Fetomaternal exchange of electrolytes Resumo A descrição do transporte placentário envolve informações sobre mecanismos, propriedades e regulação genética das substâncias moleculares. Nas trocas materno-fetais faz-se necessário atravessar uma camada de células do sinciotrofoblasto (microvilosidades e camada basal da membrana plasmática) bem como o tecido conectivo e o endotélio capilar fetal. Assim, a troca sanguínea entre as duas circulações materna e fetal por meio do espaço interviloso e dos capilares vilosos ocorre através da barreira placentária. Os tipos de transporte de substâncias através da placenta são variáveis. Diversos mecanismos de transporte do sódio têm sido demonstrados, embora o transporte ativo de K+ ainda não esteja bem esclarecido no ser humano. O transporte placentário de cálcio, magnésio e fósforo acontece por transporte ativo, o qual aumenta no último trimestre de gestação, e coincide com o aumento da mineralização do esqueleto fetal. Desta forma, o entendimento das relações entre as diversas substâncias do organismo e o transporte através da placenta se faz necessário para melhor compreender a nutrição fetal e a patogênese de algumas doenças intra-útero. AT U A L I Z A Ç Ã O Trocas materno-fetais dos eletrólitos Alex Sandro Rolland de Souza1 Carlos Noronha Neto1 Micheline Oliveira Lobo Pereira da 1 Costa Marcelo Marques de Souza Lima1 Carolina Prado Diniz1 Palavras-chave Placenta Placenta/fisiologia Troca Materno-Fetal. Abstract Keywords Placenta Placenta/physiology Maternal-Fetal Exchange. The description of placental transport provides information about the mechanisms, properties and genetic expression of molecular substances. The maternal-fetal exchanges need to cross the trophoblast inner cells (microvilli and basal cells) as well as connective tissue and endothelium. Therefore, the exchange between maternal and fetal blood through intervillous space and villous vasculature is made possible by the placental barrier. Substances may be transported through several mechanisms. In fact, several mechanisms for sodium transportation have already been shown whereas the mechanism for potassium transportation in humans is not yet clear. Calcium, magnesium and phosphorus transportation through the placental barrier is active and it is increased in last trimester of gestation, together with skeletal mineralization. Thus, a better understanding of the relationship between substances in the organism and transport through the placenta is necessary to understand fetal nutrition and pathogenesis of certain fetal diseases. 1 Centro de Atenção à Mulher – Setor de Medicina Fetal do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira – SEMEFE -IMIP FEMINA | Novembro 2007 | vol 35 | nº 11 737 Trocas materno-fetais dos eletrólitos 738 Introdução Sódio Na era de Hipócrates, pensava-se que a placenta era formada pelo acúmulo de sangue intra-útero devido à amenorréia durante a gestação, sendo a nutrição do concepto realizada através da deglutição fetal. Com o passar do tempo, muitos estudiosos propuseram várias teorias, mas apenas em 1781 Baudelocque sugeriu a existência de uma circulação materno-fetal. Atualmente, sabe-se que o transporte placentário envolve diversos mecanismos e propriedades, além da regulação genética das substâncias moleculares. Diversos aspectos estão envolvidos nas trocas materno-fetais. Algumas substâncias necessitam de metabólitos da própria placenta para atravessá-la. Há diferentes tipos de transportes envolvidos, um grande número de substâncias e vários fatores que interferem nesses mecanismos. No passado, apenas eram utilizados estudos de medida de fluxo dos principais elementos a serem transportados pela placenta. Hoje, com o avanço da biotecnologia, sabe-se também da importância dos aspectos molecular e celular (Loughhead et al., 2006). Existem três compartimentos distintos, o materno, o fetal e o amniótico. Assim, poderia pensa-se que ao perfundir determinada substância na circulação materna, o resultado final da dosagem seria igual à medida no cordão umbilical somada à do compartimento amniótico. Entretanto, isso não ocorre, visto que existem outros fatores envolvidos nas transferências dessas substâncias. Assim, há de se avaliar com muita cautela os diversos estudos realizados com placentas in vitro, onde a dosagem da substância perfundida freqüentemente é igual à do cordão umbilical e também à dos estudos realizados em outras espécies, para que possam ser extrapoladas para a placenta humana (Loughhead et al., 2006). Desta forma, existem grandes dificuldades na realização dos estudos para firmarem-se conclusões a respeito das trocas materno-fetais. O tecido placentário é composto de células do sinciotrofoblasto (microvilosidades e camada basal da membrana plasmática) bem como o tecido conectivo e o endotélio capilar fetal. Então, para as diversas substâncias atravessarem a placenta, faz-se necessário ultrapassar essas camadas, que apresentam peculiaridades específicas para o transporte de moléculas, cujos componentes contribuem para o transporte através da placenta (Fuchs & Ellinger, 2004). Desta forma, o entendimento das relações entre as diversas substâncias do organismo e do transporte através da placenta se faz necessário para melhor compreender a patogênese de algumas doenças como a pré-eclâmpsia, restrição de crescimento fetal e hipotensão (Beauséjour et al., 2003; Nash et al., 2005). Diversos mecanismos de transferência do sódio têm sido demonstrados. Há evidências de que o sódio seja transportado ativamente. No clássico estudo de Flexner et al. (1948), houve evidência de que o Na24 atravessa a placenta, em gestantes a termo, à velocidade de 6,5 mg/g/h. Assim, considerando-se uma placenta de 350 g, encontrou-se velocidade de 2.300 mg/h, sugerindo troca placentária principalmente passiva. No entanto, existem evidências funcionais e moleculares da existência de canais de sódio na membrana microvilositária do sinciotrofoblasto humano (McDonald et al., 1995). O sistema de troca mais estudado é a bomba de sódio (Na++ K -ATPase), que se encontra no tecido placentar humano. Estudos sugerem que a maior parte da atividade dessa bomba está na membrana basal do sinciotrofoblásto, permitindo o transporte ativo de sódio para o feto. Esses estudos foram confirmados posteriormente por métodos enzimáticos e moleculares. Johansson et al. (2000) demonstraram, em placentas de termo, a existência de uma subunidade protéica (alfa-1) na membrana microvilositária e basal com densidade relativa por unidade protéica de 48 ± 1%, sendo a atividade da bomba de sódio na membrana basal menor que na microvilositária. Sugere-se que o mecanismo da bomba Na+-K+-ATPase no sinciotrofoblásto seja diferente dos outros epitélios, onde a bomba estaria localizada somente na membrana basolateral. Farmacologicamente, estudos preconizam que a membrana microvilositária contém maior quantidade da proteína transportadora (NHE-1) e que a membrana basal contém a isoforma, NHE-2. Hughes + + et al. (2000), estudando a atividade e expressão das trocas Na /H na membrana microvilositária do sinciotrofoblasto sobre o efeito da idade gestacional dos recém-nascidos pequenos para a idade gestacional (PIG) e do pH do cordão umbilical, relataram que essa atividade foi maior no segundo e terceiro do que no primeiro trimestre da gestação dos fetos adequados para a idade gestacional (AIG). Observaram, ainda, que a expressão da proteína NHE-1 não se altera com o evoluir da idade gestacional, mas a NHE-2 e NHE-3 foram menores no primeiro e segundo trimestres do que no termo da gestação. Também existem evidências da existência, na placenta humana, do sistema de co-transporte Na+-aminoácidos e Na+-K+-Cl- (Davis et al., 2000). FEMINA | Novembro 2007 | vol 35 | nº 11 Cloreto As trocas de cloreto ocorrem por difusão passiva, existindo uma pequena contribuição por via transcelular. A ocorrência Trocas materno-fetais dos eletrólitos de canais de cloreto é sugerida por Illsley & Sellers (1992), que avaliaram a medida de eletrodifusão na membrana microvilositária. Além desses canais, Davis et al. (2000), avaliando o potencial de membrana e o cloreto intracelular, revelaram a presença de trocas de Cl-/HCO3-, o co-transporte de Na+-K+-Cl- e uma terceira bomba na musculatura das artérias umbilicais e placentárias humanas, discutindo sobre a possibilidade da regulação do tônus vasomotor da unidade fetoplacentária pelo cloreto acumulado nesses sistemas. Potássio + O transporte ativo de K ocorre em placentas de ratas, entretanto, ainda não está bem esclarecido no ser humano. + Encontram-se concentrações de K mais elevadas no feto do que na mãe, sendo esses resultados ainda pouco confiáveis, devido à possibilidade de artefatos durante as medidas. + + Como já mencionado, a bomba de Na /K /ATPase encontrase na placenta. Contudo, a contribuição dessa bomba é apenas sobre pequena parte do fluxo transplacentário. Clarson et al. (2001) verificaram que o fluxo de K+ retornando ao interior da célula tem importante papel para determinar a difusão do potássio através da membrana do sinciotrofoblásto. Zhao & Hundal (2000) identificaram uma proteína responsável pelo co-transporte de Na+-K+-Cl- na membrana das células BeWo do trofoblásto humano, sugerindo a existência desse co-transporte, que pode estar envolvido na regulação do volume das células trofoblásticas. Iodeto A placenta permite a passagem do iodeto devido à síntese de tiroxina pela tireóide fetal. O gene NIS e sua expressão protéica foram identificados inicialmente em vários tecidos, com exceção da placenta. Mitchell et al. (2001) descreveram o RNAm desse gene na placenta humana e em células JAr do coriocarcinoma, sugerindo a existência de uma expressão protéica placentária que deve ser responsável pelo transporte ativo do iodeto. Tem sido ainda registrada a participação da gonadodrofina coriônica humana, dependente ou não do AMP cíclico, no transporte desse íon (Arturi et al., 2002). Cálcio O transporte placentário de cálcio, magnésio e fósforo envolve algumas características comuns. Primeiramente, o transporte da mãe para o feto acontece por transporte ativo. Segundo, a transferência placentária desses íons aumenta no último trimestre de gestação, coincidindo com o aumento da mineralização do esqueleto fetal. ++ A transferência de Ca através da placenta envolve três passos. O primeiro é a chegada do sangue materno no citotrofoblasto pela membrana microvilositária do sinciotrofoblasto. O gradiente eletroquímico para o movimento do cálcio através da membrana microvilositária é favorável, com a diferença do potencial de mem++ brana in vitro de – 22 mV e a concentração do Ca livre intracelular ++ de 10-7 M (10.000 vezes menor que o Ca livre no extracelular). Utilizando bloqueadores dos canais de cálcio potencialdependente (verapamil ou nifedipina), não se constataram ++ alterações nas trocas de Ca na membrana microvilositária de placentas humanas de termo, indicando envolvimento dos canais de cálcio voltagem-dependente. O segundo passo seria o transporte através do citotrofoblasto, sem flutuações do cálcio intracelular. Isso se deve, em parte, à compartimentalização do cálcio em algumas organelas, como no retículo endoplasmático, mitocôndria, lisossomo e núcleo, além ++ das proteínas que se ligam ao Ca . A proteína Calbindin-D9k, que na placenta aumenta no último trimestre de gestação tanto em quantidade como em expressão do seu RNAm, liga-se ao cálcio, servindo como tampão intracelular e como facilitador de sua difusão através do citosol. O último passo do transporte de cálcio através da placenta seria a troca por intermédio da membrana basal e, conseqüentemente, do endotélio capilar, chegando ao plasma fetal. Nesse momento, ocorreria o mecanismo de transporte ativo, como também por difusão facilitada e trocas Na+/Ca++. O transporte de cálcio através da membrana basal é estimulado por proteína relacionada ao hormônio paratireoidiano e o paratormônio. A Anexin, proteína pouco conhecida que se liga ao Ca++, parece ter importante papel sobre a homeostase dos canais e o controle do fluxo de cálcio (Kovacs et al., 2005). Magnésio A passagem do magnésio pela placenta também ocorre por transporte ativo. O fluxo do magnésio é unidirecional, da mãe para FEMINA | Novembro 2007 | vol 35 | nº 11 739 Trocas materno-fetais dos eletrólitos o feto, e diminui diante de cianeto, amilorida ou baixa temperatura de perfusão. O estudo de Shaw et al. (1991) sugeriu a existência do transporte mediado por carreadores sódio-dependente com diminuição do processo após a queda do sódio. nimização da gravidade da anemia fetal (Andersen & McArdle, 2004). Metais pesados Fósforo O transporte do fosfato inorgânico acontece contra um gradiente de concentração, porém ainda não se têm evidências de qual tipo de mecanismo materno-fetal de troca. Estudos em animais relatam o transporte ativo, unidirecional e sódiodependente, estando diminuído na presença de hipóxia e cia+neto (Stulc & Stulcova, 1984). O co-transporte de Na fosfato é mencionado devido à constatação do fosfato nas membranas microvilositárias da placenta humana e à resposta positiva com o aumento do sódio. Ferro O mecanismo de transporte do ferro é pouco conhecido. Sabe-se que o receptor da transferrina é responsável pela passagem do ferro do plasma materno ao sinciotrofoblasto, entretanto, as proteínas responsáveis pelo transporte intracelular são pouco conhecidas. A transferrina diférrica chega ao sinciotrofoblasto via receptor, com subseqüente incorporação do complexo transferrina-receptor via endossomo (Andersen & McArdle, 2004). A deficiência materna de ferro durante a gestação causa anemia na mãe e no feto, em menor gravidade. Em ratas gestantes com dieta pobre em ferro, a anemia materna pode regular a expressão das proteínas placentárias responsáveis pelo transporte do ferro, resultando em aumento do fluxo desse íon e conseqüente mi- O tecido placentário pode ser conhecido como um biomarcador para assegurar a saúde materna e fetal. Iyengar & Rapp (2001) identificaram níveis de concentração tóxica na placenta para o Cádmio de 1-6 ng/g, o Mercúrio total de 2-13 ng/g e o Metil-Mercúrio de 1-14 ng/g de placenta. Além de caracterizar a placenta como barreira parcial ao Cádmio, há uma variedade de mecanismos para seu transporte. O Cádmio interfere no transporte do Cálcio e Zinco, sendo o Mercúrio orgânico absorvido pela placenta. Considerações finais Uma das principais funções da placenta é o transporte de vários eletrólitos e substâncias. Os mecanismos de trocas materno-fetais são bastante descritos na literatura. No entanto, as interpretações desses resultados são controversas, principalmente devido ao fato de que um mesmo eletrólito lança mão de mecanismos diferentes de transporte, o que dificulta o seu entendimento. Além, disto existe um terceiro compartimento (o líquido amniótico), que de alguma forma poderá influenciar nesse transporte de substâncias e eletrólitos. Eletrólitos e substâncias estão envolvidos na fisiopatologia de várias doenças ocorridas durante a gestação. Desta forma, o conhecimento da passagem transplacentária dessas substâncias poderá ajudar a compreender alguns desses mecanismos fisiopatológicos, como pré-eclâmpsia, restrição de crescimento intra-útero e diabetes gestacional. Leituras suplementares 1. 740 Arturi F et al. Regulation by human chorionic gonadotropin of sodium/ iodide symporter gene expression in the Jar human choriocarcinoma cell line. Endrocrinology. 2002; 143: 2216-20. 4. Clarson LH et al. Inwardly rectifying K(+) current and differentiation 2. Andersen HS, McArdle HJ. How are genes measured? Examples from studies on iron metabolism in pregnancy. Proc Nutr Soc. 2004; 63:481-90. 5. 3. Beauséjour A et al. High-sodium intake prevents pregnancy-induced decrease of blood pressure in the rat. Am J Physiol Heart Circ Physiol. 2003; 285:H375-83. 6. Fuchs R, Ellinger I. Endocytic and transcytotic processes in villous FEMINA | Novembro 2007 | vol 35 | nº 11 of human placental cytotrophoblast cells in culture. Placenta. 2001; 22:328-36. Davis JP et al. The three mechanisms of intracellular choride accumulation in vascular smooth muscle of human umbilical and placental arteries. Pfluger Arch. 2000; 441:150-4. syncytiotrophoblast: role in nutrient transport to the human fetus. Traffic. 2004; 5:725-38. Trocas materno-fetais dos eletrólitos 7. Hughes JL et al. Activity and expression of the Na(+)/H(+) exchanger in the microvillous plasma membrane of the syncytiotrophoblast in relation to gestation and small for gestational age birth. Pediatr Res. 2000; 48:652-9. 8. 9. Illsley NP, Sellers MC. Ion conductances in the microvillous and basal membrane vesicles isolated from human placental syncytiotrophoblast. Placenta. 1992; 13:25-34. 12. Loughhead AM et al. Placental passage of tricyclic antidepressants. Biol Psychiatry. 2006; 59:287-90. 13. McDonald FJ et al. Cloning and expression of the and -subunits of the human epithelial sodium channel. Am J Physiol. 1995; 268:C1157-63. 14. Mitchell AM et al. Sodium iodide symporter (NIS) gene expression in human placenta. Placenta. 2001; 22:256-8. Iyengar GV, Rapp A. Human placenta as a ‘dual’ biomarker for monitoring fetal and maternal environment with special reference to potentially toxic trace elements. Part 3: toxic trace elements in placenta and placenta as a biomarker for these elements. Sci Total Environ. 2001; 280:221-38. 15. Nash P et al. Placental dysfunction in Suramin - treated rats - a new 10. Johansson M et al. Na(+)-K(+)-ATPase is distributed to microvillous 17. Stulc J, Stulcová B. Transport of inorganic phosphate by the fetal model for pre-eclampsia. Placenta. 2005; 26:410-8. 16. Shaw AJ et al. Sodium-dependent magnesium transport across in situ perfused rat placenta. Am J Physiol. 1991; 261:R369-72 and basal membrane of the syncytiotrophoblast in human placenta. Am J Physio Regul Integr Comp Physiol. 2000; 279:R287-94. border of the guinea-pig placenta perfused in situ. Placenta. 1984; 5:9-20. 11. Kovacs CS et al. The vitamin D receptor is not required for fetal mineral 18. Zhao H, Hundal HS. Identification and biochemical localization of a homeostasis or for the regulation of placental calcium transfer in mice. Am J Physiol Endocrinol Metab. 2005; 289:E133-44. Na-K-Cl cotransporter in the human placental cell line BeWo. Biochem Biophys Res Commum. 2000; 274:43-8. Atualize seu cadastro no portal da Febrasgo www.febrasgo.org.br 512 FEMINA | Agosto 2007 | vol 35 | nº 8 Femina 8.indb 512 14/9/2007 12:47:07 FEMINA | Novembro 2007 | vol 35 | nº 11 Femina 9.indb 602 8/10/2007 14:07:09 741