Através de um espelho I. Quando abri a porta ela ainda estava lá. Wilhelmina, meu duplo, meu gêmeo, ou ao menos o que pude explicar-me então. Seria este encontro a busca do tempo perdido na própria memória, ou ainda o retorno de um passado desconhecido que de repente, não mais que de repente, surgia rompendo o olvido, desejoso por resgatar-se de minhas memórias? Eram minhas memórias menos certas do que os acontecimentos que agora recobravam seu lugar no tempo? Na busca por uma saída razoável para a minha condição criava continuamente rapidíssimas narrativas mentais, sabendo, porém, haver em mim a angústia latente da incerteza sobre o próprio passado. Não me lembraria de minhas experiências desde os tempos da geração, meu temperamento ansioso pelo encontro não partiria do desejo por me encontrar, ainda que fosse outra? Estas possíveis narrativas eram forjadas sob a condição do sentido, construídas entre esquecimento e ruínas. Eu encarava o reflexo quase outro daquela aparição muda que se fixava à minha porta. Cogitei que deixara de ser-me para observar-me, mas como posso conhecer-me senão através dos olhos de quem se observa de dentro de si, e que de si não pode escapar, e, ainda assim, poderá a todos encarar, excetuando a própria imagem – está que só poderá ver através de um espelho? Há alguém que realmente possa ver senão instante refletido? Deparei-me então em minhas memórias inventadas com a lenda de uma nota de Narciso. Não pude esquecê-la, suas palavras ainda ressoam por mim. Transcrevo de memória o que nunca se escreveu: Purificarei minha história como faz um homem ao se banhar nas águas fluídas de um rio Não me quero a fundo, não, não me basta ser, preciso de minhas margens borradas, do mergulho na imagem turva dos sonhos outros que miro. Do fundo de um naufrágio submirjo na fluidez penetrante das águas. I. Estarei naufragando na alteridade de um mar que me afasta indefinidamente de mim? Estarei abandonando-me à loucura, à perda da razão e dos sentidos que me fazem distinguir-me do reflexo outro que me encara? Meu desespero cresce, estou já há dias reclusa na solidão do abandono, há dias desde o dia em que me cansei de esperar. Olho para suas anotações, releioas, penso se poderiam se relacionar com seu sumiço. Nenhuma palavra além. Pensam que ele deliberadamente se ausentou, que extinguiu nossa vida sem ao menos me explicar, bem posso eu imaginar o que eles pensam, ignorando o desespero de uma amante. Ninguém entende a obsessão pelas palavras senão outro obcecado, que sabe quanto nos seria terrível a ausência de um desfecho final para nossa história. Concluo que ele só pode estar emudecido, seja qual caminho tenha-o levado a este trágico desfecho. Caminho para sala enquanto chamo-a para entrar - sem nenhum som. Não poderia mais suportar aquele silêncio incômodo, mas a voz me faltou e só me veio o pranto melancólico da falta. “Senhora”, finalmente disse, e se colocou a tocar meu piano. Quando ouvi as primeiras notas da primeira Gymnopédie, tocadas com a delicadeza que outrora ouvia pelas mãos outras, toda a ausência dissipou-se. Olhando através da janela finalmente escutava o vento que já não podia ser ignorado, o vento batendo nas janelas que abri fazendo com que fosse tomada toda a casa pela sensação absoluta da comunhão. Ecoava-me a memória de estarmos exatamente naquela posição, ele em meu lugar, enquanto declarava para o gosto roubado: J'aime les nuages... les nuages qui passent... là-bas... là-bas... les merveilleux nuages! Olhei para o relógio na parede parado já há muitos dias. Olhei para o piano onde eu por fim sabia tocar. Olhei para o espelho oval de nossa sala: Finalmente pude ver-me.