A economia está blindada? Por João Sicsú A crise política atinge o governo e o Partido dos Trabalhadores. A crise do PT resulta de tristes e cômicas revelações: mensalão, uso inusitado de peças íntimas e o "jipinho" Land Rover. O PT está minguando. Poderá restar apenas a sigla. Talvez, contudo, sobreviva com uma densidade eleitoral significativa, tal como o PSDB e o PFL. O PT, que sempre disse ser diferente, hoje apela a todos para que acreditem que é igual aos outros. É tão bom ou ruim quanto os demais - esse é o lema estratégico da sua defesa. O PT tem razão: está bem parecido com os demais grandes partidos. Inicialmente, pensou-se que o PT tinha feito somente a cópia do que é o mais importante: as idéias macroeconômicas. Hoje, entretanto, se percebe que copiou também as práticas da microeconomia doméstica. O governo está em crise porque possui uma base desmoralizada pelas denúncias do mensalão. Mas, principalmente, porque os resultados econômicos, após quase três anos de governo, não são contundentes, embora sejam um pouco melhores que os resultados da era FHC. A crise retirou do Palácio do Planalto e dos ministérios os focos de resistência ao continuísmo e ao aprofundamento do modelo econômico da era FHC. Deve-se reconhecer, contudo, que eram focos fracos. Eram ignorantes, não conheciam as idéias que supostamente defendiam em termos econômicos. Eram muito fracos. Internamente, não foram capazes de vencer Antonio Palocci. Publicamente, não resistiram aos primeiros golpes de Roberto Jefferson. Caíram e continuarão caindo como peças de dominó. Enquanto José Dirceu chafurdava, Palocci surfava. Enquanto a equipe política do governo se esfacelava, a equipe econômica se fortalecia. A crise política tornou a equipe econômica mais homogênea e mais poderosa. Caiu gente no IRB, nos Correios, na Eletrobrás, nos ministérios, mas Henrique Meirelles, sob desconfiança, continua de pé. Muitos se surpreenderam porque a bolsa não despencava e o dólar não disparava diante da crise política. A equipe econômica atribuiu tal resultado a uma suposta consolidação dos fundamentos da economia brasileira. Mas a explicação é outra. Embora débeis e com convicções nebulosas, eram na Casa Civil, em alguns segmentos do PT e em alguns ministérios, o das Cidades, por exemplo, que estavam as resistências ao continuísmo econômico. Eram nesses focos que estavam as resistências às taxas de juros mais altas do mundo, ao elevado superávit primário, à liberdade financeira especulativa, ao projeto de autonomia do Banco Central e às desvinculações de receitas da União. A vulnerabilidade externa é tão grande que o exercício da democracia pode causar uma crise avassaladora Os investidores financeiros receberam muito bem a queda de Dirceu, a desmoralização do PT e a reforma que indicou ministros domesticados e fracos que, portanto, não têm capacidade de exigir mudanças. Os capitais financeiros se sentiram mais seguros (ainda) para desfrutar de uma taxa de juros de 19,75% ao ano com uma trajetória de valorização cambial. Eram dois ganhos extraordinários de uma só vez: juros e câmbio alimentando a entrada de recursos no país. Inicialmente, a crise política deu mais segurança aos investidores financeiros. Os capitais somente fogem quando se vêem ameaçados seja em sua rentabilidade, seja em sua liquidez. Portanto, a hora não era de fuga. Era a hora e a vez dos capitais especulativos: alta liquidez com alta rentabilidade. O fogo que queimou Dirceu e os anões de diversos partidos não pára. Tem combustão espontânea. Surgem carecas, secretárias e cuecas de onde menos se espera. A temperatura pode aumentar ainda mais. Já queimou quem estava encharcado de gasolina. Mas poderá continuar a queimar. Esse fogo é indomável, não há bombeiros nas elites políticas ou no PT que possam controlá-lo. Se o fogo se aproximar do Palácio do Planalto, gerará insegurança aos mercados, já que o presidente Lula é a âncora do modelo que oferta alta rentabilidade e alta liquidez às suas aplicações especulativas. Este é o elo entre a política e a economia. Diante da possibilidade, mínima que seja, de mudança de orientação do modelo econômico que poderia reduzir drasticamente a rentabilidade e/ou a liquidez de ativos financeiros especulativos, a fuga de capitais começa. Começa em antecipação a fatos que podem ocorrer no futuro, ainda que sejam esperados meses para se efetivar, como um impeachment presidencial, por exemplo. Quem sair por último perde com a desvalorização cambial. Portanto, quem sair primeiro mantém os ganhos. Essa é a racionalidade individual que leva à crise cambial. Os capitais não se movimentam depois dos fatos, esta seria a lógica da adaptação. A lógica do capital especulativo financeiro é a da antecipação. Quando a fuga começa, torna-se autônoma. Os capitais fogem para se antecipar à desvalorização cambial e esta ocorre porque houve fuga de capitais. Essa espiral fugadesvalorização expressa a dinâmica do colapso cambial. Portanto, a economia brasileira está sujeita a uma nova crise. Isto não quer dizer que vai acontecer agora, quer dizer apenas que a economia é comandada pelo humor dos capitais financeiros. Não existem defesas: não há controles sobre o movimento de capitais especulativos, não há reservas suficientes no Banco Central, as taxa de juros já são as mais altas do mundo e o câmbio está muito valorizado. O cenário está montado. As vulnerabilidades estão expostas. As porteiras estão abertas. Só falta a manada bater em retirada. Como o país recebeu bilhões de dólares em recursos especulativos e como as instituições financeiras brasileiras possuem bilhões de reais que podem movimentar livremente e legalmente para o exterior no momento que considerarem conveniente, o país está sujeito a sofrer novas crises cambiais, elevação drástica do risco-país e queda abrupta da bolsa de valores. A economia brasileira está muito longe de estar blindada. Não sofreu crises durante o governo do presidente Lula porque o cenário financeiro internacional tem sido de inédita calmaria. A vulnerabilidade externa da economia, devido à liberdade para o movimento de capitais especulativos, é tão grande que o exercício da democracia, que pressupõe investigação, transparência, eventual substituição de dirigentes e reorientação de rumos macroeconômicos, pode causar uma crise avassaladora. João Sicsú é professor-doutor do Instituto de Economia da UFRJ.