meu orientador e a todos os meus amigos por todo o apoio material e incentivo moral, sem os quais não teria condições de prosseguir esta caminhada. 4 Agradecimentos: O meu agradecimento destina-se: A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a realização deste trabalho, que hoje mais do que um projecto, tornou-se uma realidade; - À minha família, por todo o apoio material e incentivo moral, sem os quais não teria condições de prosseguir; - A minha namorada e a todos os meus amigos, sobretudo, os mais próximos, pelos favores prestados e todas as formas de ajuda, sinto-me também na obrigação de reconhecer devedor de preciosos favores resultantes desses laços da pura amizade; - A todos os professores que me ajudaram durante o curso, pois, a minha dívida pessoal para com eles é enorme; Ao meu orientador, Prof. Mestre Rui Manuel da Veiga Pereira, pela genial e especial orientação. Foi sempre o primeiro, o mais atento e crítico leitor deste trabalho, pelo que me sinto profundamente endividado, mas também totalmente agradecido; Mas, de qualquer modo, estou ciente que, as verdadeiras e calorosas expressões aqui proferidas, ainda que plenamente verdadeiras e sentidas não transmitem totalmente o meu profundo apreço e agradecimento. Contudo, espero que, ao menos conservem o valor simbólico da sua enunciação e da sua anunciação. 5 ÍNDICE INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 7 CAPÍTULO I. PARA UMA METAFÍSICA DO TRÁGICO. ......................................... 9 SCHOPENHAUER: CONTEXTO E VIVÊNCIA ........................................................... 9 §1. O MUNDO E A SUA ESTRUTURA ONTOLÓGICA (VONTADE) E FENOMENAL (REPRESENTAÇÃO): ENTRE O SOFRIMENTO E A TRAGÉDIA. 11 O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO [Die Welt als Vorstellung] .......................... 14 O MUNDO COMO VONTADE [Die Welt als Wille] ................................................... 16 O SOFRIMENTO ....................................................................................................... 18 §2. O MUNDO COMO PROBLEMA ESTÉTICO: SCHOPENHAUER / NIETZSCHE. ............................................................................................................. 25 CAPÍTULO II. A CAMINHO DA METAFÍSICA DA MÚSICA ................................. 28 §1. DA ESTÉTICA DO TRÁGICO À METAFÍSICA DA MÚSICA: MÚSICA E AS OUTRAS ARTES – A ESTÉTICA DE SCHOPENHAUER. ................................... 28 METAFÍSICA DA MÚSICA ..................................................................................... 32 HIERARQUIA DAS ARTES..................................................................................... 38 §2. QUAL A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER? .................................................................................................. 40 §3. A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA MÚSICA OU DA MÚSICA COMO REVELAÇÃO DA VONTADE. ................................................................................ 43 §4. O PENSAMENTO DA MÚSICA OU FILOSOFIA DA MÚSICA: PITÁGORAS, PLATÃO, WAGNER, NIETZSCHE, BEETHOVEN, GEORGE STEINER, VLADIMIR JANKÉLÉVITCH, MICHEL SERRES. ............................................... 45 CAPÍTULO III. PARA UMA ONTO-EST-ÉTICA DA MÚSICA ............................... 53 §1. A EXPERIÊNCIA ONT-EST-ÉTICA DA MÚSICA. ......................................... 53 §2. ELEMENTOS PARA UMA “ONTO-EST-ÉTICA” DA MÚSICA. ................... 59 CONCLUSÃO ................................................................................................................ 63 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 66 6 INTRODUÇÃO A escolha do tema «A Metafísica da Música» foi preferida pela satisfação e pela sua extraordinária relevância. Mais do que uma psicologia da música, estamos perante uma metafísica da música. A nossa intenção é, apresentar uma leitura própria do problema em análise, mostrando como é que através da metafísica da música, Schopenhauer nos conduz para o coração do problema do Ser, uma vez que a música exprime o poder da Vontade e revela essa “vontade de viver”, que caracteriza as coisas mundanas cujo devir significa a manifestação fenomenal do verdadeiro Ser: a Vontade (Wille). A música exprime o Ser e o seu devir, exprime o devir do sublime que se afigura no belo. O poder da música é o devir concreto do poder do Ser ou Vontade na e através da sinestesia. Não sendo possível aqui apresentar uma análise profunda de todos os filósofos que falaram da música, o presente trabalho irá incidir apenas sobre alguns filósofos da música e, com maior relevância, sobre Arthur Schopenhauer. Por isso, esperamos apresentar uma abordagem original e fidedigna. A sua efectuação basear-se-á num método analítico, de modo que esperamos apresentar uma abordagem sintética e expressiva, tomando como base o livro “O Mundo como Vontade e Representação” de Arthur Schopenhauer. Tendo em vista o objectivo básico deste trabalho, que está estruturado em três capítulos e para que ele seja mais eficaz e eficiente, achamos por bem delinear um conjunto de questões que irão nortear o desenvolvimento do mesmo. São elas: - O Mundo: Sua estrutura Ontológica (Vontade) e Fenomenal (Representação); - O Mundo como problema estético: Schopenhauer/ Nietzsche; - O que é a Música para Schopenhauer? - Qual a importância da Música na filosofia de Schopenhauer? Dimensão ontológica da música; - Música e outras artes; - Qual o papel da música na tragedia grega? Nietzsche/Schopenhauer; - O pensamento da música ou Filosofia da música: Platão, Pitágoras, Wagner, Nietzsche, Beethoven, George Steiner, Vladimir Jankélévitch, Michel Serres. - A experiência onto-est-ética na música. 7 - Elementos para uma onto-est-ética da música; Estas e outras questões servirão de base para a efectivação deste ensaio de investigação filosófica cuja questão se resume nesta interrogação fundamental: Em que sentido a música exprime a estrutura ontológica (Vontade) e Fenomenal (Representação) do Mundo? 8 CAPÍTULO I. PARA UMA METAFÍSICA DO TRÁGICO. SCHOPENHAUER: CONTEXTO E VIVÊNCIA Poder-se-ia supor, que de entre todas as matérias, a filosofia estaria isenta dos caprichos da moda, mas não é assim. Em filosofia, tal como noutras actividades humanas, parece verificar-se em cada geração uma reacção aos valores da geração precedente. Em resultado disso, escritos largamente estudados até então caem no esquecimento, e novas figuras aparecem em primeiro plano. E, como consequência, pode acontecer que em qualquer tempo e lugar dados, é em grande medida o mesmo punhado de filósofo que se torna objecto de estudo, enquanto um certo número de outros filósofos proeminentes é comparativamente negligenciado. Mas vem uma nova geração e dá de novo valor a um ou dois desses Filósofos esquecidos, pelo que voltam a então a estar em moda. E, assim indefinidamente. Entre esses Filósofos a quem isso aconteceu visivelmente nos últimos duzentos anos encontra-se Arthur Schopenhauer. Em vida – mais ou menos durante a primeira metade do século XIX – foi, devido ao seu pessimismo, quase inteiramente negligenciado. Depois, na segunda metade do século XIX, foi, em conjunto com Hegel, Schelling e Ficthe a quem chamava “os três sofistas modernos”, um dos Filósofos mais famosos e influentes. Mas logo, na primeira metade do século XX cai, de novo, num esquecimento tão profundo, que nem mesmo os professores de filosofia se davam, por vezes, ao trabalho de o ler. E, agora, no nosso tempo, volta a ser alvo de atenção – entre outras razões, por ter contribuído para o surgimento do existencialismo na sobrevalorização do “irracional” e por ter contribuído para a de alguns filósofos como Nietzsche e Wittgenstein. 9 Arthur Schopenhauer nasceu em Danzig na Alemanha, hoje Gdansk, em 1788. Era de uma família de ricos mercadores, recebeu uma educação que visava não uma vida académica, mas o seu treino para o comércio internacional. Porém, a firma da família não lhe interessa e insistiu em ir para universidade, aplicando meios próprios no financiamento de toda uma vida de estudo independente e de escrita. A sua tese de doutoramento, Sobre a Quádrupla Raiz do Principio Suficiente, tornou-se um clássico, embora de importância menor. Ainda estava na casa dos vinte quando compôs a sua obra-prima, O Mundo como Vontade e Representação (MCVR), que levou quatro anos a elaborar e foi publicado em 1818, precisamente no ano em que fez 30 anos. Depois, até a sua morte, em 1860, com 72 anos de idade, publicou muita coisa, que todavia se destinava a ampliar, aperfeiçoar ou enriquecer o sistema filosófico construído quando tinha vinte e tal anos, e depois nunca se afastou. Assim, produziu uma colecção de ensaios chamada Parerga e Paralipomena e dois breves livros pungentes sobre ética intitulados Os Dois Problemas Fundamentais Da Ética e A Liberdade Da Vontade. Escreveu também um livrinho chamado Da Vontade Na Natureza, que tinha como objectivo, mostrar que as suas ideias eram apoiadas pelas novas descobertas da ciência. Mas, mais importante que tudo, em 1844 publicou uma edição revista d`O Mundo Como Vontade e Representação com mais de duas vezes, que o tamanho do volume original. Há vários aspectos notáveis em Schopenhauer, embora no seguimento directo de Kant, a sua obra se encontre, sem dúvida, dentro da corrente principal da filosofia ocidental. Era versado no hinduísmo e no budismo, sendo o único filósofo ocidental, de primeiro plano, a estabelecer paralelos significativos entre o pensamento ocidental e o oriental. De entre os filósofos ocidentais, admirava Platão, Kant, mas também Thomas Hobbes, que segundo ele, foi o primeiro filósofo ocidental de importância a ser aberto e explicitamente ateu. No esquema das coisas, Schopenhauer colocou as artes no plano mais elevado e disse mais sobre elas que qualquer outro grande filósofo – sendo em parte por esta razão, sem dúvida, que a influência que exerceu é, de longe, maior do que aquela exercida por qualquer outro filósofo da época moderna iniciada com Descartes. Também se pode dizer que se encontra entre os escritores supremos da prosa em língua alemã. Muitas das suas frases constituem aforismos tão brilhantes, que foram retidas do seu contexto e publicadas separadamente, em pequenos livros de epigramas.1 1 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos, Tradução de Alexandra Tavares, Ed. Europa – América, Lisboa, 1998. 10 §1. O MUNDO E A SUA ESTRUTURA ONTOLÓGICA (VONTADE) E FENOMENAL (REPRESENTAÇÃO): ENTRE O SOFRIMENTO E A TRAGÉDIA. Schopenhauer pretendia compreender o mundo em que se encontrava, o mundo em que vivia e do qual tentou elaborar uma interpretação coerente e unificada da experiência humana. Pretendia adquirir o domínio conceptual do mundo dos fenómenos, isto é, da pluralidade dos fenómenos. Para o fazer, pensava ser necessário identificar a realidade subjacente (Vontade)2 do mundo que seria a expressão fenomenal dessa realidade primeira. Se perguntasse porque pensava ele que havia uma realidade subjacente a identificar, suponhamos poder dizer, que uma das principais razões foi ter partido das premissas de Immanuel Kant: a distinção entre fenómeno e númeno. Com efeito, pensava que a maneira como vemos o mundo é uma perspectiva humana, que a mente humana está programada para ver o mundo de determinadas maneiras. Por exemplo, só podemos fazer a experiência dos objectos enquanto situados no espaço e no tempo, sujeitos a relações espacio-temporais e como exemplificadores da relação de causalidade. Mas obviamente, não decorre daí que, por as coisas nos surgirem de determinada maneira, elas sejam assim em si próprias, independentemente do modo como aparecem. O conceito de fenómeno (Phänomen), de algo tal como aparece a um sujeito humano, exige como conceito correlativo a ideia da coisa em si, a coisa como existe em si própria, independentemente da maneira como ela nos aparece. Todavia, embora Kant se recusasse, decididamente, a abandonar esta ideia da ciosa em si, afirmou repetidamente que não podia saber algo de positivo sobre a sua natureza. Na perspectiva de Kant (KrV), o conhecimento teórico do ser humano está confinado ao mundo fenoménico. Quanto a Schopenhauer, visava identificar a coisa em si, tanto quanto fosse possível faze-lo. Essa é uma ideia muito importante que vale a pena determo-nos nela, sobretudo porque as pessoas que a desconheciam terão dificuldade em entende-la. 2 Quando escrevemos «Vontade», referimo-nos à estrutura metafísica do mundo e quando escrevemos «vontade», referimo-nos ao desejo humano. 11 Kant havia argumentado que a experiência só pode chegar até nós por intermédio das nossas faculdades, do nosso aparelho sensorial e mental. Assim, aquilo de que podemos a experiência depende não apenas do que existe «lá fora» para experimentar mas, também, da natureza das nossas faculdades, daquilo com que elas podem lidar e do que fazem àquilo com que lidam. Isto significa que as formas concretas que a experiência assume dependem do sujeito. Nisto está a grandeza da “revolução coperniciana”. Daí, Kant passou ao argumento de que podemos conceber a realidade total como sendo constituída por dois mundos. Há o mundo da nossa experiência, que é como é porque nós somos como somos, e não podemos conceber doutra maneira. A este ele chama de mundo dos fenómenos ou fenoménicos. Depois, há o mundo das coisas como elas são efectivamente em si próprias, independentemente de nós e das formas da nossa experiência. A este mundo chama ele de mundo dos «noumenos», significando a palavra «noumeno» «a coisa tal como é em si». Segundo Kant, deste último reino não podemos dada a natureza das coisas, adquirir concepção directa. O nosso mundo – o mundo empírico, o mundo da vida quotidiana e do senso comum, o mundo que interessa a ciência - é o primeiro, o mundo dos fenómenos. É importante compreender que para Filósofos como Kant e Schopenhauer, o mundo empírico e o mundo dos fenómenos são a mesma coisa, no sentido em que não há, aqui, um dualismo cosmológico como em Platão. Para estes filósofos, as formas desse mundo são dependentes do sujeito. Ora, Schopenhauer retomou toda esta análise de Kant, dando voltas à cabeça a procura de qual poderia ser a conexão entre o mundo tal como ela é em si e o mundo tal como aparece. Aceitou a afirmação de Kant de que o primeiro nunca pode ser directamente conhecido, mas pôs-se a pensar se uma análise aprofundada do segundo nos não forneceria indicações importantes acerca do que ele deve ser – deve porque, no fim de contas, o segundo é em certo sentido uma manifestação do primeiro. Assim, desta maneira indirecta, procurava chegar à natureza da realidade subjacente: O Mundo é representação fenomenal da vontade, a sua manifestação concreta e originária. É importante recordar que para Schopenhauer só pode haver uma realidade subjacente. Kant considerava uma questão do senso comum, pensamos nós, que existe a mesa tal como nos aparece, então deve existir a mesa tal como é em si; e se existe uma cadeira tal como aparece, então existe uma cadeira tal como é em si – que há uma quantidade de coisa em si. Mas, como é evidente, se pensarmos em relação espaciais e temporais, e na relação causal, então não há um meio para distinguir uma coisa da outra. 12 Portanto, se a realidade subjacente transcende o tempo e o espaço e a causalidade, e é perfeitamente distinta do mundo dos fenómenos, então só pode haver uma. A pluralidade ou a multiplicidade pertencem ao mundo dos fenómenos. Todavia, seria um erro supor que Schopenhauer concebeu a realidade subjacente como a causa externa do mundo, uma causa que se situasse para além do mundo espacio-temporal e o transcendesse. Para Schopenhauer, tal como para Kant, a categoria da causalidade aplica-se apenas ao mundo empírico, dos fenómenos. A realidade subjacente (Vontade) é «a coisa em si ou em si das coisas»3, o “númeno” kantiano seria, para Schopenhauer, o interior do mundo (do mundo tal como aparece), quer dizer, seria de facto, aquilo que aparece, mas aquilo que aparece é, se assim podemos dizer, a realidade interna do mundo, não algo que transcende completamente o mundo. Ao contrário de Kant que diz, que só podemos conhecer o mundo fenoménico e que o númeno está para além da nossa capacidade, Schopenhauer vem dizer que podemos conhecer o númeno que ele identifica com a Vontade que é a coisa em si: «a coisa em si é unicamente a Vontade. Ela não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere»4. Segundo ele, é ao reflectir sobre todos estes factos que, ultrapassando o fenómeno, nós chegamos à coisa em si. De entre as muitas definições que possamos dar da Vontade, podemos dar esta: «A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda a coisa particular, como do conjunto. É ela que se manifesta na força natural cega. Ela encontra-se na conduta racional do homem».5 A Vontade é a coisa em si kantiana, ou seja, “A coisa em si (...) que como tal, nunca é um objecto, - visto que todo o objecto já não é mais do que o seu fenómeno e não ela mesma, tem necessidade, para ser pensada objectivamente de pedir emprestado um nome e uma noção a qualquer coisa de objectivamente dada, por consequência a um dos seus fenómenos; mas este para prover a inteligência, deve ser mais perfeito de todos, isto é, o mais evidente, o mais desenvolvido e além disso directamente iluminado pelo conhecimento. Ora, é nesta condições que se encontra a vontade humana”.6 3 SCHOPENHAUER, A, Die Welt als Wille und Vorstellung (1818). O Mundo como Vontade e Representação, Trad. de M. F. Sá Nogueira, Rés, Porto, p. 146. 4 Ibidem, Op. cit., p. 146. 5 Idem. 6 Ibidem, Op. cit., p. 146. 13 Podemos, ainda, identificar a vontade com a força: «a palavra vontade designa aquilo que nos deve descobrir, como uma palavra mágica, a essência de toda as coisas na natureza».7 Numa posição de corroboração, Schopenhauer diz: «considero toda a força da natureza como vontade»8. O conceito de Vontade é único. Entre todos os conceitos possíveis, encontramos um que não tem a sua origem no fenómeno, numa simples representação intuitiva, mas vem do próprio fundo, da consciência imediata do indivíduo, na qual ele reconhece ele mesmo na sua essência. O que conhece e o conhecido coincide. Tanto o indivíduo como o mundo são representações fenomenais da Vontade que é a essência em si dos fenómenos. Mas o que é afinal a representação? O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO [Die Welt als Vorstellung] Schopenhauer começa a sua obra, afirmando categoricamente aquilo que para ele era uma evidência: “O mundo é a minha representação”.9 A representação implica dois aspectos importantes: o sujeito da representação, que é o que tudo conhece e não é conhecido por ninguém; e o objecto da representação que é condicionado pelo tempo, pelo espaço e pela causalidade. O sujeito, para ele, estaria fora do tempo, sendo uno, indiviso, em todos os seres humanos capazes de representação. Caso o sujeito deixe de existir, deixa de existir com ele o mundo representado. O homem, como representação é um fenómeno, assim como o mundo. Ambos são expressões concretas da Vontade. O corpo do homem, para este autor, é a objectivação da vontade, ou seja, do em-si do homem. A realidade interna do homem, representada pelo fenómeno, é sua aparência. Vontade e corpo são inseparáveis, compondo um todo. A Vontade, por sua vez, representa o querer viver, é o querer realizar-se. A Vontade é a coisa em-si mesma, irredutível a qualquer outra coisa, sem causa, independente do tempo e do espaço, e das categorias. A vontade seria então, o fundamento [Grund] do mundo. 7 Ibidem, Op. Cit., p. 148. Ibidem, Op. Cit., p. 148. 9 Ibidem, Op. Cit., p. 7. 8 14 A Vontade não se desloca e se extingue passando da coisa desejada para a coisa conquistada. A vontade quer sempre afirmar-se; é avassaladora e sem sentido (irracional). Toda a vida é sofrimento porque é um constante querer eternamente insatisfeito, que leva ao amor, ao ódio, ao desejo ou à rejeição. Para Schopenhauer, a Vontade estava presente no mundo como se fosse a própria alma do universo, e era a força total pela qual o mundo existia e se movia. Ele fez da Vontade um ser à parte, que se manifestava em toda a natureza como o substrato de todas as coisas. A vida é a manifestação da vontade. Schopenhauer considera como materialização, realização em força ou materialização da Vontade, todas as forças e objectos da natureza como a gravidade, o magnetismo, os instintos animais, as forças de reacção química, etc. Schopenhauer elimina Deus como explicação causal do mundo e, no seu lugar coloca uma "Vontade universal" que é a força voraz e indomável da própria natureza. A Vontade nada tem a ver com a decisão racional por uma opção de agir (vontade humana), mas trata-se de um ser absoluto, essência primeira, a coisa em si, o númeno ou estrutura ontológica do mundo, que é irredutível e gera todas as coisas deste mundo, Essa fome insaciável da Vontade faz do mundo uma realidade anárquica e cruel. Essa Vontade, que é também um substrato, a coisa em si, no homem, é responsável pelos seus apetites incontroláveis. A filosofia de Schopenhauer é tida como pessimista10, pois o homem está enquanto finito, na condição de mortal; a vontade, muitas vezes, não possui nem meta nem finalidade, sendo insaciável. Isto tudo gera dor ao homem, o que leva o autor a pressupor que "Viver é sofrer". A vontade pode ser temporariamente saciada, causando tédio ao homem, e logo em seguida, passa novamente à sua condição de falta. A vida do homem, que é movida pelo desejo, oscila então entre a dor e o tédio. 10 Para aqueles que vêem o pessimismo na sua filosofia, Schopenhauer afirma: “As almas nobres, sentimentais, eternamente apaixonadas, podem protestar contra o áspero realismo da minha teoria”. Cf. Arthur Schopenhauer, Metafísica do Amor, trad. de Delfim de Brito, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 17. 15 O MUNDO COMO VONTADE [Die Welt als Wille] Segundo Schopenhauer, temos que abandonar a ideia de que o homem é um “animal racional” e considerar esta ideia como o “proton pseudo” isto é, como a primeira mentira ou erro inicial. Ele diz, que podemos comparar a nossa mente com a terra, uma vez que não sabemos o que está no seu interior, mas que conhecemos a sua crosta. Ele identifica a Vontade [Wille] com algo que está sob o intelecto consciente. A vontade é, de forma consciente ou inconsciente, uma força vital esforçada, persistente, uma actividade espontânea e uma vontade de desejo imperioso. Por isso, pensamos que o intelecto conduz a Vontade, isto é, que a vontade está ao serviço do intelecto, mas não é verdade, pois é o intelecto que dirige a vontade, mas só como um guia conduz o seu mestre “a vontade”. A Vontade transcende a própria razão. Schopenhauer identifica o intelecto com o forte homem cego que carrega nos ombros o homem que coxeia e que enxerga. Para clarificar esta ideia diz, que nós não queremos uma coisa porque encontramos motivos para ela, mas que encontramos motivos para ela porque a queremos. Chegamos até a elaborar filosofias e teologias para disfarçar os nossos desejos. Por isso, Schopenhauer chama o homem de «animal metafísico». Segundo ele, nada é mais provocante, quando estamos discutindo com um homem usando razões e explicações e fazendo todos os esforço para o convencê-lo descobrir, no final de contas que ele não quer compreender, que temos que nos entender com a vontade dele. Consequentemente, diz que «estudar a lógica tendo em vista as suas vantagens práticas, seria querer ensinar ao castor a construir a sua cabana. Mas, embora uma tal ciência seja inútil, ela não deve deixar de ser mantida pelo interesse filosófico que apresenta, a título de conhecimento especial da essência e da marcha da razão»11. Daí, o seu ponto de vista sobre a inutilidade prática da lógica. Segundo ele, ninguém convenceu alguém utilizando a lógica, nem os lógicos conseguiram, até hoje, usar os seus argumentos como fonte de renda. Para convencer um homem, é preciso 11 SCHOPENHAUER, O Mundo Como Vontade e Representação, Op. cit., p.65. 16 apelar para o seu interesse pessoal, seus desejos e sua vontade. Por conseguinte, a memória é, entendida por Schopenhauer, como uma criada (serva) da vontade, uma vez que costumamos gastar mais tempo a lembrar de nossas vitórias e menos tempo com as nossas derrotas. Também diz, que os mais estúpidos tornam menos estúpidos e compreendem algo que lhes interessam de perto os seus desejos. Para ele, o intelecto é desenvolvido pelo perigo, mas está sempre subordinado ao desejo e quando ele tenta tirar o lugar da vontade, dá por si numa tremenda uma confusão. Ninguém está mais sujeito a erros do que aquele que só age por reflexo! Na luta por alimentos, companheiras ou filhos, o homem não é obra da reflexão, mas sim, do semiconsciente, i. é, da vontade de viver e de viver plenamente. Segundo Schopenhauer, só aparentemente é que os homens são puxados para frente porque na realidade são empurrados para trás. Eles pensam que são conduzidos pelo que vêem, quando na verdade, são levados adiante por aquilo que sentem. O intelecto é meramente um “ministro das relações exteriores”. A natureza criou o intelecto para servir à vontade individual. Portanto, o intelecto está projectado para saber e apreender as coisas apenas, na medida em que elas ofereçam motivos à Vontade, mas não para sondá-las ou para compreender a sua verdadeira essência. É neste sentido, que ele diz: “O conhecimento que tenho da minha vontade, embora imediato é inseparável do conhecimento que tenho do meu corpo. Não conheço a minha vontade na sua totalidade. Não a conheço na sua unidade mais do que a conheço perfeitamente na sua essência. Ela somente me aparece nos seus actos isolados, por consequência no tempo, que é a forma fenomenal do meu corpo como de todo o objecto. Alem disso, o meu corpo é a condição do conhecimento da minha vontade”.12 A Vontade é o único elemento permanente e imutável da mente. Para fundamentar esta afirmação, Schopenhauer diz que «fora da vontade e da representação nós não podemos pensar nada».13 É a Vontade que dá unidade à consciência e mantém em conexão todas as ideias e todos os pensamentos, acompanhando-os como uma harmonia contínua. É, nestes termos, o pedal de tónica do pensamento. Segundo Schopenhauer, o carácter está na vontade e não no intelecto. A linguagem popular está certa quando prefere o «coração» à «cabeça». Ela sabe (porque não raciocinou sobre o assunto) que uma boa vontade é mais profunda e mais confiavel do 12 13 Ibidem, Op. cit., p.135. Ibidem, Op. cit., p.140. 17 que uma mente lúcida. Sendo assim, Blaisse Pascal tinha razão quando afirmara nos seus Pensamentos, que “o coração possui razões que a razão desconhece”! Existem vários argumentos de que a vontade é aquilo que reina. Até o corpo é o produto da Vontade, pois o sangue é empurrado por aquela Vontade que chamamos de vida. A vontade de saber constrói o cérebro, assim como a vontade de agarrar constrói a mão ou como a vontade de comer desenvolve o aparelho digestivo. O intelecto cansa-se, mas a vontade nunca. O intelecto precisa de sono, mas a vontade trabalha até mesmo durante o sono. Depois de tudo que dissemos e apresentamos, podemos então afirmar que a Vontade é a essência do mundo, que é como a realidade transfenomenal, a coisa em si mesma, a realidade última, a essência última de todas as coisas. A Vontade [Wille] é a essência do mundo [Welt], a verdadeira natureza (ú) como diziam os Pré-Socráticos. O SOFRIMENTO A Vontade é um querer incessante, e todo o querer procede de uma necessidade, isto é, de uma privação e de um sofrimento. Por isso, o sentido imediato do mundo é o do sofrimento. Schopenhauer afirma que “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento e se não fosse assim, a nossa existência seria o maior dos contra-sensos pois é absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido”.14 Quanto à vontade ou desejo humano, a satisfação põe-lhe um fim, mas por um desejo satisfeito, dez pelo menos são contrariados. Além disso, o desejo é demorado e as suas exigências tendem para o infinito. A satisfação é curta e é, parcimoniosamente, medida. Mas este contentamento supremo é apenas aparente, porque o desejo satisfeito dá lugar em breve a um novo desejo. O primeiro é uma decepção reconhecida enquanto que o segundo é uma decepção ainda não reconhecida. A satisfação de nenhum desejo pode conseguir contentamento durável e inalterável. É como a esmola que se lança a um mendigo: ela salva-lhe a vida para prolongar a sua miséria até amanhã! 14 SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte, Metafísica, Do Amor, Do Sofrimento Do Mundo, tradução de Pietro Nassetti, Editora Martin Claret, S. Paulo – SP, 2002, p.113. 18 Enquanto a nossa consciência está preenchida pela nossa vontade, enquanto estamos subjugados pelo impulso do desejo, pelas esperanças e pelos temores contínuos que ele faz nascer, enquanto somos súbditos do querer, não existe para nós nem felicidade duradoura, nem repouso. Segundo Schopenhauer, continuar ou fugir, temer a infelicidade ou procurar o gozo é, na realidade, tudo o mesmo. A inquietude duma vontade sempre exigente, que sob qualquer forma se manifesta, enche e perturba sem cessar a consciência. Ora, sem o repouso, a verdadeira felicidade é impossível. O desejo é sofrimento, uma vez que todo o desejo nasce de uma falta, de um estado que não nos satisfaz. Portanto, é sofrimento enquanto não é satisfeito. Ora, nenhuma satisfação dura. Ela é apenas o ponto de partida de um novo desejo. Vemos o desejo em toda a parte travando, em toda a parte em luta, portanto sempre no estado de sofrimento. Não existe fim último para o esforço. Portanto, não existe medida e termo para o sofrimento. Segundo Schopenhauer, «Qui auget scientiam, auget et dolorem»15, isto é, à medida que a vontade reveste uma forma fenomenal mais conseguida, também o sofrimento se torna mais evidente. O sofrimento é o fundo de toda a vida. A sua existência é uma queda perpétua na morte. É neste sentido que Martin Heidegger viria a pensar o Dasein (Ser e Tempo, 1927) como um “ser-para-a-morte” [Sein-in-der-Töt], uma vez que a morte se lhe apresenta como a sua possibilidade mais própria que se pode efectivar a qualquer instante e sob todas as formas possíveis, sendo a consciência dessa eventualidade, o fundamento da angústia que se apresenta como o verdadeiro caminho para o nada.16 O desejo é um querer inextinguível, uma vez que todo o querer tem um princípio uma necessidade, uma falta, portanto, uma dor. É por natureza, necessariamente, que eles devem tornar-se a presa da dor. Por conseguinte, a vida oscila como um pêndulo, de direita para a esquerda, do sofrimento para o aborrecimento. Segundo ele, fugir do sofrimento é fugir do inevitável, porque segundo ele, tendo o homem colocado todas as dores e todos os sofrimentos no inferno para encheram o céu, não encontraram mais do que o aborrecimento. É por isso, segundo ele, o inferno de Dante é este próprio mundo. A vida é, como já, frisamos, essencialmente, um sofrimento constante, uma vez que entre os desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo é pela sua 15 “Quem aumenta a sua ciência, aumenta também a sua dor”. Cf. Schopenhauer, MCVR, p. 409. Cf. HEIDEGGER, Sein und Zeit (1297). Ser e Tempo, Parte II, trad. de Mª de Sá Cavalcante, 4ª Edição, Vozes, Petropólis, 1996, §§ 46-62, sobretudo §§ 46-53. 16 19 natureza um sofrimento. O desejo renasce sob uma forma nova e com ele a necessidade. Não é senão é tédio, vazio, aborrecimento e um inimigo ainda mais violento do que a necessidade. Sobre o sentido do mundo como sofrimento, Schopenhauer pensava que o sofrimento é universal e, como tal, a essência da vida da qual ninguém escapa. Nem os homens nem os semideuses lhe escapam: «Nessa altura o filho de Peleus gemia, os olhos levantados para o céu imenso» «Eu era filho de Júpiter, o filho de Kronos, e contudo, a dor que sentia era insuportável».17 Segundo Schopenhauer, o esforço incessante dos homens para banir a dor, apenas conseguem fazê-la mudar de face, porque ela volta na figura da insatisfação do desejo. Na sua origem, a dor é privação, necessidade, preocupação com a conservação da vida. Se conseguirem (difícil tarefa) evitar a dor sob esta forma, ela regressa sob outra forma sob mil outras aspectos, mudando com a idade e as circunstâncias. Ela faz-se de desejo carnal, amor apaixonado, ciúme, inveja, ódio, ambição, doença, entre outros males. Na rota do desejo estão a dor e o sofrimento, pois o sofrimento é essência da vida, visto que o grau que ele deve alcançar está fixado pela natureza do sujeito: Por isso, «é ilusão pensarmos que resolvermos os nossos problemas do desejo».18 A dor é, portanto, inevitável e os sofrimentos banam-se uns aos outros. Este apenas vem para tomar o lugar do precedente. Daí resulta uma hipótese paradoxal, não absurda contudo. Por essência, cada indivíduo teria uma parte determinada de sofrimento. É a sua natureza que, de uma vez por todas, fixar-lhe-ia a sua medida. Esta medida não poderia nem ficar vazia, nem transbordar qualquer que fosse aliás a forma que a dor pudesse tomar. O que determina a quantidade de males e de bens que lhe estavam reservados não seria, portanto, um poder exterior, mas essa mesma medida, essa disposição inata. Sofrer é a própria essência da vida, que por consequência do sofrimento não se infiltra em nós vindo de fora. É que nós trazemos connosco a inesgotável fonte de que ele sai. Para esta dor, da qual nossos inseparáveis estamos sempre a procurar-lhe uma causa estranha, como um pretexto, semelhantes a um homem livre que constrói para si um ídolo, para não ficar sem sonhar. Sem cansarmos, corremos de desejo em desejo - vida é corrida interminável que tenta encher o sem 17 Ibidem, Op. cit. p. 415. Isto para mostrar que todos estão sujeitos ao sofrimento, até os filhos dos deuses. 18 Ibidem, Op. cit.,p. 419. 20 fundo. É este o saber do homem enquanto ser racional! A felicidade que ele procura encontrar não é mais produtiva do que tentar encher a peneira com água. A vontade de viver em todo o seu furor, sentimentos sem número, sem medida, depois no fim do desenlace durante muito tempo receado, finalmente inevitável, essa coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. A vida humana é composto por: necessidade miséria, lamentos, dor, morte. Globalmente é uma tragédia e individualmente, uma comédia! Por isso, é como problema estético que se deve pensar o mundo. Mas antes de pensarmos o mundo como problema estético, ouçamos as considerações do próprio Schopenhauer sobre a ideia do mundo como tragédia. Afirmava ele que “A vida de cada um de nós se a abarcamos no seu conjunto com um só olhar, se apenas considerarmos os traços marcantes, é uma verdadeira tragédia. Mas quando é preciso, passo a passo esgota-la em pormenor, ela toma aparência duma comédia. Mas os desejos nunca atendidos, a dor sempre gasta em vão, as esperanças quebradas por um destino impiedoso, os desenganos cruéis que compõem a vida inteira, o sofrimento que vai aumentando, e na extremidade de tudo, a morte, eis o bastante para fazer uma tragédia. Dir-se-á que a fatalidade quer na nossa existência, completar a tortura com o escárnio. Ela coloca-lhe todas as dores da tragédia, mas para não deixar ao menos a dignidade da personagem trágica, reduz-nos nos pormenores da vida, ao papel do bobo”.19 De acordo com esta passagem, e sem rodeios, podemos dizer que a vida é uma verdadeira tragédia. A tragédia mostra-nos isso, descrevendo os sofrimentos humanos quer eles provenham do acaso ou do erro, que governam o mundo sob a forma duma necessidade inevitável e com uma perfídia que quase podia ser tomada por perseguição voluntária. De acordo com Nietzsche “a tragédia nasceu do génio da música”.20 Pode-se questionar como os gregos sendo, perfeitos, belos, invejados e sedutores, teriam necessidade da tragédia. Bem, o próprio Nietzsche irá responder essa sua preocupação quando escreve: “Donde viria então a tendência contrária e cronologicamente anterior, o desejo do horrível, a sincera e acre inclinação dos primeiros Helenos para o pessimismo, o mito trágico, a representação de tudo quanto há de terrível, de cruento, 19 SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., p. 426. A música foi muito avaliada pelos grandes alemães de altura, cada um a seu modo, mas em todos esses modos, viu-se a admiração concedida. Além de Nietzsche, temos Wagner, (também ele influenciado por Schopenhauer) para quem a música é a arte suprema e companheira de todas as horas. Para Schopenhauer, a música liberta-nos do mundo material e abre-nos um novo horizonte. Temos ainda Hegel, para quem a musica é entendida como expressão do espírito. 20 21 de misterioso, de aniquilante, de fatal no fundo de tudo quanto é vivo – donde viria então a tragédia? Talvez mesmo da alegria, da força, da saúde exuberante, do excesso de vitalidade!”21 A tragédia pode assumir um valor estético ao nos livrar da luta da vontade individual e habilita-nos a ver o nosso sofrimento com uma visão mais ampla. Nietzsche apresenta-nos os dois deuses contemplados na arte grega: Dionísio e Apolo. Dionísio é deus do vinho, da folia, da vida superior, do prazer na acção, da emoção arrebatada, e da inspiração, do instinto, da aventura e do sofrimento destemido, o deus da canção, da música, da dança e do drama, enquanto que Apolo é deus da paz, do lazer e do repouso, da emoção estética e da contemplação intelectual, da ordem lógica e da calma filosófica, o deus da pintura, escultura e da poesia épica.22 Notemos, que Dionísio e Apolo correspondem à Vontade e à Representação, respectivamente. Esta é maior dívida do jovem Nietzsche para com o seu mestre de então, Arthur Schopenhauer. Segundo Nietzsche, a mais perfeita arte, é a união dos dois, e inquieta força masculina de Dionísio e a tranquila beleza feminina de Apolo. No drama cada um inspira uma coisa. Dionísio inspira o coro que desenvolveu na procissão dos seus devotos fantasiados de sátiros e Apolo inspirou o diálogo que foi uma reflexão posterior, um apêndice reflexivo a uma experiência emocional. Em relação ao drama grego, o aspecto mais profundo é a conquista feita por Dionísio que não é mais do que a conquista do pessimismo na arte. A apresentação dos gregos não é tão transparente como poderemos supor. Diferentes do que somos, muitas vezes, informados, não são tão alegres e optimistas. Tinham noção da brevidade da vida, e de seus consequentes desencantos. Esta leitura é apresentada numa resposta de Sileno a um questionamento de Midas. Para responder a pergunta de Midas sobre o qual seria o destino principal do homem, Sileno convictamente respondeu: “Raça efémera, e miserável, filha do acaso e da dor! E tu, porque me obrigas a revelar-te o que mais te valeria ignorar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres, seres nada. Já 21 NIETZSCHE, W. F. A Origem da Tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães Editores, Lisboa, 1999, p.24. 22 Apolo representa uma conciliação de vários credenciais. São vários atributos que dá impressão que é um conjunto de divindades, sintetizando num único deus, um complexo de opostos. Dionísio é também composto por vários atributos. Mas importante para a nossa análise é que Apolo é deus das artes plásticas e Dionísio é o deus da música. 22 que isso te é impossível conseguir, o melhor que podes desejar é morrer, morrer depressa”.23 Esta expressão diz tudo. O conhecimento da vida como um castigo, uma desgraça. Estes homens, provavelmente nada ou pouco tinham para aprender com Schopenhauer. Só que os gregos eram geniais, não se estagnaram perante o excesso da vitalidade. Não ficaram impávidos face à ruína. Venceram a sombra de sua desilusão, com o brilhantismo de sua arte, partindo do seu real sofrimento, promoveram a dramaturgia e explicaram o mundo através da arte. A existência e o mundo são assim justificados, como fenómenos estéticos, como objecto de contemplação ou reconstrução artística. O sublime é a sujeição artística do horrível, a transfiguração que a arte concede ao trágico, pois só ela tem o poder de fazer com que o trágico (o mundo) apareça como Belo. Eis porque Nietzsche pressupusera em A Origem na Tragédia que o mundo só pode ser questionado como problema estético.24 Se o pessimismo é amostra de decadência, o cepticismo de superficialidade, o optimismo trágico não é mais do que um estado do espírito do homem forte que procura de modo intenso, na sua realidade, a extensão da experiência, mesmo à custa da desgraça, e fica feliz mesmo sabendo que, a luta é a lei da vida. A tragédia, ela própria, mostra que os gregos não eram pessimistas, mas ásperos realistas que souberam transfigurar o trágico em belo. Na sua própria e íntima vivência, a tragédia descobrira, o inevitável e admirável fenómeno dionisíaco, segundo o qual a vida deve ser aceite por tudo que ela é e tem. Quem assim não crê e aceita é porque é um fraco. Nietzsche advoga o direito de se considerar o primeiro filósofo trágico, que é o extremo contraste e antípoda de um filósofo pessimista. Nos gregos encontrou, o protótipo da verdadeira arte. A evolução artística progressiva tem como pano de fundo o duplo carácter: Apolíneo e Dionisíaco. Eles tornaram inteligível as mais profundas e ocultas verdades existente na arte. Opõem-se, mutuamente, numa luta infernal. Sendo Apolo, o representante da arte plástica e Dionísio, o da arte musical, após uma guerra aberta, por fim se abraçam e dão vida à tragédia ática. Uma melhor compreensão desta abordagem implica compreender, estes diferentes instintos, o do sonho e o da embriaguez, como mundos diferentes. Quando o homem toma o sonho 23 NIETZSCHE. A Origem da tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães Editores, Lisboa, 1999, p.51. 24 NIETZSCHE. A Origem da Tragédia, tradução de Álvaro Ribeiro, Nona Edição Guimarães Editores, Lisboa, 1999, p. 65. 23 como realidade, temos assim a sensibilidade transfigurado na aparência.25 A embriaguez revela melhor a verdadeira natureza da arte. O embriagado não tem medo de procurar e afirmar tudo que lhe vai na alma. Bem entendidas as coisas, o sonho (a representação ou véu de maia em Schopenhauer) é marco próprio do apolíneo, e embriaguez (a irracionalidade da Vontade em Schopenhauer) do dionisíaco. Com a união de ambos a arte assegura seu elevado poder de expressão. É por isso, que tanto Schopenhauer como Nietzsche anda em voltas com a música cujo alcance é, para eles, ontológico. Nós sonhamos e sabemos que nos sonhos, nestas fantasias, nestas pinturas, interpretamos a vida, e entrámos em contacto com ela. E, dela percebemos não somente a imagem agradável e deliciosa mas também o severo, o sombrio o triste, o sinistro, numa palavra, a divina comédia com todo o seu inferno. Os homens insistem em voltar os olhos ao irreal, mas de modo algum, Nietzsche deixa de acreditar no princípio da individuação.26 A vida esta inexoravelmente votada ao sofrimento. “O espírito dionisíaco arranca o homem da sua individualidade…com espírito dionisíaco desaparece a individuação, o homem sente-se idêntico a tudo o que vive sofre”.27 Arte dionisíaca é essencialmente a música, mas esta viria superar os limites da individuação, assegurando a unidade total de todo o existente. A música tem um grande poder: “porém, a música atribui o mito uma dimensão metafísica, manifestando a voz mais secreta das coisas que irrompem do fundo do abismo, e é, por isso, que o espectador se sente invadido por um sentimento de alegria e liberdade”.28 Relativamente ao futuro da música, deixemos Nietzsche expressar mais uma vez, as suas ideias: “Ao fim e ao resto, não tenho qualquer fundamento para não retomar a esperança num futuro dionisíaco da música (…). Prometo uma idade trágica: a arte mais elevada no dizer sim a vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade tiver por detrás de si, sem sofrer, a consciência das mais duras, porém, mais necessárias guerras”.29 Bem, agora que Nietzsche se foi, podemos reavaliar, se de facto, isto ocorreu, ou pelo menos se desenvolveram condições que permitam seu reinício. Claro que não 25 O sonho não nos oferece mais do que aparência. Só que há que saber que em Nietzsche, a verdade existe por detrás da própria aparência, ainda que ele questiona a lógica dos “outros mundos”. 26 - A individuação é um princípio enganador, toma aparência por realidade, e divide tanto o homem como o mundo. 27 O espírito trágico implica aceitação total da vida. É fidelidade, a terra, a vida e a força. “Daí a sua afirmação”. 28 Ibidem, p. 66. 29 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, testos filosóficos, Edições 70, Tradução de Artur Morão, Lisboa, s/d p. 67. 24 somos experts, e que nossas afirmações não passam de ilações subjectivas, que podem perfeitamente chocar com outras convicções, mas nisto encontramos a beleza artística da diversidade, as diferentes maneiras de olhar e de compreender este mundo maravilhoso que se aparenta aos nossos olhos, do qual temos que apresentar nossa leitura, que pode não ser a única, nem a melhor. Contudo, não deixa de ser nossa. Se tivermos a oportunidade de progredir, tanto melhor, se não, não morreremos.30 A própria compreensão nietzschiana não opõe, ou pelo menos não seria totalmente contra esta referenciação. Isto porque Nietzsche tinha em má conta os artistas subjectivos, mas também não escapa deste veredicto a própria arte puramente objectiva. A arte não se reduz nem ao eu, nem a mera matéria. Não há objectividade, nem subjectividade, mas a arte como expressão daquilo que é, da vida. A vida não pode ser compreendida somente a partir da ordem. Existe também a desordem, o trágico. A verdade é multiplicidade, aceitação do devir. Não existe nada universal, absoluto, mas perspectivas. O que existe é uma infinidade de pontos de vista, reconhece o perspectivismo. A verdade não é mais identidade, mas sim contradição e diferença. Opõe radicalmente a toda a ideia préconcebida, não passam de superstição lógica, pois onde está tudo pré-concebido, não há de criatividade.31 §2. O MUNDO COMO PROBLEMA ESTÉTICO: SCHOPENHAUER / NIETZSCHE. Tal como a orgia dionisíaca dos gregos permite o acesso à globalidade do Ser, também a arte é, sobretudo, a efectivação do todo. Reunindo em si as tendências do Apolíneo e do dionisíaco, a tragédia exprime esta natureza da arte. 30 Com isto não significa que defendemos o comodismo. Pelo contrário, pensamos que a vida é uma luta incessante para compreender, e mesmo contemplar e avaliar o mundo circundante, mas sempre que o faremos, tenhamos também em mente a consciência de nossa capacidade, pois acaso não sabemos, pelo menos supomos o que valemos. 31 Nietzsche afirmara que ele não era um filósofo, mas um “dinamite” e um “analista químico dos sentimentos morais”. Portanto, aquele que arrebenta com tudo, motivo pelo qual sua filosofia é apresentada, como filosofia das marteladas e modelo de toda a “desconstrução”. Nega todas as verdades inquestionadas. Devido ao perspectivismo, o conceito total de verdade, bom, belo deixam de fazer sentido neste pensador. 25 É pela arte, essencialmente pela arte trágica, que se produz e se esclarece tudo o que existe. É por ela, que se apreende e compreende verdadeiramente o mundo. É particularmente a tragédia, que possui este olhar penetrante e transfenomenal. Nietzsche vê o mundo como um jogo trágico, um jogo de forças em conflito, e ao apreender a essência do mundo com o olhar da tragedia decifra na obra de arte trágica a chave que abre o acesso à verdadeira compreensão do mundo e do existente em geral. Neste sentido, o trágico é entendido como um princípio cósmico. Nietzsche interessou-se sempre por encontrar um ponto seguro por onde pudesse justificar a existência do mundo e dos indivíduos. Ora, o mundo concebido como fenómeno estético bane a moral e qualquer crença metafísica tradicional em geral. Contudo, oferece, precisamente, uma teoria metafísica: o mundo como fenómeno estético, fundado no elemento dionisíaco, fonte da dor e do sofrimento do devir e simultaneamente do prazer extático e do reencontro com a unidade primordial; e manifestado constantemente através do fluir ininterrupto de formas e indivíduos, absorvidos por ilusões e ficções, aprisionados nos seus mundos particulares estruturados sobre imagens e metáforas da verdadeira realidade. O tema estético adquire, aos olhos de Nietzsche, a condição de um verdadeiro princípio ontológico. É pela arte, pela poesia trágica que se manifesta a vida essência do mundo que se apreende o ser. A arte, não constitui, para Nietzsche, uma experiência particular ao lado de outros, é através dela que pretende o seu reencontro, com a grecidade do período Pré socrático. Tal como para os gregos, também para Nietzsche, a arte é efectivação, é levar a cabo a totalidade do mundo, e acesso a globalidade do ser. É pela arte, essencialmente pela arte trágica, que se produz e se esclarece tudo o que existe, é por ela que se apreende e compreende verdadeiramente o mundo. É particularmente a tragedia antiga que possui este olhar penetrante. Nietzsche vê o mundo como um jogo trágico, um jogo de forças em conflito, e, ao apreender a essência do mundo com o olhar da tragedia, decifra na obra de arte trágica a chave que abre o acesso à verdadeira compreensão do mundo e da existente em geral. Neste sentido o trágico é entendido como um princípio cósmico. 26 A arte é a justificação estética da essência. Só como fenómeno estético é possível que o mundo existe realmente. Dai a afirmação «só como fenómeno estético nos é possível justificar que o mundo exista eternamente»32 É pela arte que o aborrecimento relativamente ao mundo é superado. A arte, como salvação, transforma o aborrecimento em imagens ideais que tornam possível a vida. Daí a expressão, «temos a arte para que a verdade não nos mate» (A Origem da Tragédia, introdução). A arte é, sobretudo, suplemento da realidade natural e não simples imitação da realidade a qual se sobrepõe para a tornar suportável. « o mito trágico, como parte integrante da arte, emprega-se plenamente também para suscitar esta transfiguração que é o fim metafísico da arte em geral.»33 A arte transfigura, precisamente, a realidade do mundo da aparência. Se o espectáculo gera alegria estética, muitas cenas, porém, podem produzir uma delícia moral. Por exemplo, através da compaixão e do triunfo duma lei social. Fazer derivar o efeito do trágico de causas morais, não aperfeiçoa a arte, pois esta exige a pureza. «…a arte exige e deve exigir a pureza, antes de tudo o mais.»34 Nietzsche afirma que procurar a alegria na esfera estética, sem intervenção dos sentimentos morais (compaixão, medo, coragem) é a condição indispensável para entender o mito trágico.35 A concepção metafísica da arte responde à questão de saber «como é que o horrível, e o monstruoso que são a matéria do mito trágico, podem suscitar uma alegria estética.»36 Isto quer dizer que só se justifica o mundo e a existência como fenómeno estético e que o mito trágico quer mostrar que o que parece horrível e monstruoso não é senão uma representação estética 32 NIETZSCHE, A Origem da Tragédia, op. cit., p.187. Idem, Op. cit., p.186. 34 NIETZSCHE, A Origem da Tragédia, op. cit., p.187. 35 Idem. 36 Idem. 33 27 CAPÍTULO II. A CAMINHO DA METAFÍSICA DA MÚSICA §1. DA ESTÉTICA DO TRÁGICO À METAFÍSICA DA MÚSICA: MÚSICA E AS OUTRAS ARTES – A ESTÉTICA DE SCHOPENHAUER. Nietzsche distingue na cultura grega dois princípios fundamentais: O apolíneo e o dionisíaco. Nas palavras do próprio filósofo vem a explicação: “Que significam as oposições de ideias entre apolíneo e dionisíaco que introduzi na estética, ambas consideradas como categorias de embriaguez? A embriaguez apolínea produz, acima de tudo, a irritação dos olhos que confere aos olhos a faculdade da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico são visionários por excelência. Em contrapartida, no estado dionisíaco, todo o sistema emotivo está irritado e amplificado: de modo que descarrega de um só golpe todos os seus meios de expressão, expulsando sua força de imitação, de reprodução, de transfiguração, de metamorfose, toda espécie de mímica e de arte de imitação".37 Segundo Nietzsche, a tragédia grega nasce a partir do coro dos sátiros e desenvolve-se na luta entre as duas pulsões estéticas – a apolínea e a dionisíaca. Sendo Apolo o deus da clareza, da harmonia e da ordem e Dionísio, o deus da exuberância, da desordem e da música. Nietzsche conclui, que os dois princípios são, na verdade, complementares entre si e, não sendo antagónicos, formam uma aliança. Essa ligação 37 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos, Edições 70, Lisboa, 1985, p. 70. 28 estabelecida entre o culto dionisíaco e a arte trágica fornecerá a hipótese necessária à sua teoria da tragédia. Como já tínhamos dito antes, a tragédia grega é gerada tanto pela duplicidade dos dois impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco, provenientes desses deuses da arte, tanto pela “vontade” helénica de vencer a condição mortal do homem. Muito se tem a dizer sobre a relação desses dois impulsos artísticos da tragédia. Ao caracterizar o encantamento como o pressuposto de toda arte dramática e explicar o verdadeiro papel do coro na tragédia, Nietzsche nos oferece uma explicação dessa relação, quando diz que “Nos termos desse entendimento devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo. Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, que dizer, do mundo cénico inteiro, do verdadeiro drama. Esse substrato da tragédia irradia, em várias descargas consecutivas, a visão do drama, que é no todo uma aparição de sonho e, nessa medida, uma natureza épica, mas que, de outro lado, como objectivação de estados dionisíacos, representa não a redenção apolínea na aparência, porém ao contrário, o quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial”.38 Nesse sentido, Nietzsche concebe a tragédia grega tendo como único herói trágico no fundo de todas as máscaras o deus Dionísio. No entanto, este Dionísio sofredor se dá no palco helénico em várias configurações, mas aparece apenas de maneira nitidamente épica através do apolíneo que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco, ou seja, naquele estado do “quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial”, situação que os budistas descrevem como o Nirvana – união do indivíduo com o absoluto. Para ilustrar a aliança desses estados artísticos, vale citar outra passagem nietzscheana que explicita melhor a consideração trágica do mundo: «... Nos pontos de vista aduzidos temos já todas as partes componentes de uma profunda e pessimista consideração do mundo e ao mesmo tempo a doutrina dos mistérios da tragédia: o conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação 38 NIETZSCHE, Fredrich. A Origem Da Tragédia, Tradução de Sofia Ribeiro, Publicações Europa América, Lda, Lisboa, 2005, pp. 55-60. 29 como causa primeira do mal, a arte como esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida».39 Mesmo com a sua consideração pessimista do mundo, apenas através da tragédia os gregos conseguiam excitar, purificar e descarregar a sua existência, o que confere à arte trágica uma força de transformação necessária à vida. Para o filósofo, o que torna a arte trágica possível é a música e ele busca a valorização da música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente musical ou com origem no espírito da música. O mito trágico, enquanto símbolo sublime oriundo da música, arranca o ouvinte espectador de seu sonho de aniquilação orgiástico, fundindo-o à natureza, diluindo a sua individualidade. Aí reside o fascínio da música. Na sua análise, Nietzsche denuncia a percepção do valor íntimo do trágico, captável através da música conjugada com a força plástica do mito. O objectivo metafísico supremo da tragédia e da arte em geral era, portanto, que a imagem apolínea protegesse e revelasse – tal qual um véu que mostra e esconde – a força destrutiva do dionisíaco. Desse modo, podemos dizer que Dionísio fala a língua de Apolo, e Apolo, por sua vez, fala a língua de Dionísio. Os conceitos de apolíneo e dionisíaco aparecem no sentido da essência e da aparência, i.é, da Vontade e da representação em Schopenhauer. Lembremo-nos da analogia á efectuada entre o dionisíaco e o apolíneo nietzschianos e a Vontade e a representação shopenhauerianas, ou seja, assim como no transfenomenal do apolíneo encontrámos o dionisíaco, no transfenomenal da representação encontramos a Vontade que é a essência e o ser profundo que se revela somente na música, sendo esta, portanto de essência, ontológica, pois expressa o verdadeiro ser do mundo: a Vontade. O poder irracional da música é, na verdade, um epifenómeno do Vontade, que só por si já é poder e a força originária donde tudo emana. Segundo Nietzsche, os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas, que tornam a vida desejável, encobrem o sofrimento pela criação de uma ilusão, ou seja, é o princípio da individuação, processo de criação do indivíduo. Já o dionisíaco é a harmonia universal dada pela experiência de reconciliação das pessoas com as pessoas e com a natureza. O dionisíaco tem um sentido místico de unidade e escapa da individuação, fundindo-se ao Uno, ao Ser e integrando a parte com o todo ou a totalidade – a Vontade. 39 Ibidem, Op. cit., p. 69. 30 O apolíneo, enquanto princípio da individuação, determina as formas da aparência e proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se, sobretudo, na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. O dionisíaco, enquanto uno primordial, diz respeito à destruição de toda individuação, a uma total e desmedida embriaguez, manifestando-se, principalmente, na melodia e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro dos sátiros. A concepção que Nietzsche tinha da tragédia baseada numa visão fundamentalmente nova da Grécia, ou seja, no sentimento trágico da vida é, antes demais, a aceitação e celebração dessa jubilosa adesão ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio. Ao resgatar o valor do homem trágico grego, Nietzsche elege a música e seus significados para a afirmação da vida: amor, instintos, liberdade, fatalismo e morte. A música, enquanto arte essencialmente dionisíaca, é o meio para se desfazer da individualidade. O fascínio da música exprime a nossa união com o originário ou absoluto: a Vontade. Nesse caso, ela é acrescentada de componentes apolíneos – cena e palavra – e o coro dionisíaco se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. O mito trágico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisíaca através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o uno originário (Vontade). A finalidade é “aceitar o sofrimento com alegria” como parte integrante da vida, uma vez que o aniquilamento do indivíduo nada afecta a essência da vida. Teria sido esta a profunda intuição do Estoicismo: suportar e resistir ao sofrimento com alegria. Aliás, esta atitude da resignação e do fatalismo teriam sido duas características chaves do pensamento de Schopenhauer para quem, na maioria das vezes, a infelicidade humana, reside na não aceitação de que as coisas são tal como são. Contra este pensamento de resignação reagiria energicamente o existencialismo, sobretudo, o de Sartre, quando no O Existencialismo é um Humanismo, afirma que o existencialismo é uma filosofia do optimismo que deixa ao homem a possibilidade de criar os seus próprios valores (neste aspecto Sartre reencontra Nietzsche) e a si mesmo, sendo portanto, um humanismo que pode transformar o absurdo (a inexistência de um sentido do mundo) em algo com sentido.40 Conforme afirma Nietzsche, a música oferece-nos momentos de verdadeiro sentimento, pois só a música colocada ao lado do mundo pode nos dar uma ideia do que 40 Cf. SARTRE, Jean-Paul. L`Existencialisme est un Humainsime, Gallimard, 1946. 31 deve ser entendido por justificação do mundo como fenómeno estético. Só assim se pode perceber, que a vida sem música é, simplesmente, um erro, uma tarefa cansativa. Daí que o filósofo atribua à música, uma importância essencial para o pensamento e para a vida e para a existência humana em geral. Por sua vez, Nietzsche acreditava, que apenas mediante a arte, a existência humana poderia se justificar e, por isso, revia o auge da cultura grega para tentar explicar como se originou e se desenvolveu a arte trágica. No entanto, a tragédia teria os seus dias contados, pois com Eurípides e Sócrates ela sucumbiu-se diante da tentativa de entendimento da arte. A partir daí, a estética é revista por um socratismo estético que tenta tornar toda a arte consciente, o que vai acarretar não só em uma mudança estética, mas também cultural, pois o racionalismo e absolutismo gnoseológico e moral tornaram-se paradigmas da cultura da razão desprezadora dos instintos que ao fim ao cabo, expressam a essência profunda da vida cuja força se revela na música cuja significação é metafísica com. METAFÍSICA DA MÚSICA A significação metafísica dada à música é a parte mais original e a mais conhecida da filosofia da arte em Schopenhauer. A filosofia da arte schopenhaueriana caracteriza-se não apenas por uma superioridade da música, mas sobretudo por uma diferença de natureza entre ela e outros domínios artísticos. Para realçar a nossa afirmação, começaremos por ouvir o próprio Schopenhauer: “O que distingue a música das outras artes é que ela não é uma reprodução do fenómeno ou, melhor dizendo, da objectividade adequada da vontade; ela exprime o que há de metafísica no mundo físico, a coisa em si de cada fenómeno. Consequentemente, o mundo poderia chamar-se tanto uma incarnação da música como uma incarnação da vontade.”41 Se identificamos o belo com a própria ideia aprendida intuitivamente no espectáculo natural produzido pela arte, a metafísica do belo, em termos estritos, deixa de fora uma metafísica da música como a expressão mais original da própria Vontade. Dá-se, por assim dizer, uma ruptura de nível, que exige uma consideração filosófica 41 SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., p. 347. 32 própria. Dizemos com razão, uma consideração filosófica da arte, e não estética. Por quê? Se por estética compreendemos, até hoje, um conhecimento intuitivo, a música escapa a um conhecimento como este, pois “Nela não reconhecemos a reprodução, a repetição de uma ideia dos seres do mundo. É uma arte tão grande, tão elevada, age tão poderosamente sobre a vida interior dos seres humanos, é compreendida de modo tão completo e tão profundo, que se assemelha a uma língua absolutamente universal cujo sentido ultrapassa o do mundo da intuição”.42 Eis nos então perante um paradoxo: a música proporciona-nos um prazer estético desinteressado e mantém, ainda, com o mundo uma relação de representação. A música pode depender de uma estética que, por extensão, não seria apenas definida por relação à ideia. Daí a pergunta: como é que a música pode ser uma arte fora de todas as artes? O princípio da resposta está no facto de a música representar a vontade, mas imediatamente e não mais por intermédio da ideia: “Ela não é como as outras artes, uma reprodução das ideias, mas uma reprodução da vontade como as próprias ideias. É por isso que a influencia da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes. Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do ser”.43 Se ela fala do ser já não se trata meramente de uma estética, mas de uma ontoestética. A relação da música com as outras artes é, portanto, exactamente a relação da Vontade com as ideia, que é em tudo, análoga àquela relação que o “divino Platão” atribuíra à relação entre o a Ideia do Bem e as Ideias. Sem dúvida, que há sempre, o conhecimento da objectividade do querer, ou directa ou indirectamente, mas o conhecimento das ideias vem da intuição, isto é, supõe uma exterioridade, um sair da Vontade para fora da de si mesma indo ao mundo dos fenómenos. Mas a música não pode ser representado desta maneira. A música deve ser representativa de uma coisa-em-si que como tal, não pode constituir objecto de uma representação, a não ser precisamente pela objectivação da ideia. Noutros termos, o ponto comum do mundo real e da música é, directamente, o Ser em si. Não se pode provar este carácter representativo particular da música; pode-se, porém, senti-lo na experiência subjectiva, imediata do querer-viver ou vontade de viver. 42 43 Ibidem, Op. cit., p.338. Ibidem, Op. cit., p. 338. 33 Por conseguinte, a musica é a arte correspondente ao conhecimento imediato, não intuitivo do querer, atingida directamente na experiência interior, mas ela é sempre uma arte que nos propõe um conhecimento, uma contemplação, e não simplesmente uma emoção que tocaria o querer individual. Ela é uma linguagem universal que se abre na intuição. O fenómeno mais próximo do ser em si, a experiência mais íntima deste querer que deu seu o nome à coisa-em-si, veio a ser, pela música puro objecto para um sujeito. A música tem tanta realidade quanto o mundo visível, mundo este que tem apenas a realidade de um sonho. Ela é até mais real, dado que exprime directamente o Ser em si [Sein in Sich]. Deve-se compreender que a música não representa as emoções, esta alegria ou aquele sofrimento. Ela é a alegria, ela é o sofrimento essencial, na objectividade primeira do querer, fora de qualquer encadeamento de causas e motivos. Agora, compreendemos melhor a superioridade da música em relação às outras artes. Ela é, por essência, ontológica porque as outras artes falam da representação, enquanto que ela fala do Ser, ou seja, se as restantes artes se cingem ao domínio da representação ou aparência, a música se estende ao domínio da essência ou fundamento originário: a Vontade que é a estrutura ontológica última e o fundamento (razão de ser) do mundo. Contudo, as artes têm um papel emancipador na medida em que nos permitem aceder ao fundamento primeiro e incondicionado que é a Vontade. Como afirma Schopenhauer, “(…) Não seria o livre produto de nosso espírito plasmador, e por conseguinte não poderia ter o benéfico efeito da arte, que consiste na liberdade. Seria, sim, todavia penosa, a disposição de ânimo com a qual nos deixa um tal artista e um tal dramaturgo. Através da própria arte, que nos deveria libertar, vemo-nos desagradavelmente reintegrados na estreita e ordinária realidade”. 44 Apesar de todo o seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer aponta algumas vias para a suspensão da dor. Num primeiro momento, o caminho para a supressão da dor, segundo Schopenhauer, encontra-se na contemplação estética. A contemplação desinteressada das ideias seria um acto de intuição artística e permitiria a contemplação da Vontade em si mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade. Na arte, a relação entre a Vontade e a representação inverte-se, pois a 44 SCHILLER, Friedrich. Teoria da Tragédia, tradução portuguesa de Flávio Meurer, Editora Pedagógica e Universitária Lda. São Paulo, 1992, p.74. 34 inteligência passa a uma posição superior e auxiliar à história de sua própria vontade. Por outras palavras, a inteligência deixa de ser actriz para ser espectadora. A actividade artística revelaria as ideias eternas através de diversos graus, passando sucessivamente pela arquitectura, escultura, pintura, poesia lírica, poesia trágica, e, finalmente, pela música. Essa libertação do conhecimento da escravidão da vontade, esse esquecimento do eu individual e de seu interesse material, essa elevação da mente à contemplação da verdade sem influência da vontade representam o comprimento integral das funções da arte. Mas como se procede a arte? Uns crêem que ela imita a natureza e outras que ela a exprime. Mas como reconhecerá o artista na natureza a obra-prima, o modelo a imitar, como distinguirá entre a multidão de seres defeituosos se não há uma concepção de beleza anterior à experiência? Aliás, alguma vez a natureza produziu um homem perfeitamente belo em todas as suas partes? Como se pode reconhecer que tais formas são precisamente as formas belas e que outras não o são? Como sabemos, não podemos adquirir puramente a posteriori unicamente pela experiência, nenhum conhecimento de beleza. Este conhecimento vem nos sempre, pelo menos em parte, a priori ainda que seja dum outro género diferente dos expressões do princípio da razão que conhecemos igualmente a priori. Estas dizem respeito à forma geral do fenómeno considerado como fenómeno, enquanto esta forma constitui a condição geral da possibilidade do conhecimento e diz respeito ao «como» enquanto questão geral e universal que visa o fenómeno. É deste género de conhecimento, que provêm as matemáticas e as ciências naturais puras. Pelo contrário, este outro género de conhecimento a priori, que torna possível a realização do belo diz respeito não à forma, mas ao conteúdo dos fenómenos, não ao como, mas à própria natureza da representação. Todos nós sabemos reconhecer a beleza humana, quando a vemos, mas o verdadeiro artista sabe reconhecê-la com um tal clareza, que a mostra tal como ele nunca a viu. A sua criação ultrapassa a natureza. Semelhante coisa é possível apenas porque nós próprios somos essa vontade que se trata aqui de analisar e de criar a objectivação adequada nos seus graus superiores. Isto é suficiente para nós, um verdadeiro pressentimento daquilo que a natureza idêntica à vontade constitutiva da nossa própria essência, se esforça por realizar. 35 Por conseguinte, a arte não imita a natureza, mas sim representa uma vez que: “ (…) O objecto da arte, o objecto que o artista se esforça por representar, o objecto cujo conhecimento deve proceder e engendrar a obra, como o germe precede deve preceder e engendrar a obra, como o germe precede e engendra a planta, esse objecto é uma ideia, no sentido platónico do termo, e absolutamente mais nada, não é a coisa particular, visto que não é o objecto da nossa concepção vulgar; também não é o conceito, visto que não é o objecto do entendimento nem da ciência”. 45 O objectivo da ciência é o universal que contém os particulares e se apresenta neles, mas o objectivo da arte é o particular que contem um universal. Graças à sua força criativa, pode levá-lo à imaginação, tornando-se assim mais verdadeira de que toda a realidade e mais real do que toda a experiência. Por exemplo, ao pintar animais, o mais característico é considerado o mais bonito porque revela melhor a espécie. Toda as artes têm como finalidade comum, revelar e esclarecer a ideia que se constitui a obra de arte, i.é, a vontade em cada grau da sua objectivação. Uma vez concebida, ela comunica então a ideia. Ora, a ideia como tudo o que é intuitivo, exprime-se por si mesma de uma maneira completamente directa e perfeita. Segundo Schopenhauer, “a ideia torna se a fonte verdadeira e única de toda a obra de arte digna deste nome”.46 Por conseguinte, é na obra de arte, que a ideia aparece com mais clareza, distinta do conceito. Uma obra de arte obtém sucesso, então, na proporção em que a ideia platónica, ou universal, do grupo ao qual o objecto representado pertence. A arte é maior do que a ciência porque esta avança através do acumulo de raciocínio cauteloso, enquanto aquela atinge o seu objectivo de imediato, pela intuição e pela apresentação. Por isso, “a ciência pode se dar bem com o talento, mas a arte requer o génio47. A teoria do génio em Schopenhauer não é, portanto, como se diz um complemento romântico de uma filosofia da arte. Muito pelo contrário, é somente do génio que a arte recebe seu o significado metafísico além da satisfação dos desejos, que tornariam a obra no máximo interessante. Como sabemos, «a verdadeira arte é aquela 45 SCHOPENHAUER, MCVR, Op. cit., 308. Ibidem, Op. cit., 310. 47 “O génio, tal como o apresentamos, consiste na aptidão para se libertar do principio de razão, sem fazer abstracção das coisas particulares, que existem apenas em virtude das relações, reconhecer as ideias, e enfim, colocar-se a si mesmo face a elas como seu correlativo, já não a titulo de individuo, mas a titulo de puro sujeito que conhece.”. Cf. SCHOPENHAUER, MCVR, p.254 46 36 que produz a máxima satisfação. A máxima satisfação, porém, é a liberdade da alma no activo estado lúdico de todas as suas faculdades».48 O génio não é somente uma aptidão para a arte, mas para todo o conhecimento das ideias e, em particular, da filosofia. Um sábio pode alcançar a ideia além da sua objectividade simplesmente conceptual. Por outro lado, o artista, tal como o sábio é, na maioria das vezes, apenas um homem de talento e não um génio. O homem dotado de talento possui mais rapidez e precisão de pensamento que os outros, mas o génio, ao contrário, contempla um outro mundo diverso daquele do resto dos homens. É, sobretudo, pela obra de arte que o génio pode comunicar ao homem ordinário, não genial um conhecimento das ideias, que considerado em si mesmo, não tem nada de artístico. O génio define-se pela sua capacidade de conhecimento metafísico, e não pelo meio privilegiado que utiliza para transmiti-lo. O génio não está em fazer, mas sim num conhecer. Para Schopenhauer, a genialidade consiste, inteiramente, na aptidão para contemplar. Pode-se conceber que um asceta49 renuncie a toda a obra, e mesmo a qualquer forma de expressão sem deixar de ser génio. Só pelo desenvolvimento das suas faculdades de conhecimento é que o génio se distingue do homem ordinário, em termos fisiológicos por sua capacidade cerebral. Atrevemo-nos a dizer, que o génio é um “monstro excepcional” por excesso de cerebralidade. É que a força representativa do cérebro possui um tal excedente, que produz uma imagem pura, precisa, objectiva e desinteressada do mundo, imagem inútil para as intenções da vontade. Existe uma certa analogia do homem génio com a criança e o louco, ou ainda o sombrio destino do homem de excepção no meio de uma multidão que o ignora. De acordo com Schopenhauer, o génio não é aliás tão banalmente romântico como parece. Ele é ao contrário de um inspirado, de um mago que fala de um outro mundo, o antípoda de um criador de alguma imprevisível novidade qualquer. Ele é quem dá à luz o sentido do próprio ser deste mundo. Será o homem do génio, homem de imaginação? Sem dúvida, mas de imaginação completamente convertida. Ela não se acha mais ao serviço da subjectividade do desejo, mas da subjectividade da ideia. Notemos que tal como Kant, Schopenhauer também concebia a imaginação como a faculdade de possibilidades. 48 SCHILLER, F. Teoria da Tragédia, Op. cit., p.72. - Deriva de “ascetismo” que é uma doutrina que preconiza o desprezo do corpo e a renúncia dos bens materiais, defendendo as mortificações corporais com vista a alcançar a perfeição moral. 49 37 A grandeza do génio reside na sua submissão à ideia, da qual se faz o puro espelho. A grandeza do artista consiste em deixar ver essa ideia. Por consequência, a não ser que existam pessoas completamente incapazes de qualquer prazer estético, devemos conceder a todos os homens esse poder de separar as ideias das coisas e, por esse facto, elevarem-se momentaneamente acima da sua personalidade. Assim, o nosso prazer na natureza, como na poesia ou na pintura, é derivado da contemplação do objecto sem participação da vontade pessoal. Ao contrário de uma pessoa normal, o artista se liberta tanto das preocupações pessoais, que para a percepção artística tanto faz vermos o pôr-do-sol de dentro de uma prisão ou de um palácio. “O artista empresta-nos os seus olhos para vermos o mundo”.50 É essa bênção de percepção sem interferência da vontade que cobre com uma encantadora atracção do passado e o distante, apresentando-os a nós sob uma luz tão clara, que constitui a essência da contemplação estética. Mesmo os objectos hostis, quando os contemplamos sem a excitação da vontade e sem perigo imediato, tornam-se sublimes. Da mesma forma, a tragédia pode assumir um valor estético ao nos livrar da luta da vontade individual e habilitar-nos quando nos mostra o eterno e o universal por detrás do transitório e do individual. HIERARQUIA DAS ARTES Como já frisamos, para estudar as diversas artes Schopenhauer ordena-as hierarquicamente no sentido crescente do grau de objectivação da Vontade. Arquitectura, escultura, pintura, poesia, e música. Por outro lado, Schopenhauer consagra um parágrafo à arte de jardinagem, depois da arquitectura, dado que a natureza vegetal se eleva acima da natureza inanimada. Esses paralelos são artificiais, uma vez que não há, verdadeiramente, uma classificação das belas artes segundo Schopenhauer. Falando sobre este assunto, Schopenhauer afirmou o seguinte: “A arte, em todas as suas formas, tem, portanto sempre por finalidade exprimir a ideia. O que distingue as 50 SCHOPENHAUER, MCVR,Op. cit., p. 255. 38 diferentes artes é o grau de objectivação de vontade, representado pela ideia em cada uma delas; disso depende também a matéria própria de cada arte. Além disso, as artes, mesmo as mais diferentes, podem explicar-se pela sua aproximação”.51 Numa primeira abordagem, as artes parecem hierarquizadas segundo os diferentes graus de objectivação da Vontade: “A arquitectura artística tem como finalidade estética exprimir a vontade objectivada no baixo grau que nos é dado aprender, isto é, a tendência surda, inconsciente, necessária, da matéria”.52 A arquitectura corresponde assim à gravidade, à coesão, à resistência e à dureza das matérias. Ela representa o grau mais baixo da hierarquia. A isso se deve também acrescentar a hidráulica artística (a arte das fontes) que associa a gravidade à fluidez e à transparência. Num grau mais elevado, vamos encontrar a arte da jardinagem que corresponde à natureza vegetal, mas as ideias de ordem superior manifestar-se pela escultura e a pintura. Trata-se então da natureza animal em geral, mas sobretudo da natureza humana. Ora, sabe-se que no homem, o carácter individual se distingue nitidamente do carácter específico. “Na escultura a beleza53 e a graça são o principal, mas, na pintura, a expressão, a paixão, o carácter vêm em primeiro lugar”54. O domínio da poesia é ainda mais vasto que o da pintura: toda a natureza pode ser expressa por ela, mas quando se trata do ser humano ela supera qualquer outra forma de arte objectivando a ideia de humanidade através dos caracteres mais individuais. Do que já dissemos, pode se constatar que seguir uma hierarquia das artes é o mesmo que seguir uma hierarquia das ideias. Mas um sistema como este só aparentemente é rigoroso, pois existe uma pintura animalista de paisagem e de natureza morta, e o lugar da arte do actor, por exemplo, não está muito claro. Mas sobretudo, a um mesmo grau da vontade podem corresponder 51 Ibidem, Op. cit., p. 333. Ibidem, Op. cit., p. 337. 53 «A beleza é representação exacta da vontade, em geral por meio de um fenómeno, puramente especial.». Cf. SCHOPENHAUER, MCVR, p. 293; “A beleza junta a graça que constitui o objecto principal da cultura”. Ibidem, p. 301. 54 “Graça consiste numa relação particular da pessoa que actua com a acção...Graça consiste segundo o que dissemos em que cada movimento ou produção se produz da maneira mais fácil. (…) A graça pressupõe uma proporção rigorosa de todos os membros, um corpo construído regular e harmoniosamente. Tal é a sua condição, visto que é apenas por este preço que se obtêm a vontade perfeita, a harmonia evidente de todos os movimentos e de todas as posições, segue se que a graça não pode existir sem um certo grau da beleza corporal. Unam a beleza e a graça perfeita tereis a movimentação mais clara da vontade, no grau superior da sua objectivação.” Ibidem, pp. 294 – 295. 52 39 diferentes formas de artes. Vejamos o exemplo da natureza vegetal: podemos antes de tudo contemplar directamente a beleza sem a mediação da arte. A arquitectura e a arte da jardinagem apresentam-nos a coisa como tal, mas de tal maneira que a intuição da sua ideia seja facilitada. Estas formas de arte situam-se aquém da representação da ideia, assim como a musica estaria além da representação. Eis porque falamos de uma metafísica da música. A contemplação da obra não se separa, então, da contemplação do real e não passa pela mediação da imagem. É sem dúvida por isso que o aspecto subjectivo do prazer estético (a serenidade devida à libertação do querer) aí domina o aspecto objectivo do conhecimento das ideias. Deve-se observar, aliás, que a atitude do espectador diante dessas produções artísticas não difere, essencialmente, da sua atitude diante da beleza natural. Muito pelo contrário, as artes, agora chamadas, “figurativas” apresenta-nos uma coisa diferente de uma cópia da beleza natural, i.é, uma imagem da beleza ideal. Como sabem, todos nós sabemos reconhecer a beleza humana55 quando a vemos. Mas, o verdadeiro artista sabe reconhecê-la com tal clareza, que mostra tal qual nunca a viu. Tal coisa só é possível, porque nós mesmos somos esta Vontade. §2. QUAL A IMPORTÂNCIA DA MÚSICA NA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER? Como vimos, Schopenhauer reserva alguns capítulos para falar sobre as artes no qual começa pela arquitectura que é o grau mais baixo depois seguindo com a escultura pintura e termina com a poesia que é o mais alto grau desse grupo. Se repararmos bem constatamos que uma arte, aquela que não é representativa, ficou excluída do nosso estudo e isso tinha que acontecer fatalmente, visto que uma dedução rigorosa deste sistema não lhe deixava nenhum lugar: esta arte é a música. 55 - Segundo Schopenhauer, “a beleza humana como a mais perfeita objectivação da vontade nos graus mais elevados em que ela é até aqui conhecível (...), exprime se por meio da forma, ora a forma reside exclusivamente no espaço. Ela não tem com o tempo relações necessárias, como por exemplo o movimento tem”. Ibidem, Op. cit., p. 293. 40 Pela primeira vez na história da filosofia, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Arthur Schopenhauer eleva a música à “Magna Arte”. Com isso, ela assume um papel de extrema importância na sua filosofia. Schopenhauer coloca a música completamente fora das outras artes, que se cingem à representação. Para justificar a sua decisão ele afirma que nela “já não podemos encontrar nela a cópia, a reprodução da ideia do ser tal como ele se manifesta no mundo; e por outro lado, é uma arte tão elevada e tão admirável, tão própria para comover os nossos sentimentos mais íntimo, tão profunda e inteiramente compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à própria intuição”.56 Já vimos que a música é a metafísica ou filosofia primeira, mas qual é a sua com as outras artes? A relação da música com as outras artes é portanto, exactamente a relação da vontade com as ideias. Sem duvida há sempre conhecimento da objectividade do querer, ou directa ou indirectamente, mas o conhecimento das ideias vem da intuição, isto é, supõe uma exterioridade, um saída da Vontade para fora da de si mesma em direcção ao mundo dos fenómenos. Mas, a música não pode ser representada desta maneira. A música deve ser representativa de uma coisa-em-si que como tal, não pode constituir objecto de uma representação, a não ser precisamente pela objectivação da ideia. Noutros termos, o ponto comum do mundo real, e da música é directamente o Ser em si. De todas as artes, Schopenhauer exalta a música como sendo a mais grandiosa e a mais majestosa. Além disso, ela possui um poder especial, devido ao facto de ter um aspecto universalizante que ultrapassa qualquer tipo de individualidade, constituindo assim, uma linguagem universal acessível a todos, independentemente das culturas. A referência da música é o efeito estético derivado de uma percepção ontológica, i.é, da Vontade ou Ser em si: “Sob este ponto de vista temos que reconhecer na música uma significação mais geral e mais profunda, em relação com a essência no mundo e com a nossa própria essência”.57 É importante realçar, como acabamos de referenciar, que existe em todos os homens a capacidade de conhecer as ideias nas coisas, exteriorizando-se momentaneamente, de sua personalidade. É inerente a todas às pessoas essa faculdade, sem a qual não teriam receptividade para o belo. Esquecendo-se de si mesmo através da 56 57 Ibidem, Op. cit., 338. Idem. 41 música, o Homem liberta se do sofrimento ao qual estava sujeito no seu trabalho serviçal em relação à Vontade. Essa libertação dá-se pelo puro som, devido ao facto deste obter influência imediata sobre a Vontade, produzindo no indivíduo um prazer estético que é o contentamento quanto ao conhecimento puro, intuitivo e, como tal, em oposição à Vontade. Em suma, a música atinge a todos, até aos menos sensíveis. Toda arte tem como fim estimular o conhecimento das ideias. As ideias localizam-se totalmente fora da esfera do conhecimento do sujeito como tal. São formas imutáveis, o em – si do mundo. O mundo é o fenómeno delas em multiplicidade. Visto que todas as artes estimulam o conhecimento das ideias, a música possui particularidades que a diferenciam de todas as outras artes. Isso porque ela segue além das ideias, ganhando assim independência do mundo aparente. A sua existência seria possível mesmo com a inexistência do mundo. A Vontade é a coisa em-si, logo, a ideia é a objectividade imediata da Vontade. As artes reproduzem as ideias. A música é a reprodução da própria Vontade, justamente, por se referir à essência da Vontade. Esse é o diferencial da música para com as demais artes. Ou seja, a música reproduz todos os movimentos da mais íntima essência humana, por ser destituída de realidade e sofrimento. Enfim, a música tem como objecto a Vontade, a partir do momento em que ela expressa o em-si do mundo, isto é, a própria Vontade, que pode e deve ser reconhecida como a verdadeira filosofia. A música é, então a verdadeira filosofia e a estética uma ontologia. Por isso, falamos de uma onto-estética, i.é, de uma aliança entre o Ser e o Sublime. Aliás, o próprio conceito da Beleza como um transcendental58 (conceito que tem a mesma extensão que o ser e que lhe é convertível) exprime essa significação. Liberta de toda referência específica aos diversos objectos da vontade, a música exprime a Vontade na sua essência em geral e indiferenciada, constituindo assim, um meio capaz de propor a libertação do homem, em face dos diferentes aspectos assumidos pela Vontade como Ser ou fundamento incondicionado. 58 CF. MAFALDA BLANC, ESTUDOS SOBRE O SER II, «Da Beleza como Modelo da Humanidade à Beleza como Transcendental do Ser», Gulbenkian, Lisboa, 1998, p. 123. 42 §3. A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA MÚSICA OU DA MÚSICA COMO REVELAÇÃO DA VONTADE. Confirmada está então, a tese da superioridade da música sobre as outras artes. Ela é até, mais real dado que exprime directamente o ser em si: “Esta relação estreita entre a música e o verdadeiro ser das coisas explica-nos o facto seguinte: se em presença de um espectáculo qualquer, duma acção, dum acontecimento, de qualquer circunstância, percebemos os sons de uma música apropriada, essa música parece revelar-nos o seu sentido mais profundo, dar-nos a sua ilustração mais exacta e mais clara.”59 Confirmada também está a ideia de que a arte atenua os males da vida60 ao mostrar-nos o eterno e o universal por detrás do transitório e do individual. Não há melhor libertação do mundo, do aquela conseguida através da arte. A arte tem um poder de nos elevar acima da competição da vontade. Esse poder é possuído acima de tudo pela música. A música não é, em absoluto como as outras artes que são a cópia das ideias ou essência das coisas, mas, a cópia da própria vontade. Ela nos mostra a vontade eternamente em movimento, lutando, vagando, sempre voltando, afinal, para si mesma, a fim de recomeçar a batalha. É por isso, que o efeito da música é mais poderoso e penetrante do que o das outras artes, pois estas só falam de sombras, enquanto ela fala da coisa em si mesma. Ela difere também das outras artes porque afecta directamente os nossos sentimentos, e não por intermédio de ideias. Ao contrário das outras as artes que não objectivam portanto directamente, mas por intermédio das ideias, à «música vai pala além das ideias»61. A música fala a algo mais subtil que do que o intelecto, ela é uma reprodução da Vontade. Deve-se compreender que a música não representa as emoções, esta alegria ou aquele sofrimento, mas sim, ela é a alegria e o sofrimento essencial, na objectividade 59 SCHOPENHAUER, MCVR, p. 346. - Cf. Esta ideia purificadora e emancipadora da arte (catarse/expurgação) aparece de forma originária na Poética de Aristóteles. Cf. Aristóteles, Vol. II, trad. de Eudoro de Sousa, Nova Cultural, Col. Os Pensadores, 1991. 61 SCHOPENHAUER, MCVR, p. 340. 60 43 primeira do querer, fora de qualquer encadeamento de causas e motivos. A música é de certo modo ontológica uma vez que há uma relação estreita entre a música e o verdadeiro ser das coisas. Devido a sua dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder. Um dos efeitos que ela causa em nós é que «ela não exprime tal ou tal alegria, tal ou tal aflição, tal ou tal dor, terror, encantamento, vivacidade ou calma do espírito. Ela pinta a própria alegria, a própria aflição e todos esses outros sentimentos por assim dizer, abstractamente».62 Ela tem uma capacidade, tão própria para comover os nossos sentimentos mais íntimos, tão profundo e inteiramente compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à própria intuição. A música é uma revelação da vontade. Assim, “o que distingue a música das outras artes é que ela não é uma reprodução do fenómeno ou, melhor dizendo, da objectividade adequada da vontade; ela exprime o que há de metafísica no mundo físico, a coisa em si de cada fenómeno. Consequentemente, o mundo poderia chamar-se tanto uma incarnação da música como uma incarnação da vontade.63 É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes. «Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do ser»64. Daí resulta que a imaginação é tão facilmente despertada pela música. É difícil ficar indiferente face a música. A nossa fantasia procura dar uma figura a esse mundo de espíritos invisível e contudo tão animado, tão inquieto que nos fala directamente. A música com efeito, exprime a vida e dos seus acontecimentos apenas a quintaessência, ela é quase sempre indiferente a todas as variações que aí se possam apresentar. 62 Ibidem, p. 345. Ibidem, p. 347. 64 Ibidem, p.340. 63 44 §4. O PENSAMENTO DA MÚSICA OU FILOSOFIA DA MÚSICA: PITÁGORAS, PLATÃO, WAGNER, NIETZSCHE, BEETHOVEN, GEORGE STEINER, VLADIMIR JANKÉLÉVITCH, MICHEL SERRES. No mundo grego, nenhum músico teve tanta importância quanto o filósofo e matemático de Samos, Pitágoras. Pitágoras foi guiado pelos deuses na descoberta das razões matemáticas por trás dos sons depois de observar o comprimento dos martelos dos ferreiros. Por isso acredita na existência de uma música cósmica cuja auscultação se traduzia na génese oculta da música humana feita a partir das acusmata (coisas ouvidas). Entre as suas grandes descobertas poder citar a descoberta do intervalo de uma oitava como sendo referente a uma relação de frequência de 2:1, uma quinta em 3:2, uma quarta em 4:3, e um tom em 9:8. Os seguidores de Pitágoras aplicaram estas razões ao comprimento de fios de corda em um instrumento chamado cânon, ou monocorda, e, portanto, foram capazes de determinar matematicamente a entonação de todo um sistema musical. À ideia de uma música cósmica, os pitagóricos acrescentaram a ideia da matematização do real muito antes de Platão, Galileu e Descartes. Os pitagóricos viam estas razões como governando todo o Cosmos assim como o som, e Platão descreve na sua obra, Timeu, a alma do mundo como estando estruturada de acordo com estas mesmas razões. Para os pitagóricos, assim como para Platão, a música tornou-se uma natural extensão da matemática, bem como uma arte – a da harmonia que, segundo, Pitágoras, é a coisa mais bela65. A matemática e as descobertas musicais de Pitágoras foram, desta forma, uma crucial influência no desenvolvimento da música através da idade média na Europa de tal forma que o cálculo infinitesimal que encontrámos em Leibniz resulta, precisamente e em parte, desse cálculo matemático dos acusmatas, neste caso, das notas e sons musicais.66 Por conseguinte, o que a musica seja, dificilmente se pode saber ou dizer. A música é sempre plural, não significa de um mesmo modo para dois sujeitos, pois a experiência de ouvir musica que é o ponto originário a partir do qual assenta todo este 65 Kirk, G. S. Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. de Carlos A. L. Fonseca, Gulbenkian, 1994, p. 242. Cf. Norbert Dufourcq, Pequena história da História da Música, trad. de Mª Carmo e Carlos de Brito, Edições 70, Lisboa, pp. 12-13. 66 45 ensaio, é uma experiência eminentemente subjectiva. Porém, duas são as definições filosóficas fundamentais que foram dadas da música. A primeira é a que a considera como a revelação ao homem de uma realidade privilegiada e divina; revelação que pode assumir ou a forma do conhecimento ou do sentimento; a segunda é aquela que a considera como uma técnica ou um conjunto de técnicas expressivas, que concernem à sintaxe dos sons. Contudo, vamos debruçar sobre a primeira definição que passa por ser a única que é, verdadeiramente, “filosófica” mas que na verdade é metafísica ou teologizante. Consiste em julgar, que a música é uma ciência ou arte privilegiada enquanto tem por objecto a realidade suprema e divina ou uma sua característica fundamental. Desta concepção, podem-se distinguir duas fases: a) a primeira vê o objecto da música na harmonia como característica divina do universo e considera, portanto, a música como uma das ciências supremas; b) para a segunda, o objecto da música é o próprio princípio cósmico (Deus, ou a Razão autoconsciente, ou a Vontade infinita, etc.) e a música é a auto-revelação deste princípio na forma do sentimento. Ambas as concepções têm um traço fundamental em comum: a separação da música como arte “pura”, das técnicas em que esta se realiza. Platão polemiza contra os músicos que vão à procura de novos acordes nos instrumentos.67 Schopenhauer fala da “essência” da música, da sua natureza universal e eterna, enquanto é separável dos meios expressivos nos quais toma corpo como fenómeno artístico. Como dissemos antes, a doutrina da música como ciência da harmonia, e de harmonia como ordem divina do cosmos nasceu com os Pitagóricos para quem a beleza musical é a expressão da harmonia e da ordem cósmica. Desta forma, a função e os caracteres da harmonia musical são os mesmos que a função e os caracteres da harmonia cósmica. A música seria, portanto, o meio directo para se elevar ao conhecimento desta harmonia. Esta é razão pela qual Platão incluía a música entre as ciências propedêuticas no quarto lugar (depois da aritmética, da geometria plana e sólida e da astronomia) e, portanto, considerava-a a mais próxima à dialéctica e a mais filosófica. Como ciência autêntica, a música todavia não consiste, segundo Platão, em procurar com o ouvido novos acordes sobre os instrumentos. Deste modo, antepor-seiam os ouvidos à inteligência.68 Para Platão, aqueles que assim fazem “se regulam como os astrónomos porque procuram os números nos acordes acessíveis ao ouvido, mas não 67 68 PLATÃO. República, Livro, VII, Gulbenkian, 531 b. PLATÃO, Rep., VII, Op.cit., 531 a. 46 remontam aos problemas, não indagam quais números são harmoniosos e quais não o são e de onde vem a sua diferença”.69 A doutrina da Música como auto – revelação do Princípio cósmico tende a privilegiar a Música acima de todas as outras artes ou ciências e a fazer dela a mais directa via de acesso ao Absoluto. Estas são as características próprias da concepção romântica da Música, características que se encontram bem realizadas na teoria de Schopenhauer. Segundo Schopenhauer, enquanto a arte em geral é a objectivação da Vontade de viver (que é o Princípio cósmico infinito) em tipos ou formas universais (as Ideias platónicas), que cada arte reproduz à sua maneira. Como já dissemos também, a Música é revelação imediata ou directa da própria Vontade. “A Música, diz ele, é uma objectividade, uma cópia tão imediata de toda a vontade como o é, como o são as próprias ideias cujo fenómeno múltiplo constitui o mundo dos objectos individuais. Ela não é portanto, como as outras artes, uma reprodução das ideias, mas uma reprodução da vontade como as próprias ideias. É por isso que a influencia da música é mais poderosa e mais penetrante que as outras artes: estas exprimem apenas a sombra, enquanto que ela fala do ser.70 Isto quer dizer que na Música, diferentemente, das outras artes, a forma sensível em que a Ideia se manifesta e exprime é, inteiramente, superada como tal e resolvida em pura interioridade e em puro sentimento. Sendo, definida como arte, a música exige que se diga antes de mais que ela é uma hermenêutica, uma forma de compreender o mundo que nos é traduzida sob forma de relação com três elementos fundamentais da música: o ritmo, a melodia e a harmonia que se nos apresentam também como formas de se aceder ao ser. A música é essa iniciação à acusmata. Se compreendermos, que a arte consiste como nos diz Arnold Hausser71 em compreender a relação entre seus elementos formais e materiais e sentir a harmonia desta relação na sua evidência, isto é, perceber que os seus elementos formais desempenham alguma função, na música esta relação não é de todo evidente, pois que aquilo a partir do qual a musica é feita e o significado que ela encerra em si, e ou, 69 Ibidem, 531 b-c. SCHOPENHAUER, MCVR, p. 340. Esta exaltação da Música coincide com a doutrina de Hegel que acrescenta, todavia, a importante determinação de que a Música é a expressão do absoluto na forma do sentimento. Sob este ponto de vista, diz Hegel, que o sentimento é a forma própria da Música. Cf. Hegel, Estética, Guimarães Editores, s/d. 71 HAUSSER, Arnold. Teorias da Arte, Edições Presença, p.313. 70 47 desperta em nós, permanece oculto e misterioso. Mas o que é esse mistério, ou seja, será a musica interferência – uma manifestação do fundo acústico do universo (M. Serres), uma aventura sobre o inefável (V. Jankélévitch) uma manifestação da vontade ou da essência do mundo como pensava Schopenhauer, uma manifestação exterior da dança do espírito de que fala Nietzsche (A. F Zaratustra) e G. Steiner (Quatro Entrevista com G. Steiner)? Será a musica um problema matemático da alma (Leibniz) ou será ela uma simples sintonia emotivo, ou seja, um simples equivalente passional que se afigura como uma simples imitação ou expressões das paixões, ou será ela uma expressão da “interioridade ressoante” (Hegel)? Tentemos responder algumas destas questões. Assim, para Vladimir Jankélévitch (L`Inefáble) - a música exprime o inefável, razão pela qual ela desperta um fascínio que é quase inexplicável como o próprio Inefável. O inefável é aquilo que é misterioso, ou seja, aquilo que como afirma Rudolf Otto (O Sagrado), constitui um “tremendo Mistério e um mistério fascinante” e que é, simultaneamente sentimental e mental, i.é, “senti-mental”, o que significa que é, simultaneamente, racional e irracional. Inefável é aquilo que resiste a uma explicação racional evidente. Por conseguinte, o fascínio que a música pode despertar não é total e racionalmente explicável. Já para Michel Serres, (Hermes II, Interferência), a música teria sido a primeira física, ou seja, a primeira acústica na medida em que com ela, os homens cedo tentaram auscultar “o ruído do fundo” (o som) e as interferências existentes na natureza espáciotemporal. Esse ruído de fundo é o a priori de toda a comunicação, pois sem o som não há comunicação. A experiência do ouvir, quando dizemos “não ouvi, fale mais alto/ baixo se faz favor” atesta que o som – esse ruído de fundo, é essencial à comunicação. A música ocupa, sobretudo, daquilo que está no espaço entre, i.é, das interferências, razão pela qual as notas musicais ocupam esse espaço mediado pelo tom, i.é, a escala. A música não cria o som como se tratasse de uma criação ex-nihlo, mas compõe-no a partir dessa acústica originária que é a experiência do ouvir. É com genialidade que se fala de aspectos como notas, tons e escalas musicais e, sobretudo, da composição e da não da criação. Por isso, o músico é um Hermes, i.é, um intérprete das mensagens (interferências) que circulam nesse espaço entre as notas e escalas. É com genialidade, que também falamos de intérprete que se torna cantor quando a sua interpretação desperta o encanto e ocupar esse espaço entre, i.é, interpreta as interferências e manda mensagens. 48 Um outro autor que fala muito da música é George Steiner. Segundo ele, a questão da música é decisiva nos termos das significações humanas e no que se refere o acesso ou à abstenção de experiência metafísica no homem. Desta forma, a nossa capacidade para compor ou reagir à forma e sentido musicais põe directamente em causa o mistério da condição humana. Para ele, Perguntar «o que é a música?» pode ser muito bem uma maneira de perguntar «o que é o homem?». Daí não devemos recuar perante a estes termos nem perante as impropriedades semânticas fundamentais que eles talvez impliquem. Estas interrogações possuem os seus imperativos e clareza próprios. A questão está em perguntar o que são as categorias que devem ser vividas antes de ser possível defini-las.72 Podemos tentar responder esta questão, utilizando a afirmação de Claude LéviStrauss de que «a invenção da melodia é o mistério supremo do homem»,73 pois ela afigura-se numa tranquila evidência de que as verdades, a necessidade da ordenação do sentimento na experiência musical não são irracionais nem irredutíveis à razão ou a uma avaliação pragmática. Daí que Lévi-Strauss afirma que «tal irredutibilidade anima a origem da minha argumentação»74. Segundo ele, é muito possível que o homem seja homem, e que o homem «toque» os limites de uma «alteridade» peculiar e aberta, por ser capaz de produzir a música e de ser possuído por ela! Para comprovar a sua tese, Lévi-Strauss recorre ao célebre aforismo de Schopenhauer de que a música «manifestase como metafísica de tudo o que é físico no mundo».75 Podemos, portanto, dizer que o mundo é a música encarnada ou Vontade encarnada. Ele defende a universalidade da música e que esta universalidade, declara a humanidade do homem. Para ele «um mundo sem a música, estritamente falando, é algo exterior às nossas noções de ordem e desejo»76. Por outro lado, existem numerosos homens e mulheres para quem uma existência sem a musica séria de uma desolação invencível: Bach, Haydn, Mozart, Beethoven e ooutos mestres do canto e da ópera representam para um sem número de intérpretes, ainda que amadores, para um sem-número de ouvinte, outras tantas presenças tutelares, homens que se enquadram nessa categoria. Daí, afirma Steiner: 72 Cf. George STEINER. Presenças Reais, Tradução e Posfácio de Miguel Serras Pereira Editorial Presença, Lisboa, 1993, p. 17. 73 Ibidem, p. 28. 74 Ibidem, p. 28. 75 Idem. 76 Ibidem, p.176. 49 «creio que a entoação da música é essencial na nossa apreensão da morte e da sua dor».77 Podemos dizer, que a música é tempo organizado, o que significa «tornado organizado». Igualmente, podemos dizer «que este acto de organização é um acto de liberdade essencial, que nos liberta do ritmo forçado dos relógios biológicos e físicomatemáticos. O tempo que a musica «toma», e o tempo que nos traz enquanto a interpretamos ou ouvimos, é o único tempo livre que nos está garantido antes da morte.»78. Por outro lado, conhecemos em todo o caso o poder da música. Sabemos que a música pode «literalmente enlouquecer-nos, pode fazer vibrar a violência, pode consolar, exaltar curar, despertar, «Lear» da sua demência sombria. Há cadências, cordas, modulações que quebram ou reparam o coração, ou, melhor, que o repara quebrando-o.»79 A música traz à nossa vida de todos os dias um encontro imediato com uma lógica do sentido diferente da razão, i.é, com a lógica daquilo é “senti-mental”. A música põe o nosso ser em contacto com algo que transcende o dizível, com algo que ultrapassa o analisável. Ela não se deixa, simplesmente, circunscrever pelo mundo tal como este é enquanto objecto de determinação científica e de exploração prática. Os sentidos do sentido da música são transcendentes. Segundo Steiner, ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal. Para grande número de seres humanos, a religião tem sido a música em que acreditam. Nos êxtases do Pop e do Rock, a sobreposição é Tal com o espírito báquico, estridente.80 Assim, para Steiner a música é o complemento existencial: «Ouvir música e assistir a concertos são elementos capitais da minha experiência pessoal».81 Por isso, acredita que só a música põe na sua pureza última, o sentido da existência humana: «A música é qualquer coisa que se compreende, mas que não pode ser traduzido nem parafraseada».82 77 Ibidem, pp. 65-66. Ibidem, p. 176. 79 Ibidem, p.177. 80 Ibidem, p. 194. 81 JAHANBEGLOO, Ramim. George Steiner, Entrevista com Ramin Jahanbegloo, tradução de Miguel Serras Pereira, Fenda Edições Lda., Lisboa 2000, p. 174. 82 Ibidem, p. 178 78 50 Muito antes deste pensadores, Beethoven inaugurara na história da música, a era do Romantismo83 que seria a da supremacia alemã. Com ele aparece uma concepção que vem substituir ao equilíbrio soberano e a sociedade dos clássicos uma liberdade maior e uma expressão mais intensa. Por isso, é considerado um músico filósofo para quem a música revela os estados da alma, as alegrias e os desgostos do compositor. Ela insufla em tudo o que cria lago de mais humano, que nos mostra as amarguras, o trágico da sua existência, ou até mesmo as suas paixões, os seus sonhos. Em 1800 num concerto, ele executou a sua Primeira Sinfonia e, Beethoven afirmava: «esta sinfonia conquanto lembrasse ainda a música do passado, era uma tentativa de instintiva no sentido de um género deferente de música. Uma velha linguagem com uma nova expressão»84. Mergulhado na paixão, em 1801, Beethoven escrevia a sua Segunda Sinfonia «que era um afastamento ainda maior das convenções musicais e dos conselhos dos críticos».85 Ele foi muito criticado e entre as várias críticas, encontramos essa: «se Beethoven continuar com essa espécie de lixo, degenerarão as nossas orquestras em sociedades instrumentais de debates».86 Os críticos porém insistiam, afirmando «que a música de Beethoven não era apenas uma conversa, mas também uma conversa sem gramática. Uma linguagem de um homem inculto».87 Beethoven retorquia que, «de facto eles estão pasmado e conspiram porque nunca encontraram o que faço em nenhum livro».88 Os críticos observaram e com razão que algumas das suas passagens musicais ultrapassavam a capacidade dos instrumentos para os quais tinham sido escritas. Ele deu uma resposta totalmente ilógica, mas adequadamente artística: «acreditarão, acaso que posso pensar num miserável violino quando converso com o espírito?» Segundo ele seria «o mesmo que esperar que um vulcão vertesse as suas lavas em moldes artificiais, preparados por mãos humanos».89 Depois de um período de grandes dificuldades o homem que vive separado do mundo exterior, vira-se para si próprio, medita, liberta das fórmulas tradicionais, 83 Romantismo provém do conjunto dos movimentos intelectuais que, a partir do final do séc. XVIII fizeram prevalecer o sentimento sobre a razão e a imaginação sobre a análise crítica. 84 HENRY,Thomas. LEE, Thomas Dana. Vida de Grandes Compositores, tradução de Octávio Mendes cajado, Livros do Brasil, Lda., Lisboa, s/d, p. 73. 85 Ibidem, p.74. 86 Ibidem, p. 74. 87 Idem. 88 Idem. 89 Idem. 51 introduz novos elementos na sua música. Regressa, todavia, à fuga ao recitativo dramático, cria a forma de grande variação nas cinco últimas sonatas para o piano (1815-1822), a Missa em Ré, obra vigorosa e ousada (1823), a Nona Sinfonia com coros fresco magnifico coroado pelo hino à alegria (1823). A nona sinfonia só ficou pronta em 1824. Porquê fazemos referências a coisas, aparentemente, banais? Devido a importância histórica e musical da Nona Sinfonia. Como afirmou, certa vez, o Prof. Santayana, «Deus criou o Mundo, afim de que pudesse ser escrita a Nona Sinfonia».90Ainda sobre ela, R. Wagner disse o seguinte: «vemo-nos hoje diante dela como diante de Como uma baliza de um período inteiramente novo na historia da arte universal, pois surgiu no mundo, por intermédio, um fenómeno que nem remotamente pode ser comprado a coisa alguma que a arte de qualquer período ou de qualquer idade tenha para mostrar-nos».91 A 9ª Sinfonia, opus. 129 é a obra mais popular de Beethoven e traduz o pensamento musical abstracto, marcando assim a influência de Beethoven e do Idealismo filosófico e cultural Alemão. Foi entre os alemães, uma espécie de “BuliMundo”! Se Beethoven reinou com a música instrumental, o passo seguinte tinha de ser «a música fertilizada pela poesia»92. Tal é a espécie de poesia musical, ou drama musical, que Wagner se oferecera para dar ao mundo. Segundo ele, «as palavras não logram, por si só, exprimir a espécie mais alta da poesia. As palavras são as raízes, e a música, a flor».93 Contudo era a flor, para Wagner, mais importante do que a raiz, pois era, fundamentalmente, como Beethoven, um compositor instrumental. Wagner defendeu uma nova forma de ópera, o "drama musical", em que todos os elementos musicais e dramáticos são fundidos. Diferente de outros compositores de ópera de até então, que geralmente delegavam a tarefa da escrita do libreto, Wagner era responsável pelos seus, os quais eram referidos como "poemas". Wagner também desenvolveu um estilo de composição em que o papel da orquestra é igual ao dos cantores. 90 Ibidem, p. 82. Idem. 92 Ibidem, p. 167. 93 Idem. 91 52 CAPÍTULO III. PARA UMA ONTO-EST-ÉTICA DA MÚSICA §1. A EXPERIÊNCIA ONT-EST-ÉTICA DA MÚSICA. Falar da experiência “Onto-est-ética” da música é falar, simultaneamente, da “dimensão ontológica”, da “dimensão estética” e da “dimensão ética da música”. A dimensão ontológica tem a ver com a manifestação do Ser na música. Como vimos há uma certa superioridade da música em relação às outras artes, uma vez que ela é mais real, dado que exprime directamente o Ser em si. Devido à sua dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder. Um dos efeitos que ela causa em nós é que «ela não exprime tal ou tal alegria, tal ou tal aflição, tal ou tal dor, terror, encantamento, vivacidade ou calma do espírito. Ela pinta a própria alegria, a própria aflição e todos esses outros sentimentos por assim dizer, abstractamente».94 Ela tem uma capacidade, tão própria para comover os nossos sentimentos mais íntimos, tão profundo e inteiramente compreendida, semelhante a uma língua universal que não é inferior em clareza à própria intuição. É difícil ficar indiferente face à música. A nossa fantasia procura dar uma figura a esse mundo de espíritos invisível e, contudo, tão animado, tão inquieto que nos fala directamente a partir do abismo ou sem fundo: o Ser designado por Vontade. 94 - SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto s/d. p. 345 53 O que caracteriza a música enquanto tal é o fenómeno de “estranhamento”, porque a música como dissemos, captura-nos e penetra em nós através das vibrações que percorrendo o nosso corpo, provocam afectos e ideias, o que em suma, poderíamos chamar uma coreografia do pensar que atesta uma intensidade do pensamento. Estranhamente, esta coreografia não dança mas sim escuta. Escuta porque a música traduz a linguagem das próprias coisas e é aí que funda a universal compreensão, ou seja, a sua consideração como sendo uma linguagem universal. É este sentido universal que encontramos nas expressões já referidas: interferência (M. Serres), Vontade (Schopenhauer), universalidade, expressa esta que nas palavras de Edevard Elgar traduz assim: “penso que há música no ar, que estamos rodeados de música, que o mundo está cheio dela, e que cada um, simplesmente, toma o que quer”95. Sim é exactamente isto que acontece, pois cada um toma aquela música que se adequa com ele harmoniosamente, isto é, só aquelas que connosco se sintonizam, constituem a “nossa música”, ou seja, cada um de nós, gosta daquelas músicas que nos aparecem à nossa medida, fazendo-nos “passear por um mundo diferente”. Esse “passeio” é uma escuta do tecido das interferências, uma vez que a música selecciona harmoniosamente “o fundo acústico do universo” (M. Serres), dando nos o Ser através do som. Esta espécie de filosofia da natureza, ou melhor, esta “ontologia” opera pelo som que compõe, pelo som que descobre e inventa, actuando sobre o corpo e de uma forma mais geral sobre o “ senti-mental” produzindo vibrações. Assim, a música é um acto de penetração que torna o sentido sensível, misturando o corpóreo com a energia da razão. Como dissemos, esta pulsação ou energética, constitui o seu segredo, e parece-nos ser a sua incidência sobre o nosso «senti-mental» que fez dela uma arte privilegiada nos rituais iniciáticos cujo fim é conduzir ao êxtase. O fenómeno de estranhamento inerente à música constitui o seu «punctum» – o que fere, o que provoca uma agitação interior, e tal existe ou não existe para cada um de nós, pois como dissemos, pensamos que a experiência do ouvir a musica é eminentemente subjectiva, porque ouvir Wagner, Schubert, Mozart, Beethoven, etc., pode ser a experiência mais desconfortante possível para um não europeu com uma educação estética completamente diferente, e o contrário também poderá acontecer. É 95 ELGAR, Edevard. A Música Clássica, Uma Nova Forma de Ouvir a Música, Alexander, Tradução Temas de Actualidade, ASA, 1995, p. 45. 54 claro que existem aquelas músicas que conseguem captar a universalidade sensorial a ponto de conter um punctum, universalmente. Mas, o fenómeno de estranhamento permanece presente na nossa relação com a música, pois não é fácil dizer o que numa música nos inquieta e nos faz gostar dela. O seu «punctum» simplesmente nos fere e é, neste sentido, que Schopenhauer alertava para o inefável musical quando afirma «a música é para nós perfeitamente intelegível e completamente inexplicável».96 Da mesma forma, Jankélévitch (L`Inefable)97 fala-nos do ponto intraduzível da música que ele expressa tanto pelo conceito de «expressivo inexpressivo» (o profundo musical que se manifesta), como pelo conceito de «expressivo inexpressivo» que se aproximam do conceito, inefável. O inefável tem a ver com o que a música tem para nos dizer, isto é, com o infinito interminável, tal como o insondável mistério de Deus, ou o mistério do amor. Isto faz com que a riqueza comunicativa da música ultrapasse os poderes de interpretação e de análise da linguagem, pois a música como algo que nos põe em contacto com a nossa consciência só admite a “interpretação infinita” como a única forma de nos aproximarmos da energia ou intuição que lhe fez emergir no tempo (o tempo vivido), energia esta que quando em nós penetra, é capaz de provocar a experiência estética. É, sobretudo, a noção de «punctum» que nos serve de base para explicação daquilo que podemos chamar de experiência estética musical, pois se atendermos que esta experiência é a sensação do belo em nós, aquilo que nos comove e move o nosso interior, isso se justifica porque o som musical nos dá a ver o sublime, pois sentimos a presença de uma certa presença invisível que habita esse som. Essa aventura ou «agitação interior» que experimentamos deve-se àquilo que Roland Barthes (Câmara Clara) chama de «punctum», o acontecimento da música em nós, a nossa animação pela música, a produção de um afecto ou sentimento em nós. «Studium» e «punctum» são as noções utilizadas por Barthes para a descrição deste afecto, que experimentamos perante certas músicas, querendo o primeiro, significar um afecto médio – um investimento geral geralmente relacionado com as intenções do ouvinte ou o próprio acontecimento algo que nos chama atenção e, o 96 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto, p. 348. 97 JANKÉLEVICH, Vladimir. La Musique et L`Inefable, Flammarion. 55 segundo, o «acaso que nos fere» e que prefigura a imprevisibilidade da experiência estética. O princípio da experiência estética musical pode ser o raro, o aparentemente impossível, o que reflecte a nossa experiência, o que supera a nossa experiência, mas não nenhuma experiência estética sem a experiência cinestésica. Assim, o punctum musical pode ter como causa, outras razões: o contacto da música com a consciência (G. Steiner), o contacto com a nossa alma (Platão), o facto dela expressar a harmonia (Pitágoras), a melodia, etc., o facto dela poder revelar a essência do mundo (Schopenhauer), o facto dela seleccionar as interferências (M. Serres), etc. Por exemplo, Steiner advoga que a musica é a arte que nos torna vizinho da transcendência por pressupor aquilo que nomeia a vida e que é a condição de todo o sentido: o absoluto. A música é essa filosofia da natureza, essa “acustologia” que opera pelo som, e tenta transformar o ser inefável em forma «viva e vivida». Sem ou com a mistificação, muitos reconheceram desde há muito esta ideia: por exemplo, sabe se que Plotino e Santo Agostinho concebiam a música como imitação da música supra-sensível – «a histórica música das esferas celestes»; para além da forma viva e vivida, Hegel (Estética) e Kandinsky, falam-nos de uma «interioridade ressonante e espiritual» (Do espiritual na Arte) de que a musica é a expressão. A música que nos fere contém uma certa energia do inexplicável, mas sensível, e é essa sua bela «violência ontológica» que desperta a experiência estética musical. É por isso, que Steiner nos diz que «é na e através da música que acedemos mais e imediatamente a presença dessa energia do Ser, lógica e verbalmente inexprimível, mas plenamente sensível que comunica aos nossos sentimentos e ao nosso pensamento o pouco que somos capazes de aprender da maravilha nua da vida»98. A enigmaticidade da música faz dela ser, frequentemente, uma arte «séria e frívola, profunda e superficial» como dizia Jankélévitch99, pois a música pode tudo dizer quando contem um «punctum» ou nada dizer em caso contrário. Esse «punctum» é imprevisível, pois nenhum músico ao compor a sua música sabe de antemão que quando actualizada tal terá um impacto social ou individual profundo. A música opera com som e com silêncio, e é o seu trabalho em tons que nos encanta quando antes era somente nós que a cantava, ou seja, aquilo que cantamos, 98 99 STEINER, George. Presença Reais, Op. cit., p. 193. JNKÉLEVITCH,V., Op.cit. p. 17. 56 agora nos encanta! Esta é o mistério da música, porque ela mistura afectos e ideias, transborda de sentidos e apela o nosso sentido, expressa sentimentos e desperta sentimentos. Enquanto actividade que se inicia com a justaposição de sons interiores (emoções) derivados de acontecimentos que são um «studium», a música desperta a experiência estética - a agitação interior quando nos faz passear por um mundo que era anteriormente desconhecido. A sua incidência sobre os nossos afectos e as nossas ideias explicam o seu punctum. Entendemos por afectos, as afeições do corpo que aumentam ou diminuem a nossa potência de agir. Mas não é verdade que a música tem esta capacidade? Claro que sim, pois a sua incidência sobre o nosso «senti-mental», sobre a nossa dimensão somática e espiritual explica todo o seu «punctum», mas o «punctum» é singular e imprevisível. Em suma, a experiência estética musical acontece porque a experiência do ouvir embora seja uma experiência subjectiva, expressa um momento em que não é apenas um instante no qual se investe valores previamente existentes, mas sim «um momento de acontecimento de coisas que nos acontecem aí, face à obra (sensações, afecções, sentimentos e pensamentos) e a tornam por isso relevantes».100 Mas em que medida a música pode ser uma obra? Porém antes de responder esta questão, gostaríamos de dizer que «os seres humanos não são ao que parece os únicos seres que respondem positivamente a musica»101. Por agora, passemos à dimensão ética da música, uma vez que assim como em qualquer área precisamos da ética, também na música é preciso ter em conta a dimensão ética. 100 CRUZ, Maria Teresa. Percepção Estética E Publico Da Cultura: A Arte, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, p.53. 101 - Em Música Clássica, uma Nova Forma de Ouvir a Música, Op.cit. (p. 34) pode se ler o seguinte: «numa experiência cientifica na universidade de Annamalai, na Índia por exemplo as plantas de balsamina sujeitas a gravações de música de alaúde cresciam mais e eram mais viçosas do que as que não tinham música. Também as colheitas de arroz eram, consideravelmente, superiores quando as plantas eram cultivadas ao som da música. Mais estranho ainda, uma investigação levada a cabo na Universidade de Denver nos anos oitenta, conclui que as plantas preferem à música clássica, à música rock. As sujeitas ao rock e haevy-matal cresciam ou anormalmente grandes ou então enfezadas e ambas morriam no espaço de duas semanas. Inversamente, as plantas que cresciam sob o mesmo tipo de condições, mas a música de Handel e Bach, floresceram e até se inclinaram para a fonte do som musical». 57 A música é, por excelência, o meio mais democratizado de transmissão de ideias e convicções. O dom de poder ser passivamente absorvida por nós faz dela a mais poderosa ferramenta para juntar comunidades, etnias, grupos de opiniões, etc. Não necessitamos de entrar em contextualização histórica para descrever a importância que a ética e a consciência social tem perante o homem. Em nome da ciência e graças a ela, já se cometeram as maiores atrocidades de que o nosso planeta tem memória. Com todo o conhecimento que deu origem à bomba atómica é usado, hoje em dia, para curar com sucesso muitas formas de cancro. Citamos apenas um exemplo mais óbvio para dizer, que o facto de se possuir um poder conferido, quer pelo conhecimento, quer pelo dom, nos dá uma chave que poderá abrir duas portas: uma catastrófica, e outra que pode não resolver muitos problemas, mas que abre caminhos para um mundo melhor. É neste sentido, que existe um juramento assinado por todos os médicos, cientistas engenheiros tecnológicos etc. Defendemos também uma cultura de transmissão de ética em todas as profissões, até porque a música também está dentro das margens que comprimem a relação entre o Bem e o Mal. Se vertente comercial da música tem como consequência inicial a oferta do fácil, de consumo imediato e uma diminuição global da qualidade da nossa música na rádio, promovendo a preguiça intelectual e a mediocridade ao longo prazo transforma-se numa maquiavélica ferramenta de manipulação. Criam-se estéticas em defesas de regimes (todas as ditaduras tem uma estética própria associada) defendem-se ideologias duvidosas e maléficas. E, estranha é, que autores dessas manifestações de arte defendem o seu trabalho como “a arte pela arte”, ignorando o facto de que a arte é feita por homens para os homens. Sendo a música usada e abusada pelos piores fins, cabe à comunidade musical contrariar esta terrível tendência e agir activamente no sentido de uma evolução social. Sendo os músicos seres humanos indissociáveis do seu trabalho, eles têm o dever, a obrigação, de influenciar o meio em que vivem, já que foi este que lhe deu a inspiração e o reconhecimento que têm. A consciência social ética a isto obriga, e é para isso que serve a música: para numa harmonia perfeita entre o belo e a vontade de mudança, tentar fazer deste mundo mais justo. Eis porque, em tempos difíceis, a música anuncia quase sempre uma mensagem para o futuro. 58 §2. ELEMENTOS PARA UMA “ONTO-EST-ÉTICA” DA MÚSICA. Como já frisamos no capítulo anterior, falar da experiência “Onto-est-ética” da música é o mesmo que falar da “dimensão ontológica”, da “dimensão estética” e da “dimensão ética”. Daí que para se obter uma verdadeira onto-est-ética da música sejam necessários alguns elementos, tais como: Ser (Ontologia), Sensibilidade, Emoção, Percepção Sensível (Estética) e o Bem e o mal (Ética). Como sabemos existe uma relação entre esses elementos e a música. Como já disse anteriormente a uma certa superioridade da música em relação as outras artes uma vez que ela exprime directamente o ser em si. A música não é, como as outras artes, a cópia das ideias mas, a cópia da própria vontade. Ela nos apresenta a vontade eternamente em movimento, lutando, vagando, sempre voltando, afinal, para si mesma, a fim de recomeçar a batalha. É por isso, que o efeito da música é mais poderoso e penetrante do que o das outras artes, pois estas só falam de sombras, enquanto ela fala da coisa em si mesma. O ser manifestado na música expressa a dimensão ontológica da música. A música é de certa maneira ontológica uma vez que há uma relação estreita entre a música e o verdadeiro ser das coisas. Devido a sua dimensão ontológica, ela desperta em nós um enorme poder. É por isso que a influência da música é mais poderosa e mais penetrante que a das outras artes. «Estas exprimem apenas a sombra enquanto que ela (música) fala do ser»102. Outros dos elementos que faz parte da “Dimensão Estética” são: Sensibilidade103, Emoção104 e Percepção105 Sensível. Como sabemos a arte esta 102 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representação, Rés – Editora, Lda. Porto s/d. p.340 103 De forma mais simplista é capacidade de captar e expressar sentimentos e coisas. E esta habilidade de lidar com o sentir não é de todo inata. Ela é educada, estimulada pela vida e suas experiências. Sua condição passa directamente pelo trato do egoísmo ou pela socialização do ser. 104 Não sei bem se é o correto mas vejo da seguinte forma.Estado sentimental momentâneo em que o indivíduo tem seu organismo excitado. Há diversos tipos de emoção: medo, cólera, alegria, tristeza, piedade, felicidade, remorso, admiração, amor, ódio, culpa, vergonha etc. As emoções podem verificar-se como: experiências emocionais (quando o indivíduo sente a emoção), comportamento emocional (quando 59 relacionada com a estética. E a estética como sabemos vem do grego Aisthêsis, faculdade de sentir, que é a ciência que trata do belo e do sentimento que ele faz nascer em nós. Os problemas da estética podem agrupar-se em duas rubricas: uma a da criação e outra a da percepção estética. Temos assim: a obra de arte que é uma forma de expressão muito completa e muito profunda; ela apela para que o espectador se empenhe na ordem do sentimento. E uma teoria da percepção, isto é, do juízo do gosto ou do sentimento do prazer. Identificamos, deste modo, dois tipos de experiência: o da criação e o da percepção. Quando falamos da criação, estamos a pensar na criação artística, portanto, nas manifestações da arte: escultura, pintura, arquitectura, cinema, dança, música, teatro, etc., que revelam uma transfiguração da experiência que, simultaneamente, a retoma e reconstrói, quer no plano da racionalidade quer no plano da criatividade. Quando falamos da percepção estética, queremos dizer que pretendemos entrar no mundo da arte como espectadores atentos, pela aprendizagem do olhar e pela educação da sensibilidade, no sentido da formação do gosto e da abertura de novos horizontes, que nos revelam novas dimensões da realidade, alargando a nossa área de sentido do real. A experiência estética constitui, portanto, uma das vivências do ser humano, que pode ser desenvolvida, por exemplo, a partir das: artes do som e do movimento como a música e a dança. A música tem o poder de causar em nós sensações, emoções e mexer com a nossa sensibilidade. Mas devemos compreender que a música não representa as emoções, esta alegria ou aquele sofrimento, mas sim, ela é a alegria e o sofrimento essencial, na objectividade primeira do querer, fora de qualquer encadeamento de causas e motivos. é levado, pelo sentimento, a fazer algo), além de se notarem também alterações fisiológicas que correspondem ou são provocadas diretamente pela própria emoção: ficar "vermelho" de vergonha, ficar "branco" de susto, ter batidas do coração aceleradas por causa do medo etc. Logo se vê que toda emoção é um sentimento que pode levar a uma acção (preparação motora): um sentimento de cólera leva ao ataque, um sentimento de grande tristeza provoca o choro "para desabafar". Evidentemente, a intensidade das emoções varia muito, e se a tensão resultante da emoção for muito alta, haverá o impulso para uma ação correspondente. 105 - Representação do mundo exterior a partir das impressões sensíveis. 60 Ela difere também das outras artes porque afecta directamente os nossos sentimentos, e não por intermédio de ideias. Ao contrário das outras as artes que não objectivam portanto directamente, mas por intermédio das ideias, à «música vai pala além das ideias». A música fala a algo mais subtil que do que o intelecto, ela é uma reprodução da vontade. Música é, antes de mais nada, arte. E, quanto a nós, homens, quanto mais conseguirmos desfrutar da música como quem contempla uma obra de arte, mais teremos condições de evoluir. Ao mesmo tempo, quanto mais evoluídos formos, mais teremos condições e alcance para detectar em qualquer tipo de manifestação musical o que legitimamente ela contém em qualquer instância: uma obra de arte. Por fim temos os elementos que fazem parte da “dimensão ética da música” que são o bem e o mal. Assim como já referi anteriormente assim como em qualquer área precisamos da ética também na música é preciso ter em conta a dimensão ética. A música é por excelência o meio mais democratizado de transmissão de ideias e convicções. A música pode ser utilizado tanto para o bem como também para o mal. Muitos utilizam a música como forma de crítica contra os males da sociedade. Segundo a sabedoria dos antigos a toda música cabe o papel de esteticamente transmitir verdades eternas e influir no carácter do homem visando a torná-lo melhor, mas que em decorrência da polaridade das coisas existentes ela também sempre foi usada para fins opostos. Aonde quer que estamos ou formos estaremos em contacto com a música devidos as gravações acessíveis a todos, aparelhos de som de todos os tipos, rádio, cinema, televisão, etc., portanto existindo um fundo musical em tudo. Não se passa um momento sem que se esteja escutando algum tipo de música através de rádios, de aparelhos de som, etc., nas lojas, em casa, no carro, nos autocarros, nas ruas... Actualmente em tudo se faz sentir um fundo musical. O pior é que se tem que escutar música quer queira quer não queira e o que é pior escutar sem o direito de fazer uso do direito de escolher o que se quer ou não se quer ouvir. Por isto os “sábios filósofos chineses” estavam certos de que toda música sensual exercia uma influência imoral sobre o ouvinte, razão pela qual os governantes estabeleciam métodos de fiscalização visando que as músicas tocadas fossem estreitamente vigiadas de modo a se identificar se ela tendia para a degradação moral ou 61 se direccionava à espiritualidade, em outras palavras, visava saber se ela tendia ao bem ou para o mal. Que seria da terra sem ela, a música, que nos acompanha por eras, que permeia a estratosfera com suas notas coloridas e tons contrastantes, que rega nossas almas quando secas, que afugenta tristezas. 62 CONCLUSÃO Em termos conclusivos, resta-nos somente apresentar alguns comentários finais, sobre o tema exposto. No término deste trabalho, concluímos que pela primeira vez na história da filosofia depois dos Pitagóricos, a música ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Com Arthur Schopenhauer, a música é elevada à “ Magma Arte”. Com isso, ela assume um papel de extrema importância na sua filosofia, uma vez que revela a estrutura profunda do real: a Vontade. Para compreender melhor o grau de importância que ele atribui à música, tivemos que compreender o conceito de Vontade [Wille] e Representação [Vorstellung], aspecto vital na compreensão do seu pensamento filosófico. Schopenhauer supera o Kantismo assumindo um posicionamento metafísico, reclamando a necessidade e a possibilidade da metafísica como ciência. Para ele, o fenómeno é tudo aquilo que é percebido e pensado e, o númeno é a Vontade cognoscível por uma intuição imediata. Com isso supera o kantismo, ao elaborar uma metafísica imanente, submetendo a razão à Vontade. Uma vez que a própria Vontade se situa no plano metafísico e representa um querer viver essencial sob o qual o homem está e do qual não pode se livrar, a metafísica é essencial ao homem. A Vontade é a raiz metafísica do mundo. É o próprio poder da vida universal, anterior ao princípio da razão. Ela tem a característica de ser sem finalidade, irracional e inconsciente, além de possuir um poder cego e irresistível que gera a dor. A Vontade é, sobretudo, o substrato de todos os fenómenos. Ela é o númeno, mas ao se mostrar, torna-se fenómeno. Aliás, todo o fenómeno é vontade na sua forma objectiva. A partir daí, é possível dizer que o homem age porque é movido pela Vontade, que, por sua vez, nada tem de racional. Porém, a acção do homem, diferentemente da Vontade, transcorre racionalmente. Este é, por sua vez, a unidade do mundo, justamente, por estar presente em todas as pessoas, sem excepção. Se a Vontade gera a dor, fazendo do viver um sofrimento, a 63 única forma de superar essa dor é eliminando a Vontade. E isto pode dar-se pela contemplação artística, para Schopenhauer, todas as artes são libertadoras. De todas as artes, Schopenhauer exalta a música como sendo a mais grandiosa e a mais majestosa. Além disso, ela possui um poder especial, devido ao facto de ter um aspecto universalizante que ultrapassa qualquer tipo de individualidade. A referência da música é o efeito estético. É importante ressaltar que existe em todos os homens a capacidade de conhecer as ideias nas coisas, exteriorizando-se momentaneamente, de sua personalidade. É inerente a todas às pessoas essa faculdade, sem a qual não teriam receptividade para o belo. Esquecendo-se de si mesmo através da música, o homem liberta-se do sofrimento ao qual estava sujeito no seu trabalho serviçal em relação à Vontade. Essa libertação se dá pelo puro som, devido ao facto deste obter influência imediata sobre a vontade, produzindo no indivíduo um prazer estético que é o contentamento quanto ao conhecimento puro, intuitivo e, como tal, em oposição à Vontade. Em suma, a música atinge a todos, até aos menos sensíveis. Toda arte tem como fim, estimular o conhecimento das ideias. As ideias localizam-se totalmente, fora da esfera do conhecimento do sujeito como tal. São formas imutáveis, o em-si do mundo. O mundo é o fenómeno delas em multiplicidade. Visto que todas as artes estimulam o conhecimento das ideias, a música possui particularidades que a diferenciam de todas as outras artes. Isso porque ela segue além das ideias, ganhando assim independência do mundo aparente. A sua existência seria possível mesmo com a inexistência do mundo. A Vontade é a coisa em-si, logo, a ideia é a objectividade imediata da Vontade. As artes reproduzem as ideias. A música é a reprodução da própria Vontade, justamente, por se referir à essência da Vontade. Esse é o diferencial da música para com as demais artes. A música reproduz todos os movimentos da mais íntima essência humana, por ser destituída de realidade e sofrimento. Enfim, a música tem como objecto a Vontade, a partir do momento em que ela expressa o em-si do mundo, isto é, a própria Vontade, que pode e deve ser reconhecida como a verdadeira filosofia. A música é, então a verdadeira filosofia e a estética uma ontologia. Gostaríamos de realçar que este tema está longe de se esgotar, sendo assim, nunca foi nossa pretensão resolver de uma vez para sempre a questão, o que seria absurdo da nossa parte, a nossa intenção foi desde inicio apresentar uma leitura própria do problema em análise. 64 Esperamos ter alcançado os objectivos propostos, despertado interesse para o estudo da filosofia schopenhaueriana. Ainda, esperamos que este trabalho venha a servir como um importante instrumento de pesquisa para todos aqueles que queiram aprofundar os seus conhecimentos sobre a filosofia de Schopenhauer e sirva de auxílio para todos que venham a Trabalhar esse tema. 65 BIBLIOGRAFIA - COUTO, Carlos, Tópica Estética, Filosofia – Música – Pintura, Imprensa Nacional - Casa Moeda, Lisboa, 2001. DAHLHAUS, Carl. Estética Musical, Tradução de Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1991. DUFRENNE, Mikel. Estética E Filosofia, S. Paulo - Brasil, 2ª Edição Editorial Perspectiva,1981. - KIRK, G. RAVEN, J. E., SCHOLFIELD, Malcom. 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