Terra à vista Ricardo Seitenfus O Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre não deve ser interpretado como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial (FEM) de Davos. Há mais de três décadas, a idéia genial de um universitário genebrino foi uma iniciativa isolada, uma aposta no diálogo internacional que transformou-se pouco a pouco num encontro indispensável das relações internacionais contemporâneas. Hoje, às margens do Rio Guaíba, oriundas de 122 países, milhares de pessoas encontram-se, pela primeira vez, para coordenar estratégias e definir posições, almejando que a solidariedade renasça como princípio fundamental da ordem internacional. Ao invés de uma competição inócua e contraproducente entre os dois fóruns, é preciso criar pontes para que a reflexão humanista repercuta concretamente sobre as políticas econômicas estatais. Por outro lado, não se pode imaginar que os Chefes de Estado e de Governo que se deslocam à Davos não desfrutem de legitimidade. Atribuí-la apenas às Organizações não-governamentais (ONGs) que estão em Porto Alegre é desconhecer a variedade que marca as mais de trinta mil entidades do gênero que existem na atualidade. Assim, complementar à Davos, Porto Alegre dá voz a novas figuras e lança um debate necessário, corrigindo o curso da indiferença patética nutrida pelo debate político com respeito à exclusão. Pensou-se que o FSM fosse uma iniciativa franco-gaúcha, um frágil eixo Paris–Porto Alegre que não ultrapassaria o âmbito de um grupo intelectual parisiense aliado, circunstancialmente, aos atuais governos do Município de Porto Alegre e do Estado do RS. Não obstante, o sucesso do evento, numa cidade marginal do Extremo Ocidente, prova que o mal-estar da contemporaneidade é uma moléstia grave e amplamente difundida. O que choca não é a existência da injustiça e das gritantes desigualdades de oportunidade, mas o fato de que o homem dispõe de recursos materiais e intelectuais para diminuí-las e não o faz. Além disso, os meios de comunicação encarregam-se de mostrar, de forma cada vez mais rápida e crua, pelos quatro cantos da Terra, a insustentável brutalidade do modelo econômico em voga. Ora, a festejada Terceira Via mostrou-se incapaz de drenar a força do descontentamento: tanto Blair como Schroeder pouco passaram da retórica de mudança. Somente o socialismo francês, que significativamente enviou Ministros à Porto Alegre e à Davos, buscando uma unidade de discurso, é sensível ao surgimento de novas forças internacionais. Não é de se estranhar que Fernando Henrique Cardoso tenha criticado o evento de Porto Alegre. Quando um intelectual de esquerda foi eleito Presidente de um gigante do Terceiro mundo, dezenas de nações irmãs dele esperavam uma liderança original e criadora. A imagem construtiva, de inconformismo e ação, hoje ostentada por Porto Alegre, deveria ser a imagem do Brasil inteiro desde 1994. Ao contrário, nosso país tornou-se símbolo de aceitação humilde, às vezes vergonhosa, das mazelas do sistema internacional. Como resposta ao insuportável sucesso dessa esquerda “atrasada”, FHC lança suspeitas sobre a utilização de dinheiro público para organização do Forum. Crítico incoerente (há pouco desperdiçou quantia estapafúrdia no infame episódio “Petrobrax”), Cardoso desconhece que tanto o Estado de Genebra quanto a Confederação Helvética subsidiam o Fórum de Davos, cuja autonomia prende-se à pauta de discussão e aos interventores. O Presidente do Brasil deveria estar debatendo em Porto Alegre, comprometido a fazer com que os ecos do Guaíba cheguem aos Alpes através de um necessário e elevado diálogo. A baixa política não deve todavia obscurecer a transcendência do acontecimento, que anuncia um novo diálogo, indispensável à uma ordem internacional mais justa e equilibrada. Tudo que foi gasto nesse debate é pouco, pois a obra empreendida a favor de Porto Alegre, hoje na primeira página do mundo, é imensurável. Resta esperar que o Fórum ganhe sua aposta. As propostas e sugestões devem transcender a superficialidade que caracteriza o debate sobre as relações internacionais na esquerda brasileira. O espaço deve tornar-se permanente, conquistando cada vez maior autonomia em relação às autoridades públicas da terra que o acolhe. A globalização deve ser desmistificada e profundamente estudada, para que possa ser alvo de crítica e controle. Que nesse porto alegre os navegantes joguem fora suas viciadas bússolas, desprendam-se das âncoras de velhos credos e icem suas velas em direção a um horizonte aberto e lúcido, onde as vozes do Terceiro mundo sejam mais do que marolas. Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 52, Doutor em relações internacionais, exsecretário de Relações internacionais do Rio Grande do Sul (1987-88), Professor titular na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e Professor convidado no Instituto de Altos Estudos da América Latina (Universidade de Paris 3) e do Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra.