CARLOS ROBERTO IBANEZ CASTRO1
VERDADE NO PROCESSO JUDICIAL
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O autor é mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo; Membro Efetivo da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do
Brasil, Secção de São Paulo; parecerista do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal; advogado e professor universitário.
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NOTAS INTRODUTÓRIAS
No momento em que o Estado tomou para si, com exclusividade, a
prerrogativa de dizer o direito objetivo, fez surgir seu dever de garantir a tutela
do direito subjetivo, através do exercício da atividade jurisdicional, capaz de
permitir a solução das controvérsias de modo pacífico, assegurando aos
litigantes o desenvolvimento da marcha processual segundo a forma
preestabelecida na norma.
A garantia constitucional do pleno acesso à jurisdição estatal – aqui
compreendida segundo as teorias mais atuais que advogam que ela vai
muitíssimo além da possibilidade de simplesmente provocar o Judiciário e dar
início à lide – exige que o poder público lance mão de ferramentas que permitam
seja o conflito solucionado através de uma decisão judicial legítima, proferida
sob o pálio do devido processo legal e de todas as prerrogativas a ele inerentes.
A norma processual, desse modo, deve ser orientada no sentido de
assegurar que os fatos que fundamentam a causa de pedir possam ser trazidos ao
conhecimento do juiz com a máxima fidelidade.
Ainda que se não possa afirmar, hodiernamente, que o objetivo do
processo é a busca pela verdade, deve a sentença buscar ao menos se aproximar
desse valor, seja porque efetivamente foi capaz de retratar o evento objeto da
lide, seja porque as partes a legitimem como resultado de um processo no qual
participaram ativamente, tendo-a, pois, como verdadeira e capaz de produzir
efeitos. É a forma, portanto, de extrema relevância para a legitimação da
atividade jurisdicional.
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Entretanto, na mesma medida em que o respeito à forma permite a solução
pacífica das controvérsias através de um procedimento fundado no devido
processo legal capaz de assegurar o pleno acesso ao Judiciário, o culto
exacerbado ao rito impõe severos obstáculos à tutela jurisdicional e configura
verdadeira negação à cláusula constitucional da indeclinabilidade da jurisdição.
Propomos, neste breve estudo, de um lado, avaliar até que ponto a forma
processual efetivamente permite a busca da verdade, esta tradicionalmente tida
como objetivo do processo judicial; e, de outro, de que modo o respeito às
formas processuais se presta a garantir o princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional e quais os limites para que esta deferência ao rito não
resvale na própria negação da justiça.
I - AS IDEIAS SOBRE A VERDADE
Desde logo há que estabelecer, ainda que de modo sintético, alguma
definição sobre o conceito de verdade, mais afeto ao mundo da filosofia do que
à realidade das ciências jurídicas.
Verdade, vale dizer, é um conceito metafísico, que não permite solução
através do método empírico. É possível seu estudo a partir da análise das
diversas correntes filosóficas que buscam estudar a verdade.
Por não constituir o objetivo deste trabalho, nos absteremos de tecer
críticas sobre cada qual dos conceitos que traremos a lume, e nos limitaremos
apenas a indicar aqueles que, no nosso pensar, se justificam segundo as
peculiaridade e finalidades do processo judicial.
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Já em sua Metafísica, Aristóteles reservou aprofundada análise acerca do
que significa esse valor. A partir de sua teoria da correspondência, o Estagirita
intenta definir a Verdade sob os auspícios da lógica, ao enfatizar que “dizer do
que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Seria a
verdade, então, a adequação de determinada sentença à realidade, o que exige a
perfeita identidade entre a proposição afirmativa ou negativa de algo e a
realidade por ela referida.
Para o fenomenalismo, teoria segundo a qual o homem não tem acesso ao
objeto cognoscível “em si”, mas apenas à manifestação dele, há verdade quando
houver relação de correspondência entre o enunciado e essa sua manifestação, o
seu fenômeno.
A teoria pragmática da verdade advoga que determinado enunciado será
verdadeiro se, e somente se, tiver efeitos práticos para quem o sustenta,
conferindo-lhe alguma utilidade. Quanto mais útil, maior o âmbito de
credibilidade da proposição que se pretende verdadeira. Verdadeiro seria apenas
aquilo que, no dizer de Nietzsche, é apropriado para a conservação da
humanidade2.
A teoria da coerência, por seu turno, vislumbra a realidade como um todo
coerente, sendo que as proposições que a descrevem não podem ser
contraditórias entre si. Aqui, a verdade decorre da coesão entre determinado
juízo e o sistema de crenças ou verdades anteriormente estabelecidas, e se
evidencia diante de um discurso dotado de coerência interna.
2
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2 ed., São Paulo: Graal, 2002, p. 101.
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Na teoria consensual, a verdade se extrai do consenso ou acordo entre os
indivíduos de determinada comunidade ou cultura. Será verdadeira, então, a
ideia que contasse com maior credibilidade. Aqui, se o próprio sistema
estabelece o que é esta consonância e o modo como opera, a determinação da
verdade consensual estaria, em tese, alheia a instabilidades.
A nosso pensar, não há como se estabelecer a verdade de um enunciado
senão quando esta resulta conforme uma interpretação estabelecida, aceita e
instituída dentro de determinado sistema cultural. O enunciado será verdadeiro
não porque necessariamente corresponde com o fato ou a realidade, mas porque
corresponde àquilo que pressupomos ser a verdade daquele enunciado segundo
determinada cultura. Parte a verdade da análise dos enunciados tidos como
originariamente verdadeiros em determinado sistema de cultura.
E o sistema processual brasileiro parece ter adotado exatamente esta
definição de verdade, que bem se aproxima das teorias da coerência e do
consenso.
Com efeito, o processo judicial é dotado de normas preestabelecidas que
já definem, de antemão, não só os meios pelos quais os eventos do mundo
fenomênico serão transportados aos autos, mas também o valor que será
atribuído a determinadas provas, ainda que entre nós não se tenha consagrado o
sistema da prova tarifada.
Retomando o pensar sobre a “verdade”, tal sugere a necessidade de
perquirir sobre a existência de verdades parciais e totais, ou, de outro dizer, da
possibilidade de haver o “verdadeiro relativo” e “verdadeiro absoluto”.
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Para FLUSSER3, a verdade relativa é um adjetivo puramente formal e
linguístico das frases, que resulta das regras da língua: uma frase ou pensamento
são verdadeiros em relação à outra frase ou pensamento quando obedecem as
regras que governam as relações entre frases (silogismo). Se não obedecem tais
regras, estas frases ou pensamentos serão falsos. Já a verdade absoluta seria
aquela verdade clássica, da correspondência entre frases e realidade, tal qual
proposta por Aristóteles.
Tendo em conta que apenas compreendemos a realidade através da
apreensão das frases que a descrevem, a verdade absoluta não parece articulável,
já que a relação direta entre realidade (a coisa em si) e frase (que descreve a
coisa) não deixa de ser uma relação entre frases.
Na teoria do conhecimento, então, a dificuldade da expressão “verdade
absoluta” se compreende a partir do entendimento de que é a própria linguagem
que cria os objetos e, assim, o conhecimento, como construção linguística - tal
qual o é a verdade - está sujeito a circunstâncias de espaço e tempo, portanto,
relativas.
Se as verdades dependem do sistema em que se inserem, serão sempre
relativas, jamais absolutas. Esta relatividade da verdade está relacionada, ainda,
com a dinâmica da língua, que permite a mutação dos sentidos atribuídos às
palavras, inclusive à palavra “verdade”.
Feitas estas considerações, cabe indagar a respeito da verdade na
jurisdição e o papel do julgador diante dos métodos de que dispõe para
transportar a realidade dos eventos do mundo fenomênico ao cenário
judicializado do processo em nosso sistema das formas judiciárias.
3
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3 ed. São Paulo: Annablume, 2007, p. 17 e ss.
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Demais disso, mister avaliar se é a busca da verdade, efetivamente, a
finalidade do processo judicial e, de outra banda, de que modo o formalismo
jurídico se impõe como obstáculo à cláusula de indeclinabilidade da jurisdição.
II - A VERDADE NO PROCESSO JUDICIAL E O SISTEMA DAS
PROVAS:
VERDADE
E
PROCESSO
COMO
CONCEITOS
RELATIVAMENTE CONCILIÁVEIS
Inúmeros são os desafios que o processo judicial impõe às partes
litigantes. Sem dúvida um dos maiores reside na necessidade de transportar ao
mundo do direito jurisdicionalizado os eventos que compõe o núcleo da lide
posta à análise do Judiciário.
Um estudo analítico da dinâmica de uma ação judicial dependente da
verificação da “realidade dos fatos” nos permite concluir que há enorme
distância entre a ocorrência de determinado evento capaz de criar, modificar ou
extinguir direitos e interesses que se pretende tutelar e a necessidade de
transportá-lo aos autos do processo.
Nesse sentido, vale lembrar que o “evento” em si nada mais é do que dito
acontecimento no mundo fenomênico, capaz de gerar direitos e obrigações.
O “fato”, por sua vez, é a narração do evento, o que, desde logo, nos
permite reconhecer nele considerável carga de subjetivismo, capaz mesmo de
deturpar a realidade efetivamente havida no evento narrado.
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Essa narração do evento, quando executada por meio de linguagem
jurídica, faz surgir o denominado “fato jurídico”. A linguagem jurídica por
excelência, capaz de transportar o evento aos autos processuais, é a linguagem
das provas, sistematizada no regramento processual.
Nesse diapasão, ganha relevo o estudo da teoria geral da prova,
estruturada em nosso ordenamento sob o signo do devido processo legal, a ditar
a forma pela qual os fatos controvertidos e relevantes para a formação do
convencimento judicial e o deslinde do feito hão de ser demonstrados, mormente
no que tange às fontes e meios de prova legalmente aceitos.
Se são fontes todas as pessoas ou coisas das quais se possa extrair
informações relevantes para a boa solução da controvérsia, quanto aos meios, a
lei formula uma proposição genérica, conforme estatui o art. 332 do CPC, ao
indicar os meios legais e moralmente legítimos, ainda que não previstos no
Código de Ritos.
Assim, os meios legais e moralmente legítimos de que trata a lei serão
aqueles que não violem as disposições constitucionais que visam resguardar o
devido processo legal e impedir a produção das chamadas provas ilícitas.
Bem assim, a ilicitude da prova pode advir tanto do modo como ela foi
obtida (interceptação telefônica; violação do sigilo bancário sem autorização
judicial, violação do sigilo de correspondência) quanto do meio empregado para
a demonstração do fato (coação, emprego de violência, grave ameaça, tortura
etc.).
A par do que estabelece o art. 5º, LVI da CF/88 e o art. 332 do CPC, tem
predominado o entendimento de que a vedação ao uso de prova ilícita é
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absoluto. O Supremo Tribunal Federal já adotou a chamada teoria dos frutos da
árvore contaminada, segundo a qual são ineficazes as fontes de prova obtidas e
também os meios de prova realizados em desdobramento de informações obtidas
mediante ilicitudes (seriam ineficazes, por exemplo, todos os testemunhos
prestados por pessoas cujos nomes tivessem sido revelados numa conversação
telefônica interceptada irregularmente).
É bem verdade que a tendência atual no Direito é compreender a teoria
acima como decorrente de uma interpretação criativa e exacerbada do princípio
que proíbe a prova ilícita, o que se justifica pela adoção frequente do Princípio
da Proporcionalidade, que concede eficácia jurídica à prova se sua ilicitude
causar uma ofensa menor ao ordenamento jurídico ante aquela que seria causada
caso tal prova não fosse utilizada (e.g. interceptação telefônica que permite, em
uma ação de modificação de guarda de menor, provar que a criança é
frequentemente espancada e torturada por aquele que detém a guarda).
Mas, ainda assim, a produção da prova no processo jurisdicional está
sujeito à observância das normas rituais que em certa medida limitam o proceder
dos participantes do processo.
Considerando, pois, tanto a subjetividade peculiar ao ato de narrar
determinado evento – o fato – e as limitações que cercam a produção das provas,
sejam estas naturais (a subjetividade do perito; a memória da testemunha etc.)
ou legais (provas ilícitas), há de se reconhecer a enorme dificuldade em instruir
o processo com a demonstração cabal de fatos absolutamente fiéis aos eventos.
Desse modo, forçoso concluir que invariavelmente a decisão judicial
estará dissociada da verdade observada quando da ocorrência do evento, mas,
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ainda assim, fará coisa julgada e vinculará as partes e, em algumas hipóteses,
terceiros.
Paradoxalmente a sistemática processual pode tanto impor uma decisão
fundada em prova lícita , porém que não corresponda à verdade, quanto deixar
de considerar uma prova verdadeira, porém produzida por meios ilícitos. Nestes
casos, em que pese ambas as sentenças não guardarem relação com os eventos
tal qual ocorreram, ou seja, não corresponderem à realidade, ela fará coisa
julgada e, para fins legais, constituirá uma decisão verdadeira, porque prolatada
segundo os critérios normatizados nas leis rituais. Mas, é verdadeira a decisão
que simplesmente cumpre a lei, ainda que desconsiderando a verdade dos fatos?
Do mesmo modo, uma decisão que julga de acordo com provas ilícitas,
mas que refletem a verdade, poderia ser considerada verdadeira? Seria
verdadeira a sentença convergente com a realidade do evento mas contrária a
lei?
No primeiro caso o documento falso não identificado como tal justificará
a decisão dissociada da verdade, mas conforme à regra processual segundo a
qual a falsidade documental deve ser arguida e comprovada oportunamente. Se
proferida sob a égide da lei, será válida, ainda que fundamentada em uma
mentira.
No segundo caso, a interceptação telefônica não autorizada foi o único
meio capaz de comprovar a existência de uma confissão sobre determinado
sequestro, mas a persecução penal estará prejudicada e a sentença deverá
absolver o réu ainda que seja ele o sequestrador.
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Nestes dois exemplos a sentença proferida conforme a norma prevalece
em detrimento da sentença proferida conforme a verdade. Tal conclusão, por si
só, impõe uma nova visão acerca da própria finalidade do processo, cuja “busca
da verdade” apenas se justifica se compreendida esta segundo os termos da
teoria do consenso ou da coerência, jamais se considerada como a necessária
correspondência de determinada sentença aos fatos.
O processo, assim, não buscaria a verdade compreendida como
correspondência entre o evento e sua narrativa nos autos, mas se limita a
oferecer uma avaliação objetiva do material trazido por iniciativa das partes (ou
mediante determinação de ofício pelo julgador, o que na prática raramente se
observa).
A verdade que se estabelece no processo decorre, então, do consenso
entre as partes litigantes e o órgão jurisdicional sobre o procedimento para se
alcançar tal verdade. Se o fato restou demonstrado por um meio de prova
legítimo, oriundo de fonte lícita, e não foi capaz de ser refutado pela parte
contrária, será tido como verdadeiro tão só porque convergente com as regras do
jogo previamente estabelecidas e, portanto, aceitas pelos litigantes.
Mais ainda, nos parece falaciosa a ideia dicotômica de verdades trazida
pelos processualistas, para os quais o processo judicial permite a existência de
duas verdades: a verdade real, cuja definição coaduna com aquela estudada
pelos teóricos da verdade aristotélica; e a verdade formal ou processual, bem
explicada através da máxima segundo a qual o que não está nos autos do
processo, não está no mundo.
Há tempos que o conflito entre a verdade real e a verdade processual vem
perdendo sentido. Primeiro, por uma imposição da norma, na medida em que a
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redação do art. 130 do CPC deixa bem claro que o juiz não assume um papel
passivo na produção das provas, já que pode requerê-las de ofício. A regra da
apuração da tal verdade processual, então, sofre mitigação legal, pois o juiz
deveria, primeiro, buscar a chamada verdade real, para, se esgotadas as
possibilidades de provas que poderiam conduzir a ela, julgar com base na regra
do ônus da prova.
Segundo, por uma questão de lógica quanto à análise da natureza de cada
uma delas. Bem vimos que a lei processual impõe uma série de limitações à
produção das provas, e são elas dirigidas a todos os participantes do processo,
inclusive ao juiz.
Pois bem, para deixar o mundo dos fenômenos e integrar a esfera
processual, a verdade real forçosamente estará submetida às regras processuais
de instrução probatória. Assim, não há como alcançar a verdade real senão por
meio das regras formais limitativas da própria produção de provas. Estará a
verdade real, então, absolutamente dependente da observância da forma para
que possa prevalecer, para que exista no processo.
Ora, se a submissão à forma é pressuposto de existência de determinada
verdade, jamais poder-se-ia cunha-la de real. Será, por lógica, formal essa
verdade.
De outro dizer, para transportarmos determinado evento (verdade real) ao
processo judicial, é imposição legal que o façamos sob a estrita observância das
formas processuais, e, ao submeter esse evento à ritualização dos meios
probatórios em juízo, impondo-lhe forma, não há como insistir na ideia de
verdade real no processo jurisdicional, já que toda essa técnica forçosamente
atribui a qualquer verdade o epíteto de formal.
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Será formal toda a verdade no processo, não necessariamente porque está
nos autos, mas porque teve de se submeter ao procedimento formalizado para
tanto. Se, e somente se, demonstrada processualmente a licitude das fontes e
meios de prova utilizados para buscar essa verdade - ainda que o procedimento
da prova possa gerar paradoxos como aqueles suscitados anteriormente – será
ela capaz de gerar os efeitos desejados no processo e estará revestida do
formalismo que nos permite, então, considerar tal verdade como formal.
Na realidade a verdade real deixa de existir no processo e sucumbe à
verdade formal, confundindo-se mesmo com ela. O que prevalece é a verdade
comprovada por meio de provas lícitas e produzidas nos moldes da norma, a
verdade que respeita a forma, portanto, a verdade ritualizada, formal então,
corresponda ou não ao evento que se busca traduzir nos autos.
Curioso notar, aliás, que em algumas ocasiões as regras sobre a prova
acabam por limitar ou mesmo impossibilitar a busca daquilo que se poderia
compreender por verdade real. A existência de contratos cujo valor ultrapasse o
décuplo do salário mínimo não pode ser demonstrada por prova exclusivamente
testemunhal, nos termos do art. 40 do CPC. A prova do domínio far-se-á
necessariamente por documento público, conforme disposição contida no art.
366 do mesmo diploma.
Se assim o é, ainda que no mundo fenomênico o contrato exista, não será
possível demonstrar essa existência nos autos se o único meio possível de fazêlo é através do depoimento testemunhal. A propriedade não estará cabalmente
comprovada se constar apenas de escrito particular. Ambos garantem sua
existência no mundo dos fenômenos, mas inexistem no cenário processual
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Por tais razões, não há verdade nos autos que não seja a verdade
processual, pois submetida à prova e seu regramento repleto de peculiaridades e
limitações. Se não reflete a realidade, ainda assim será formal, do mesmo modo
se a reflete.
De todo modo, não podemos eleger a verdade - especialmente naquela
definição de verdade por correspondência - como o objetivo maior da atividade
jurisdicional, ainda que ela se mostre como um valor a ser incansavelmente
buscado, com vistas a conferir maior legitimação ao proceder judicial.
Tanto o é, que a cláusula de indeclinabilidade da jurisdição exige que a
controvérsia seja solucionada por meio de uma sentença, resolva ou não o
mérito da ação. Essa sentença, como vimos, prescinde de se constituir em um
reflexo da verdade, bastando que seja proferida conforme os ditames legais que
organizam o processo judicial.
E uma das normas que preside o processo é aquela que impõe às partes
litigantes o ônus da prova, e permite ao juiz que resolva o processo aplicando
exatamente essa regra: se diante de dúvida invencível quanto aos fatos levados
ao seu conhecimento, deve o juiz avaliar a quem cabia produzir a prova, se ao
autor e não o fez, a ação será julgada improcedente; se foi o réu quem não se
desincumbiu do ônus de provar suas alegações, a solução será pela procedência
da demanda.
Veja-se que, nesse caso, quando necessário o julgamento segundo o
critério subjetivo do ônus probatório, a busca pela verdade passou ao largo da
decisão, que resolveu o processo adotando uma regra formal que exige seja
proferido um pronunciamento judicial, inclusive naqueles casos em que não há
prova alguma e, portanto, nenhuma verdade fora demonstrada.
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Prevalece a solução do litígio em desfavor daquele que não foi capaz de
comprovar a verdade de suas pretensões, e somente isso. A sentença, como
produto
necessário
da
atividade
jurisdicional,
estará
nos
autos
independentemente da verdade e tão só para compor a lide. Transitará em
julgado, produzirá todos os efeitos e deverá ser cumprida sem que se indague
acerca de qualquer verdade.
Tem-se, pois, que a prolação da decisão judicial mostra-se como objetivo
imediato da atividade jurisdicional, como meio pacífico de compor litígios e
garantir paz social, suas finalidades mediatas. Se alcançada a verdade por
correspondência, tão melhor. Se não, ainda assim será uma decisão judicial
legítima, fulcrada igualmente na verdade, mas aquela formada sob o consenso
das partes litigantes, conforme referido.
Fosse a verdade por correspondência o interesse maior do processo
judicial, sequer haveria de existir a regra da distribuição do ônus probatório e
sua utilização como critério de decisão, quando, então, o procedimento bem
poderia se eternizar até fosse aquele valor alcançado.
Vale reiterar que o sistema jurídico oferece a mesma força legal para as
decisões verdadeiras e para as decisões equivocadas, dotando uma e outra dos
efeitos constitucionalmente resguardados da coisa julgada. É o trânsito em
julgado da decisão – e não o alcance da verdade – o saneador geral do processo.
Acrescente-se a isso que a verdade em si pouco importa nos chamados
“processos objetivos”, em que ausentes as partes e o interesse em eventual
admissibilidade ou inadmissibilidade de juízos sobre a ocorrência de fatos. Aqui,
pouco ou nenhum compromisso terão com a verdade dos fatos ou o interesse em
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se fazer justiça, pelo menos não no que tange ao ideal filosófico dessa justiça,
naturalmente indissociável àquele valor.
Não é o caso, entretanto, de advogar pelo desprestígio absoluto da verdade
na função jurisdicional. Como valor extremamente caro às sociedades humanas,
devem os participantes do processo atuar no sentido de fazê-la prevalecer, pois
ela age como fator de legitimação das decisões judiciais, ao lado da obediência
às normas do devido processo legal, como o princípio da anterioridade no
processo, o contraditório e a ampla defesa.
III - RITUALIZAÇÃO VS. CLANDESTINIDADE
Tempestuoso é o estudo da relação entre a ritualização do processo e a
cláusula de indeclinabilidade da jurisdição, já que, por vezes, aquele constituirá
fator capaz de afastar esta garantia.
Desde logo devemos ter em conta que o princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional, tal qual previsto no art. 5º, XXXV, da Norma
Fundamental, não é absoluto. A Constituição não quer garantir o
desenvolvimento de qualquer processo sem a necessária fundamentação
material, já que não previu direito abstrato de acesso à Justiça.
É unânime entre os estudiosos, que o exercício da garantia fundamental de
pleno acesso à jurisdição estatal depende do preenchimento dos requisitos
autorizadores do provimento final, daquelas condições indissociáveis da ação, e
da presença dos pressupostos processuais de existência e validade do processo.
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A teoria eclética da ação desenvolvida por Liebman, e que conta com
franca aceitação no Direito brasileiro, demonstra que a existência do processo
não está condicionada à do direito material pretendido pelo autor. Assim, o
direito de ação estará presente ainda que o postulante não seja o titular do direito
material que visa tutelar.4
Contudo, Liebman advoga que o direito objetivo de ação depende da
existência de alguns requisitos para que possa ser plenamente exercido. São os
requisitos do provimento final ou condições da ação, cuja ausência redunda na
impossibilidade de evolução da marcha processual em direção ao conhecimento
do mérito da causa.
O legítimo exercício do direito de ação está, pois, condicionado à
legitimidade das partes litigantes, à possibilidade jurídica do pedido, e ao
interesse processual. A falta de qualquer destes configura a inexistência do
direito de ação, de seu legítimo exercício. O demandante carente de tais
requisitos há de ser declarado impassível do exercício legítimo do direito de
ação, configurado que está o abuso de tal direito.
Ao lado das condições da ação, os pressupostos processuais atuam como
fatores de existência e validade da lide jurisdicional, na medida em que visam
assegurar a supremacia do devido processo legal, impedindo o desenvolvimento
de demandas capazes de violar essa garantia.
Pressupostos como a existência de órgão estatal investido de jurisdição;
partes capazes e representadas por quem detém capacidade postulatória;
demanda regularmente formulada por intermédio de uma petição inicial apta que
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LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. vol. I. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1985, p. 151.
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contenha as partes, o pedido e a causa de pedir; a citação válida, passível de
permitir o exercício do direito de defesa; a imparcialidade do juiz etc., são meios
de resguardar os direitos fundamentais do processo, como a ampla defesa e o
contraditório, corolários do devido processo legal.
Em conjunto, as condições da ação e os pressupostos processuais
cumprem a finalidade de coibir abuso do direito de ação, tal qual a intervenção
judicial visa coibir o abuso do direito material objeto da lide posta à sua análise.
Realmente, não há como pretender exercer o direito de ação de maneira
dissociada das regras formais que intentam garantir o exercício de outros
direitos fundamentais, alguns deles relacionados ao próprio direito de ação, tal
qual o é o direito de defesa.
De mesma sorte o rito processual que impõe a forma pela qual os atos
processuais devam ser executados visa, de um lado, a celeridade processual – o
que se obtém, dentre outros, diante do risco da preclusão motivada pela
inobservância dos prazos processuais -, e, de outro, o desenvolvimento das fases
processuais sob o crivo da autoridade do due process of law e das prerrogativas
à ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório, o duplo grau de jurisdição,
o juiz natural, o livre convencimento motivado do juiz.
Em sentido oposto, contudo, o culto exacerbado à norma tende a afastar a
atividade jurisdicional desses direitos fundamentais do processo. É o que ocorre,
por exemplo, quando se nega seguimento aos recursos excepcionais por terem
sido interpostos por meio de petição única (art. 541, do CPC), ou quando se
inadmite agravo de instrumento em razão da ausência de petição cientificando
ao primeiro grau a interposição do recurso (art. 526, p. ún., do CPC).
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Nestes exemplos, não há qualquer razão plausível, fundada na garantia
dos direitos fundamentais, sejam eles processuais ou materiais, que justifique a
adoção de sanções tão severas e a perda da oportunidade de conhecimento do
mérito de cada um dos recursos mencionados. Questões de fundo que deixarão
de ser analisadas, sumariamente, porque a parte deixou de cultuar a forma, in
casu, vazia de conteúdo.
A forma há de ser observada quando estruturada na exata medida para
garantia dos direitos fundamentais, quando voltada ao resguardo desses direitos.
Do contrário, se utilizada como a própria finalidade do processo – ao
arrepio da ideia de que ele constitui mero instrumento para a consecução do
direito material -, a forma constituirá inadmissível subterfúgio para contornar a
cláusula de indeclinabilidade da jurisdição e, ao contrário de atuar como
ferramenta de valorização dos direitos fundamentais, estará violando essas
prerrogativas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em arremate, ainda que consideremos a busca da verdade por
correspondência como valor primordial da vida em sociedade, não se pode
enumerá-la como finalidade última da atividade jurisdicional, dadas as
particularidades que cercam a ideia contida nesse termo, seja isoladamente
considerada – quando a filosofia e a teoria do conhecimento desconstroem sua
própria existência absoluta -, seja ela analisada nos contornos da lide
jurisdicional.
Mais adequado seria, hodiernamente, pensar nos fins do processo sob uma
ótica utilitarista, que elege, como objetivo maior das ações judiciais a solução
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adequada dos conflitos por órgão constitucionalmente investido de tal
prerrogativa, com vistas a garantir a pacificação social e o resguardo dos direitos
fundamentais, inclusive aqueles relativos ao processo. De todo modo,
prevaleceria uma espécie de verdade: aquela resultante do consenso entre as
partes litigantes acerca do modo pelo qual os fatos serão trazidos ao cenário
jurisdicional.
Contudo, ainda que estes objetivos melhor definam as finalidades do
processo judicial, seria temerário afirmar que a busca da verdade é
completamente dispensável. Permanece, sim, como fator desejável da prestação
jurisdicional, a constatação da verdade sobre determinados eventos, como
pressuposto para a prolação de decisões adequadamente fundamentadas,
mormente no processo civil, penal e do trabalho.
Se de um lado temos na forma - especialmente aquela que dita as regras
para produção da prova – um meio para garantir o devido processo legal através
de limitações procedimentais para a constatação dos fatos, de outro devemos
considerar que não raramente haverá situações em que o único modo de trazer a
verdade aos autos será por intermédio de meios ilegítimos.
Esse dilema, que tem de um lado a verificação da verdade para formar o
convencimento do juiz, e de outro a garantia constitucional da prova lícita, há de
ser resolvido com enorme ponderação, buscando não sacrificar um valor em
benefício da prevalência isolada de outro. A teoria constitucional advoga que a
solução da colidência entre princípios ou entre direitos fundamentais há de ser
realizado com vistas a garantir a maior efetividade possível a cada um deles,
evitando o esvaziamento completo de um para que prevaleça o outro.
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O que não se pode admitir, portanto, é a total e imotivada desconsideração
da forma estatuída para bem dirigir o processo judicial, já que ela tem como
pressuposto fundante o devido processo legal, ainda que a justificativa seja a
indeclinabilidade da prestação jurisdicional.
Por outro lado, sucumbir ao formalismo exacerbado a ponto de
desprestigiar a plena entrega da prestação jurisdicional não nos parece o
caminho adequado naquelas situações em que estamos diante de direitos
fundamentais mais relevantes do que aqueles que os ritos processuais visam
assegurar.
De todo modo, ao julgador, obstáculos impostos à constatação sobre o que
verdadeiramente ocorreu, não justificam sua abstenção de proferir o
pronunciamento judicial, até porque o direito processual parece oferecer
ferramentas a também garantir a cláusula de indeclinabilidade da jurisdição,
segundo a qual o Judiciário não pode deixar de julgar a lide posta à sua análise,
seja qual for a razão, corolário este do direito de acesso ao Judiciário e à
Justiça5.
Se diante do caso concreto for realmente impossível ao julgador proferir
decisão minimamente fundamentada na convicção extraída dos elementos
trazidos aos autos pelas partes – e aqui cabe lembrar que a produção de provas
não é um dever, mas sim um ônus que se impõe aos litigantes -, deve, sob o
manto da norma inserta nos arts. 130 e 131 do CPC, determinar a realização de
outras provas que entende possam melhor esclarecer os fatos, além de ter em
conta os princípios gerais do Direito, as regras de lógica e máximas da
experiência.
5
TAVARES, André Ramos. Manual do Poder Judiciário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012,
p. 64 e SS.
22
E, por fim, se ainda assim não for possível convencer-se sobre a verdade
dos fatos, deve se valer da regra do ônus da prova, e verificar qual das partes
deveria produzir o substrato probatório. Tal solução somente é válida diante de
dúvida invencível e não pode ser usada em razão de uma pequena dificuldade,
devendo o julgador bem fundamentar sua decisão se quiser se valer da regra do
ônus da prova para julgar.
Essa solução, ainda que não permita o prevalecimento da verdade no
processo, compreendida esta como a correspondência entre uma alegação e um
acontecimento, afasta eventual tendência inconstitucional de o Judiciário buscar
declinar da prestação jurisdicional, e permite que a decisão judicial se legitime
na própria norma processual que de antemão estipula as regras que governarão o
trâmite processual e a atuação das partes.
A previsibilidade e o consenso das partes quanto às regras do processo
permitem a legitimação do pronunciamento judicial, na medida em que geram o
sentimento de que a sentença foi produzida segundo a verdade - pelo menos
aquela verdade que se estabeleceu na lide processual – e em procedimento no
qual houve a participação ativa dos interessados e o respeito ao devido processo
legal.
Essa garantia das partes litigantes, ademais, estará igualmente assegurada
pelo respeito às formas processuais, especialmente àquelas que digam respeito
aos pressupostos do processo e às condições da ação. Nesses casos, o respeito à
ritualização atua como garantidor das prerrogativas constitucionais vinculadas
aos direitos fundamentais.
23
Não se justificará a ritualização, no entanto, se a pretexto de se permitir a
adequada marcha processual, a exacerbação da forma prevalecer em detrimento
do direito material e do direito fundamental de pleno acesso à jurisdição estatal.
Aqueles atos processuais subsidiários, que se limitam a organizar o modus
operandi das demandas judiciais e nenhuma relação tenham com o resguardo
das prerrogativas fundamentais constitucionalmente consagradas, jamais podem
prevalecer diante da máxima efetividade da cláusula de indeclinabilidade da
jurisdição.
24
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Martin Claret, 2001.
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25
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VERDADE NO PROCESSO JUDICIAL