Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 MEMÓRIA NA PELE Uma pele para as lembranças Reflexões em torno da tatuagem de um paciente adolescente Martine Vautherin-Estrade Uma sessão singular levou-me, a partir de uma atitude estética encenando o corpo, a escrever, com o objetivo de discutir em eco ou espelho a respeito da inscrição na pele, uma tentativa de simbolização em uma fronteira entre o esboço de um processo criativo e uma solução perversa. A escrita devia igualmente ajudá-me a me liberar de uma situação contra -transferencial paradoxal. Chamei meu paciente de Aldous, como o autor de Melhor dos mundos, para salientar a dimensão de neorealidade da inscrição na pele. Durante a sessão na qual ele evoca pela primeira vez sua tatuagem, esse jovem com aparência de adolescente não se comporta mais como de hábito : seu estilo muda, ele fala em seu próprio nome. Ele é o sujeito da enunciação e eu emprego a primeira pessoa quando transcrevo essa sessão, para traduzir algo da teatralização da qual ela é objeto. Não vejo como eu poderia ter transcrito as sessões anteriores de outra maneira que na terceira pessoa, senão seria como cometer um erro de elaboração. Tomado por uma grande excitação, ele descreve suas tatuagens : «rãs tropicais numa paisagem!» «Em uma revista científica que pertencia ao meu pai, eu tinha lido uma matéria sobre as rãs tropicais cuja pele secretava, ao toque, uma toxina muito potente que provocava queimaduras. Essa toxina, uma vez extraída, curava também doenças graves. Os dois aspectos da vida, a destruição e a reparo, estavam presentes. Me identifiquei com elas e resolvi fazer uma tatuagem de rã. Levei uma foto que estava na matéria para um mestre tatuador japonês. Fiquei fascinado e a sessão de tatuagem se transformou em uma droga pra mim, não podia mais viver sem ela. Fiquei hipnotizado com o aparecimento irreversível do desenho sobre meu corpo. Agora, já tem doze rãs. Na minha infância no Japão, meus pais gostavam muito de desenhar e eram fascinados pela tatuagem, eles até pensaram em se tatuar mas não ousaram. Lá, os homens mais potentes, os padrinhos da máfia, os patrões de impérios industriais, são todos tatuados por todo corpo e os tatuadores são reconhecidos como verdadeiros artistas. Quando disse-lhes que ia me tatuar eles adoraram, principalmente meu pai. Após cada sessão ele gosta de observar a progressão do desenho e analisa minuciosamente o trabalho do artista. Eu fico fascinado, é uma experiência incomparável, é como se fosse um ritual de três horas, todo mês, com um mestre. Nós conversamos, tomamos chá, descansamos. Não sei se posso parar de me page 1 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 tatuar, pois este é o único momento em que me sinto vivo. Me tatuei nas costas para só olhar quando me der vontade, no espelho, assim a admiração não esgota. É importante para mim poder decidir em que momento quero contemplá-las. Aqui também no seu consultório têm objetos admiráveis. [ele se refere então as estatuetas arqueológicas chinesas] ». Ele não poderia, me preveniu, falar com alguém que não pudesse entender aquilo, alguém que achasse esquisito e que o rejeitasse. Era uma advertência e marcava a possibilidade de ruptura da parte dele se eu não compreendesse isso, pelo menos foi assim que eu senti na hora. Foi também um adiamento obrigatório a uma posição de «duplo narcísico positivo». Ele falava como se tivesse estabelecendo um «contrato» entre nós, ao ponto mesmo de sair de sua complacência passiva que dominava até então, para instaurar uma relação de influência. Colocava-me, em relação aos meus próprios ideais, minha formação médica e sua ética (já que corrompia sua integridade corporal), numa situação de cumplicidade no mínimo incômoda. Continuou : « Desde o primeiro dia, vi que havia estampas japonesas no seu consultório e isso me fez pensar que a senhora compreenderia. Me senti bem aqui, me agradou. Mas não ousei até hoje lhe falar porque isso é a coisa mais importante da minha vida e isso talvez lhe pareça muito. » Dizendo isso, teve uma expressão triunfal. O triunfo se atenuou se abrindo em um movimento depressivo certamente, precedido de um movimento contra-transferencial da mesma tonalidade da minha parte e a percepção desse afeto nele provocou em mim um certo alívio. Ele fica, como narciso, hipnotizado quando admira as tatuagens, mas não gosta de mostrá-las a ninguém, só ao pai. Acha que os outros não compreenderão seu significado e não saberão apreciar. Ele espera que eu as compreenda por causa das minhas estampas japonesas e do meu interesse estético que imagina que, como seu pai, eu possuo, e por causa da decoração de meu gabinete, mas ele não tem certeza absoluta. A tristeza e os afetos nostálgicos eram, no fim da sessão e após a excitação que acompanhara à revelação do segredo, muito mais perceptíveis. Mostra-se de uma extrema passividade no pedido que me faz. Propus-lhe uma sessão semanal face à face que ele aceitou e a qual ele vem regularmente, sem faltar, parecendo se investir com tenacidade nessas sessões que ele dedica, durante as primeiras semanas à explicação, com a preocupação muito pedagógica de ser compreendido, dos elementos de uma história marcada pelo trauma e o abandono depois de uma infância feliz no Japão. Ele não me provoca tédio mas também não me excita. Fico desconcertada e emocionada com o contraste entre o desastre que ele exprime e a ausência de expressão de uma sensação afetiva que acompanha seu relato ou com a tonalidade séria que o acompanha. Se as representações psíquicas parecem pouco investidas, a decoração de meu gabinete, os tecidos, as estatuetas arqueológicas, as estampas japonesas, todos esses objetos associados à Asia e ao Japão dos seus primeiros anos de vida foram a fonte de um «investimento» perceptivo e sensorial massivo e imediato, consciente de sua parte. Parece dar uma alma a esses objetos inaninados e lhes atribuir uma qualidade tranqüilizante, como se eles lhe protegessem também de uma vivência de intrusão pelo outro. Falava dele como de outrem, que tivesse pouca importância para ele, com uma precisão de entomologista encarregado da descrição dos costumes dos insetos, me deixando page 2 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 assim desconcertada e em pouco perturbada durante quatro semanas. Tinha a impressão de encarregá-me de um sentimento que ele não parecia sentir, às vezes, eu tinha muita dificuldade em identificá-me com ele. A sessão que relatei devia marcar uma mudança na relação que se havia instaurado. Ao termo da qual senti-me sobre o domínio de uma situação paradoxal : eu devia, se quisesse rever o paciente, interessar-me a essa criação «vital» para ele, análoga a um fetiche, e reconhecê-la no seu valor historizante, como uma tentativa de restauração de um narcisismo ferido e como uma figuração condensada em imagem e em conto de fadas dele mesmo, que não me teria totalmente seduzido se ela não tivesse inscrita diretamente na sua carne. Eu não conseguia evitar um certo pavor contra-transferencial à perspectiva de um prosseguimento da tatuagem paralelo à sessão de psicoterapia, em um cenário que incluísse seu pai e o introduzisse assim no acting entre eu e Adous. Tinha a impressão de assistir «extemporânia» arriscando a instalação de uma solução perversa e de ficar reduzida à impotência. Temi não poder assumir o papel de analista e de ser marginalizada pela figura paterna. Nesse dia a sessão me perturbou e continuou e invadir meu espírito muito tempo depois da saída de Aldous. A sideração traumática momentânea que eu sentia me levou a escrever esta observação para evacuar o fascínio que ela exercera em mim. Como ele não me mostrava as tatuagens, como fazia com o pai, mas me as descrevia, senti a necessidade de ultrapassar o vacilamento identitário que eu vivia apoiando-me na verbalização de tudo o que estava, para ele, contido na tatuagem. Foi um começo de elaboração que o enquadramento e as modalidades verbais do trabalho analítico devia privilegiar. A carga erótica atribuída as suas costas, o seu valor de oferenda ao seu pai levaram-me a questionar sobre a possibilidade de um trabalho ulterior em posição alongada. Uma luz literária Um exemplo tirado da literatura, Na colônia penitenciária de Kafka, pareceu-me interessante. Trata-se, nessa novela inspirada em O Jardim dos suplícios de Octave Mirbeau que foi proibida por pornografia e sadismo no momento da publicação em 1901, de um «aparelho singular», uma máquina para executar suplicantes inventado pelo antigo comandante da colônia e manipulada por um oficial : a lei que lhe condenou foi transgredida, a lâmina marcou seu corpo…. Não é preciso contar o fim [o veredito] pois, o próprio corpo se encarregará. Ao viajante de passagem, um estrangeiro de fama, com um «suposto saber», de quem o novo comandante quer obter o apoio para fazer cessar essa prática, o oficial expõe com paixão – e na presença de um condenado que ele se prepara a executar – os detalhes do funcionamento de sua máquina e o desespero de vê-la abandonada (sou o único a defender a herança do antigo mandamento). Como não obtém a aprovação do viajante, ele libera o condenado e se mata oferecendo seu corpo à maquina que regula minuciosamente para ele na frente de seu hóspede. Kafka escreveu pelo menos nove epílogos dessa novela para descrever a aflição e a desorganização do viajante preso em afetos de culpabilidade indizíveis. Depois de ter sido submetido ao relato sádico e jubiloso do suplício em via de realização, ele assiste ao espetáculo da imolação do oficial perante os olhos fascinado do ex-condenado. Chocado page 3 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 com a condenação da máquina, que incarnava para ele a potência fálica do mestre que ele tinha constituído, esse último se suicida se dando à ela. Recusando caucionar o uso da máquina, o viajante é testemunha e ator pelo simples fato de está lá e deter o poder de julgamento. Ele consegue salvar o condenado e ao mesmo tempo leva ao desespero e contribui à morte do oficial. Esta ilustração horripilante parece-me refletir o paradoxo no qual encontrava-me e que tentava resolver através a colocação em sentidos e em palavras. Uma tentativa de tornar-se mestre do objeto paternal do qual está exilado Pelo intermédio das tatuagens corporais, ele vai ao encontro, compartilha, se apropria dos investimentos paternais e de sua busca estética, tentando – como em muitos mecanismos de defesa perverso – uma dominação sobre o objeto paternal que ele não pode introjetar e situando-se, para guardá-lo, em seu duplo narcísico positivo. Graças a esse sintoma, ele é reconhecido pelo pai, admirado, estimado como digno dele mesmo porque vai de encontro aos seus ideais estéticos e a seu investimento do corpo como objeto a exibir. É nesse ponto que me parece residir o perigo do « investimento » nessa prática que, contrariamente as do pai, é irreversível e definitivamente inscrita no corpo. O fato da experiência ser compartilhada e investida visualmente pelo pai reforça o lado « reabilizante», do ponto de vista da reconstituição narcísica, inerente à imagem visual por sua essência. Esse narcisismo para dois, e no caso, a «pele para dois» evoca o casal gemelário descrito por Anzieu, residindo na mesma pele e ameaçado, vitalmente, em caso de separação de um dos termos. A situação das tatuagens confere-lhe uma função de fetiche, « espelho dele mesmo nas costas », accessível, à vontade, pelo intermédio de seus reflexos que ele não é obrigado a ver, sem correr o risco de lhe provocar uma lassidão e, assim, responsável da perenidade do investimento. A multiplicação das rãs, o projeto de se tatuar completamente, criam uma tela representativa entre o dentro e o fora. A admiração estética não destrói o objeto, apesar da intimidade que é associada, ela dálhe uma função de fetiche interno e se situa fora da dominação e das projeções antropomórficas, o que é o início da criação metafórica. Aldous parece realizar e inscrever, para sempre no seu corpo, a marca da sua infância idealizada no Japão, com seus pais, e a realização de seu desejo comum : uma neorealidade onde todos estão contidos na mesma pele, encobrindo uma recusa e vindo apagar a catástrofe do trauma. O horizonte se situa para além do prazer e, é lá, mais do que em outro lugar, que com o seu corpo, e de maneira metafórica, ele paga o tributo da separação impossível. Trata-se de reencontrar o palpável do objeto sobre investindo o que pode lhe dar sensações, o investimento – do qual ele não fala – da dor da tatuagem, produtora da existência, pode servir a tirá-lo da despersonalização e a criar um sofrimento iniciático modificando a relação tão contrariada para o pai e para os imagos parentais. Inscrição cultural da prática da tatuagem page 4 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 A prática que escolheu Aldous não tem o mesmo sentido na França e no Japão onde ela é reconhecida socialmente, praticada com freqüência, no seio da elite, e valorizada. Os tatuadores são artistas famosos e honorados, os desenhos são simbólicos, escolhidos por razões espirituais e muito pensada, tentado traduzir, numa forma pictural e poética, à representação de quem recebe a tatuagem quer dar de si próprio e aos outros, impondo assim o respeito. A rã é um dos motivos privilegiados na Ásia onde provavelmente milhares de pessoas são tatuadas nas cotas. Com efeito, em toda Ásia do Sudeste, inclusive na Indonésia, o motivo sobre os tecidos tradicionais, o « homem-rã », acompanhou as migrações antigas vindas da China. Pela datação e os traços desse motivo, alguns pesquisadores procuram escrever uma história que não foi escrita. Aldous, pela utilização que faz, confia a ele próprio o papel, com ajuda de um outro, de escrever na pele a história da qual ainda não se apropriou. O mestre tatuador é igualmente um guia espiritual que facilita o acesso à representação de si próprio e do mundo. No Japão, a « rã substituta » é um amuleto, geralmente em pedra esculpida, encarregado de recolher o espírito e a alma de seu possuidor, quando este acaba de irse. O amuleto deve ser usado em permanência. Talvez seja esse papel que ele confia ao mestre tatuador e agora a mim. A rã teria o poder de fechar a alma da criancinha morta (trata-se dele ?), almas penadas ; ela é símbolo de ressurreição através suas metamorfoses. Crer-se que as rãs, emblema da água, atraem a chuva, a fecundidade e a prosperidade. Assim sendo, desde as mais antigas culturas, sua imagem figura nos objetos de arte popular dos ritos animistas (tambores pré-históricos em bronze do Vietname). São símbolos de construção de uma vida e de uma história. Existe, nas culturas asiáticas, um investimento, fonte de crenças « mágicas », do líquido seminal, remédio milagre, que podemos aproximar à toxina da rã. A posição da rã é a posição sexual habitual no continente asiático, inspirada na « rã à nado » do Kama-sutra. A rã é freqüentemente associada ao convite sexual, o que favoriza a hipótese de homossexualidade ou de uma posição feminina. O sentido que lhe dá Aldous traduz a saudade da cultura que foi o berço de sua infância e dos ideais compartilhados nessa época com seus pais. O tatuador de Aldous se inscreve nessa tradição lhe permitindo assim, reencontrar e reconstruir suas raízes ; ele é um substituto paternal com quem o jovem mantém uma boa relação. Essa situação não parece se manifestar por um masoquismo perverso. É a representação e não a dor que está em jogo. E se Aldous fala de toxicomania e de fascínio estético, ele não parece conhecer a real escalada disso. Narrativa figurada em imagem A rã tropical que queria ser maior que o boi e se transformar em imperatriz japonesa reenvia à megalomania infantil de Aldous ligada ao narcisismo patológico nostálgico da criança rei em majestade, que ele foi no Japão. page 5 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 A pele secretando uma toxina traduz a fragilidade do seu Eu-pele, insuportável no contato com outrem e provocando, nesse caso, a destruição da outra pele (com o objetivo, seja de repulso, seja de abolição do limite entre as duas peles). O desejo, megalomaníaco, da reparação e de uma saída restauradora se desenha no projeto de curar, graças a essa toxina, doenças graves a nível da humanidade inteira. A rã é um animal estranho ; ela possui uma cloaca, mas foi antes um girino que perdeu o rabo, como as crianças gostam de observar este fenômeno. A castração precedeu a indiferenciação sexual e por isso ela é mais perfeita. A cloaca reenvia à diferença sexual que, com evidência, não foi adquirida por Aldous e a um imago mateno-paterno arcaico sob o sinal da analidade. Com efeito, a rã vive no lodo. A pele tatuada evoca uma tentativa de reconstrução dos fetiches internos e externos, protetores de uma desorganização, fetiches animados pela proteção da integridade narcísica do paciente e, desanimados pela devolução a uma inscrição sobre a pele, o que assegura sua perpetuidade. A inscrição se transforma então em um produto do sujeito com a fecalização que se liga a ele. A tatuagem possui as qualidades de perenidade, de imutabilidade e de poder mágico (megalomania) incluídos nos fantasmas inconscientes do sujeito em relação com os objetos internos. Ela é o resultado do movimento de idealização inerente ao psiquismo. A obra criada posui um efeito de para-excitação em Aldous. Ela o completa e lhe apazigua. Como um fetiche interno, ela atrai para ela todo o investimento de Aldous _ « é a coisa mais importante pra mim » - e, no investimento de dominação sobre um objeto perdido, suas traças, o que resta dele, sevem do reforço narcísico. Por outro lado, esta situação « atrás », acessível a todos que se aproximam enquanto ele não tem acesso, pode ser um sinal de homossexualidade. As costas seriam para ele o lugar da identificação com o pai. As rãs secretam uma substância que destrói quem lhe toca mas que, uma vez extraída, se transforma em remédio. O aproximar perigoso seria homossexual ; esse contato mataria o agressor mas destruiria provavelmente o paciente. A substância uma vez extraída (licor seminal) seria fonte de vida, capaz de engendramento. É, assim, uma tentativa de colocação em fanfasma que a tatuagem realiza. A passagem delicada é a da simbolização pela qual ameaça homossexual faz correr o risco de explosão do eu. Esboço de uma solução criadora A transformação em escrita necessitaria habitar – e de ser habitada por – o universo das palavras e das metáforas produzidas na figuração visual ; ora, o caráter infantil do paciente _ no sentido que Pascal Quignard sublinha, a infância, infantia, é o estado da « não-fala » _ expõe-no à ameaça de uma falha, sempre possível, da linguagem adquirida. É necessário levar em consideração o fato que, a linguagem da cultura na qual ele passou a infância inscreve-se, signo lingüístico incluído, reproduzindo imagens, como em pictogramas. Não é ele quem desenha, e sim o tatuador que traduz seu pensamento em imagens e Adous empresta a pele à figuração afim de poder admirá-la. Pode-se, todavia considerar que trata-se de um esboço de uma atitude criadora : é a representação e não o ato ou a dor gerada que está investida (ele dirá que às vezes, em page 6 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 alguns períodos, não consegue se tatuar pois teme o sofrimento). Há uma prioridade narcísica absoluta a esse nível, « é a coisa mais importante pra mim ». A metáfora animalesca desloca o limite para além do humano, evita as projeções antropomórficas, se libera do domínio do outro, e por isso mesmo, dá acesso a polissemia ( somos todos mosca para os deuses, já dizia Shakespeare). Figuração e narrativa relatam, como um sonho, o que não pode ser dito sem deslocamento nem mudança de perspectiva. O caráter de obrigação absoluta à relação ao sofrimento e à megalomania infantil pertencem igualmente, e quase sempre, ao processo criativo. Como a escrita, a inscrição sobre a pele cobre aquilo que rasga e, em um movimento de revelação, rediz a lesão, celebra a ferida, nasce na e de uma violência. Ela foi decidida após um período de reflexão, de germinação e de concepção, e há um prazo entre as sessões de desenho. Ela é o fruto de uma co-criação com um artista. Ela é ainda limitada pelo universo infantil e animista do paciente mas, testemunha seu esforço de um deslocamento de perspectiva. Ela fornece à analise, em forma condensada, um espaço de colocação em imagem e em palavras utilizáveis pelo analista, dando a possibilidade ulteriormente de uma restituição em forma de representações. Ela falha todavia, escrevendo-se sobre o vivo, na pele, fazendo figura de marca identitária. Ela é um fetiche. Ela vai de encontro à intimidade que, contrariamente à sublimação, não transmite-se ao outrem, não é fonte de valorização social e de trocas e não resolve a solidão exprimida. Além do mais, como a toxina da rã, essa figuração ataca a pele e o Eu-pele. E mais, como afeta a integridade corporal de maneira irreversível, as possibilidades de realização, que ele poderia oferecer, são limitadas tanto pelas dificuldades técnicas que pelo próprio tegumento. Há poucas possibilidades. As aberturas A colocação em imagem, pelo seu aspeto de condensação e de figuração visual, é reabilizante, no sentido narcísico do termo, para Aldous e permite um sobre investimento de minha parte enquanto analista, a quem ele delega um trabalho de figuração e de decifração que ele não pode assumir. Essa hiper condensação comporta um risco de fascinação pelo nível traumático e necessita, da parte do analista, um trabalho intenso de descondensação por uma restituição ulterior, medida e talvez deferida de maneira suficientemente longa, para subjugá-lo, como ele é na relação com o pai e com o tatuador, a uma imobilização numa posição feminina masoquista passiva (ele se deixa admirar, se deixa picar e lhe injetar a tinta) que teria valor de violação psíquica. O esforço criativo, presente nessa tentativa, necessita ser levado em consideração e podemos imaginar que o trabalho nas sessões possa propor a esse movimento um deslocamento metafórico e simbolizável. Sem otimismo exagerado mas, como na transferência me são subjugadas tanto a posição masoquista – que foi a dele – de um espectador impotente, quanto uma proposta de ocupar o papel do tatuador, talvez existiria um espaço onde, sem recusar totalmente a relação de dominação, o que seria um não-encontro, o posicionamento do sentido dessas inscrições poderiam introduzir uma diferença, um jogo na engrenagem apertada demais que abriria para um eventual trabalho de elaboração, ou mesmo de sublimação. page 7 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 O movimento depressivo confortou-me como se um retorno à vivência dolorosa pudesse induzir a uma liberação do investimento corporal e a um movimento refletivo sobre as origens do seu sofrimento, alternativa à dominação do gozo do sintoma. Os afetos nostálgicos aparecidos na consulta seguinte, provocados por ter sonhado com sua amiga, andando ao seu lado como uma sombra, desaparecia. Evocou longamente a mãe, até então ausente de seu discurso, uma mãe deprimida, quase sempre incompreensível para ele e nas suas reações e tendo feito uma longa análise. Desde o começo da terapia ele não tinha ido se tatuar. Tinha marcado uma sessão com o tatuador, alguns dias após a sessão comigo, mas acabou anulando com medo de não suportar a dor, atroz. Pensava em continuar mais tarde, mas o medo do sofrimento físico era grande, medo, sentimento que para ele é raro. Talvez uma operação simbolizante de deslocamento se havia operado entre o mestre tatuador e o analista que eu representava… Explicou então sua « insensibilidade emocional » com palavras alucinantes a respeito da tentativa de suicídio de sua amiga de infância : « Ela estava em coma, eu olhava o tubo, verifiquei meu pulso que batia mais rápido, eu olhava para os tubos, a tela e depois minha respiração, meu diafragma quase não subia, não conseguia respirar, mas eu não sentia nenhuma emoção, sou insensível, não sinto nada. » Mostrava-se aflito, temia provavelmente a volta de uma vivência dolorosa-emocional, e eu aceitei, ao seu pedido, aumentar a freqüência das sessões. O fator que fez vacilar nessa criação de identificação e lhe conduziu a vir consultar fica obscuro. Seria o luto da amiga que morrera recentemente, ou o da mãe que partira ? O luto dessas duas mulheres que lhe deram às cotas, as quais ele pensa ver de costas na rua ? Essas imagens poderiam parecer banais se as costas não tivessem para Adous uma carga erótica tão grande. Mas de costas, como não se ver o rosto, pode-se distinguir o sexo de alguém ? Talvez seja aí o seio da confusão desse paciente, ou senão a percepção paradoxal da diferença dos sexos que o faz sentir-se na via da identificação paternal, através suas cotas. Conclusão O pavor contra-transferencial que me tomou à perspectiva dele continuar a sessão de tatuagem paralelamente à sessão de psicoterapia, o medo de ser marginalizada por uma figura paternal perversa em acting entre eu e Aldous, a sideração traumática provocada por essa sessão quando, pela primeira vez, ele passou da terceira pessoa a falar na primeira pessoa e a excitação manifestada à evocação dessa prática, me fizeram duvidar de não poder assumir o papel de analista. A escrita da observação impôs-se para mim como esforço de simbolização forçada contra a inscrição sobre a pele, em espelho e em eco. Uma mudança que me pareceu rápida _ talvez preparada pela experiência da tatuagem como sofrimento iniciático, que podia ter modificado virtualmente a relação tão presa aos imagos parentais_ efetuou-se ; ela permitiu a instauração de um processo analítico. A passagem da inscrição somática à representação mental que seguiu essa sessão traduziu page 8 de 10 Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes Ano 1, Nº 1 uma mutação do modo da organisação metapsicológica do paciente e de seus equilíbrios econômicos. Existe situações clínicas onde a Geworfenheit do analista (no sentido do conceito de Heidegger, literalmente « está jogado aí ») é uma condição preliminar que pode ser necessária à percepção pelo paciente de sua Hilflösigkel. O encontro com os pacientes criativos confronta, muitas vezes, à atitudes estéticas encenando o corpo e o analista deve respeitar essa criação de identificação e ao mesmo tempo tentar uma colocação em palavras e em sentido que possa ser compreendida. A inscrição sobre a pele, por um mestre tatuador, induziu-me a esta escrita e deveria conduzir a um processo analítico no qual o paciente seria induzido a formular sua história e tentar a apropriação. BLIBLIOGRAFIA ANZIEU D. (1985), Le Moi-peau ( Eu-pele), Paris, Dunod. BARANDE I. (1993), « De Laïos pédophile à Yahvé intraitable » ( de Laios pedófilo à Yahvé intratável), in RFP, LVII, 2, 1993. BION W. R. (1962 ), « Le Clivage forcé », ( A clivagem forçada) in Aux sources de l’expérience, Paris, PUF. DAVID C. (1992), La Bisexualité psychique, (A bissexualidade psíquica) Paris, PUF. DENIS P. (2002), Autour de la relation fétichiste à l’objet,( Em torno da relação fetichista ao objeto) conférence aux Journées de La Baule, à paraître. FREUD S. (1914), « Pour introduire le narcissisme »,( para introduzir o narcisismo) in La Vie sexuelle, Paris, PUF, 1969. GREEN A. (1973), Le Discours vivant, (O discurso vivo) Paris, PUF, coll. « Le fil rouge ». KAFKA F. 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(1969), De la pédiatrie à la psychanalyse,(da pediatria à psicanálise) Paris, Payot. Resumo Uma sessão singular em torno da tatuagem de um paciente levou-me a escrever, em espelho e em eco sobre essa inscrição sobre a pele, e a discutir o valor, para ele e na transferência, dessa neorealidade que situa-se na fronteira entre uma solução artística e uma solução perversa, preliminar à escrita da sua história com palavras. A escrita continha o desafio de me liberar de uma dominação transferencial paradoxal. Palavras-chave Tatuagem, neorealidade, dominação transferencial, pré-simbolização, escrita. Martine VAUTHERIN-ESTRADE membre de la SPP 29, quai d’Anjou 75004 PARIS 01 44 07 39 17 [email protected] page 10 de 10