Controvérsias na Psicanálise de Crianças e Adolescentes
Ano 1, Nº 1
MEMÓRIA NA PELE
Uma pele para as lembranças
Reflexões em torno da tatuagem de um paciente adolescente
Martine Vautherin-Estrade
Uma sessão singular levou-me, a partir de uma atitude estética encenando o corpo, a
escrever, com o objetivo de discutir em eco ou espelho a respeito da inscrição na pele,
uma tentativa de simbolização em uma fronteira entre o esboço de um processo criativo
e uma solução perversa. A escrita devia igualmente ajudá-me a me liberar de uma
situação contra -transferencial paradoxal.
Chamei meu paciente de Aldous, como o autor de Melhor dos mundos, para salientar a
dimensão de neorealidade da inscrição na pele. Durante a sessão na qual ele evoca pela
primeira vez sua tatuagem, esse jovem com aparência de adolescente não se comporta
mais como de hábito : seu estilo muda, ele fala em seu próprio nome.
Ele é o sujeito da enunciação e eu emprego a primeira pessoa quando transcrevo essa
sessão, para traduzir algo da teatralização da qual ela é objeto.
Não vejo como eu poderia ter transcrito as sessões anteriores de outra maneira que na
terceira pessoa, senão seria como cometer um erro de elaboração.
Tomado por uma grande excitação, ele descreve suas tatuagens : «rãs tropicais numa
paisagem!»
«Em uma revista científica que pertencia ao meu pai, eu tinha lido uma matéria
sobre as rãs tropicais cuja pele secretava, ao toque, uma toxina muito potente
que provocava queimaduras. Essa toxina, uma vez extraída, curava também
doenças graves. Os dois aspectos da vida, a destruição e a reparo, estavam
presentes.
Me identifiquei com elas e resolvi fazer uma tatuagem de rã.
Levei uma foto que estava na matéria para um mestre tatuador japonês. Fiquei
fascinado e a sessão de tatuagem se transformou em uma droga pra mim, não
podia mais viver sem ela. Fiquei hipnotizado com o aparecimento irreversível do
desenho sobre meu corpo.
Agora, já tem doze rãs.
Na minha infância no Japão, meus pais gostavam muito de desenhar e eram
fascinados pela tatuagem, eles até pensaram em se tatuar mas não ousaram. Lá,
os homens mais potentes, os padrinhos da máfia, os patrões de impérios
industriais, são todos tatuados por todo corpo e os tatuadores são reconhecidos
como verdadeiros artistas.
Quando disse-lhes que ia me tatuar eles adoraram, principalmente meu pai. Após
cada sessão ele gosta de observar a progressão do desenho e analisa
minuciosamente o trabalho do artista. Eu fico fascinado, é uma experiência
incomparável, é como se fosse um ritual de três horas, todo mês, com um mestre.
Nós conversamos, tomamos chá, descansamos. Não sei se posso parar de me
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tatuar, pois este é o único momento em que me sinto vivo. Me tatuei nas costas
para só olhar quando me der vontade, no espelho, assim a admiração não esgota.
É importante para mim poder decidir em que momento quero contemplá-las. Aqui
também no seu consultório têm objetos admiráveis. [ele se refere então as
estatuetas arqueológicas chinesas] ».
Ele não poderia, me preveniu, falar com alguém que não pudesse entender aquilo,
alguém que achasse esquisito e que o rejeitasse. Era uma advertência e marcava a
possibilidade de ruptura da parte dele se eu não compreendesse isso, pelo menos foi
assim que eu senti na hora. Foi também um adiamento obrigatório a uma posição de
«duplo narcísico positivo». Ele falava como se tivesse estabelecendo um «contrato»
entre nós, ao ponto mesmo de sair de sua complacência passiva que dominava até
então, para instaurar uma relação de influência. Colocava-me, em relação aos meus
próprios ideais, minha formação médica e sua ética (já que corrompia sua integridade
corporal), numa situação de cumplicidade no mínimo incômoda.
Continuou :
« Desde o primeiro dia, vi que havia estampas japonesas no seu consultório e isso
me fez pensar que a senhora compreenderia. Me senti bem aqui, me agradou.
Mas não ousei até hoje lhe falar porque isso é a coisa mais importante da minha
vida e isso talvez lhe pareça muito. »
Dizendo isso, teve uma expressão triunfal.
O triunfo se atenuou se abrindo em um movimento depressivo certamente, precedido de
um movimento contra-transferencial da mesma tonalidade da minha parte e a percepção
desse afeto nele provocou em mim um certo alívio.
Ele fica, como narciso, hipnotizado quando admira as tatuagens, mas não gosta de
mostrá-las a ninguém, só ao pai. Acha que os outros não compreenderão seu significado
e não saberão apreciar. Ele espera que eu as compreenda por causa das minhas
estampas japonesas e do meu interesse estético que imagina que, como seu pai, eu
possuo, e por causa da decoração de meu gabinete, mas ele não tem certeza absoluta.
A tristeza e os afetos nostálgicos eram, no fim da sessão e após a excitação que
acompanhara à revelação do segredo, muito mais perceptíveis.
Mostra-se de uma extrema passividade no pedido que me faz. Propus-lhe uma sessão
semanal face à face que ele aceitou e a qual ele vem regularmente, sem faltar,
parecendo se investir com tenacidade nessas sessões que ele dedica, durante as
primeiras semanas à explicação, com a preocupação muito pedagógica de ser
compreendido, dos elementos de uma história marcada pelo trauma e o abandono depois
de uma infância feliz no Japão.
Ele não me provoca tédio mas também não me excita. Fico desconcertada e emocionada
com o contraste entre o desastre que ele exprime e a ausência de expressão de uma
sensação afetiva que acompanha seu relato ou com a tonalidade séria que o acompanha.
Se as representações psíquicas parecem pouco investidas, a decoração de meu gabinete,
os tecidos, as estatuetas arqueológicas, as estampas japonesas, todos esses objetos
associados à Asia e ao Japão dos seus primeiros anos de vida foram a fonte de um
«investimento» perceptivo e sensorial massivo e imediato, consciente de sua parte.
Parece dar uma alma a esses objetos inaninados e lhes atribuir uma qualidade
tranqüilizante, como se eles lhe protegessem também de uma vivência de intrusão pelo
outro.
Falava dele como de outrem, que tivesse pouca importância para ele, com uma precisão
de entomologista encarregado da descrição dos costumes dos insetos, me deixando
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assim desconcertada e em pouco perturbada durante quatro semanas. Tinha a impressão
de encarregá-me de um sentimento que ele não parecia sentir, às vezes, eu tinha muita
dificuldade em identificá-me com ele.
A sessão que relatei devia marcar uma mudança na relação que se havia instaurado.
Ao termo da qual senti-me sobre o domínio de uma situação paradoxal : eu devia,
se quisesse rever o paciente, interessar-me a essa criação «vital» para ele, análoga a um
fetiche, e reconhecê-la no seu valor historizante, como uma tentativa de restauração de
um narcisismo ferido e como uma figuração condensada em imagem e em conto de fadas
dele mesmo, que não me teria totalmente seduzido se ela não tivesse inscrita
diretamente na sua carne.
Eu não conseguia evitar um certo pavor contra-transferencial à perspectiva de um
prosseguimento da tatuagem paralelo à sessão de psicoterapia, em um cenário que
incluísse seu pai e o introduzisse assim no acting entre eu e Adous. Tinha a impressão de
assistir «extemporânia» arriscando a instalação de uma solução perversa e de ficar
reduzida à impotência. Temi não poder assumir o papel de analista e de ser
marginalizada pela figura paterna.
Nesse dia a sessão me perturbou e continuou e invadir meu espírito muito tempo depois
da saída de Aldous. A sideração traumática momentânea que eu sentia me levou a
escrever esta observação para evacuar o fascínio que ela exercera em mim.
Como ele não me mostrava as tatuagens, como fazia com o pai, mas me as descrevia,
senti a necessidade de ultrapassar o vacilamento identitário que eu vivia apoiando-me na
verbalização de tudo o que estava, para ele, contido na tatuagem. Foi um começo de
elaboração que o enquadramento e as modalidades verbais do trabalho analítico devia
privilegiar. A carga erótica atribuída as suas costas, o seu valor de oferenda ao seu pai
levaram-me a questionar sobre a possibilidade de um trabalho ulterior em posição
alongada.
Uma luz literária
Um exemplo tirado da literatura, Na colônia penitenciária de Kafka, pareceu-me
interessante. Trata-se, nessa novela inspirada em O Jardim dos suplícios de Octave
Mirbeau que foi proibida por pornografia e sadismo no momento da publicação em 1901,
de um «aparelho singular», uma máquina para executar suplicantes inventado pelo
antigo comandante da colônia e manipulada por um oficial : a lei que lhe condenou foi
transgredida, a lâmina marcou seu corpo…. Não é preciso contar o fim [o veredito] pois,
o próprio corpo se encarregará.
Ao viajante de passagem, um estrangeiro de fama, com um «suposto saber», de quem o
novo comandante quer obter o apoio para fazer cessar essa prática, o oficial expõe com
paixão – e na presença de um condenado que ele se prepara a executar – os detalhes do
funcionamento de sua máquina e o desespero de vê-la abandonada (sou o único a
defender a herança do antigo mandamento). Como não obtém a aprovação do viajante,
ele libera o condenado e se mata oferecendo seu corpo à maquina que
regula
minuciosamente para ele na frente de seu hóspede.
Kafka escreveu pelo menos nove epílogos dessa novela para descrever a aflição e a
desorganização do viajante preso em afetos de culpabilidade indizíveis. Depois de ter
sido submetido ao relato sádico e jubiloso do suplício em via de realização, ele assiste ao
espetáculo da imolação do oficial perante os olhos fascinado do ex-condenado. Chocado
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com a condenação da máquina, que incarnava para ele a potência fálica do mestre que
ele tinha constituído, esse último se suicida se dando à ela. Recusando caucionar o uso
da máquina, o viajante é testemunha e ator pelo simples fato de está lá e deter o poder
de julgamento. Ele consegue salvar o condenado e ao mesmo tempo leva ao desespero e
contribui à morte do oficial.
Esta ilustração horripilante parece-me refletir o paradoxo no qual encontrava-me e que
tentava resolver através a colocação em sentidos e em palavras.
Uma tentativa de tornar-se mestre do objeto paternal do qual está exilado
Pelo intermédio das tatuagens corporais, ele vai ao encontro, compartilha, se apropria
dos investimentos paternais e de sua busca estética, tentando – como em muitos
mecanismos de defesa perverso – uma dominação sobre o objeto paternal que ele não
pode introjetar e situando-se, para guardá-lo, em seu duplo narcísico positivo. Graças a
esse sintoma, ele é reconhecido pelo pai, admirado, estimado como digno dele mesmo
porque vai de encontro aos seus ideais estéticos e a seu investimento do corpo como
objeto a exibir.
É nesse ponto que me parece residir o perigo do « investimento » nessa prática que,
contrariamente as do pai, é irreversível e definitivamente inscrita no corpo. O fato da
experiência ser compartilhada e investida visualmente
pelo pai reforça o lado
« reabilizante», do ponto de vista da reconstituição narcísica, inerente à imagem visual
por sua essência. Esse narcisismo para dois, e no caso, a «pele para dois» evoca o casal
gemelário descrito por Anzieu, residindo na mesma pele e ameaçado, vitalmente, em
caso de separação de um dos termos.
A situação das tatuagens confere-lhe uma função de fetiche, « espelho dele mesmo nas
costas », accessível, à vontade, pelo intermédio de seus reflexos que ele não é obrigado
a ver, sem correr o risco de lhe provocar uma lassidão e, assim, responsável da
perenidade do investimento.
A multiplicação das rãs, o projeto de se tatuar completamente, criam uma tela
representativa entre o dentro e o fora.
A admiração estética não destrói o objeto, apesar da intimidade que é associada, ela dálhe uma função de fetiche interno e se situa fora da dominação e das projeções
antropomórficas, o que é o início da criação metafórica.
Aldous parece realizar e inscrever, para sempre no seu corpo, a marca da sua infância
idealizada no Japão, com seus pais, e a realização de seu desejo comum : uma
neorealidade onde todos estão contidos na mesma pele, encobrindo uma recusa e vindo
apagar a catástrofe do trauma. O horizonte se situa para além do prazer e, é lá, mais do
que em outro lugar, que com o seu corpo, e de maneira metafórica, ele paga o tributo da
separação impossível. Trata-se de reencontrar o palpável do objeto sobre investindo o
que pode lhe dar sensações, o investimento – do qual ele não fala – da dor da tatuagem,
produtora da existência, pode servir a tirá-lo da despersonalização e a criar um
sofrimento iniciático modificando a relação tão contrariada para o pai e para os imagos
parentais.
Inscrição cultural da prática da tatuagem
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A prática que escolheu Aldous não tem o mesmo sentido na França e no Japão onde ela é
reconhecida socialmente, praticada com freqüência, no seio da elite, e valorizada. Os
tatuadores são artistas famosos e honorados, os desenhos são simbólicos, escolhidos por
razões espirituais e muito pensada, tentado traduzir, numa forma pictural e poética, à
representação de quem recebe a tatuagem quer dar de si próprio e aos outros, impondo
assim o respeito.
A rã é um dos motivos privilegiados na Ásia onde provavelmente milhares de pessoas
são tatuadas nas cotas. Com efeito, em toda Ásia do Sudeste, inclusive na Indonésia, o
motivo sobre os tecidos tradicionais, o « homem-rã », acompanhou as migrações antigas
vindas da China. Pela datação e os traços desse motivo, alguns pesquisadores procuram
escrever uma história que não foi escrita. Aldous, pela utilização que faz, confia a ele
próprio o papel, com ajuda de um outro, de escrever na pele a história da qual ainda não
se apropriou. O mestre tatuador é igualmente um guia espiritual que facilita o acesso à
representação de si próprio e do mundo.
No Japão, a « rã substituta » é um amuleto, geralmente em pedra esculpida,
encarregado de recolher o espírito e a alma de seu possuidor, quando este acaba de irse. O amuleto deve ser usado em permanência. Talvez seja esse papel que ele confia ao
mestre tatuador e agora a mim.
A rã teria o poder de fechar a alma da criancinha morta (trata-se dele ?), almas
penadas ; ela é símbolo de ressurreição através suas metamorfoses.
Crer-se que as rãs, emblema da água, atraem a chuva, a fecundidade e a prosperidade.
Assim sendo, desde as mais antigas culturas, sua imagem figura nos objetos de arte
popular dos ritos animistas (tambores pré-históricos em bronze do Vietname). São
símbolos de construção de uma vida e de uma história.
Existe, nas culturas asiáticas, um investimento, fonte de crenças « mágicas », do líquido
seminal, remédio milagre, que podemos aproximar à toxina da rã.
A posição da rã é a posição sexual habitual no continente asiático, inspirada na « rã à
nado » do Kama-sutra. A rã é freqüentemente associada ao convite sexual, o que
favoriza a hipótese de homossexualidade ou de uma posição feminina.
O sentido que lhe dá Aldous traduz a saudade da cultura que foi o berço de sua infância e
dos ideais compartilhados nessa época com seus pais. O tatuador de Aldous se inscreve
nessa tradição lhe permitindo assim, reencontrar e reconstruir suas raízes ; ele é um
substituto paternal com quem o jovem mantém uma boa relação.
Essa situação não parece se manifestar por um masoquismo perverso. É a representação
e não a dor que está em jogo. E se Aldous fala de toxicomania e de fascínio estético, ele
não parece conhecer a real escalada disso.
Narrativa figurada em imagem
A rã tropical que queria ser maior que o boi e se transformar em imperatriz japonesa
reenvia à megalomania infantil de Aldous ligada ao narcisismo patológico nostálgico da
criança rei em majestade, que ele foi no Japão.
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A pele secretando uma toxina traduz a fragilidade do seu Eu-pele, insuportável no
contato com outrem e provocando, nesse caso, a destruição da outra pele (com o
objetivo, seja de repulso, seja de abolição do limite entre as duas peles). O desejo,
megalomaníaco, da reparação e de uma saída restauradora se desenha no projeto de
curar, graças a essa toxina, doenças graves a nível da humanidade inteira.
A rã é um animal estranho ; ela possui uma cloaca, mas foi antes um girino que perdeu
o rabo, como as crianças gostam de observar este fenômeno. A castração precedeu a
indiferenciação sexual e por isso ela é mais perfeita. A cloaca reenvia à diferença sexual
que, com evidência, não foi adquirida por Aldous e a um imago mateno-paterno arcaico
sob o sinal da analidade. Com efeito, a rã vive no lodo.
A pele tatuada evoca uma tentativa de reconstrução dos fetiches internos e externos,
protetores de uma desorganização, fetiches animados pela proteção da integridade
narcísica do paciente e, desanimados pela devolução a uma inscrição sobre a pele, o que
assegura sua perpetuidade. A inscrição se transforma então em um produto do sujeito
com a fecalização que se liga a ele.
A tatuagem possui as qualidades de perenidade, de imutabilidade e de poder mágico
(megalomania) incluídos nos fantasmas inconscientes do sujeito em relação com os
objetos internos. Ela é o resultado do movimento de idealização inerente ao psiquismo.
A obra criada posui um efeito de para-excitação em Aldous. Ela o completa e lhe
apazigua. Como um fetiche interno, ela atrai para ela todo o investimento de Aldous _
« é a coisa mais importante pra mim » - e, no investimento de dominação sobre um
objeto perdido, suas traças, o que resta dele, sevem do reforço narcísico.
Por outro lado, esta situação « atrás », acessível a todos que se aproximam enquanto
ele não tem acesso, pode ser um sinal de homossexualidade. As costas seriam para ele o
lugar da identificação com o pai.
As rãs secretam uma substância que destrói quem lhe toca mas que, uma vez extraída,
se transforma em remédio. O aproximar perigoso seria homossexual ; esse contato
mataria o agressor mas destruiria provavelmente o paciente. A substância uma vez
extraída (licor seminal) seria fonte de vida, capaz de engendramento. É, assim, uma
tentativa de colocação em fanfasma que a tatuagem realiza.
A passagem delicada é a da simbolização pela qual ameaça homossexual faz correr o
risco de explosão do eu.
Esboço de uma solução criadora
A transformação em escrita necessitaria habitar – e de ser habitada por – o universo das
palavras e das metáforas produzidas na figuração visual ; ora, o caráter infantil do
paciente _ no sentido que Pascal Quignard sublinha, a infância, infantia, é o estado da
« não-fala » _ expõe-no à ameaça de uma falha, sempre possível, da linguagem
adquirida.
É necessário levar em consideração o fato que, a linguagem da cultura na qual ele
passou a infância inscreve-se, signo lingüístico incluído, reproduzindo imagens, como em
pictogramas. Não é ele quem desenha, e sim o tatuador que traduz seu pensamento em
imagens e Adous empresta a pele à figuração afim de poder admirá-la.
Pode-se, todavia considerar que trata-se de um esboço de uma atitude criadora : é a
representação e não o ato ou a dor gerada que está investida (ele dirá que às vezes, em
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alguns períodos, não consegue se tatuar pois teme o sofrimento). Há uma prioridade
narcísica absoluta a esse nível, « é a coisa mais importante pra mim ».
A metáfora animalesca desloca o limite para além do humano, evita as projeções
antropomórficas, se libera do domínio do outro, e por isso mesmo, dá acesso a
polissemia ( somos todos mosca para os deuses, já dizia Shakespeare).
Figuração e narrativa relatam, como um sonho, o que não pode ser dito sem
deslocamento nem mudança de perspectiva.
O caráter de obrigação absoluta à relação ao sofrimento e à megalomania infantil
pertencem igualmente, e quase sempre, ao processo criativo.
Como a escrita, a inscrição sobre a pele cobre aquilo que rasga e, em um movimento
de revelação, rediz a lesão, celebra a ferida, nasce na e de uma violência. Ela foi decidida
após um período de reflexão, de germinação e de concepção, e há um prazo entre as
sessões de desenho. Ela é o fruto de uma co-criação com um artista. Ela é ainda limitada
pelo universo infantil e animista do paciente mas, testemunha seu esforço de um
deslocamento de perspectiva. Ela fornece à analise, em forma condensada, um espaço
de colocação em imagem e em palavras utilizáveis pelo analista, dando a possibilidade
ulteriormente de uma restituição em forma de representações.
Ela falha todavia, escrevendo-se sobre o vivo, na pele, fazendo figura de marca
identitária. Ela é um fetiche. Ela vai de encontro à intimidade que, contrariamente à
sublimação, não transmite-se ao outrem, não é fonte de valorização social e de trocas e
não resolve a solidão exprimida. Além do mais, como a toxina da rã, essa figuração ataca
a pele e o Eu-pele. E mais, como afeta a integridade corporal de maneira irreversível, as
possibilidades de realização, que ele poderia oferecer, são limitadas tanto pelas
dificuldades técnicas que pelo próprio tegumento. Há poucas possibilidades.
As aberturas
A colocação em imagem, pelo seu aspeto de condensação e de figuração visual, é
reabilizante, no sentido narcísico do termo, para Aldous e permite um sobre investimento
de minha parte enquanto analista, a quem ele delega um trabalho de figuração e de
decifração que ele não pode assumir.
Essa hiper condensação comporta um risco de fascinação pelo nível traumático e
necessita, da parte do analista, um trabalho intenso de descondensação por uma
restituição ulterior, medida e talvez deferida de maneira suficientemente longa, para
subjugá-lo, como ele é na relação com o pai e com o tatuador, a uma imobilização numa
posição feminina masoquista passiva (ele se deixa admirar, se deixa picar e lhe injetar a
tinta) que teria valor de violação psíquica.
O esforço criativo, presente nessa tentativa, necessita ser levado em consideração e
podemos imaginar que o trabalho nas sessões possa propor a esse movimento um
deslocamento metafórico e simbolizável.
Sem otimismo exagerado mas, como na transferência me são subjugadas tanto a
posição masoquista – que foi a dele – de um espectador impotente, quanto uma
proposta de ocupar o papel do tatuador, talvez existiria um espaço onde, sem recusar
totalmente a relação de dominação, o que seria um não-encontro, o posicionamento do
sentido dessas inscrições poderiam introduzir uma diferença, um jogo na engrenagem
apertada demais que abriria para um eventual trabalho de elaboração, ou mesmo de
sublimação.
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O movimento depressivo confortou-me como se um retorno à vivência dolorosa pudesse
induzir a uma liberação do investimento corporal e a um movimento refletivo sobre as
origens do seu sofrimento, alternativa à dominação do gozo do sintoma.
Os afetos nostálgicos aparecidos na consulta seguinte, provocados por ter sonhado com
sua amiga, andando ao seu lado como uma sombra, desaparecia. Evocou longamente a
mãe, até então ausente de seu discurso, uma mãe deprimida, quase sempre
incompreensível para ele e nas suas reações e tendo feito uma longa análise.
Desde o começo da terapia ele não tinha ido se tatuar. Tinha marcado uma sessão com
o tatuador, alguns dias após a sessão comigo, mas acabou anulando com medo de não
suportar a dor, atroz. Pensava em continuar mais tarde, mas o medo do sofrimento físico
era grande, medo, sentimento que para ele é raro. Talvez uma operação simbolizante de
deslocamento se havia operado entre o mestre tatuador e o analista que eu
representava…
Explicou então sua « insensibilidade emocional » com palavras alucinantes a respeito da
tentativa de suicídio de sua amiga de infância :
« Ela estava em coma, eu olhava o tubo, verifiquei meu pulso que batia mais
rápido, eu olhava para os tubos, a tela e depois minha respiração, meu diafragma
quase não subia, não conseguia respirar, mas eu não sentia nenhuma emoção,
sou insensível, não sinto nada. »
Mostrava-se aflito, temia provavelmente a volta de uma vivência dolorosa-emocional, e
eu aceitei, ao seu pedido, aumentar a freqüência das sessões.
O fator que fez vacilar nessa criação de identificação e lhe conduziu a vir consultar fica
obscuro. Seria o luto da amiga que morrera recentemente, ou o da mãe que partira ? O
luto dessas duas mulheres que lhe deram às cotas, as quais ele pensa ver de costas na
rua ? Essas imagens poderiam parecer banais se as costas não tivessem para Adous uma
carga erótica tão grande.
Mas de costas, como não se ver o rosto, pode-se distinguir o sexo de alguém ? Talvez
seja aí o seio da confusão desse paciente, ou senão a percepção paradoxal da diferença
dos sexos que o faz sentir-se na via da identificação paternal, através suas cotas.
Conclusão
O pavor contra-transferencial que me tomou à perspectiva dele continuar a sessão de
tatuagem paralelamente à sessão de psicoterapia, o medo de ser marginalizada por uma
figura paternal perversa em acting entre eu e Aldous, a sideração traumática provocada
por essa sessão quando, pela primeira vez, ele passou da terceira pessoa a falar na
primeira pessoa e a excitação manifestada à evocação dessa prática, me fizeram duvidar
de não poder assumir o papel de analista.
A escrita da observação impôs-se para mim como esforço de simbolização forçada
contra a inscrição sobre a pele, em espelho e em eco.
Uma mudança que me pareceu rápida _ talvez preparada pela experiência da tatuagem
como sofrimento iniciático, que podia ter modificado virtualmente a relação tão presa aos
imagos parentais_ efetuou-se ; ela permitiu a instauração de um processo analítico. A
passagem da inscrição somática à representação mental que seguiu essa sessão traduziu
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uma mutação do modo da organisação metapsicológica do paciente e de seus equilíbrios
econômicos.
Existe situações clínicas onde a Geworfenheit do analista (no sentido do conceito de
Heidegger, literalmente « está jogado aí ») é uma condição preliminar que pode ser
necessária à percepção pelo paciente de sua Hilflösigkel.
O encontro com os pacientes criativos confronta, muitas vezes, à atitudes estéticas
encenando o corpo e o analista deve respeitar essa criação de identificação e ao mesmo
tempo tentar uma colocação em palavras e em sentido que possa ser compreendida.
A inscrição sobre a pele, por um mestre tatuador, induziu-me a esta escrita e deveria
conduzir a um processo analítico no qual o paciente seria induzido a formular sua história
e tentar a apropriação.
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Resumo
Uma sessão singular em torno da tatuagem de um paciente levou-me a escrever, em
espelho e em eco sobre essa inscrição sobre a pele, e a discutir o valor, para ele e na
transferência, dessa neorealidade que situa-se na fronteira entre uma solução artística e
uma solução perversa, preliminar à escrita da sua história com palavras. A escrita
continha o desafio de me liberar de uma dominação transferencial paradoxal.
Palavras-chave
Tatuagem, neorealidade, dominação transferencial, pré-simbolização, escrita.
Martine VAUTHERIN-ESTRADE
membre de la SPP
29, quai d’Anjou
75004 PARIS
01 44 07 39 17
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