Entrevista (Público, 18-09-2010)
Quanto mais grave a doença maior a necessidade de o
doente ser ouvido, o que raramente acontece
Por Ana Gerschenfeld
Misturando Medicina com técnicas literárias de escrita, Rita Charon ensina os
médicos a "lerem" os seus doentes não apenas como sintomas, como patologias,
mas como histórias. Só assim, diz, é que poderão ser médicos a sério.
Voz suave, rosto doce. Rita Charon fala pausadamente, quase como se estivesse
a pensar em voz alta, da importância de integrar, na prática médica, as técnicas
literárias, a arte de escrever histórias. Para ela, ser bom médico passa por saber
construir narrativas coerentes a partir da história que cada doente leva consigo
para as consultas. Se se recusar a abandonar os sentimentos (os próprios e os do
seu doente) à porta do gabinete, o médico torna a sua prática clínica melhor,
porque mais compassiva e mais humana, diz.
Pode parecer uma evidência, mas a realidade é que a maior parte dos médicos
não o faz - aliás, a Medicina moderna incita os clínicos a distanciarem-se dos
seus doentes, a privilegiarem os aspectos técnicos. Por isso, para lhes fornecer
as ferramentas necessárias a uma inversão de tendência que considera essencial,
Rita Charon criou há dois anos, na Universidade de Columbia, um mestrado de
Medicina Narrativa. De passagem por Lisboa para o colóquio
internacional Narrativa e Medicina: Doença e Diálogo, que decorreu no início
da semana na Faculdade de Letras, falou ao P2 desta abordagem emergente.
O que é exactamente a Medicina Narrativa?
A Medicina Narrativa é a prática clínica - dos médicos, enfermeiras, terapeutas,
assistentes sociais, capelães - reforçada por competências narrativas. Quando
tratamos dos nossos doentes, reforçamos a nossa prática através de técnicas que
nos permitem saber o que fazer com as histórias que eles nos contam.
O que a fez interessar-se por esta maneira de fazer Medicina?
Quando arranjei o meu primeiro emprego como médica interna - numa clínica
para doentes pobres de Manhattan -, percebi que me estavam a pagar o
ordenado para ouvir narrativas muito complexas e tentar dar-lhes sentido. Esse
era o meu trabalho. Só que não sabia bem como fazer. Não sabia como é que as
histórias funcionavam, nem o que acontecia quando contamos ou ouvimos uma
história.
Então fui timidamente bater à porta do Departamento de Inglês da
Universidade de Columbia, pensando que talvez me pudessem ajudar [ri-se].
Perguntei se achavam possível ensinar a uma médica algumas coisas sobre
histórias e eles ficaram encantados com a ideia.
Disseram-me para fazer um mestrado. Quando acabei, fiz um doutoramento.
Nunca foi a minha intenção tornar-me crítica literária: eu era médica, tinha os
meus doentes e podia ter de sair a correr para o hospital a meio de um
seminário sobre Virginia Woolf. Mas nunca mais parei, porque percebi que a
teoria literária, as técnicas narrativas dos especialistas de literatura, era
exactamente aquilo que me faltava na minha prática médica.
E isso manifestava-se como?
A cada mês que passava, conseguia fazer melhor o meu trabalho no consultório
e as minhas rotinas clínicas iam mudando. Qualquer médico sabe que, quando
vemos um doente pela primeira vez, temos de lhe fazer milhentas perguntas.
Que idade tem, quais são os seus problemas médicos, que medicamentos toma,
se é alérgico(a) a alguma coisa, se já foi operado, se tem asma, diabetes, doença
cardíaca, se os seus pais são vivos - e, se não, de que morreram. Se for uma
mulher, temos de saber a data da última mamografia, do último teste de
Papanicolaou. Temos de perguntar ao doente se fuma, se bebe álcool, o que
come. Fartei-me dessas perguntas; era muito chato [ri-se].
Hoje em dia, na primeira consulta, começo com duas frases: "Vou ser a sua
médica e portanto preciso de saber muitas coisas sobre o seu corpo, a sua saúde
e a sua vida. Diga-me por favor o que preciso de saber sobre a sua situação." Só
preciso de dizer isso. Não tomo notas, não escrevo nada no computador. Graças
aos meus estudos literários, aprendi a ouvir com muita atenção. Sou uma leitora
atenta das histórias que os doentes me contam.
E consegue lembrar-se de tudo?
Sim - e escrevo depois. A história do doente nunca demora mais de 15 minutos a
ser contada. Durante esses 15 minutos, absorvo o que ele me diz. Depois, peçolhe para passar para a parte da sala onde o vou examinar, despir-se e vestir uma
bata. E é enquanto o doente se prepara que vou ao computador e escrevo,
escrevo, escrevo o que acabei de ouvir. Assim, no fim da consulta, posso dar ao
doente uma cópia do que me contou e pedir-lhe para verificar se percebi tudo
bem.
A primeira vez que utilizei essas minhas duas frases, foi com um homem com
dores no peito e nas articulações. Começou por falar da morte do pai, 20 anos
antes, de insuficiência renal, e da morte do irmão, 10 anos atrás; das
dificuldades que tinha com o filho, que era muito rebelde, e de como não se
achava muito bom pai. E depois desatou a chorar. Eu, que tinha ficado calada,
perguntei-lhe por que chorava. E ele respondeu-me que nunca ninguém o tinha
deixado falar assim.
Na segunda consulta, as alterações que o doente faz nas minhas notas
costumam ser ao nível do pormenor. Mas, muitas vezes, acrescenta que há uma
coisa que se esqueceu de me dizer. E é aí que ouço falar da violência doméstica,
do aborto espontâneo, da violação. Perdas, traumas que não conseguiu
verbalizar na primeira consulta.
Também tenho vindo a introduzir uma outra rotina, que consiste, com a
autorização dos doentes, em termos uma testemunha a assistir à consulta. Já
treinei uma série de pessoas no âmbito deste Witness Project. Não são clínicos,
não sabem nada sobre insuficiência cardíaca nem asma, portanto não se
distraem com esses aspectos. Mas têm jeito para a escrita e uma percepção fina
das situações.
Apresento a testemunha ao doente, explicando-lhe que ela vai escrever o que vê.
Isso não tem só a vantagem de me dispensar de tomar notas à pressa: o facto é
que a testemunha consegue registar o meu encontro com o doente quase como
um antropólogo a fazer trabalho de campo. E, quando me entrega as suas notas,
descubro coisas que não tinha reparado.
Por exemplo que, enquanto eu estava a pensar na dose do medicamento ou a
escrever a receita, o doente estava a chorar.
No início, foi um pouco difícil, mas agora tenho testemunhas que fazem muito
bem o seu trabalho. A tal ponto que, por vezes, também mando o texto da
testemunha ao doente - porque pode ser realmente revelador.
Mas nem todos os médicos são capazes de fazer isso...
E eu não os posso obrigar a fazê-lo. Mas posso transmitir aos estudantes de
Medicina, de Enfermagem, de Fisioterapia, as competências necessárias para
serem capazes de o fazer. Posso ensiná-los a ler de forma séria e rigorosa a
linguagem dos doentes - seja ela oral, escrita ou gestual.
Não é isso que faz um psicólogo?
Pode parecer a mesma coisa e, de facto, existe uma sobreposição com certas
formas de aconselhamento social ou psicológico. Mas nem todos os especialistas
da área de Psicologia são adeptos da narrativa. Os psiquiatras, em particular,
estão um bocado presos à questão de nomear a patologia ou à medicação.
Eu não escuto a partir de um enquadramento teórico como o da Psicanálise.
Também não estou lá enquanto psicóloga. Mas, por outro lado, também não
penso só em termos de Medicina Interna. O melhor que consigo dizer é que
ouço os relatos com base num enquadramento narrativo, que estou à escuta da
trama, de um desenrolar no tempo, de vozes inaudíveis. Essa é a diferença.
E de que maneira é que isso melhora o tratamento dos seus doentes?
Quanto mais grave a doença, maior a necessidade de o doente ser ouvido, o que
muito raramente lhe acontece. Costuma-se dizer que o médico está lá para
tratar e que o assistente social está lá para ouvir. Eu acho que isso não resulta.
Na unidade de Cuidados Intensivos de Columbia, estamos a tentar lançar um
programa para ensinar os anestesiologistas e os médicos mais experientes a
falar com os familiares quando os cuidados dispensados a um doente se tornam
fúteis. Normalmente, são as enfermeiras e as assistentes sociais a fazer isso.
Sem menorizar o papel desses profissionais, a verdade é que os médicos estão
assim a "subcontratar" uma parte muito difícil do seu trabalho.
Por isso, estamos a tentar treinar esses médicos nas técnicas narrativas. Para os
ensinar a sentar-se ao pé de um familiar e conseguir perguntar, simplesmente:
"Diga-me aquilo por que está a passar". Têm de ser os próprios médicos a fazêlo, porque senão a mensagem subjacente é que esse é um aspecto secundário.
Também dirige hoje um mestrado de Medicina Narrativa.
Sim. A dada altura, juntei um grupo de professores de Columbia - do
Departamento de Inglês, do Instituto de Psicoanálise, da Pediatria, um filósofo,
um especialista de história oral, um activista da defesa dos doentes. Consegui
arranjar um pequeno subsídio público para pagar uma parte dos seus ordenados,
de forma a terem tempo para participar em seminários de duas horas, duas a
três vezes por mês.
Todos nós já tínhamos feito algum trabalho naquilo que acabámos por chamar
Medicina Narrativa. Tínhamos algumas pistas que sugeriam que o trabalho
narrativo ajuda nos cuidados clínicos, mas queríamos perceber os mecanismos
por detrás do fenómeno.
O grupo começou a organizar workshops destinados a médicos, enfermeiras,
escritores, jornalistas. Reuníamos 30 a 40 pessoas durante três dias e
apresentávamos algumas das nossas ideias e ferramentas narrativas básicas. Só
que muitos dos participantes voltavam para casa - para os EUA, Canadá, Reino
Unido, Austrália, Ásia, Israel, Europa - e lançavam pequenos programas para
pôr em prática essas ideias. E então ficámos muito nervosos.
Porquê?
Porque estas técnicas implicam certos riscos e é preciso uma formação
aprofundada para treinar pessoas e modular a força do que pode acontecer
quando as enfermeiras e os médicos (e, por vezes, os doentes) relatam por
escrito episódios de profundo sofrimento. Ora, ao darmos a impressão de que
era possível fazer uma coisa destas com apenas uns dias de formação, sentíamos
que não estávamos a fazer bem o nosso trabalho. Então fomos ter com os
responsáveis de Columbia para organizar um mestrado.
Já foi há três anos. Demorámos um ano a apurar o currículo do nosso Mestrado
de Ciência em Medicina Narrativa e, há dois anos, acolhemos a nossa primeira
turma, com 28 pessoas - médicos, enfermeiros, assistentes sociais, jornalistas,
escritores e advogados. Um terço da turma era composta por alunos que
queriam ir para Medicina ou Enfermagem.
A Medicina Narrativa não deveria fazer parte dos programas de
todas as faculdades de Medicina?
Claro! Estamos precisamente a formar as pessoas que vão poder organizar este
tipo de programas noutros sítios. A maior parte do meu trabalho é feita com
professores de Medicina ao mais alto nível. E, dentro das faculdades, existe cada
vez mais a consciência de que este tipo de treino é essencial. Por exemplo, nos
EUA, os critérios de selecção das pessoas que entram nas escolas de Medicina
estão a mudar: estamos a alterar os critérios que permitem decidir se alguém
tem ou não aptidão para ser médico.
Já fizeram estudos sobre o impacto da abordagem narrativa nos
doentes?
Fizemos alguns estudos do impacto da formação nos formandos. Mas vamos
chegar ao ponto em que vai ser possível lançar ensaios clínicos para
acompanhar durante um ano, por exemplo, 20 médicos com formação narrativa,
numa clínica, e outros 20, sem formação, noutra clínica. E comparar os
resultados clínicos. Para ver se o tratamento dos diabéticos na primeira clínica
melhorou, se o número de fumadores baixou, se os que têm peso a mais
conseguiram perder mais quilos, se um maior número de mulheres passou a
fazer mamografias, etc. E talvez para constatarmos que os doentes sentem,
finalmente, que têm um médico.
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