Como é que a força de atrito é “tão esperta”? Jonathan F. Reichert, presidente da TeachSpin Inc., 45 Penhurst Park, Buffalo, NY 14222 (Tradução do artigo How Did Friction Get So Smart?, publicado na revista The Physics Teacher, Vol. 39, janeiro de 2001) Imagine um bloco de plástico em um plano horizontal de madeira lisa (Fig. 1a). Existe alguma força de atrito atuando no bloco? Certamente não em qualquer direção horizontal. Se houvesse tal força, ela faria com que o bloco se acelerasse na direção horizontal particular em que essa força de atrito estivesse agindo. Como o bloco permanece em repouso, não há força de atrito. Agora, incline o plano de madeira de um ângulo Ɵ1 (Fig. 1b). Vamos supor que o bloco permanece na mesma posição sobre o plano, que não deslize. Deve existir uma força de atrito que atua sobre o bloco na direção ao longo do plano e para a direita. Incline o plano na outra direção de um ângulo Ɵ2 (Fig. 1c) e de novo suponha que o bloco permanece em repouso ao longo do plano. Deve haver uma força de atrito agindo, desta vez para a esquerda. Se o plano for devolvido à sua posição horizontal original, o atrito desaparece. Como o atrito “soube” que devia mudar de direção e sentido quando mudamos a inclinação do plano do ângulo Ɵ1 para o ângulo Ɵ2? Como ele “sabe” que deve se tornar maior a medida que a inclinação do plano aumenta? Por que o atrito desapareceu quando o plano foi devolvido à sua posição horizontal? Considere uma grande caixa sobre uma superfície plana horizontal (Fig. 2). Suponha que eu tente movê-la, exercendo um pequeno impulso horizontal F. É de certa forma óbvio que a caixa não vai sair do lugar! Isso deve significar, se acreditamos na segunda lei de Newton, que existe uma força de atrito F aplicada pela superfície na caixa, que é exatamente igual, mas em sentido oposto ao da força F aplicada por mim. Se esta força não estivesse presente, a caixa teria certamente se movido (acelerado) quando eu lhe dei o empurrão. Uma vez que isso não aconteceu, a soma das forças horizontais deve ser zero. Suponha que eu empurre com mais força, e ainda assim a caixa não se mova. Esta força de atrito deve ser “tão inteligente” que aumenta sua intensidade exatamente na quantidade certa e ainda exatamente na direção certa para que as forças resultantes permaneçam zero. Em todos estes casos o atrito agiu na direção apropriada. Será que ele sempre age assim? Imagine que eu coloque o nosso bloco de plástico no plano horizontal, mas agora eu acelere o plano (Fig. 3). O atrito sabe que deve atuar na mesma direção direção que a aceleração e de forma a fazer com que o bloco se acelere junto com o plano. Não havia atrito horizontal antes do plano ser acelerado. Como ele sabe que devia aparecer? E como ele “sabe” em que direção deve agir? Tente descrever essas situações simples pedindo a seus alunos que respondam a essas perguntas. Peça aos alunos para pensar sobre elas em casa, ou peça que as discutam em pequenos grupos, e, em seguida, em sala de aula. Independente de quão fantástica uma explicação antropomórfica possa ser, certamente ela não nos ajudar a entender esses fenômenos físicos interessantes. A explicação, apesar de simples, geralmente não é discutida nos textos padrão ou na literatura de ensino. O atrito é certamente um fenômeno complicado quando examinado através da mecânica quântica em escala atômica. Depende da natureza e da composição das duas superfícies, da contaminação das superfícies, da humidade, etc., mas, independentemente desses detalhes complicados, a base fundamental desta força está nas ligações atômicas entre os átomos, nas duas superfícies adjacentes. Presumivelmente, estas ligações podem ser calculadas com bastante precisão, mas para nossos propósitos qualitativos, podemos usar um modelo clássico muito simples. Este modelo representa corretamente a natureza das ligações atômicas, que são essenciais para essa discussão, por isso não estamos caindo em um círculo vicioso. O modelo Imagine as ligações entre os átomos nas superfícies opostas como sendo elásticos – pequenos pedaços de material elástico ligando um átomo do plano com um átomo do bloco. Isto significa que existem trilhões e trilhões de ligações elásticas entre os dois planos. Imagine também que estas tiras eláticas podem ser rompidas com uma força grande o suficiente, mas que também podem ser facil e rapidamente religadas, desde que as superfícies estejam em estreita proximidade. É a tensão nestas tiras elásticas microscópicas (ligações químicas) que é responsável pela força de atrito. Isso é tudo que existe, nada mais! Considere o nosso primeiro exemplo, o bloco em repouso sobre um plano horizontal. As tiras elástics entre os átomos no plano e os do bloco estão ligadas de um modo totalmente aleatório, de modo que o vetor soma de todas estas forças microscópicas é zero. Afinal de contas, se você colocar um plano de átomos em uma outra superfície plana de átomos e conectá-los com elásticos microscópicos, não há uma direção horizontal preferida e, portanto, não há nenhuma força resultante de toda a tensão microscópica1. Vamos agora examinar o que acontece quando o plano está inclinado de um ângulo θ1 (Fig. 4). Agora, há uma força resultante ao longo do plano, mg sen θ1, e portanto o bloco acelera para baixo do plano. Mas espere, observamos que o bloco não acelera , dissemos que ele ficou imóvel, em repouso sobre o plano. Mas essa é uma observação errada! Certamente ele se moveu, ele deve ter se movido , nós é que não observamos com cuidado necessário. O bloco se moveu apenas o suficiente para que as ligações químicas fossem alongadas em uma direção única, esticando como tiras elásticas. E quando elas se esticam, criam a força de atrito sobre o bloco que se move, na direção oposta ao movimento (ao deslocamento). Isto é exatamente o que acontece quando esticamos um elástico. A tira exerce uma força igual e oposta à força que produziu o “estiramento”. O ponto essencial que é normalmente omitido da discussão do atrito “estático” é que o bloco se desloca sim, embora de uma distância microscópica, antes do atrito entrar em jogo e parar o movimento. Sem este deslocamento não haveria força de atrito. O deslocamento é que cria a direção única para a força de atrito “operar”. Ele é o cérebro da nossa “inteligente” força de atrito. Armados com este modelo podemos “explicar” os outros experimentos. Considere a situação na Fig. 2. A caixa de fato se moveu quando eu a empurrei. Com um interferômetro óptico decente, podemos até medir o seu deslocamento. Quanto mais empurrar, quanto maior for o deslocamento microscópico, maior será a força de atrito. Se eu conseguir causar uma aceleração macroscópica da caixa, vou ter quebrado as ligações atômicas. Agora vamos imaginar que as tiras estão sendo quebradas e reconectadas muito rapidamente. Isso cria uma força de atrito sobre o caixote que se opõe a seu movimento macroscópico. Note que é o movimento que define a direção do atrito, que “dá as ordens”. O modelo de tiras de elástico também explica a força de atrito sobre ambas as superfícies. Um sistema mecânico difícil para os estudantes entenderem é mostrado na Fig.5. Geralmente eles entendem a força de atrito sobre m1 devido ao contato com m2, mas se esquecem que a mesma força (reação), embora atuando na direcção oposta, afeta m 2. Se nós redesenhamos a interface entre m1 e m2 (Fig. 6), será mais evidente que as tiras de elástico vão produzir duas forças, uma em cada superfície. O modelo também mostra as direções apropriadas para cada força. Certamente ajudaria se os alunos pudessem realmente ver esse deslocamento microscópico, mas essa medição requer instrumentos ópticos delicados e caros. Tais instrumentos estão claramente além dos orçamentos da maioria das escolas de ensino médio. No entanto, este modelo pode facilmente ser visualizado pelo estudante iniciante e até mesmo construído de uma forma simplificada. Então, no final das contas, o atrito não é tão “esperto” assim! Trata-se nada mais nada menos do que do efeito do alongamento das ligações químicas entre os átomos adjacentes nas duas superfícies, em estreita proximidade, o que pode ser visualizado como tiras de borracha de dimensões atômicas. Simples, mas não esqueçam que elas esticam – as superfícies se movem o que é essencial. 1 E o que se pode dizer sobre a força normal sobre o bloco? É evidente que este modelo não consegue explicar essa força, já que nesse caso é preciso considerar as interações repulsivas de curto alcance entre os átomos. Estamos considerando apenas as interações atômicas atrativas.