Do discurso ao projecto urbano de reinvenção da ruralidade Ana Côrte-Real de Matos Fernandes ADVERTIMENT. La consulta d’aquesta tesi queda condicionada a l’acceptació de les següents condicions d'ús: La difusió d’aquesta tesi per mitjà del servei TDX (www.tdx.cat) ha estat autoritzada pels titulars dels drets de propietat intel·lectual únicament per a usos privats emmarcats en activitats d’investigació i docència. No s’autoritza la seva reproducció amb finalitats de lucre ni la seva difusió i posada a disposició des d’un lloc aliè al servei TDX. No s’autoritza la presentació del seu contingut en una finestra o marc aliè a TDX (framing). Aquesta reserva de drets afecta tant al resum de presentació de la tesi com als seus continguts. En la utilització o cita de parts de la tesi és obligat indicar el nom de la persona autora. ADVERTENCIA. 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Universidade de Barcelona Faculdade de Geografia e Historia Departamento de Geografia Programa Doutoral: Geografia, Planeamento do Território e Gestão Ambiental Tese de Doutoramento Do discurso ao projecto urbano de reinvenção da ruralidade Ana Côrte-Real de Matos Fernandes Janeiro de 2011 Orientação: Professora Doutora Nuria Benach Rovira (Universidade de Barcelona). Professor Doutor Paulo Peixoto (Universidade de Coimbra). Trabalho de investigação totalmente financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pelo Programa Operacional Potencial Humano da União Europeia POPH/FSE Índice Agradecimentos................................................................................................................... 9 Resumo .............................................................................................................................. 11 Abstract .............................................................................................................................. 13 Resumen ............................................................................................................................ 15 Resum ................................................................................................................................ 17 I. Introdução .......................................................................................................................... 19 II. O discurso de reinvenção da ruralidade .......................................................................... 31 1. Os principais questionamentos e objectivos de investigação. (o que se quer saber) .............................................................................................................................. 33 2. Premissas e caminhos teóricos e metodológicos para a pesquisa. (como quero saber) .............................................................................................................................. 39 III. O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto ........................ 43 1. A Estratégia. O discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural ........................... 48 2. A Matéria-Prima. O Ideal Rural ou o discurso cultural de romantização da ruralidade ........................................................................................................................ 60 3. O Rural enquanto produto e os produtos rurais. O discurso promocional e comercial em torno do rural consumível. ......................................................................... 69 4. Ponto de Situação (Estratégia → Matéria-Prima → Produtos) ........................................ 81 5 Índice IV. Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural ................................... 83 1. O Património e os valores culturais - identidade, tradição, memória. (Preservar o Passado) ......................................................................................................................... 87 2. A Sustentabilidade e os valores ambientais - natureza e ecologia. (Garantir o Futuro) ............................................................................................................................ 98 3. Ponto de Situação (Eixos → Valores → Missões) ......................................................... 106 V. A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses ......................................................................................................................... 111 1. Uma estratégia urbana de reinvenção da ruralidade? A analogia com as estratégias de requalificação dos centros históricos das cidades .................................. 113 2. Um campo para a cidade – a valorização e reinvenção da ruralidade à luz das necessidades e expectativas urbanas ........................................................................... 123 3. O rural como um problema em que se quer pensar – os interesses culturais, económicos e políticos que sustentam este projecto de ruralidade ............................... 132 VI. As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada ..................................................................................... 139 1. Notas Metodológicas ..................................................................................................... 145 2. Dois Projectos de recriação da ruralidade idílica? ......................................................... 150 2.1 A Quinta do Mata-Sete............................................................................ 150 2.2 O Núcleo Rural de Aldoar (NRA) ............................................................ 166 3. Reflexões e cruzamentos finais ..................................................................................... 186 6 Índice VII. Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada ................................ 199 1. Os contornos desta ruralidade reinventada. (o que se espera das áreas rurais) ........... 201 2. As possíveis consequências deste projecto de ruralidade. (o que podem as áreas rurais esperar neste contexto) ....................................................................................... 207 3. Considerações finais e propostas para futuras pesquisas. ............................................ 213 Bibliografia ....................................................................................................................... 217 Anexos Anexo 1 – Mata-Sete ........................................................................................................ 243 1.1 Mapas .......................................................................................................................... 243 1.2 Tabelas ........................................................................................................................ 247 1.3 Fotos............................................................................................................................ 257 Anexo 2 – NRA ................................................................................................................. 269 2.1 Mapas .......................................................................................................................... 269 2.2 Tabelas ........................................................................................................................ 273 2.3 Fotos............................................................................................................................ 283 7 Índice 8 Agradecimentos O trabalho de escrita de uma tese de Doutoramento, apesar de se traduzir num processo muito solitário que, pela exigência de dedicação exclusiva, tantas vezes nos leva a um isolamento quase conventual, faz-nos dever sempre muito a contribuições, apoios e motivações externas. Neste sentido, é importante agradecer às pessoas ou entidades que, pelo incentivo ou suporte dado, facilitaram o seu desenvolvimento e, sem as quais, tudo teria sido, certamente, mais difícil. Em primeiro lugar agradeço aos meus pais por tudo, por me terem convencido a concorrer a uma bolsa de doutoramento e, especialmente, pelo apoio incondicional, mesmo nas horas mais desesperadas. Deixo também um forte agradecimento à Fundação para a Ciência e Tecnologia, que através do fundo POPH, patrocinou generosamente os meus estudos doutorais e a elaboração deste trabalho. Agradeço à Professora Doutora Nuria Benach Rovira e ao Professor Doutor Paulo Peixoto, por terem aceitado o trabalho de orientação desta pesquisa e por terem cumprido essa tarefa com toda a disponibilidade, simpatia e exigência crítica. Obrigada pela paciência, por partilharem comigo estas páginas, mas sobretudo por terem sido os meus únicos “cúmplices” neste longo caminho. Não posso deixar também de prestar a minha gratidão a todos os autores cujas obras foram consultadas e a todas as pessoas que possibilitaram o trabalho de campo, que serve de base ao sexto capítulo desta dissertação. Pelos motivos óbvios, sem a disponibilidade de todos os entrevistados, sem os contributos de todos os que forneceram material documental sobre os objectos ou que prestaram esclarecimentos, visitas guiadas, informações, etc., esta pesquisa estaria certamente mais pobre. Agradeço em especial à Doutora Teresa Andresen, não só pelas ajudas no trabalho de campo, mas principalmente pela sugestão valiosa em incluir o caso do Mata-Sete na abordagem; bem como ao Arq. João Rapagão que se mostrou sempre muito generoso, partilhando um grande número de fotografias e muito material documental do seu arquivo pessoal. Importante é também agradecer a Joana Martins, pela preciosa ajuda com os mapas, a Teresa Fernandes, pelo auxílio com as transcrições de entrevistas, bem 9 Agradecimentos como a Tiago Romeu e a Alexandra Côrte-Real pelo trabalho de tradução do resumo desta dissertação. Quero também louvar as sugestões e críticas de todas as pessoas que debateram comigo este trabalho, nas conferências, seminários e congressos em que participei nos últimos anos e, especialmente, na Summer School da Associação Europeia de Sociologia Rural (realizada em Córdoba em Outubro de 2010), pelo facto de terem sido essenciais para a sua evolução e questionamento crítico. Agradeço calorosamente a todos os professores do Master em Planeamento Territorial e Gestão Ambiental, da Faculdade de Geografia e História da Universidade de Barcelona, que frequentei no âmbito da parte lectiva do programa doutoral. Uma palavra especial vai para a Professora Doutora Rosa Tello, pelas suas importantes sugestões durante o processo de formação da problemática que serviu de mote a este trabalho, bem como para a Professora Doutora Dolores Sanchez Aguilera, pelo apoio e pela simpatia com que me recebeu em Barcelona. Não posso deixar de agradecer à minha grande amiga Berezi Elorrieta, que tantas vezes me ajudou com papelada, secretaria e matriculas, bem como aos restantes companheiros de Master: Rafa, Gartzen, Riccardo, Veronica, Pilar, Ana, Carlos, Alexis, Joan, Paula… Obrigada pelos jantares, pelas viagens, pelos trabalhos de grupo, pela companhia e por terem sido a minha “primeira” Turma! (muxu bat/petons/besitos)! Finalmente, agradeço à Professora Isabel Duarte (obrigada por me ter ensinado porque é que “isto das cidades” é importante), a Ana Pires e Pedro Areias (obrigada pelo apoio em Barcelona), Alexandre Pólvora e Susana Nascimento (obrigada pelos conselhos importantes), a Jorge Vieira, Joana Botelho, Sandra Costa, Pedro Quintela e Mariana Bessa (obrigada por termos sido uma família), a Marta Bateira e todos os amigos do Rap (obrigada pelos essenciais momentos de evasão) e a Pedro Geraldes (obrigada pela força, pela companhia e, sobretudo, pela paciência!). 10 Resumo A presente tese tem como núcleo temático o discurso de reinvenção da ruralidade. Partindo da premissa de que vem sendo disseminada e institucionalizada, em diversas esferas da vida social, uma valorização discursiva da ruralidade e do seu potencial de reinvenção (perante uma suposta crise demográfica e funcional generalizada e igualmente forte nos discursos políticos, mediáticos e sociais), pretendemos ir ao encontro do projecto de ruralidade que se precipita neste contexto. Da assunção da crise do mundo rural parece brotar um discurso optimista por relação às suas perspectivas de reinvenção, do qual deriva a proposta de uma determinada versão de ruralidade. Ora, importa discutir este projecto e o seu programa funcional para as áreas rurais, pelo seu poder e influência, já que é a partir dos discursos e do seu trabalho de definição de significados para os lugares, que se define o modo como vemos, valorizamos, gerimos e projectamos os territórios. Discutimos o discurso em três dimensões fundamentais, ou seja, no seu registo político e técnico (mais precisamente no âmbito das políticas de desenvolvimento rural), na sua raiz cultural (a bateria de representações bucólicas que compõe o chamado Ideal Rural) e, finalmente, no seu registo comercial (naquilo que é a promoção dos produtos rurais e do rural enquanto produto). Posto isto, verificamos que a estratégia política de desenvolvimento para as áreas rurais, fortemente baseada no seu potencial natural e patrimonial, se alimenta do ideal rural, para fazer vender um conjunto de produtos, num processo de transformação destes territórios em espaços de consumo e não mais de produção. Esta perspectiva de desenvolvimento baseia-se na valorização dos patrimónios naturais e culturais e sai legitimada pelo binómio axiológico que sustenta o discurso de reinvenção da ruralidade. De facto, património e sustentabilidade ambiental gozam, nas sociedades ocidentais, de uma sacralidade e de uma centralidade discursiva, que facilita a legitimação da ruralidade idílica, no sentido em que esta é apresentada como uma reserva dos valores culturais e ambientais que estão em risco nas cidades e na civilização. Desta feita, os argumentos e os valores por detrás do discurso, ao mesmo tempo que reforçam o seu poder e a sua 11 Resumo aceitação social, precipitam as grandes missões do mundo rural – preservar o passado e garantir o futuro. Por fazer sentido enquanto alteridade a um modelo de cidade próspera, dominante, mas muito demonizada discursivamente, por responder às expectativas de recreação e consumo urbanas e às suas representações idílicas de ruralidade, por favorecer o alargamento dos negócios e mercados urbanos e a reintegração dos recursos rurais nas lógicas de rentabilização do capitalismo, por resultar em estratégias de requalificação territorial muito próximas das aplicadas aos centros históricos das cidades, entre outras razões, somos levados a pensar neste discurso/projecto pela sua origem urbana. Assim sendo, para além de analisar o conjunto de interesses culturais, económicos e políticos que sustentam este discurso, sempre à luz das relações territoriais e tendo em conta a forte dominação urbana, importava ir ao corpo da cidade para palpar as materializações deste discurso. Escolhemos estudar espaços de recriação da ruralidade idílica, para perceber os contornos do projecto que se impõe aos territórios rurais, ou seja, conhecer as paisagens desejadas (e, portanto, as expectativas que pairam sobre as paisagens reais), a partir da sua materialização cenográfica em lugares temáticos, para usufruto urbano. Assim, através de uma incursão etnográfica, conhecemos a quinta do Mata-Sete e o Núcleo Rural de Aldoar, que constituem pequenos nichos de ruralidade recriada, nos dois maiores parques urbanos da cidade do Porto, “capital” do Norte de Portugal. Encontrámos uma ruralidade educativa, patrimonial, depurada e cómoda, adaptada às exigências de conforto urbano e derivada do ideal rural. 12 Abstract This thesis’ core theme is the rurality reinvention discourse. The starting point is the assumption that the valuation of rurality and its reinvention potential is being discursively disseminated (facing a supposedly generalized demographic and functional crisis in rural territories, very centralized in political and social discourses as well as in the media). This valuation of rurality is being institutionalized in several layers of society. Our intention is to meet the rurality project emerging from this context. From the assumption of crisis in the rural world seems to grow an optimist discourse related to its reinvention perspectives, from which the proposal of a specific version of rurality comes out. So, considering its power and influence, it becomes important to discuss this project and its functional programme for rural areas. It is actually from discourse, and its job to define meanings for the places, that we are able to define the way we see, value, manage and project territories. We handled the discourse in three fundamental dimensions, that is, its political and technical feature (more precisely in the scope of rural development policies), its cultural root (the range of bucolic representations which build the so-called Countryside Ideal) and finally, its commercial feature (the promotion of rural products and of the rural as a product). That being said, we have noticed that the political development strategy for rural areas, strongly based on their natural and patrimonial potential, supports itself with the rural idyll, in order to sell a series of products, in a process of transformation of these territories in consumption areas, and not of production anymore. This development perspective is based on the valuing of natural and cultural patrimony and is legitimated by the axiological binomial which sustains the discourse of rurality reinvention. In fact, patrimony and environmental sustainability enjoy, in western societies, a holiness and a discursive centrality that facilitates the validation of the idyllic rurality, in the sense that it is presented as a reserve for cultural and environmental values at risk in cities and civilization. So, the arguments and the values behind the discourse reinforce its power and social acceptance at the same 13 Abstract time they hasten the big missions of the rural world – preserve the past and grant the future. Because it makes sense as an alternative to a model of prosperous city, dominant, but very discursively demonized; because it responds to urban recreation and consumption expectations and their idyllic representations of rurality; because it encourages business and urban market growth; because it results from territorial requalification strategies very close to the ones used in historical city centres, among other reasons, it makes sense to think of this discourse/project as having an urban origin. That being so, besides analysing the group of cultural, economical and political interests that sustain this discourse, always in the light of the territorial relationships and their remission to urban dominance, it was important to go deep into to the city (as an empirical object) in order to grasp the discourse’s materializations. We have chosen to study spaces of idyllic rurality thematization in order to understand the outlines of the reinvention project imposed to rural territories. That is, getting to know the desired landscapes (and thus the expectations floating over the real landscapes), from their scenographic materialization, in thematic places for urban fruition. Thus, through an ethnographic incursion, we have gone to the Quinta do Mata-Sete and to the Núcleo Rural de Aldoar, which are small niches of recreated rurality in two of the biggest urban parks in the city of Porto, “capital” of Northern Portugal. We have found an educational, patrimonial, purified and comfortable rurality, adapted to the urban comfort demands and arisen from the rural idyll. 14 Resumen Esta tesis tiene como núcleo temático el discurso de reinvención de la ruralidad. Partiendo de la premisa de que, en diversas esferas de la vida social, se viene diseminando una valoración discursiva de la ruralidad y de su potencial de reinvención (delante de una supuesta crisis demográfica y funcional generalizada e igualmente fuerte en los discursos políticos, mediáticos y sociales), queremos ir al encuentro del proyecto de ruralidad que se nos depara en este contexto. De la asunción de la crisis del mundo rural, parece brotar un discurso optimista relacionado con sus perspectivas de reinvención, del cual deriva la propuesta de una determinada visión de la ruralidad. Aquí nos interesa debatir este proyecto y su programa funcional para las áreas rurales, por su poder e influencia, ya que es a partir de su discurso y de su trabajo de definición de significados para los lugares que se define el modo como vemos, valoramos, gestionamos y proyectamos los territorios. Discutimos el discurso en tres dimensiones fundamentales, es decir, en su registro político y técnico (precisamente en el ámbito de las políticas de desarrollo rural), en su raíz cultural (el conjunto de representaciones bucólicas que componen el llamado Ideal Rural) y, finalmente, en su registro comercial (en lo que es la promoción de los productos rurales y del rural en cuanto producto). Dicho esto, verificamos que la estrategia política de desarrollo para las áreas rurales, fuertemente basada en su potencial natural y patrimonial, se nutre del ideal rural para hacer vender un conjunto de productos, en un proceso de transformación de estos territorios en espacios de consumo y no más de producción. Esta perspectiva de desarrollo se basa en la valoración de los patrimonios naturales y culturales y sale legitimada por el binomio axiológico que sostiene el discurso de reinvención de la ruralidad. De hecho, patrimonio y sostenibilidad ambiental ganan, en las sociedades occidentales, una sacralidad y una centralidad discursiva que facilita la legitimación de la ruralidad idílica, en el sentido en el que esta se presenta como una reserva de valores culturales y ambientales que están en riesgo en las ciudades y en la civilización. Los argumentos y valores por detrás del 15 Resumen discurso, en cuanto refuerzan su poder y su aceptación social, precipitan las grandes misiones del mundo rural - preservar el pasado y garantizar el futuro. Por tener sentido en cuanto alteridad a un modelo de ciudad próspera, dominante, aunque muy demonizada discursivamente; por responder a las expectativas de recreación y consumo urbanas y a sus representaciones idílicas de ruralidad; por favorecer la expansión de los negocios y mercados urbanos y la reintegración de los recursos rurales en las lógicas de rentabilización del capitalismo; por resultar en estrategias de recalificación territorial muy próximas de las aplicadas a los centros históricos de las ciudades; entre otras razones, somos llevados a plantear este discurso/proyecto por su urbanidad. Así, más allá de analizar el conjunto de intereses culturales, económicos y políticos que sostienen este discurso, siempre a la luz de las relaciones territoriales y teniendo en cuenta la dominación urbana, nos importaba ir al cuerpo de la ciudad para palpar las materializaciones de este discurso. Elegimos estudiar espacios de recreación de la ruralidad idílica para entender los contornos del proyecto que se impone a los territorios rurales, o sea, conocer los paisajes deseados (y por lo tanto las expectativas que flotan sobre los paisajes reales), a partir de su materialización escenográfica, en lugares temáticos para usufructo urbano. Así, a través de una incursión etnográfica, conocemos la granja del Mata-Sete y el Núcleo Rural de Aldoar, que constituyen pequeños nichos de ruralidad recreada, en los dos más grandes parques urbanos de la ciudad de Oporto, “capital” del Norte de Portugal. Encontramos una ruralidad educativa, patrimonial, depurada y cómoda, adaptada a las exigencias de conforto urbano y derivada del ideal rural. 16 Resum La present tesi te com a nucli temàtic el discurs de reinvenció de la ruralitat. Partint de la premissa de que s’està disseminant i institucionalitzant, en diverses esferes de la vida social, una valoració discursiva de la ruralitat i del seu potencial de reinvenció (davant d’una suposada crisi demogràfica i funcional generalitzada i igualment forta en els discursos polítics, mediàtics i socials), volem arribar al projecte de ruralitat que es precipita en aquest context. De l’assumpció de la crisi del mon rural sembla brotar un discurs optimista en relació a les seves perspectives de reinvenció, del qual deriva la proposta d’una determinada visió de ruralitat. Ara, ens importa discutir aquest projecte i el seu programa funcional per a les àrees rurals, pel seu poder i influència, ja que és a partir dels discursos i del seu treball de definició de significats per els llocs que es defineix la forma mitjançant la qual veiem, valorem, gestionem i projectem els territoris. Discutim el discurs en tres dimensions fonamentals, és a dir, en el seu registre polític i tècnic (més precisament en l’àmbit de les polítiques de desenvolupament rural), en la seva arrel cultural (el conjunt de representacions bucòliques que composen l’anomenat Ideal Rural) i, finalment, en el seu registre comercial (en allò que consisteix en la promoció dels productes rurals i del rural com a producte). Arribats aquí, verifiquem que l’estratègia política de desenvolupament per a les àrees rurals, fortament basada en el seu potencial natural i patrimonial, es nodreix de l’ideal rural, per fer vendre un conjunt de productes, en un procés de transformació d’aquests territoris en espais de consum i no més de producció. Aquesta perspectiva de desenvolupament es basa en la valoració dels patrimonis naturals i culturals i surt legitimada pel binomi axiològic que sosté el discurs de reinvenció de la ruralitat. De fet, patrimoni i sostenibilitat ambiental gaudeixen, en les societats occidentals, d’una sacralitat i d’una centralitat discursiva que facilita la legitimació de la ruralitat idíl·lica, en el sentit en que aquesta és presentada com una reserva dels valors culturals i ambiental que estan en risc en les ciutats i en la civilització. En aquest cas, els arguments i els valors darrera el discurs, mentre reforcen el seu poder i la seva acceptació social, precipiten les gran missions del mon rural – preservar el passat i assegurar el futur. 17 Resum Per tenir sentit com a alteritat a un model de ciutat pròspera, dominant però demonitzada discursivament, per respondre a les expectatives de recreació i consum urbanes i a les seves representacions idíl·liques de ruralitat, per afavorir l’allargament dels negocis i mercats urbans i la reintegració dels recursos rurals en les lògiques de rendibilització del capitalisme, per resultar en estratègies de requalificació territorial molt properes de les aplicades als centres històrics de les ciutats, entre altres raons, som portats a pensar en aquest discurs/projecte per la seva origen urbana. Així, més enllà d’analitzar el conjunt d’interessos culturals, econòmics i polítics que sostenen aquest discurs, sempre sota la llum de les relacions territorials i tenint en compte la forta dominació urbana, ens importava anar al cos de la ciutat per palpar les materialitzacions d’aquest discurs. Hem triat estudiar espais de recreació de ruralitat idíl·lica, per entendre els contorns del projecte que s’imposa als territoris rurals, o sigui, conèixer els paisatges desitjats (i, conseqüentment, les expectatives que pairen sobre els paisatges reals), partint de la seva materialització escenogràfica en llocs temàtics, per gaudi urbà. Així, mitjançant una incursió etnogràfica, coneixem la granja del Mata-Sete i el Nucli Rural d’Aldoar, que constitueixen petits nínxols de ruralitat recreada, en els dos més grans parcs urbans de la ciutat d’O Porto, “capital” del Nord de Portugal. Hem trobat una ruralitat educativa, patrimonial, depurada i còmoda, adaptada a les exigències del confort urbà i derivada de l’ideal rural. 18 I. Introdução Mas que paz se desdobra a toda a anchura do horizonte a que o olhar se faz? Esta página em branco (ou sem leitura) não terá uma chave por detrás? Eu sei ler a cidade, mas, aqui sou um dedo parado em letra morta. Uma guerra haverá, com o álibi da paisagem que a outras me transporta. 1972, Alexandre O´Neill 1 Começamos por esclarecer que o argumento central a destacar da tese que apresentamos é o de que o discurso de reinvenção da ruralidade parece ter, pelo menos, tanto a ver com a crise do mundo rural, como com as necessidades do mundo urbano. Assim sendo, sublinha-se que neste processo de reinvenção satisfazem-se mais os interesses e as expectativas de consumo urbanos, do que se encontram soluções para os problemas das áreas rurais. Por este motivo, tomamos o discurso/projecto de reinvenção da ruralidade, no quadro de dramatização da crise rural, pela sua urbanidade e ilustramos a pesquisa com o estudo de dois objectos empíricos que remetem para o corpo da cidade. O presente trabalho constitui um percurso reflexivo, progressivo e crítico, que tem como ponto de partida a centralidade dos discursos de valorização da ruralidade e do seu potencial de reinvenção, perante uma suposta crise funcional e demográfica generalizada. Pela força que vem assumindo na actualidade, em diversas esferas da vida social, esta perspectiva optimista e estimuladora do valor estratégico e simbólico da ruralidade, deve ser tomada como objecto de interesse, questionamento e desconstrução. Sobretudo se tivermos em conta os problemas sociais, funcionais, demográficos e económicos associados ao mundo rural, 1 Excerto do poema “Pelo Alto Alentejo /2”, retirado de O’Neill, Alexandre (2005), Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim. Introdução principalmente nos países do Sul da Europa, e o protagonismo que as cidades e os recursos urbanos auferem, no seio da Globalização. Importa perceber esta valorização discursiva e identificar a sua versão de ruralidade, apresentada como a salvação do mundo rural, considerada essencial para um mundo eminentemente urbano e condicionadora dos territórios, enquanto arquétipo orientador do desenvolvimento. É essa a proposta deste trabalho de investigação, que partirá do discurso, enquanto estrutura ideológica, suportada por determinados valores e interesses e promotora de um determinado projecto de território, para tentar perceber o que se espera e o que podem esperar as áreas rurais neste contexto. Por outras palavras, pretendemos perceber e antecipar as expectativas que configuram e precipitam os territórios, através do poder e da influência dos discursos políticos, sociais, culturais e comerciais, que alimentam o projecto dominante de ruralidade. Neste sentido, assume-se a existência do discurso e de um projecto de ruralidade derivado e inerente, como uma premissa que serve de base para todo o caminho reflexivo. É precisamente sobre os contornos do núcleo temático deste trabalho que se desenvolve o Capítulo II, já que, para além de explicar a origem do questionamento que serve de mote à reflexão, as suas premissas e objectivos fundamentais, enuncia os principais tópicos de discussão que estimulam e orientam a sua progressão. Para concretizar a desconstrução do discurso (já no Capítulo III), começamos por definir teoricamente a sua identidade conceptual e aquilo que constitui e contém enquanto noção genérica, para depois debater cuidadosamente as suas principais dimensões, no que diz respeito, especificamente, à ruralidade. Ou seja, passamos à análise dos seus diferentes registos e vozes (que afinal funcionam como camadas em sobreposição), mais concretamente pela discussão da sua dimensão estratégica (no que se constitui como o discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural), cultural (a bateria de representações positivas em redor da ruralidade, enraizada nos nossos imaginários colectivos, através da arte, da literatura, etc.) e comercial (associada aos esforços de promoção dos produtos e territórios rurais). Desta feita, este capítulo é dedicado à reflexão em torno das orientações estratégicas das políticas de desenvolvimento rural e sua filosofia de intervenção, do chamado Ideal Rural e do seu poder de influência nos olhares e nas expectativas que se impõe aos territórios, bem como dos produtos rurais que são promovidos 20 Capítulo I neste contexto. Sintetizando, discute-se uma estratégia de desenvolvimento, a sua “matéria-prima” cultural e os produtos que pretende rentabilizar, naquilo que se vislumbra como o processo de reinvenção da ruralidade, de espaço de produção (ou em crise funcional) a espaço de consumo. Destaca-se o pendor patrimonialista do discurso e a importância da associação de ruralidade a cultura e a natureza, quase como uma elevação do mundo rural a reserva do que está em risco nas cidades e no nosso tempo histórico. Prosseguindo com esta desmontagem do discurso, no Capítulo IV remetemos o debate para os valores que legitimam a valorização da ruralidade, dando-lhe sentido e historicidade. De facto, pensada no quadro das grandes inquietações e necessidades da civilização, esta ruralidade conservacionista que funciona como um santuário ou um refúgio, é legitimada por dois valores/chavões essenciais na estrutura axiológica das sociedades ocidentais – património histórico e sustentabilidade ambiental. Pelo consenso e sacralidade que aufere, no quadro da globalização e num momento em que tanto cepticismo se concentra, em torno da viabilidade futura do nosso modelo de desenvolvimento, este binómio é quase inquestionável e legitima, por associação, o aparente consenso que paira sobre a importância do mundo rural, enquanto repositório das identidades culturais e das relações harmoniosas entre o Homem e a Natureza. Nesta lógica, importa reforçar que, com esta legitimação, são precipitadas as grandes missões para as áreas rurais: preservar o passado e garantir o futuro. No Capítulo V, há lugar para justificar a afirmação da urbanidade deste discurso, no sentido em que se explica a origem da valorização do rural, da sua estratégia de reinvenção (em analogia com as manobras de requalificação dos centros históricos das cidades), dos consumidores dos seus produtos e até do aproveitamento que é feito do potencial de rentabilização do (reforçado) valor simbólico associado à ruralidade. Por outras palavras, reitera-se a ideia de que estamos perante um discurso urbano de reinvenção da ruralidade, da estratégia ao consumo, das representações às expectativas, dos valores aos interesses, mas principalmente porque esta existe como contraponto à cidade, como sua alteridade essencial e como sua referência estável, num contexto de grandes e rápidas transformações. 21 Introdução Propõe-se, portanto, um ensaio de integração do discurso no quadro das relações territoriais e um exercício de concretização da sua desconstrução, já que importa identificar a sua origem, justificar o seu poder e resistência e discutir os interesses culturais, económicos e políticos que o motivam e sustentam. Nesta lógica, estando assumido que estamos perante um discurso urbano de valorização do rural, decidimos procurar na anatomia da cidade, espaços que servem a alimentação do projecto de ruralidade reinventada, por via da recriação e materialização do bucolismo veiculado. Ora, no Capítulo VI, haverá espaço para expor as reflexões que resultam de uma abordagem etnográfica a dois espaços de suposta encenação de ambientes campestres, na cidade do Porto (no Norte de Portugal). Desenvolvemos uma incursão empírica à quinta do Mata-Sete, que faz parte do Parque da Fundação se Serralves, bem como ao Núcleo Rural de Aldoar, dentro do Parque da Cidade do Porto, no sentido de perceber as motivações por detrás ambos os projectos paisagísticos, os seus contornos cenográficos, a sua arquitectura, a cultura material característica, a iconografia associada, etc., com o intuito de os questionar enquanto exemplos de recriação da ruralidade idílica, veiculada no discurso dominante, e identificar as suas funções sociais, usos e principais actividades. Conhecendo e analisando a história e configuração paisagística dos dois lugares, ensaia-se a sua desconstrução enquanto materializações do projecto urbano de ruralidade dominante, enquanto exemplos de hiper-ruralidade, espaços de tematização ou de concretização do sonho bucólico. Constituindo lugares criados com uma certa liberdade criativa ou com uma selectividade consciente, e acumulando o carácter de paisagens imaginadas com a condição de espaços reais e quotidianos, podem traduzir-se em materializações do sonho rural e permitir, assim, o reforço da discussão em torno dos contornos do projecto de ruralidade, que se dissemina discursivamente como arquétipo. Acrescentando, e após todo este caminho reflexivo, pretendemos sistematizar as conclusões pontuais de cada capítulo, fazendo desembocar a discussão em torno do discurso, na enunciação dos traços que definem o seu projecto de ruralidade. Desta feita, no Capítulo VII, além de ensaiarmos uma concretização das principais características da ruralidade discursiva proposta para os territórios reais, pretendemos conjecturar algumas das possíveis consequências que podem derivar 22 Capítulo I da sua aplicação. Resumindo, dissertaremos em torno do que é esperado dos territórios rurais e do que podem estes esperar neste contexto. Haverá ainda oportunidade para reforçar a pertinência da abordagem e para apresentar algumas propostas de investigação complementar. Posto isto, pode ser dito que começaremos por assumir a existência, a relevância e a centralidade do discurso de reinvenção da ruralidade e por desconstruí-lo nos seus diferentes registos e dimensões essenciais (estratégia, matéria-prima e produtos). Analisaremos também os dois grandes axiomas que servem de argumentos para a sua legitimação (cultura e natureza, através do binómio património/sustentabilidade ambiental) e que precipitam a funcionalidade social desta ruralidade reinventada: preservar o passado e garantir o futuro. Para, posteriormente, reforçar a constatação da urbanidade do discurso, discutindo o quadro de representações, expectativas, necessidades e interesses (culturais, económicos e políticos) que o motivam e sustentam. Finalmente, procuraremos no corpo da cidade materializações do projecto de ruralidade dominante e ensaiaremos a identificação dos seus contornos, sem esquecer a apresentação das suas eventuais consequências para os territórios rurais. Cumprindo o trilho que parte do discurso para chegar ao seu projecto territorial, somos animados pela convicção que é essencial conhecer as paisagens sonhadas, desejadas, imaginadas, simbólicas e discursivas, para poder antecipar e entender as paisagens reais. Neste sentido, reforça-se esta proposta reflexiva, enquanto se sublinha a sua pertinência teórica e a sua utilidade, como ferramenta para o debate em torno das questões territoriais e das estruturas ideológicas que orientam as estratégias de desenvolvimento. Deve ser dito que não se pretende circunscrever a abordagem à circunstancialidade de um contexto definido, já que queremos debater o discurso dando conta do seu carácter generalista, disseminado e aéreo. Dizendo respeito a uma ruralidade genérica, apontando uma crise supostamente transversal às áreas rurais, simplificando a complexidade e a diversidade territoriais e apresentando uma estratégia de reinvenção a aplicar de forma indiferenciada, por via da valorização de um potencial supostamente comum a todos os lugares que cabem no conceito (também ele vago) de “mundo rural”, este discurso generaliza-se, precisamente por ser generalista. 23 Introdução Sendo a abrangência uma das suas características estruturais, ao contextualizar a abordagem, enquadrando-a numa realidade concreta, estaríamos a podar a margem reflexiva que se exige para tomar um objecto tão etéreo e pulverizado. Ou seja, para dar atenção à circunstancialidade e aos particularismos de um âmbito (social ou geográfico) circunscrito, reduziríamos demasiado o espectro do debate. Portanto, não se pretende discutir o discurso dentro de uma realidade territorial restrita, já que estamos sensíveis ao seu carácter generalista e assumimos a estratégia de tomá-lo como objecto, numa abordagem que se pauta por uma abrangência correspondente. Queremos ainda salvaguardar que um dos objectivos de fundo que estimula este trabalho, é o de construir uma reflexão ampla e um quadro teórico polivalente, que articule variadas temáticas (muitas vezes tratadas de forma dispersa) que derivam do discurso de reinvenção da ruralidade, mas sobretudo, que estimule a interpretação de diversas realidades empíricas. Ora, a amplitude do espectro de discussão facilita o seu cruzamento com realidades múltiplas e a sua aplicação a vários âmbitos territoriais. Também por isso, ou seja, pela abrangência da reflexão teórica a que nos propomos e pela infinitude do seu universo temático, poderíamos ilustrar a pesquisa com incontáveis casos empíricos. De facto, reforça-se a intenção de desenvolver um debate teórico que articule diversos temas, dinâmicas, questões e fenómenos que, segundo cremos, orbitam em torno da fonte maior, que constitui este discurso de reinvenção da ruralidade, no sentido de criar um quadro teórico robusto e organizado, que estimule o estudo de diversos objectos empíricos. Assim, sublinhamos que a incursão ao terreno proposta não deve ser encarada como o núcleo central deste percurso reflexivo, mas antes como mais um input de informação para animar o debate, como um ensaio de aplicação destas proposições teóricas (entre as múltiplas hipóteses possíveis) e como um exercício ilustrativo, sem qualquer pretensão de produzir dados que alcancem a representatividade. Acrescentando, o trabalho de campo que suscita o sexto capítulo desta tese acaba por reforçar, enquanto escolha e selecção de enfoque, a intenção de considerar a urbanidade do projecto de ruralidade reinventada e por fazer avançar a discussão para o plano das materializações do discurso na paisagem. Nesta lógica, precipita a identificação dos contornos desse projecto no seu contexto de produção 24 Capítulo I e alimentação primordial – a cidade, naquilo que acaba por ser o adiantar do percurso reflexivo proposto. Salvaguarda-se ainda, que centraremos o enfoque etnográfico no lado da produção dos lugares e não no seu consumo e interpretação. Em primeiro lugar, porque se pretende animar a discussão em torno dos contornos do projecto que alimenta expectativas urbanas de ruralidade idílica, fazendo sentido priorizar a abordagem em torno da produção da paisagem (enquanto modelo ou lugar de consagração do sonho), mas também porque a perspectiva do consumo e da interpretação do quadro suscitaria todo um novo espectro de estudo e debate, que seria demasiado exigente e ambicioso, para o âmbito desta pesquisa. De qualquer forma, teremos oportunidade de justificar todas as escolhas e de explicar estas questões com mais detalhe à medida que for oportuno. Como outra salvaguarda importante, deve ser dito que estamos conscientes da recorrência e da centralidade assumidas pelas categorias territoriais ao longo deste texto, onde se apresentam tantas vezes em contraponto e cruzamento. Longe de querer reiterar a sua rigidez e sabendo que as realidades territoriais não se coadunam com a “pureza” e a compartimentação que estas sugerem, enquanto estruturas conceptuais, não desmerecemos a sua utilidade teórica nesta problemática e, principalmente, o seu poder de influência ao nível das representações e dos discursos em torno dos lugares. De facto, mesmo que as realidades territoriais sejam complexas, híbridas e fluidas, não cabendo facilmente em categorias estanques (de rural ou urbano, por exemplo) e tendo em consideração o quão difícil é definir os critérios que criam e atribuem esses rótulos, a verdade é que, no plano das ideias, dos discursos e das representações culturais, essa compartimentação dicotómica é dominante. As categorias territoriais servem a organização e a formulação de significados em torno dos lugares, fornecem ferramentas para os discursos (palavras, conceitos, oposições, etc.), orientado a forma como consideramos as suas funções, valores, utilidades, conotações, etc. A importância da categorização dualista rural/urbano é patente, tendo em conta que funciona como base para a formação do imaginário popular em torno dos territórios, mas também para a construção do património conceptual científico, técnico e político. As categorias territoriais culturalmente estabelecidas não são apenas “molduras” que ajudam a entender o mundo, controlando a forma como 25 Introdução agimos dentro dele. Ora, estando os territórios compartimentados e organizados, política e institucionalmente, segundo critérios (de uso, valor, etc.) que derivam directamente das categorias culturalmente estabelecidas e suas conotações, as nossas vidas são fortemente influenciadas pelo seu poder e implementação detalhada (Vandergeest & DuPuis, 1996). Estando a problemática do discurso hegemónico de valorização e reinvenção da ruralidade dependente da noção de “rural”, em contraponto com a noção de “urbano” e partindo esta discussão, precisamente, da ideia de que as estruturas de significados, imagens e representações, em torno dos territórios, precipitam projectos e orientações para o seu desenvolvimento, a relevância destas categorias é inquestionável, por ser intrínseca ao próprio objecto de debate. Podendo não funcionar para definir e compartimentar os territórios, estas categorias servem certamente para organizar os discursos que se organizam em seu redor, residindo nesse poder e utilidade, o seu interesse teórico e a sua pertinência conceptual. A propósito, deve ser igualmente esclarecido que faremos uso dos termos “rural”, “urbano”, “ruralidade”, “urbanidade”, “áreas/espaços/territórios rurais/urbanos”, “mundo rural”, “cidade”, “campo”, etc., sem precisar com rigor definições ou limites conceptuais, com a consciência de que essa seria uma tarefa demasiado exaustiva e já extensamente ensaiada na literatura, precisamente pelo facto de os territórios serem realidades dinâmicas e complexas, que dificilmente facilitam uma reificação teórica. O mesmo acontece em relação à distinção entre os territórios apelidados de “urbanos” ou “rurais”, no sentido em que, como foi dito, a dualidade simplificada das categorias discursivas não corresponde à realidade híbrida e processual dos espaços concretos, o que torna inglória a tarefa de rotulálos cabalmente. “A distinção entre meios rurais e meios urbanos não é um dos objectivos deste texto. Aliás, a transformação acelerada que uns e outros enfrentam caracteriza-se pela impossibilidade crescente em delimitá-los, distingui-los e, inclusivamente, aceitá-los como categorias operativas. A delimitação dos dois conceitos, sendo necessária para facilitar a análise, conduz a resultados que não podem nunca ser desligados dos critérios que presidem a essa delimitação e que fazem com que esta tenha que ser relativizada. A utilização do termo ‘meios rurais’ neste texto é, assim, um mero expediente operativo de construção de um discurso 26 Capítulo I científico que não nos afasta da consciência do carácter difuso das fronteiras desses espaços.” (Peixoto, 2002, pág.3). Na mesma lógica, tomaremos a liberdade de utilizar “espaço”, “território” e “lugar” como sinónimos, para facilitar a fluidez do texto, com a consciência de que divergem conceptualmente, por dizerem respeito a realidades distintas. Com isto não queremos, de modo nenhum, descurar a importância da sua definição e distinção. No entanto, para além de esse não ser o âmbito deste trabalho, seria de certa forma despropositado alongarmo-nos com este tipo de esclarecimento semântico que, para além de não ser vão, nem sequer consensual (exigindo um extremo rigor conceptual), acumula já um vasto rol de material científico e epistemológico. Pedimos, portanto, ao leitor quer releve o uso indiferenciado dos termos em causa e que compreenda que, neste caso, serve o favorecimento da variedade de vocabulário empregue e a fluência da prosa. Muito importante é esclarecer que, ao tomarmos este discurso como objecto central para o debate e ao apresentá-lo como hegemónico na sua centralidade e transversalidade, não queremos passar a ideia de que não existem contra-discursos, ou que esta perspectiva de ruralidade é alvo de uma unanimidade esmagadora. Pelo contrário, estando sensíveis à existência de outras vozes e interesses, nomeadamente do sector agrícola (para o qual interessa a manutenção dos apoios ao rural produtivo, por exemplo), queremos questionar a predominância deste projecto e a sua disseminação. Ou seja, pretende-se desconstruir a sua aparente consensualidade, revelando as origens, interesses e factores que motivam e sustentam a força deste discurso em concreto, questionando assim a retórica altruísta que o legitima e promove. Não queremos, de todo, ignorar a polifonia que rodeia a ruralidade e a multiplicidade de perspectivas e interesses antagónicos, que animam a disputa pelo controlo dos seus recursos e das suas estratégias de desenvolvimento, no entanto, parece-nos importante destacar o projecto que institucionalmente se converte na tónica dominante, através do discurso aglutinador e hegemónico, que condiciona as agendas políticas a diversas escalas, dentro deste contexto de dramatização da “crise” rural. O acentuar dos problemas funcionais, económicos e demográficos ao nível local (ou pelo menos do seu protagonismo mediático), a consequente fragilização dos patrimónios culturais e naturais nas áreas rurais, em paralelo com a associação destes à (in)sustentabilidade do planeta e à suposta debilidade da 27 Introdução memória e das identidades colectivas, levam à radicalização deste discurso e das soluções que apresenta, no que se converte na legitimação do projecto de reinvenção da ruralidade. A propósito, importa esclarecer que, apesar do registo generalista desta abordagem, estamos sensíveis ao facto de este discurso não ter expressão em todos os contextos e realidades e, portanto, de que este questionamento acaba por perder sentido em muitos âmbitos geográficos. Não temos pretensões de fazê-lo reportar a todos os territórios, lembrando que remetemos sempre o discurso para contextos de dramatização da chamada “crise das áreas rurais”. Desta feita, sublinha-se a ligação entre o discurso e a crise dos territórios rurais (em toda a sua eminência e protagonismo mediático e político), no sentido em que é a partir da sua elevação a problema, em que se quer pensar e que urge resolver, que se precipita, tanto a valorização da ruralidade, como o projecto de reinvenção. Por outras palavras, o discurso que tomamos como objecto diz respeito a contextos onde a desertificação, a desadequação funcional, a estagnação económica, a delapidação da actividade agrícola, a fragilização ecológica e patrimonial e o conjunto de problemas associados, são assumidos como flagelos que assolam as áreas rurais e cuja solução é apresentada como essencial. Ou seja, âmbitos em que é dado protagonismo mediático e político e se dissemina a consideração colectiva da crise ou da decadência do mundo rural agrícola, produtivo e habitado. Neste ambiente de preocupação, e misturada com alguma retórica do desenvolvimento local, brota a valorização do mundo rural como algo que está em risco, estando criadas as condições para o reforço do discurso de reinvenção e para a legitimação do seu projecto de ruralidade patrimonial e consumível. Ora, esta situação é patente dos países do Sul da Europa, nomeadamente em Portugal onde o declínio da agricultura e a parca industrialização do interior do país, a sua desertificação galopante e estagnação económica, levam a que sejam criadas, na ausência de modernidade (motivada por inúmeros factores históricos), as condições ideais para a disseminação do projecto pós-moderno de ruralidade (Figueiredo, 2003). Já não é agrícola este mundo rural e, nunca tendo chegado a ser industrial, passa de (in)produtivo a potencialmente consumível, patrimonial, recreativo. “Esta situação parece, assim, poder conduzir a ‘uma recodificação das áreas rurais portuguesas de pré-modernas em pós-modernas’” (Figueiredo, 2003, pág. 153). 28 Capítulo I Posto isto, não sendo exclusivo, nem omnipresente, o discurso hegemónico de reinvenção da ruralidade (em contextos de suposta decadência das áreas rurais) que assumimos como objecto de discussão, autoriza (enquanto pretexto, trilho e posicionamento teórico) a interpretação e a desconstrução destas questões, ao mesmo tempo que não exclui outras realidades. A perspectiva do discurso estimula a sensibilidade a diferentes registos, valores e interesses, permitindo diversas leituras, articulando diferentes dinâmicas, temáticas e fenómenos, num enquadramento teórico maior e organizado. Do seu desdobramento estender-se-á um caminho reflexivo intenso, rumo ao projecto de ruralidade que se propõe, pela expectativa, aos territórios. Registos, suportes, estratégias, representações, argumentos, valores, programas e funções, origens, interesses, expectativas, paisagens, orientações e consequências. Discurso. Projecto. Cultura. Território. Muitas palavras (sugestivas e poliédricas) para fazer jus à complexidade de interessantes dinâmicas culturais, sociais e geográficas, cuja inteligibilidade se ambiciona explorar, ao longo de um percurso que se avizinha estimulante, aberto e fértil, em múltiplas ramificações. 29 Introdução 30 II. O discurso de reinvenção da ruralidade Vejo as paisagens sonhadas com mais clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer cousa que me debruço. Se vejo a vida passar, sonho qualquer cousa. Sem data, Bernardo Soares (Fernando Pessoa) 2 Num contexto em que as cidades parecem concentrar os recursos humanos, económicos, tecnológicos e culturais, competitivamente valorizados para responder às exigências estratégicas da globalização, faz sentido pensar no papel e nas possibilidades de desenvolvimento dos territórios mais desprovidos das características valorizadas pelos critérios dominantes. Assim, quando pensamos nos territórios rurais, apesar da sua definição estar longe de ser clara e alheada das “fronteiras” urbanas, uma aparente contradição discursiva salta à vista, principalmente num contraponto forçado por relação à cidade. Este aparente paradoxo está relacionado com o facto de, nunca como agora, a cidade concentrar tantos interesses e recursos estratégicos, mas ao mesmo tempo se ter generalizado um discurso demonizador em torno da sua irreversível insustentabilidade. Paralelamente, por correspondência, parece agigantar-se um discurso nostálgico em relação às virtudes do mundo rural, que no entanto é genericamente descrito como estando num estado de profunda crise funcional e demográfica, principalmente nos países do Sul da Europa. Desta feita, se existe uma generalização da crise dos territórios rurais, parece existir simultaneamente uma valorização discursiva da ruralidade, quando, na verdade, as áreas rurais, para além de não serem homogéneas, são realidades muito complexas (até na própria definição). Estas crises anunciadas mediática, política e sensocomunalmente, parecem brotar de discursos geminados. Assim, sendo patente, por um lado, a disseminação do sentimento de crise que advém da 2 Excerto retirado do “Livro do Desassossego, por Bernardo Soares” (Vol. II.). O discurso de reinvenção da ruralidade prosperidade insustentável da cidade, precipita-se, por outro, a ideia de estagnação económica do mundo rural. Esta simetria alimenta conveniências mútuas, cujos limites são difíceis de marcar e cuja sustentação prática e estratégica cabe a agências variadas e poucas vezes identificáveis a um primeiro olhar. Se nem todas as cidades são “cidades da globalização” e se nem todas as aldeias sofrem de crise económica, demográfica e produtiva, deve ser questionada a aparente consensualidade e unanimidade nos discursos e nas políticas territoriais. As mesmas que preparam para os territórios urbanos e rurais, baterias de medidas voltadas para o estímulo da competitividade e da reanimação, respectivamente. É precisamente devido à centralidade e recorrência das questões associadas à ruralidade, ao facto de o mundo rural concentrar atenções de vários quadrantes (políticos, mediáticos, académicos, empresariais, sociais, etc.), de aparentemente existir muito interesse em torno do turismo, do património e dos produtos rurais e de estarmos num contexto de grande valorização do seu potencial estratégico (mesmo perante tantos problemas), que somos levados a questionar estas tendências, modas, vozes, perspectivas e interesses. Para organizar este ensaio de desconstrução e este exercício de questionamento crítico, consideramos a existência de um discurso optimista em torno do potencial rural, que brota da assunção da crise e da necessidade de sua reversão, como uma premissa para a investigação e tomamo-lo como objecto, com o objectivo de perceber o que é esperado do mundo rural e o que podem esperar este tipo de territórios. Assumindo que o contraponto para com a cidade (próspera mas demonizada) e a dramatização generalista da crise rural (principalmente nos países do Sul da Europa) podem funcionar como um estímulo do potencial rural e de um projecto de reinvenção, como contraste valorizador e pretexto para um reaproveitamento estratégico, temos a intenção de desconstruir o discurso que atira o mundo rural para a eminência de um processo de transformação, enquanto alteridade desejável perante uma urbanidade estruturalmente insustentável. Entendendo que o tom pesaroso em relação à situação demográfica e económica dos espaços rurais, muito patente em Portugal, principalmente no que diz respeito ao interior do país, vem a par do discurso complementar de valorização da ruralidade e seu potencial cultural e ecológico, parece claro que o fatalismo serve de 32 Capítulo II estímulo à reversão da crise, ou pelo menos de argumento a favor de uma reinvenção, com base em valores patrimoniais. Importa dizer que o carácter generalista do discurso, quer do lado do alerta de crise, quer do lado da valorização do potencial rural, ao parecer desligado de territórios concretos, desespacializa as questões, à medida que as generaliza. No entanto, mesmo podendo parecer aéreo e disperso no seu registo generalista, o discurso está transversalmente consolidado em diversas esferas sociais, políticas, económicas e culturais e apresenta uma orientação estratégica clara, difundindo aquilo que parece ser um projecto de ruralidade patrimonial e consumível. Desta feita, a retórica da crise acaba por servir as políticas culturais e territoriais associadas a este projecto, no sentido em que apela à intervenção, precipita as questões rurais e legitima-as enquanto prioridades estratégicas. Partindo assim da ideia de que a reinvenção da ruralidade nasce deste discurso construído culturalmente, que se traduz num projecto definido de transformação territorial, através da valorização e capitalização de determinados aspectos e recursos rurais, importa expor com mais detalhe os principais questionamentos e objectivos da pesquisa a que nos propomos. 1. Os principais questionamentos e objectivos de investigação. (o que se quer saber) Tendo como temática este discurso/projecto, a que poderíamos chamar de “discurso de reinvenção da ruralidade”, a intenção que orienta a pesquisa seria a de reflectir, desconstruir e discutir, por um lado, algumas das suas dimensões essenciais e os principais argumentos que o sustentam e, por outro, as origens e motivações que estão na génese da sua produção e difusão. Assim, para facilitar e organizar a abordagem, dividimos o discurso em três eixos, destacamos dois argumentos de suporte essenciais e focamos a abordagem na sua origem e carácter urbanos. O objectivo primário do caminho que nos propomos é o de contribuir para uma reflexão abrangente e crítica do discurso por detrás do processo de reinvenção da ruralidade, não especificamente num território, mas, tal como discursivamente, num plano teórico e genérico. A preocupação não é a de seguir um processo territorial específico de reinvenção, medir os seus impactos e consequências, 33 O discurso de reinvenção da ruralidade entender a relação entre os agentes locais e seus interesses em todo o processo, etc. Mas antes a de desconstruir o discurso, por detrás dos processos de reinvenção das ruralidades e da ruralidade simbólica, no sentido de o entender como uma política cultural e não apenas como um projecto de território em concreto. Esta intenção justifica-se pela importância de evitar uma fragmentação da análise do discurso, pois ao remeter o olhar para um lugar concreto, teríamos necessariamente de centrar a abordagem nas características específicas e circunstanciais de um projecto de reinvenção em particular, deixando escapar um dos principais traços do discurso – o seu carácter generalista, bem como um dos principais traços do projecto de reinvenção por ele promovido – existir como uma espécie de solução universal para os territórios rurais em crise, simplificados discursivamente como homogéneos. A naturalização do discurso e a sua função de política cultural (mais do que territorial) o seu carácter transversal e generalista e as suas consequências ao nível da produção de significados simplificados e aglutinadores das especificidades locais, fazem com que se deva apostar numa abordagem ela própria abrangente, compreensiva e de certa forma desespacializada, no sentido de encarar o objecto na sua complexidade cultural e não apenas enquanto um projecto de território definido geograficamente. Discutiremos cultura, mais do que territórios concretos, mas, tendo em conta que estes se configuram a partir das concepções culturais, ideológicas, políticas e simbólicas que se projectam como dominantes, parece-nos que começar pelo discurso é começar pelo “início”. Como foi dito, pretendemos organizar a desconstrução do discurso em três eixos fundamentais, no sentido de esclarecer a proposta reflexiva. As três dimensões do discurso seriam a estratégica, a cultural e a comercial, ou mais precisamente o discurso na sua vertente estratégica e técnica (as políticas de desenvolvimento rural), o discurso no seu registo sensocomunal e cultural (o chamado Ideal Rural) e, finalmente, o discurso na sua função promocional (dos produtos rurais e do rural enquanto produto). Para além de pensar o discurso nestas dimensões, relacionando-as no seu encadeamento lógico – uma estratégia de desenvolvimento que se alimenta de uma bateria cultural como matéria-prima, para promover a ruralidade e seus produtos – é essencial desconstruir os valores e argumentos que o sustentam e que afinal precipitam as "novas" funções dos territórios. Identificando dois grandes valores de 34 Capítulo II suporte, património (memória colectiva, identidades, tradições) e sustentabilidade ambiental, (natureza, ecologia) e duas grandes funções atribuídas, nesta lógica, às áreas rurais - preservar o passado e garantir o futuro, pretendemos desconstruir o seu poder e valor cultural e simbólico, em cruzamento com as dimensões acima assinaladas. Deste trabalho reflexivo, almeja-se o alcance do conteúdo ideológico e axiológico de legitimação do discurso e do seu projecto de reinvenção da ruralidade, ao mesmo tempo que nos aproximamos das motivações que o estimulam. O suporte argumentativo do discurso remete, logicamente, para o quadro cultural, social, político e histórico em que este é produzido e que hierarquiza a axiologia que se precipita enquanto legítima, dominante e eminente, no nosso momento histórico. Por relação às agências de promoção e motivações por detrás do discurso, não se pretende uma inventariação sistemática das instituições e actores, causas e interesses específicos, que estimulam o projecto de reinvenção da ruralidade num determinado território. Interessa discutir, sobretudo e mais uma vez, a origem, as motivações, interesses e necessidades culturais, territoriais, económicas e políticas, que funcionam como transversais, marcando o nosso tempo histórico e o nosso contexto social e que precipitam este discurso (com todas as consequências que acarreta). Neste sentido, deve ser apresentada outra ideia ou premissa importante para o âmbito teórico deste trabalho, a de que este discurso deve ser olhado enquanto um fenómeno sobretudo urbano. Pelas motivações e agências de produção do discurso, pelo tipo de estratégia associada à concretização do projecto de ruralidade, pelo contexto em que os seus argumentos se destacam e ganham sentido, por questões comerciais e económicas, entre outros factores, somos levados a remeter para a cidade, a construção e difusão da necessidade de reinventar a ruralidade. Os valores por detrás deste discurso representam algumas das preocupações centrais das sociedades contemporâneas, divididas entre a necessidade de uma ancoragem originária, de uma segurança ontológica e de uma estabilidade axiológica e o sentimento de instabilidade e anomia social no mundo globalizado (Bunce, 1994). Entre a busca da qualidade de vida e a insustentabilidade dos estilos de vida. Entre um passado sonhado como mais familiar, particular, local e um futuro que se prevê complexo, impessoal, global, etc. (Ferrão, 2000). E entre a cidade, 35 O discurso de reinvenção da ruralidade modelo territorial dominante e o rural, modelo territorial valorizado cada vez mais no plano onírico, ideológico e discursivo (Williams, 2002). Acontece que, precisamente, por rural e urbano, assim como as suas funções e fronteiras não constituírem categorias independentes e claramente separadas e, acrescendo o facto de que estas dinâmicas de “contraposição” dicotómica se caracterizarem por uma promiscuidade inerente, não podemos abordar a valorização da ruralidade enquanto um fenómeno rural (Bagli, 2006). Não parecem nascer dos territórios rurais ou mesmo das políticas locais, as estratégias e discursos de valorização do potencial cultural e natural rural, mesmo que exista muitas vezes um compromisso endógeno em concretizar os projectos que daí derivam ou tentativas de rentabilização das oportunidades que daí possam surgir. É igualmente claro que a bateria de representações e mitos que sustenta a renovação dos olhares que elevam a ruralidade, não brota de uma auto-estima ruralista ou de um eventual “patriotismo” rural, mas antes das grandes cidades, em que de forma mais intensa se persegue uma alteridade apaziguadora das ansiedades derivadas do sentimento de “insustentabilidade” urbana, global, quotidiana, etc. (Bunce, 1994). Por outro lado, também não são os habitantes das aldeias o público-alvo das estratégias de promoção dos territórios rurais para destinos turísticos, muito menos dos seus produtos gastronómicos, artesanais ou lúdicos. Ou seja, parece ser da esfera urbana que nascem e são alimentadas as dinâmicas discursivas, que apelam à reconfiguração do rural em espaço de consumo, com base nos valores que fazem sentido no quadro do eterno reajustamento axiológico num mundo em rápida evolução e para suprir necessidades urbanas. Necessidades de expansão de negócio (imobiliário, turístico, comercial), de lazer e evasão, de sonho e apaziguamento de consciências, de manutenção da memória, de consumo, etc. (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Resumindo, estamos perante um discurso urbano de valorização da sua própria alteridade, que sustenta estratégias de alargamento das possibilidades de consumo e negócio, ao mesmo tempo que se apresenta como uma solução para os problemas (revalorizados) dos territórios rurais, cujos sinais do que outrora se chamava “atraso” constituem agora “potencialidades”. Posto isto, apresenta-se como objectivo discutir o discurso dentro das relações rural-urbano e nesse “espaço sem chão”, de limites, dependências e forças 36 Capítulo II entre as categorias, procurando no urbano esta construção do rural, quer no plano teórico, quer empiricamente, como explicaremos adiante. Recapitulando e sistematizando, importa perceber o discurso e a estratégia de reinvenção da ruralidade, as suas prioridades e filosofias de intervenção, bem como dissertar sobre as consequências de uma estratégia baseada nestes valores e promovida por este tipo de discurso, na forma como se olha a ruralidade e também, na forma como se constrói e consome estes espaços. Importa delinear o património imaginário que configura a ruralidade idílica, os seus limites e poder simbólico. Relacionar esta bateria de representações enraizada culturalmente com o discurso que dela se aproveita, enquanto a alimenta simultaneamente, e perceber o seu impacto e presença dentro das lógicas de promoção dos produtos da ruralidade. Enunciar os produtos da ruralidade centralizados pela estratégia, questionar o alcance da aposta na sua promoção e discutir os argumentos e valores que a sustentam, é igualmente importante. Assim como a reflexão em torno dos mercados a que se orientam, dos veículos e estratégias de sua promoção e consumo e, também, dos elementos distintivos que os destacam no plano simbólico. Importa igualmente e de forma quase transversal à dissertação, discutir as relações rural/urbano e o seu carácter muitas vezes dicotómico (competitividade urbana/marginalidade rural, insustentabilidade urbana/ideal rural), dentro do que se configura como o discurso cultural em torno das categorias territoriais, funções, valores e representações associadas. Em suma poderíamos resumir as principais questões, cujas respostas representam os objectivos teóricos da pesquisa, nos pontos seguidamente apresentados: Discutir e entender o discurso de valorização da ruralidade e as estratégias de desenvolvimento rural baseadas no potencial patrimonial rural. Identificar e entender as linhas filosóficas, argumentativas, metodológicas, organizativas, operativas, e prioritárias da estratégia. Relacionar o património imaginário em torno da ruralidade, culturalmente enraizado, com estes processos de valorização e reinvenção do rural. Perceber a origem das imagens e narrativas difundidas. 37 O discurso de reinvenção da ruralidade Identificar e entender a imagem de ruralidade idílica, os valores que lhe estão associados, os seus limites e paisagens simbólicas. Pensar o seu poder simbólico enquanto base de representações, projectos e relações com o espaço, enquanto argumentos e elementos distintivos associados a produtos, paisagens, actividades, manifestações culturais, estilos de vida, etc. Apresentar o conjunto de produtos, centralizados pelo discurso e portanto derivados da estratégia e perceber as lógicas de sua promoção. Identificar os mercados a que se destinam. Enunciar as características e elementos simbólicos que supostamente distinguem a sua ruralidade. Pensar em que medida a sua promoção se alimenta dos valores do ideal rural. Discutir as possibilidades de concretização de desenvolvimento económico através da aposta na sua promoção e consumo. Discutir os valores que sustentam o discurso e as funções que precipitam para os territórios rurais. Reflectir em torno da urbanidade do discurso. Relacionar a estratégia de reinvenção dos espaços rurais com as estratégias de reabilitação dos centros históricos das cidades. Contextualizar a valorização das características idílicas da ruralidade e as expectativas de reinvenção dos territórios rurais no quadro das inquietações, ansiedades e necessidades culturais e de consumo urbanas. Discutir os interesses, expectativas e motivações por detrás do projecto de ruralidade apresentado pelo discurso. Procurar no corpo da cidade espaços de materialização deste projecto/sonho de ruralidade. Conhecer os contornos do projecto de ruralidade veiculado discursivamente. Pensar nas possíveis consequências deste projecto para os territórios. 38 Capítulo II 2. Premissas e caminhos teóricos e metodológicos para a pesquisa. (como quero saber) Por entendermos esta reflexão como um caminho, começaremos por discutir o discurso nas suas dimensões fundamentais, seguindo os questionamentos apresentados, sem descurar o seu cruzamento com os argumentos e valores de sua legitimação e suporte, ao mesmo tempo que desenvolveremos a sua desconstrução. Após a concretização da reflexão em torno da ideia de que estamos perante um discurso de reinvenção, que precipita um projecto estratégico, alimentado culturalmente e catalisador de uma ruralidade consumível, passaremos ao desenvolvimento crítico da segunda premissa associada, a de que estamos perante um projecto urbano de ruralidade. Neste sentido e após um debate teórico, faremos uma incursão ao terreno, para procurar na cidade espaços de encenação e consumo da ruralidade idílica, com a intenção de perceber os contornos do projecto de ruralidade difundido discursivamente e alimentado nos quotidianos urbanos. O trabalho de reflexão teórica pretende ser uma combinação crítica de contributos literários de diversas origens disciplinares, no sentido de cruzar perspectivas e ensaiar uma cobertura competente e abrangente, das diversas nuances e dimensões desta temática. Por falarmos de um discurso transversal e naturalizado, devemos suportar a nossa reflexão num património teórico e científico alargado, dentro do que são os estudos culturais e territoriais e recorrendo a material bibliográfico sobre temáticas variadas como cultura, economia, territórios, consumo, design, ecologia, comunicação, publicidade, arte, políticas de desenvolvimento, turismo, etc. Esta abordagem acaba por estar inserida em algumas das linhas de investigação fundamentais da chamada Geografia Cultural, nomeadamente a análise das paisagens pelas suas características simbólicas e de representação, bem como a discussão em torno das categorias territoriais, enquanto construções discursivas e culturais e do efeito da sua influência na forma de percepcionar os espaços (Benach Rovira, 2005). De facto, podemos dizer que este tipo de caminho de pesquisa e de questionamento, cumpre o reforço da análise da dimensão cultural das transformações territoriais que, pela sua complexidade, não se esgotam em explicações morfológicas e materialistas. Neste sentido, combinam-se 39 O discurso de reinvenção da ruralidade estrategicamente as aproximações da Sociologia ao espaço e, por outro lado, da Geografia à cultura (Benach Rovira, 2005). É portanto uma análise, dos valores e significados da ruralidade e uma desconstrução do discurso que os define e precipita, que pretendemos desenvolver, por via de uma reflexão teórica progressiva, com o objectivo de contribuir para a construção de uma grelha crítica de interpretação dessas construções simbólicas e das relações de poder que as configuram. Pretende-se articular variadas temáticas, habitualmente tratadas de forma divorciada, que remetem para o mesmo quadro discursivo e ideológico matriz e que, portanto, interessa integrar. Com isto, esperase contribuir com a construção de um quadro teórico coeso que permita e estimule a interpretação de uma infinidade de realidades empíricas que estão associadas à ideia de ruralidade que deriva deste discurso dominante, bem como às suas manifestações no território, às suas raízes culturais e políticas, à sua vertente comercial e turística, etc. Após discutidas teoricamente estas questões e perante a premissa que o discurso pela reinvenção da ruralidade se apresenta sobretudo enquanto um fenómeno urbano, cabe verificar de que forma os seus ecos são encontrados no espaço da cidade. Sendo esse o intuito da etapa empírica do nosso percurso reflexivo, pretendemos concretizar uma incursão ao terreno, a fim de percorrer os trilhos da mitificação da ruralidade em espaço urbano e, especificamente, em alguns dos lugares onde esta parece ser alimentada e consumida. Assim, é nossa intenção buscar na cidade lugares em que estejam intensamente presentes a sedução do ruralismo, o apelo ao seu consumo, ao seu sonho idílico e em que de alguma maneira sejam reproduzidos os signos que reforçam o encantamento pelo rural. Os lugares que de certa forma introduzem no quotidiano urbano a tal ruralidade imaginada, ao que parece muito presente nas representações, podem permitir vislumbrar e identificar os traços e elementos que pautam a projecção do rural na cidade e aquilo que é esperado encontrar quando, de facto, os urbanitas vão em busca das aldeias, das paisagens, da “natureza” associada ao sonho pastoral. Por outras palavras, procuraremos analisar na cidade lugares associados à ruralidade na sua dimensão idílica, concretizada na paisagem através da reprodução arquitectónica e cenográfica da iconografia pastoral. É necessário contudo reforçar que não é objectivo encontrar na cidade rasgos de ruralidade “espontâneos”, ou seja, marcas ou vestígios de um passado rural, 40 Capítulo II nichos ou enclaves culturais de ruralidade, ou mesmo traços da influência das áreas rurais circundantes à cidade. O objectivo é analisar lugares em que seja alimentada uma ruralidade construída, “destilada” e purificada, introduzida no espaço urbano através de elementos da iconografia idílica da ruralidade mitificada, dentro desta tendência contemporânea de estetizar alguns lugares ou territórios para recriar ambientes cujas características parecem ser culturalmente valorizadas (como acontece muitas vezes no caso dos centros históricos das cidades). Os lugares seleccionados para objecto de estudo e estímulo à incursão etnográfica foram eleitos segundo os critérios que se prendem com as concepções anteriores e estão situados na cidade do Porto. A escolha desta cidade justifica-se com o facto de ser a “capital” da região do Norte de Portugal, de tradição fortemente rural, mas muito influenciada pelo seu poderio económico, cultural e histórico. Assim, importa enunciar os objectos empíricos desta pesquisa: 1) O Núcleo Rural de Aldoar, dentro do Parque da cidade do Porto. 2) A quinta do Mata-Sete, dentro do Parque da Fundação de Serralves. A estratégia de trabalho de campo prevista baseia-se no método etnográfico, ou seja, na visita e observação recorrentes destes lugares, a fim de os analisar, através dos filtros da reflexão teórica que precederá o trabalho de campo. Da recolha de material (documental, literário, fotográfico, informativo, promocional, etc.), da experiência e observação dos lugares, das conversas e entrevistas com os principais agentes envolvidos e testemunhas privilegiadas, pretendemos perceber se é possível encontrar nos objectos, elementos de concretização e difusão do projecto/discurso de reinvenção da ruralidade. Pretendemos encontrar as ruralidades veiculadas na cidade, os seus contornos e as suas formas de sedução do olhar, consumo e valorização. Partindo da premissa que sustenta a linha reflexiva deste trabalho, ou seja, da ideia de que ao identificar e perceber as manifestações do discurso, podemos de facto agarrar, entender e descrevê-lo, pretendemos percorrer a cidade ao encontro das concretizações das projecções e representações em torno da ruralidade, criadas e alimentadas como dominantes, no espaço urbano. Da observação, da conversa, da recolha de materiais, do percurso, da experiência e de todas actividades e estímulos possíveis de serem propostos ou induzidos na cidade (mais especificamente nos lugares seleccionados), pretendemos ser alimentados conscientemente das narrativas e valores, dos quadros e histórias que nela constroem a ruralidade idealizada. Neste percurso, 41 O discurso de reinvenção da ruralidade pretendemos desenhar o perfil dessa influência, dessa sedução, desse condicionamento, desses discursos. Este caminho é também um ensaio de estratégia metodológica, que se pretende inovadora e flexível, para trazer novos recursos para a discussão e enriquecer a análise dos contornos do discurso que temos como objecto central de pesquisa. Centralizar a análise empírica na encenação da ruralidade sonhada em espaço urbano e na sua linguagem simbólica e estética, parece-nos uma escolha pertinente, se pensarmos na centralidade que a dimensão visual e iconográfica da cultura tem nas nossas sociedades. Nesta linha, é comum encontrarmos na literatura científica os termos “visual culture”, “scopic regime” e “ocularcentrism” para reforçar a saturação imagética nos quotidianos do nosso tempo histórico (Rose, 2007). Assim, estando a vida social impregnada de estímulos visuais e saturada de imagens construídas ideologicamente, principalmente quando nos referimos aos quotidianos urbanos, parece-nos que dar atenção à iconografia produzida dentro dos valores do discurso, neste caso num registo cenográfico e paisagístico (porque falamos de imagens, para chegar aos territórios) não só é um caminho de investigação interessante, como pode permitir ilustrar de forma consistente a discussão teórica a que nos propomos. 42 III. O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto Os homens desertaram destas terras. Só um bacoco, a rufiar com a sombra, só um bacoco, bolsado das tabernas, em sete palmos, só, se reencontra. Turistas fotografam cal e pedras: o cubismo de casas e ruelas. Nas soleiras sobraram umas velhas. Escorre-lhes o preto pelas canelas. 1972, Alexandre O´Neill. 3 Antes de mais, é importante dizer que aqui se entende “discurso” como construção ideológica e bateria de significados, que condiciona o olhar sobre a ruralidade (neste caso) e se apresenta, não apenas como retórica, mas sobretudo como uma forma de prática social, como um projecto, acção (Hall, 1997). Um discurso, entendido nesta perspectiva, condiciona a forma como se olha para a realidade, no sentido em que contribui para a formação das representações (Fairclough, 1992). Os discursos são construídos com base em narrativas, ideologias e práticas significantes e funcionam como filtros com os quais olhamos a realidade. São objectos de negociação e longe de serem consensuais, precipitam disputas, desafios e transformações (Barnes & Duncan, 1992). A linguagem e os discursos contribuem para a produção, transformação e reprodução dos objectos, sujeitos e categorias da vida social, estando numa relação activa com a realidade, na medida em que existe uma dialéctica permanente de influências mútuas. Da relação entre instituições, processos económicos e sociais, padrões de comportamento, sistemas de normas e classificações e formas de 3 Excerto do poema “Pelo Alto Alentejo /1”, retirado de O’Neill, Alexandre (2005), Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim. O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto caracterização, produzem-se discursos que moldam a forma como vemos e interagimos com a realidade social e territorial (Foucault, 1972). Os discursos consolidam e difundem baterias de significados para objectos e paisagens, que se vão recriando continuamente através das interacções sociais entre os agentes e os territórios. Diferentes grupos e agências dão ênfase a significados específicos, levando a uma evolução destes ao longo do tempo e da história, num processo permanente de reinvenção do valor simbólico das paisagens (Williams, 2002). Por esse motivo os discursos são quase sempre polifónicos, permitindo variadas leituras, interpretações, aproveitamentos e adaptações, consoante os poderes, os momentos, os contextos, os agentes que os instrumentalizam, difundem e reproduzem, etc. Um aspecto importante é que os discursos permitem que assumamos a existência de cenários que podem não ser concretos materialmente, mas que por serem familiares discursivamente se consolidam nas nossas representações e passam a fazer parte da esfera das coisas “reais”. “A strong form of argument would be that discourses allow us to see things that are not “really” there, and that once an object has been elaborated in a discourse, it is difficult not to refer to it as if it was real” (Boyle & Rogerson, 2001). Os discursos têm um cariz ideológico, enquanto forma de perspectivar a realidade, enquanto projecção e atribuição de valor e carga simbólica, sendo mais poderosos quando naturalizados e elevados ao estatuto de “senso comum”. Esta naturalização dos discursos permite a sua estabilidade e abrangência, no sentido em que passam a estar instalados na realidade social, nas práticas e representações, contribuindo para a formação do status quo (Fairclough, 1992). A força dos discursos na influência das realidades sociais e territoriais, reside não apenas na forma como condiciona as representações e os significados, mas também, através deles, na sua capacidade de definir agendas políticas, prioridades e necessidades, soluções e estratégias (Boyle & Rogerson, 2001). Os discursos identificam crises e problemas, causas e soluções, tal como acontece no caso do discurso de reinvenção da ruralidade, em que se anuncia a possibilidade de reverter um quadro de decadência funcional e demográfica, por via da capitalização dos recursos culturais e naturais dos territórios rurais, no sentido de criar novos produtos para o consumo urbano. 44 Capítulo III “Discourses create, inter alia, a cast list of political and economic agents which government must consider, objects of concern, agendas for action, preferred narratives for making sense of the origins of current situations, conceptual and geographical spaces within which problems of government are made recognisable.” (Stenson & Watt, 1999, pág. 192). É muitas vezes difícil identificar os agentes por detrás da produção e reprodução dos discursos e seus interesses, no sentido em que a sua propaganda, para se ir impregnando na prática social e ascender ao estatuto de senso comum, deve passar por um processo de naturalização, que de certa forma vai apagando as pistas que levam à respectiva “autoria”. Por outro lado, esta “política cultural”, por recorrer a valores e signos enraizados culturalmente, convenções, categorias, etc., dentro da dialéctica entre discurso e estruturas sociais, ganha poder precisamente por permitir um trabalho de produção progressiva de significado, dentro do que são as lógicas culturais “familiares” (Boyle & Rogerson, 2001). O poder do discurso depende do poder das agências que o promovem, alimentando e provindo do chamado “conhecimento instalado”, ancorado nas estruturas sociais e políticas dominantes e legitimado científica e mediaticamente (Boyle & Rogerson, 2001). Assim, as construções sociais de significados constituemse por via das relações de poder, sendo os significados dos lugares um produto das negociações entre diferentes interesses e agências. A construção de discursos em torno de territórios e lugares acaba por ser um acto político, em que técnicos, empresas, cientistas, actores locais, autarquias e outras entidades, negoceiam, contestam, criam, reproduzem ou transformam os significados (Williams, 2002). “The creation and contestation of meaning involves social interactions structured within and by interest group formation and action, regulatory agencies, administrative procedures, law, local government, planning processes, and so forth. These processes are most obvious in the formal political arena, but they also occur through everyday practices (…)” (Williams, 2002, pág.130). Desta feita, quando falamos do discurso de reinvenção da ruralidade podemos identificar, quer nas agendas políticas, (do poder local e central e nas políticas europeias), quer na esfera do mercado de consumo (turístico, gastronómico, imobiliário), um interesse em construir uma bateria de significados e representações renovadas para os espaços rurais e em precipitar um conjunto de necessidades e problemas, bem como das respectivas soluções e recursos, no 45 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto sentido de concretizar um projecto de ruralidade mais próximo da idealização bucólica promovida culturalmente. O projecto de ruralidade desejada, baseia-se num património simbólico e mitológico idílico enraizado culturalmente, que eleva a natureza e a cultura rurais a sinónimos de qualidade de vida, vida familiar, segurança, saúde, paz, tranquilidade, etc. Posto isto, dentro da dialéctica entre as estruturas sociais e culturais e os discursos, a construção da ruralidade reinventada ganha força por recorrer a valores e significados convencionais e estáveis nas nossas sociedades, trabalhando na sua reanimação e renovação e tendo a naturalização do discurso facilitada. Este processo de reinvenção é em si mesmo uma reinvenção de velhas ordens de discurso, mas em função de novos objectivos e de novas lógicas, tal como acontece frequentemente na formação de estratégias de marketing, em que se instrumentalizam determinados significados convencionais e estáveis, dentro de novos tipos de discurso, no que acaba por ser uma espécie de actualização simbólica dos mesmos (Fairclough, 1992). A tal bateria de representações idílicas em torno de rural, as tendências e lógicas de planificação e gestão territorial instaladas, a influência da globalização nas dinâmicas territoriais, entre outros fenómenos culturais, económicos e políticos, contribuem para a construção do discurso de reinvenção da ruralidade, que por sua vez transforma o modo como vemos, interagimos, intervimos, pensamos e imaginamos os espaços rurais e suas dimensões sociais, económicas, culturais, naturais, etc., num processo dialéctico interessante e complexo. Os discursos e a reinvenção de significados contribuem, portanto, para a mudança social, no sentido em que produzem e transformam a caracterização e classificação dos lugares, influenciando a forma como as politicas, os agentes, o interesse público, as empresas e outros interesses intervêm nos territórios. As imagens, a retórica, os símbolos, integrados num discurso, não funcionam apenas enquanto elementos descritivos dos lugares, mas reforçam publicamente o seu potencial para a mudança. “Prevailing images, rhetoric, and symbols culturally define the parameters of the desirable and undesirable, the feasible and impossible, and the legitimate and illegitimate as they pertain to a locale’s present circumstances and future possibilities.” (Mele, 2000, pág. 631). 46 Capítulo III A dramatização por relação à eventual crise de um bairro, de uma zona, de uma cidade, de um território, ou mesmo de um modelo territorial, serve muitas vezes para precipitar a necessidade de mudança, pacificando possíveis resistências, ocultando outros interesses menos “nobres”, como manobras imobiliárias especulativas, por exemplo, angariando o apoio da opinião pública para o projecto de reinvenção em causa. Justificar escolhas políticas, investimentos, decisões delicadas que suscitam conflitos e resistências, constitui-se como uma das funções estratégicas da difusão dos discursos em torno do potencial de transformação dos lugares, sendo a atracção de novos consumidores, para os lugares, seus projectos, produtos e significados, essencial para a concretização da reinvenção (Mele, 2000). A própria ideia de renascimento, renovação e reinvenção de um lugar serve de argumento ao consumo e estímulo para um novo interesse e atractividade, contribuindo enquanto discurso para a sua própria concretização enquanto projecto. Os discursos enquanto investimento contribuem para valorizar os lugares em dois sentidos fundamentais – atribuindo valor e acrescentando valor (Avrami & Mason, 2000). No que toca ao discurso da reinvenção da ruralidade podemos questionar, por exemplo, se o projecto de mudança, justificado com a aparente transversalidade da crise funcional e demográfica rural, não servirá a função de “compensar” e apaziguar o vazio deixado pelas políticas comunitárias de delapidação progressiva das actividades agrícolas, ao mesmo tempo que se concretiza e continua a mesma lógica política e estratégica. Na linha de colmatar um vazio funcional de territórios outrora produtivos, estimula-se o seu potencial “consumível”, abrindo novas possibilidades de negócio, novos mercados e produtos, ao mesmo tempo em que se servem motivações e necessidades culturais de garantia de uma alteridade sonhada a uma urbanidade também em suposta “crise”, mas sobre esta e outras questões associadas reflectiremos mais adiante neste trabalho. Estando esclarecida a noção de discurso e a sua importância enquanto premissa para o trabalho que se propõe, cabe dizer que, a escolha de discutir a reinvenção da ruralidade enquanto discurso e não apenas enquanto uma estratégia política, permite um maior entendimento das construções culturais, naturalizadas na prática e acção política e técnica, que constituem o marco de referência mais abrangente e ao qual remetem todos os posicionamentos e intervenções que influenciam os territórios concretos. 47 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto Mesmo perante a dificuldade de “agarrá-lo” e tomá-lo como objecto, dada a abrangência das unidades de análise possíveis e tendo em conta o seu carácter disperso e naturalizado, a noção de “discurso” é muito útil para esta reflexão teórica, no sentido em que contempla e reforça a dimensão política e técnica destes processos de construção de significados e perspectivas em redor da ruralidade. Centrando a abordagem no discurso, não nos ficamos apenas pelo debate das representações dominantes e das práticas correspondentes, sendo claro que tomamos o poder e a historicidade como questões essenciais, fazendo remeter toda a discussão para um quadro cultural, político e histórico maior (Hall, 1997). Tendo em conta estes factores e para facilitar a abordagem do discurso, dividimo-lo em três eixos ou registos, que funcionando como camadas em sobreposição, mais não são do que fragmentos teóricos de um mesmo objecto. Enunciando, discutiremos o discurso político e técnico em torno das estratégias de desenvolvimento rural, o discurso cultural de romantização da ruralidade e o discurso promocional dos produtos rurais e do rural enquanto produto. A sua desconstrução ocupará as próximas páginas desta dissertação, rumo ao aprofundamento das múltiplas facetas, que reforçam a omnipresença e transversalidade do discurso de reinvenção da ruralidade, em diversas esferas da vida social. 1. A Estratégia. O discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural A centralidade que as questões rurais auferem, nas agendas políticas técnicas, académicas e mediáticas na actualidade exige que comecemos por discutir, em primeiro lugar, a face mais institucionalizada do discurso de reinvenção da ruralidade – as estratégias de desenvolvimento rural. Estas, que podemos considerar como os processos de aplicação do projecto de ruralidade associado ao discurso, na sua eminência e protagonismo, reiteram a assunção da “crise” do mundo rural e a urgência das soluções. Desta feita, sublinhados que estão discursivamente os problemas (desadequação e vazio funcional, desertificação, estagnação económica, etc.), precipita-se um conjunto de orientações estratégicas, desde a escala Europeia até aos poderes locais. Neste contexto, importa discutir as linhas estratégicas que definem os processos 48 de reinvenção da ruralidade, concretizadas nas políticas de Capítulo III desenvolvimento para as áreas rurais. Estas caracterizam-se por um pendor fortemente patrimonial, após a rejeição progressiva da abordagem sectorial, que durante décadas fez confundir agricultura com ruralidade. De facto, a busca por soluções, que possam reverter o tal quadro de marginalidade funcional e competitiva, de crise demográfica e até de falta de auto-estima local, nos meios rurais, conta com vários anos e parece ainda não ter tido resultados com eficácia estrutural, encontrando-se na actualidade, numa fase de acentuado protagonismo e de fôlego e azimute renovados. Após vários anos de aplicação da Política Agrícola Comum (PAC), numa abordagem sectorial aos problemas de desenvolvimento rural, o paradigma parece ter mudado e passa a ser fortemente desencorajada a dependência das áreas rurais unicamente no primeiro sector. De facto, desde a década de 80 (séc. XX) está em curso uma estratégia territorial de desenvolvimento rural, que pretende estimular o potencial endógeno e capitalizar os recursos culturais e naturais rurais, almejando uma diversificação funcional que reanime e diversifique os tecidos económicos e produtivos dos territórios mais marginalizados. Esta orientação política e técnica vem acompanhada de um discurso de valorização do potencial dos recursos culturais e naturais do mundo rural. Ainda assim, com todas as políticas, planos, programas de desenvolvimento e reinvenções em curso, pelo menos ao nível das representações que sobre o mundo rural se tecem, a crise de muitos espaços rurais parece longe de uma resolução cabal (Carpio Martín, 2000). Esta, sendo fortemente dramatizada no âmbito mediático, tende a despertar uma espécie de escalada de preocupações que justifica, muitas vezes, uma radicalização de soluções ao nível local, de que são exemplo algumas medidas de incentivo à fixação de população através de subsídios (por casamento, por filho, etc.) ou mesmo alguns casos de angariação (a que podíamos chamar “importação”) de cidadãos brasileiros para viver em aldeias do interior de Portugal. São intensos os apelos à criatividade governativa e ao empreendedorismo local, ensaiam-se novas centralidades com o fomento da mobilização cultural e económica das chamadas cidades intermédias, no sentido de estimular o desenvolvimento das regiões rurais circundantes. Promove-se o turismo rural de forma intensa, a produção de produtos regionais de qualidade, os ofícios e as artes 49 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto tradicionais, numa linha de capitalização dos patrimónios naturais e culturais, como recursos importantes para o relançamento das economias pós-agrárias em crise. “Así, se postula cada vez más, que la cultura es una palanca importante para luchar contra las limitaciones estruturales que mediatizan las posibilidades de progreso en el campo, y que la intervención de los factores culturales (actitudes, formas de proyección, parámetros de autocomprensión, hábitos de comportamiento) pasa a ser un elemento fundamental del desarrollo de los medios rurales (...)” (Carpio Martín, 2000, pág. 88). De facto de pegarmos nos exemplos dos programas da Europa comunitária pós PAC, como o LEADER (Ligação Entre Acções de Desenvolvimento da Economia Rural) e o PRODER (Programa de Desenvolvimento Rural), facilmente constatamos que a dependência de rendimentos agrícolas tem sido fortemente desencorajada e que o incentivo ao desenvolvimento de iniciativas privadas ligadas, por exemplo, ao turismo rural, aparecem como a desejada “salvação” para as economias locais (Santos Solla, 1999; Francés i Tudel, 2003). Não cabe aqui analisar em profundidade o conteúdo destes programas, mas a suas linhas filosóficas e operativas têm como objectivo básico impulsionar o desenvolvimento endógeno das zonas rurais, precisamente através da diversificação económica, para travar a regressão demográfica e aumentar os rendimentos e os níveis de qualidade de vida dos seus habitantes (Esparcia Perez et al., 2000; Francés i Tudel, 2003). Este novo paradigma, prevê uma abordagem territorial e não mais sectorial dos problemas rurais, rompendo assim com a lógica da PAC (Gray, 2000; Veiga, 2004). Pretende-se, sobretudo, que através da diversificação funcional nas áreas rurais e com o estímulo às iniciativas privadas de negócio, se criem as condições para reduzir a dependência subsidiária resultante da PAC e que seja possível reanimar as economias locais, apostando nos recursos e no empreendedorismo autóctones. A estratégia passa pela recuperação e valorização dos valores patrimoniais, pelo fomento do sector turístico, pelo apoio às PME’s (Pequenas e Médias Empresas), ao artesanato e a outros serviços, numa linha que eleva o aproveitamento dos recursos locais e a implicação dos actores locais, a elemento de aplicação iminente (Francés i Tudel, 2003). A reanimação do tecido empresarial, através de apoios e subsídios, o fomento de redes de cooperação entre os actores 50 Capítulo III locais e externos e o acentuar de um discurso de valorização do potencial local, concretizam uma perspectiva operativa centrada no estímulo público ao desenvolvimento endógeno, que apesar de ser incentivado e apoiado externamente, é apresentado como tendo pretensões de ser orientado e concretizado “desde baixo” (Esparcia Perez et al., 2000; Francés i Tudel, 2003). Dentro desta lógica, os eixos apresentados como prioritários para o desenvolvimento rural, nomeadamente por instituições como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), passam por várias dimensões que apresentamos em seguida. No que toca à esfera política e institucional, expressa-se a necessidade de tornar o desenvolvimento rural numa prioridade ao nível dos programas, projectos e planos de actuação territoriais, assim como do envolvimento das diversas agências relevantes, numa cooperação e acção integrada, por via do estímulo à participação, ao associativismo, ao empreendedorismo e à conjugação de interesses e contributos distintos. O aumento da proximidade das políticas aos territórios, a garantia de enfoques globais e integrados das políticas rurais, a dotação de maior flexibilidade às instituições administrativas e suas linhas operativas, aparecem igualmente como uma frente importante de transformação. Por relação às inovações e novas possibilidades económicas, diz-se que são indissociáveis enquanto elementos estratégicos, sendo que a busca de novas oportunidades de mercado, ou actividades produtivas, passa por potenciar os recursos rurais segundo novos esquemas, de forma inovadora, quer na aplicação de tecnologias ao nível agrário, quer na promoção dos lugares e seus produtos numa linha criativa e atenta às oportunidades em ascensão (Ivars Baidal, 2000). Novas estratégias para “velhos” produtos ou talvez “velhas” roupagens para novos produtos, parece ser a filosofia mais defendida nos discursos sobre o desenvolvimento rural, no sentido em que se faz a apologia permanente da valorização dos bens patrimoniais locais e de um passado ou herança identitários a capitalizar, sempre enquanto recurso na promoção do que são as novas actividades rurais, as novas linhas de gestão, as novas oportunidades de mercado e a nova esperança do mundo rural (Kneafsey, 2000). Novas relações sociais, económicas e territoriais são fomentadas, tal como novas actividades, novos fôlegos e lógicas de gestão e promoção, no recurso ao que tradicionalmente caracteriza o mundo rural, 51 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto agora reinventado e promovido em novas linhas e através de novos produtos e práticas de consumo. Fazer dos territórios rurais espaços multifuncionais implica a conjugação de diferentes dimensões em que se apresentam diferentes interesses e necessidades. Uma clara dimensão natural e ecológica sai destacada, neste contexto de optimismo perante as potencialidades rurais, no sentido em que, mesmo tendo sido sempre importante, hoje funciona como um factor ao redor do qual se legitima a valorização da ruralidade, por contraponto aos contextos urbanos, muitas vezes descritos como contaminados, desconfortáveis e insustentáveis. A sustentabilidade, a par do património, constitui um dos traços discursivamente mais vincados do projecto de ruralidade reinventada. “La assimilación de lo natural a «aquello que no há sido modificado por el hombre» y de ahí la identificación de los espacios naturales con las áreas rurales a causa de una pretendida menor antropización del paisaje, otorga un valor particular a estos espacios, que se han convertido en depositarios de un valioso patrimonio natural cuya conservación constituye un objectivo social de primer orden que transciende el ámbito de lo rural para convertirse en una aspiración de carácter principalmente urbano (...)” (Kneafsey, 2000, pág. 69). Mesmo que esta temática da valorização do património natural e da função rural de sua preservação seja um assunto a que voltaremos mais adiante pela sua relevância, cabe aqui dizer que neste ponto se sublinha a importância das relações rural/urbano, na configuração das linhas funcionais, estratégicas e valorativas que se vão “impondo” aos territórios. Assim, pode dizer-se que estas “missões” e “desafios”, que se apresentam ao rural na actualidade, parecem brotar mais das interacções com outros territórios e das várias escalas a que actuam as relações económicas, políticas e culturais, do que propriamente do âmago da “ruralidade”. Mesmo que os espaços rurais assumam de forma mais ou menos intensa estes objectivos e funções, é clara a influência e o condicionamento, que do exterior é feito, ao nível da sua configuração e na hierarquização das prioridades e vantagens competitivas rurais, nomeadamente desde os centros urbanos. Continuando com os eixos apresentados como prioritários para o desenvolvimento rural, deve ser dito que a combinação dos interesses inerentes à sua dimensão natural e ecológica, com as suas funções nas esferas residencial, económica/produtiva e recreativa/turística, não só é apontada como essencial no 52 Capítulo III lograr da tal multifuncionalidade, como deve ser aspirada sob o jugo da sustentabilidade (Ivars Baidal, 2000). Ora, existem interesses contraditórios dificilmente colmatados na combinação destas funções, sendo o desafio de compatibilização essencial para concretizar a multifuncionalidade. Num exemplo básico, a aplicação de tecnologias nas actividades agrárias, para aumentar a produtividade e inovar os métodos de produção, muitas vezes estimulada nos discursos sobre desenvolvimento, é um elemento que transforma a paisagem e retira ao cenário rural a ilusão de perenidade das técnicas artesanais, muito veiculada na promoção do turismo rural. Apelar à tradição e à manutenção das práticas e das paisagens para desenvolver o poder de atracção dos consumidores de turismo rural pode ser e é muitas vezes incompatível com o paralelo apelo à inovação e à evolução económica e técnica. Outros conflitos são claros, por exemplo na combinação dos interesses das populações locais e dos proprietários de segundas residências, pelas diferenças de expectativas e opiniões em relação às políticas autárquicas, ou entre os interesses do mercado imobiliário que aposta na urbanização crescente e os interesses patrimoniais, que defendem a preservação dos núcleos rurais tradicionais, com edificações típicas, sem antenas parabólicas, sem espaços para estacionamento, sem semáforos, sem “modernidade” Em suma, destacam-se algumas dinâmicas e funções complexas que confluem nos espaços rurais na actualidade. A dinâmica natural e ambiental, em que se combina a valorização do património natural e a necessidade de sua preservação, com algumas ameaças à sua integridade, derivadas dos processos de modernização e da falta de eficiência dos instrumentos de planificação e protecção. A dinâmica económica e produtiva, em que entram muitas vezes em choque os ritmos sociais e culturais rurais e a progressiva influência dos mercados e dos processos de transformação funcional, cuja adaptação e aceitação não é sempre fácil nem bem sucedida. A dinâmica residencial, em que se assiste à necessidade de combinar distintos usos, tipos de mobilidade e apropriação, ritmos de urbanização, variações demográficas, etc. E finalmente a dimensão recreativa e turística, que participa simultaneamente nas dimensões anteriores, por tomar a natureza como um recurso fundamental, por constituir uma actividade económica e por jogar com os processos residenciais 53 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto A resposta efectiva para o equilíbrio entre as diferentes dinâmicas, numa linha de desenvolvimento e sustentabilidade, passa pela formulação de políticas coerentes e integradoras de todos os interesses. A dimensão ambiental funciona como a base de todas as outras, sendo a sua preservação iminente e, assim, parece claro que apenas através de uma linha de actuação estratégica se pode lograr a coordenação do desenvolvimento de todos os sectores com o mesmo enfoque dinâmico e antecipador da mudança (Ivars Baidal, 2000). O desenho de políticas locais integradas e pensadas desde o território, é considerado fundamental num contexto em que se exigem exemplos de dinamização produtiva e inovação nos espaços rurais. Cooperação e flexibilidade administrativa e produtiva, abertura ao “mundo globalizado” com simultânea preservação da cultura local, são elementos importantes na gestão do que têm sido, por um lado, o aproveitamento de possibilidades de desenvolvimento e, por outro, o equilíbrio entre os desejos de “progresso” e expansão de contactos com o exterior e a valorização dos recursos endógenos e das particularidades locais. No entanto, para além das contradições assinaladas e apesar dos apelos ao empreendedorismo privado e à coordenação de iniciativas, os agentes da administração pública continuam a ter um protagonismo dominante no que são os esforços de promover o desenvolvimento dos espaços rurais. Um exemplo desta tendência é a falta de organização dos promotores privados de turismo rural, que num sector muito fragmentado, não parecem alcançar níveis de associativismo e coordenação suficientes, para concretizar estratégias integradas e potentes de desenvolvimento. Para além disso, é notória a dependência deste mercado para com o financiamento e coordenação das administrações públicas, que trabalham no sentido de dotá-lo de maior eficiência e robustez, na esperança de que este se torne um elemento dinamizador de desenvolvimento económico local. Uma aposta na diversificação produtiva, no empreendedorismo local de PME’s, no aproveitamento e valorização dos recursos locais, na formação de plataformas de cooperação regionais de várias agências, etc., reflecte precisamente, enquanto estímulo, a intenção de impulsionar a reanimação económica dos territórios marginalizados de tradição agrária, num contexto em que a se destaca a importância e o apoio dados ao turismo rural, pelo seu alegado potencial estratégico. Assim, mesmo que se preveja a substituição das tradicionais economias de escala, por economias de gama, dentro das lógicas de diversificação funcional e de 54 Capítulo III adaptação às lógicas produtivas e comerciais actuais com enfoque ascendente e centradas no potencial endógeno, os Estados nacionais, as autarquias, e instituições como a União Europeia (UE), continuam a ser os principais actores que orientam e sustentam estas políticas, existindo um défice de consistência na participação de outras agências (Francés i Tudel, 2003). Para além da diversificação funcional e económica e da combinação sustentável dos distintos usos e desafios, que se propõem para os espaços rurais, a renovação da sua imagem e a concretização de uma estratégia eficaz de marketing territorial, apresentam-se como pontos essenciais nas políticas de desenvolvimento local. O objectivo é apresentar uma imagem renovada de ruralidade que escape aos estigmas e às representações associadas a um mundo rural arcaico e atrasado (Carpio Martín, 2000). Exige-se uma estratégia de comunicação que concretize a afirmação de uma modernidade rural através da promoção da paisagem, do património e da identidade, enquanto ferramentas para o estímulo à mobilização de um projecto de renovação partilhado pelos habitantes rurais, criado desde dentro, mas voltado para o exterior. Nas sociedades de hoje, com o peso estratégico que a comunicação social tem na influência das representações sociais e na formação de opinião pública, a estratégia de transformação da imagem rural deve passar por utilizar os media como um veículo de promoção dos seus recursos (Ferrão, 2000; Beeton, 2004). “Esta é talvez a última fronteira capaz de travar a multiplicação de mundos rurais marginais e agonizantes” (Ferrão, 2000, pág. 53). A criação de uma nova bateria de representações, integrada num projecto maior de desenvolvimento, que estimule a atracção de benefícios e consumidores para as actividades económicas, serviços e produtos locais, parece ser a linha essencial nas políticas territoriais. Mesmo que muitas vezes centrada na promoção do turismo rural ou dos produtos regionais, já é clara a preocupação, nomeadamente das instituições públicas (veja-se o caso da promoção turística assumida pelos governos das regiões autónomas espanholas) para com a necessidade de criar e difundir uma imagem de marca para as regiões e territórios rurais. Á imagem do que acontece nas cidades, o marketing territorial ganha uma relevância inquestionável nos dias de hoje nos espaços rurais, sendo elevado em diversas ocasiões a factor chave para a reversão da marginalidade competitiva de muitos lugares e regiões. 55 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto O marketing rural ao potenciar o capital local acaba por ser seu componente indirecto, no sentido em que a capacidade de mobilização e promoção endógena é também um traço da capacidade de iniciativa e do empreendedorismo do tecido social e económico dos lugares (Garrod et al., 2006). A coordenação é novamente uma necessidade importante, já que na gestão e promoção das imagens dos territórios a contradição é prejudicial, devendo existir um trabalho integrado de construção de uma imagem visível e unificada. A “chamada imagem de marca” deve ser encontrada e difundida, devendo também conter a bateria de significados e valores a acentuar, do conjunto de recursos locais mais vantajosos estrategicamente (Ward, 1998). Este aspecto torna-se sobretudo importante na promoção do rural enquanto destino turístico, sendo ao redor desta questão que mais se reflecte em torno do marketing de territórios rurais. Na promoção do rural como destino, a unificação das imagens rurais e a sua simplificação parece ganhar força, sendo até demasiado simplista e uniformizadora (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Falaremos adiante dos significados e valores que compõe a imagem do rural idílico que costuma ser veiculada na promoção turística, mas podemos desde já adiantar que pela intensidade da sua projecção nos últimos anos, tende a contribuir enquanto elemento dominante para as representações de ruralidade com maior impacto e abrangência. Esta imagem do rural, enquanto paisagem sonhada e propícia à fruição turística, uniformiza contextos rurais muito distintos sob uma mesma representação e contribui para o novo estereótipo de ruralidade dominante, por vezes perigoso pela sua rigidez e simplismo (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). “(…) el espacio sobre el cual se efectúa el enfoque principal podría llegar a parecer inauténtico, velado por una capa de homogeneización o estereotipación de sus elementos que asimila todo el paisaje a una postal comercial. Las voces resuenan con un término que reiteramos y al que se adhiere un temor común: banalización.” (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998, pág. 60). Por outro lado, esta exaltação das paisagens e tradições rurais, ao representar as identidades locais, pode servir de resposta e reacção à homogeneização e uniformização que a globalização tende a alimentar ao nível cultural e das representações, dentro de uma lógica de acentuação dos localismos e sentimentos de pertença territoriais, que servem de ancoragem identitária num 56 Capítulo III mundo em transformação (Ferrão, 2000). A questão da autenticidade é muito importante quando se discute a promoção dos patrimónios locais, no sentido em que por vezes acaba por ser um “falso” valor que “naturaliza” as tradições e as identidades. Estas como construções sociais, não podem ser encaradas e interpretadas segundo valores e lógicas simplistas, que muitas vezes recorrem à noção de “verdade” e “pureza” de forma demagógica. Sendo claro que as imagens dos territórios são construções sociais, como o são a valorização patrimonial, a percepção dos espaços, as identidades e as representações, o seu interesse reside precisamente nas dinâmicas ideológicas, sociais, históricas e políticas que as formatam e influenciam e não no seu “fundamento” ou correspondência com uma eventual “realidade verdadeira”. Essas imagens e projecções antecedem a gestão e configuração das paisagens e dos territórios, tendo uma importância inquestionável no que são as linhas ideológicas e filosóficas que sustentam os projectos de intervenção e percepção dos espaços. Assim, o entendimento do que, em cada contexto geográfico e temporal, rege as valorizações e concepções em torno do que deve ou não conter, do que é e deve ser, um território, permite a inteligibilidade das dinâmicas de gestão dos espaços, sua configuração e valor (Bunce, 1994; Entrena Durán, 1998). As paisagens sonhadas são, de facto, tão reais como as materiais, no sentido em que o seu efeito e consequência enquanto projecção a concretizar, pelo menos o mais possível, acaba por ser palpável, nem que seja nos discursos e narrativas ou na hierarquização do que em cada momento deve ser protegido ou promovido (Bunce, 1994). O caso dos produtos da terra, que iremos abordar em diante, acaba por ser paradigmático neste contexto, no sentido em que a sua valorização e comercialização crescentes, acompanham o incrementar de representações bucólicas, em torno do rural saudável e tradicional, que vai ganhando voz nas nossas consciências e preferências de consumo. A classificação de lugares e produtos como bens patrimoniais ou locais é um exemplo da “materialização” das dinâmicas de valorização que, desde as representações, enchem os discursos. Essas dinâmicas são alimentadas como mais um eixo das políticas de desenvolvimento local, ao que parece dirigidas pelos poderes públicos, mas neste caso concreto, inquestionavelmente alimentadas e acarinhadas também pelo mercado de consumo, que hoje, como veremos, aproveita 57 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto a ruralidade para fazer vender qualquer tipo de bem, num aproveitamento do poder que os seus significados têm na contemporaneidade. A publicidade e o marketing territorial têm como objectivo, não só a atracção de atenções externas, mas também a mobilização e estímulo dos habitantes locais, para o projecto de renovação e aproximação à imagem projectada (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Como é muitas vezes apontado na literatura, esta é uma estratégia essencial para a implicação dos actores locais, sem a qual está impossibilitado o percurso rumo ao desenvolvimento e à “concretização das imagens sonhadas”. O aumento da auto-estima local é sem dúvida um dos efeitos mais positivos da promoção das paisagens e elementos rurais e sua valorização patrimonial (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998; Santos Solla, 1999). Isto acontece porque se nas percepções dos urbanitas as tradições, práticas, paisagens e estilos de vida são fortemente valorizados, aquilo que durante décadas era visto como sinal de atraso, por oposição ao modelo de progresso industrial urbano, é elevado a motivo de orgulho e a objecto de preservação. “(…) hasta relativamente poco tiempo dominaba mayoritariamente en Europa una convención positivo hacia la ciudad y negativo hacia lo rural. Por el contrario, la idealización del campo ha supuesto el cambio de consideración de elementos antes percibidos como negativos.” (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998, pág. 55). Sobre estas questões iremos tecer desenvolvimentos nas próximas secções, mas importa referir, desde já (e uma vez mais), o facto de esta valorização partir dos territórios urbanos e funcionar como uma substituição das antigas lógicas de dependência territorial e das funções rurais tradicionais, pelo seu usufruto enquanto cenário de consumo e recreação (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Por outro lado, é clara também a relação que existe entre essa valorização rural e uma correspondente “desvalorização” da vida nas cidades, no sentido em que mesmo não se assumindo que na ruralidade a vida seja perfeita, sublinha-se que é melhor que nos centros urbanos. Esta comparação subliminar presente nestas representações e lógicas de valorização, acaba por sublinhar a importância que têm as categorias e as relações territoriais, na configuração das hierarquias de valores que centralizam ou marginalizam os espaços, nem que seja ao nível dos discursos. Posto isto e para sistematizar a reflexão em torno da dimensão estratégica do discurso de reinvenção da ruralidade, importa sublinhar que o reforço da necessidade de encontrar soluções para os problemas das áreas rurais, que 58 Capítulo III auferem grande protagonismo nas agendas políticas e mediáticas na actualidade, não só precipita uma bateria de medidas e estímulos, como nos leva a afirmar que o rural é um problema em que se quer pensar. Outro aspecto relevante, é que as políticas de desenvolvimento rural associadas ao discurso tendem a estimular a reconfiguração funcional e a aposta em actividades alternativas à agricultura, numa abertura do mundo rural a novos usos, mercados e aproveitamentos. Mais concretamente, assiste-se a uma terciarização das áreas rurais (sob o apelo genérico à multifuncionalidade), acompanhada de uma sua transformação em espaços de consumo e não mais de produção. Com isto, transformam-se as relações territoriais e as antigas lógicas de dependência entre a cidade e o campo, ao mesmo tempo que, no processo, acaba por sair facilitada a rentabilização do potencial rural que, no quadro de vazio funcional de e estagnação produtiva, estava desaproveitado (dentro do que são as lógicas do sistema capitalista). No entanto e contrariamente ao que é apresentado como desejável pelas políticas de desenvolvimento rural, as iniciativas de investimento, gestão e valorização do potencial rural, assim como o controlo e a retirada de dividendos dos esforços de reinvenção, continuam a ser maioritariamente públicos ou externos, sendo rara a endogeneidade apregoada. De referir é também a valorização da dimensão patrimonial e ecológica da ruralidade, patente na apologia da aposta em recursos culturais e naturais, no quadro das estratégias de promoção e reanimação económica dos territórios rurais. Cultura e natureza, património e sustentabilidade são, desta feita, apresentados como sendo factores centrais e estratégicos, no projecto de ruralidade reinventada, constituindo os recursos essenciais e distintivos do mundo rural, cuja preservação funciona como a sua missão fundamental. A renovação das imagens associadas aos lugares e à ruralidade em geral aparece como um vector estratégico fundamental, apostando-se no marketing territorial e recorrendo-se ao poder cultural do Ideal Rural (de que falaremos em seguida), para estimular a valorização das localidades e do potencial rural e para a reforçar a viabilidade do projecto de ruralidade reinventada. O discurso que o veicula, nesta dimensão estratégica e política que ensaia a sua concretização, é forte e disseminado, mas deve ser dito que a sua aplicação é ainda bastante (es)forçada, não só pela fraca endogeneidade das iniciativas de desenvolvimento e 59 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto pela tímida reversão dos problemas rurais que logrou até aqui, mas porque as realidades territoriais são muito complexas e poucas vezes “idílicas”. Estando claro que estas estratégias de desenvolvimento rural passam por uma diversificação funcional, muito dependente do fomento de actividades de consumo e recreação, alimentadas pelas representações de uma ruralidade idílica e que a sua promoção é eixo fundamental das políticas públicas, devem ser esclarecidos os contornos dessa imagem sonhada e instrumentalizada. Havendo uma estratégia política e técnica definida, que tem como objectivo a concretização de um projecto de reinvenção da ruralidade, por via dos esforços de desenvolvimento e de reversão da crise rural, importa conhecer a “matéria-prima” que alimenta esta assunção de potencial de reinvenção e a promoção dos territórios e seus produtos, tão fortemente implicada nos eixos estratégicos e operativos concretos que apresentámos. Importa conhecer o rural idílico, já que o espacial, social e económico, parece ser-lhe dependente. Importa conhecer o sonho a que se aspira e em relação ao qual se tentam aproximar os territórios, quando concretizadas as políticas e estratégias de desenvolvimento. Se o rural é muitas vezes mais tangível enquanto construção social ou como bateria de representações, do que enquanto território geográfico concreto, faz falta tentar traçar os seus contornos e “puxá-lo” para a mesa, tratá-lo como uma “coisa”, chegar perto…e é isso que se segue nas próximas páginas. 2. A Matéria-Prima. O Ideal Rural ou o discurso cultural de romantização da ruralidade A construção e difusão de um ideal rural é temática recorrente na literatura anglo-saxónica, principalmente porque historicamente foi fenómeno central nas políticas de estímulo à coesão social e à identidade nacional na Inglaterra da Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras Mundiais. Aqui importa perceber as origens e os contornos desse ideal e a sua aparente reascensão estratégica, neste quadro de reinvenção dos espaços pós-rurais em crise. Sendo claro que pode ter distintos aproveitamentos e objectivos, a construção e difusão de uma ruralidade idílica não deixa de ser um fenómeno enraizado culturalmente nas sociedades ocidentais, com vários séculos de sedimentação e oscilações, mas quase sempre presente na arte e na literatura. 60 Capítulo III De facto é longa a história de “romantização” da natureza e da vida rural nas sociedades ocidentais, podendo ser identificados, pelo menos dois momentos, até aos dias de hoje, em que o ideal natural e rural foi de forma mais intensa alimentado e veiculado. Por um lado, no Renascimento, principalmente durante o século XVIII, em que os motivos naturais eram elementos centrais na pintura e em outras formas de arte e em que o apreço pela natureza, transformada e controlada pelo Homem, elevava a construção de jardins a prática recorrente, sobretudo por parte das elites. Por outro, na época Romântica do século XIX, com o avançar do capitalismo e da industrialização, em que a natureza virgem e selvagem passa a ser alvo de grande valorização, principalmente enquanto símbolo do que vai sendo progressivamente “perdido” com o avançar da técnica e como possibilidade viva de um eventual regresso às “origens” (Bertoncello, Castro & Zusman, 2003). Acontece que hoje, existe uma elevação sem precedentes da ruralidade enquanto espaço de uso e não apenas de contemplação, concretizando-se a promoção e “venda” do rural enquanto produto, bem de consumo e contexto de fruição, mas paralelamente também enquanto protagonista de uma renovação, enquanto agente da mudança do seu próprio rumo: “The countryside itself became the protagonist, a living being to conquered by living in it, not passively enjoyed in the Romantic and even Modernist styles.” (Beeton, 2004, pág. 127). O ideal rural aparece como uma alternativa à insustentabilidade urbana e a sua valorização é fruto, tal como ciclicamente o foi no passado, das transformações sociais e do seu “rasto” de instabilidade e insegurança (Bunce, 1994). Isto não quer dizer necessariamente que, nos discursos, o mundo rural seja apresentado como uma alternativa real à cidade, nem que o ideal rural promova um êxodo urbano concreto e expressivo, mesmo se em alguns países europeus sejam palpáveis alguns fenómenos de contraurbanização e grupos de “novos rurais” ganhem alguma visibilidade mediática e científica. De facto, mais do que uma alternativa, o rural idílico representa uma alteridade para a cidade, como um contraponto que permite questioná-la, um escape para as ansiedades que a rodeiam e uma ideia de qualidade de vida que remete para uma outra possibilidade de vida e de território. Mais uma vez, como no passado, são as elites ou as instituições públicas quem promove os movimentos de valorização do rural e a difusão das suas imagens “romantizadas”, ora a partir de suas práticas ou políticas, ora pelas representações 61 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto que da ruralidade são veiculadas na arte e na literatura (e, actualmente, nos media) (Bunce, 1994). O ideal rural vem sendo forjado pelas sociedades urbanas e tem tendência a intensificar-se em épocas de maior transformação e força do urbanismo e, neste caso, do capitalismo de mercado. Assim sendo, actualmente estamos a assistir ao auge da sua difusão, cada vez mais elevada à medida que as ansiedades, correspondentes às mudanças e às “crises” da cidade, vão crescendo. A aparente necessidade humana de contacto com a natureza alimenta e é, ao mesmo tempo, aproveitada para sustentar a valorização do ideal rural nos dias de hoje, contendo a carga simbólica e mitológica que está enraizada na cultura ocidental. “The countryside thus becomes a symbolic landscape because it conveys meanings which speak of the very associations which urbanism and modernism have broken, and which our nostalgia drives us to restore.” (Bunce, 1994, pág. 208). A carga simbólica inerente ao ideal rural difundido tem o poder de condicionar os territórios, como foi dito, e isto revela-se de diversas maneiras em dinâmicas múltiplas, quer nos espaços rurais, quer nos urbanos, qualquer que seja o grupo social, muito embora nas elites o poder de concretização do “sonho” seja maior. Como exemplos do poder do ideal rural, podemos adiantar a proliferação crescente de segundas residências adquiridas pelos urbanistas nos espaços rurais, ou o estilo arquitectónico rústico que muitas vezes inspira a construção das vivendas suburbanas. Estas reapropriações do ideal rural, as “bricolages” estilísticas, os anacronismos estéticos e os recursos a heranças imaginadas, parecem ser cada vez mais comuns no contexto da globalização, com a exaltação de localismos e tradições, como resposta à força uniformizadora da cultura de massas. Sendo claro que a dominação das dinâmicas de construção destas representações e dos veículos de sua promoção está nas mãos das elites urbanas, não será estranho que a fruição dos “tesouros” da vida bucólica seja comercializada nos seus circuitos, naquilo que se constitui como a reprodução das hierarquias sociais e de consumo, ao nível das actividades de recreação e formatação dos territórios rurais. É o olhar urbano que centraliza o ideal rural, é o urbanita quem desfruta da ruralidade enquanto cenário de ócio, estando reforçado o carácter externo da valorização e aproveitamento dos recursos rurais, apenas idealmente rentabilizados e geridos endogenamente. 62 Capítulo III ”Por tanto, el asunto puede entenderse dentro de una continuación de la tradición de dominación urbana en clave de relaciones centro-periferia, que ahora demanda no productos sino servicios, justificandolo a travérs de conceptos como conservación del património, desarrollo, etc. Ya no se necesitan las materias primas ni los alimentos, pero se está dispuesto a comprar, y desgraciadamente para los rurales, en gran medida, controlar, un nuevo recurso que hasta ahora no había sido internalizado por la economía: el paisaje rural.” (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998, pág. 55). De extremo interesse é o facto de na actualidade a manipulação da paisagem ser essencial para o cumprimento das estratégias de “commodification” do rural, exigindo-se a aproximação dos espaços aos mitos e imaginários bucólicos de ruralidade. Já não se trata apenas de aplicar manobras fachadistas de “decoração” rústica dos povoamentos ou dos edifícios, senão que se manipula a paisagem, se “retrocede artificialmente” nas práticas para voltar às actividades económicas tradicionais, esconde-se a maquinaria e tudo o que possa ser conotado com o esforço e com a crueza do trabalho agrícola, aposta-se na ostentação da gastronomia tradicional, moldando-se os estilos de vida, a natureza, as relações sociais e os artefactos para caber nos “sonhos” dos consumidores (Bunce, 1994; Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Mantêm-se as práticas agrícolas, por exemplo, mas não enquanto fonte principal de rendimento ou actividade produtiva por si, senão, muitas vezes como parte do cenário bucólico rural, ocultando os elementos associados que não correspondem aos parâmetros idílicos. O isolamento geográfico, por exemplo, é visto muitas vezes como uma vantagem, pelos consumidores urbanos do ideal rural, no sentido em que está mais fortemente garantida a “pureza” da paisagem e dos estilos de vida, em territórios menos “contaminados” com as “desvirtuantes” influências modernas. Neste ponto é clara a divergência de interesses em que distintos eixos de desenvolvimento podem colidir, já que se é importante a acessibilidade para muitas actividades produtivas e para o logro do desenvolvimento e da qualidade de vida da população, no caso do turismo rural, a ideia de inacessibilidade pode ser vista como atraente e como factor de garantia da autenticidade do “quadro”. Estas mudanças nas lógicas de gestão e promoção do rural, tendem a, por um lado, esconder os factores de mudança ou forjar um ambiente de perenidade 63 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto secular de paisagens e práticas e, por outro, a ensaiar práticas criativas e inovadoras de diversificação económica e cultural. São claros os conflitos de interesse, divergências e contradições estratégicas que pulverizam as manobras de reanimação dos espaços rurais, estando assim, mais uma vez, reforçada a necessidade de desenvolver políticas integradas e direccionadas a este nível. O território deve transformar-se ou preservar-se intacto conforme os interesses económicos associados às actividades culturais e recreativas, apresentadas como a “salvação” para a crise funcional do mundo rural. Noções como “qualidade”, “autenticidade” e “tradição” são utilizadas para reforçar a necessidade de preservação dos espaços e patrimónios rurais, cristalizados, assim, em cenários de ócio polivalentes, capazes de proporcionar segurança e aventura, consoante os desejos dos seus consumidores (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Estas dinâmicas são construídas politicamente, sempre com o aproveitamento da bagagem cultural e artística, que nos nossos imaginários sociais, há muito tinha desenhado e inculcado a imagem de ruralidade bucólica. A ideia de que se pode construir paisagem apaga a barreira secular entre cultura e natureza, no sentido que o que é tido como natural, tem no rural, cada vez mais origem nas práticas culturais de “renaturalização” que forjam um património supostamente selvagem (DuPuis, 2006). “In the study of landscape, nature becomes entangled in the dreams of modernity, a repository of everything civilization is not: pure, inhabited, unconscious, non-rational, free of inhibitions and intent. In romantic thought, nature becomes the good to civilization’s bad (…)” (DuPuis, 2006, pág. 125). A modernidade traz consigo duas narrativas importantes e paralelas, já que, por um lado, reforça o mito do controlo humano sobre a natureza e, por outro, promove a nostalgia pela pureza natural perdida. Estes sentimentos aparentemente contraditórios parecem coexistir, neste contexto, de forma irónica, na medida em que é da manipulação humana da paisagem que se cria a ilusão de refúgios selvagens intactos. O ideal de ruralidade consiste num espaço socialmente homogéneo e seguro, em que homem e natureza convivem de forma harmoniosa, em que a vida é serena e familiar, em que as práticas agrárias e artesanais seculares ainda se mantêm intactas e tradicionais (não sendo extenuantes), em que a gastronomia é uma herança de saúde e de bem-estar, as construções estão integradas na paisagem e 64 Capítulo III não cederam às “modas urbanas”, o tempo é vivido lentamente e a exuberância da fauna e da flora promovem momentos de fruição, quer para os espíritos mais aventureiros, quer para os que preferem o relaxamento e a contemplação. Esta visão fortemente formatada debaixo dos valores elitistas dominantes, dificilmente prevê a coexistência de diferentes grupos étnicos ou sociais, a não ser que seja segundo as lógicas, também seculares, de hierarquização rígida da divisão do trabalho, em que os momentos de contemplação e ócio estão reservados para uma minoria privilegiada de gosto refinado (Dupuis, 2006). Nem sob o actual interesse numa promoção intensa do turismo rural é vantajosa uma total democratização do rural enquanto destino, no sentido em que uma massificação não seria sustentável e os serviços estão direccionados para um público informado e com um poder de compra mais elevado, por comparação aos consumidores do turismo de litoral. A elite que cria, difunde e usufrui dos aproveitamentos económicos do ideal rural, quer enquanto consumidor, quer enquanto promotor, sendo urbana e tendo, desta feita, um controlo sob as lógicas de gestão destes territórios, constitui uma resistência às possibilidades redistributivas que se esperam viáveis, a bem da concretização de um projecto de desenvolvimento real em favor das populações rurais. Os jogos de poder por detrás destas questões, os conflitos de interesse e as dificuldades operativas de concretizar um desenvolvimento pensado e orientado endogenamente, contribuem para que permaneçam as dúvidas quanto à capacidade reguladora das instituições públicas nesta matéria, mas reforçam inquestionavelmente a sua importância (DuPuis, 2006; Short, 2006). O ideal rural apesar de muitas vezes uniformizar e formatar estereotipadamente as paisagens e práticas sociais, apesar de ser alimentado por interesses muitas vezes elitistas e apesar de não ter sempre repercussões imediatas nas dinâmicas de desenvolvimento locais, tem contudo a vantagem de reverter as ideias negativas e os estigmas que, durante décadas, contribuíram para o esvaziamento, decadência e paralisia dos territórios rurais em crise (Short, 2006). Mesmo que muitos dos seus elementos continuem a ser vistos como sinais de atraso pelos seus habitantes, maior valorização começa a ser dada pelos mesmos aos seus patrimónios culturais e naturais e às suas práticas quotidianas. A idealização do rural é um sintoma da urbanização, sendo na cidade que mais facilmente se encontra as manifestações e os ecos dessa bateria de 65 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto representações positivas da ruralidade. A sociedade de consumo utiliza o ideal rural para vender quase todo o tipo de produtos, através de associações e conotações, que remetem para os valores e elementos rurais e tradicionais mais prestigiados. Dentro desta dinâmica de comercialização do rural, é vendido o ideal ao mesmo tempo que se ajuda à venda de vários produtos. “Adverts for a whole host of products and services trade on the positive connotations of the rural. It is visible in trends in interior décor, home furnishings, garden design and clothing ranges.” (Bell, 2006, pág. 150). Num resumo dos ideais-tipo abrangidos pela ruralidade idílica recorrente, teríamos o natural/selvagem, o desportivo e de aventura, e o agrícola, mas artesanal, como os cenários mais marcados nos imaginários. Acontece que a projecção do ideal rural condensa as suas diferentes vertentes, numa combinação de um conjunto de elementos que por “osmose” se unem sob o signo de “rural” nas nossas representações. Esses elementos são a natureza, o romantismo, a autenticidade e a nostalgia, no que parece ser uma bateria de “gatilhos” emocionais e imaginários que disparam todo o tipo de conotações idílicas a este nível, quando se pensa em ruralidade e rapidamente se tece um quadro de moldura rústica alimentado de visões oníricas (Bell, 2006). “It is first and foremost a symbolic landscape into which is condensed and onto which are projected a whole host of things: identifications, imaginings, ideologies.” (Bell, 2006, pág. 151). A combinação e uniformização de muitas ruralidades sob um mesmo ideal por vezes redutor, apesar de ser simplista pode, de facto, facilitar o alcance das representações, no sentido em que torna uma realidade complexa mais facilmente apropriada. A inteligibilidade de cada lugar, enquanto espaço social específico e complexo, é preterida em função de uma adopção emocional da imagem culturalmente “familiar” e digerida pela sua recorrência na arte, na literatura, nas narrativas, na publicidade etc., mesmo que seja demasiado limitada para corresponder aos lugares reais e suas especificidades. O ideal rural pode ser veiculado em diferentes suportes, adaptando-se aos registos distintos, mas mantendo os seus contornos. Na globalização, o ideal rural transpõe fronteiras e exalta os localismos que ancoram as identidades num processo de adaptação e resistência aos avanços da cultura de massas; nos media alimenta a publicidade e é exaltado em diversos tipos de programas, filmes e 66 Capítulo III imagens; à mesa abre todo um novo rol de “velhos” paladares para degustar, está associado à saúde, a ingredientes orgânicos e a sabores tradicionais; no turismo apresenta-se como uma nova atracção, um novo mercado em ascensão; e nos quotidianos, por estar presente em todas estas esferas, ganha uma centralidade sem precedentes (Bell, 2006). O facto de o ideal rural ser uma construção social que culturalmente está enraizada nos nossos imaginários colectivos facilita o seu aproveitamento político. Esse aproveitamento pode ter distintas finalidades, tendo servido, no caso da Inglaterra da Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras, como um reforço da coesão social e nacional. Hoje, no contexto da globalização, contribui para dar sentido ontológico num tempo de instabilidade e de suposta homogeneização cultural à escala mundial. Ao passo que, integrado no discurso de reinvenção da ruralidade e nas suas estratégias de desenvolvimento, está ao serviço da reversão do quadro de marginalidade funcional do mundo rural, nomeadamente como um poderoso recurso para o marketing territorial. Aproveitar as oportunidades de mercado, que a centralidade do ideal rural vai abrindo, de forma a lograr desenvolvimento, numa linha de mobilização endógena de recursos e projectos, implicaria que a dominação urbana da sua construção, alimentação e consumo, não estivesse tão estabelecida em circuitos elitistas de poder. De facto, em muitas esferas o usufruto das virtualidades da ruralidade turística, gastronómica, paisagística e artesanal, está monopolizada, tanto no consumo, como na promoção e nos lucros, por uma minoria privilegiada de urbanitas ou proprietários, que mesmo podendo ser de origem rural, assumem muitas vezes estilos de vida urbanos e estão envolvidos em redes sociais exteriores às comunidades locais. Deve ser pensada uma solução para estas limitações ao nível da redistribuição dos dividendos retirados dos “negócios” alimentados pelo ideal rural, já que discursivamente é apresentado como objectivo, que estes revertam em favor das comunidades. Por outro lado, sendo uma construção social urbana, que faz sentido enquanto alteridade ao seu modelo de organização territorial, e que vive sobretudo (promocional e oniricamente) no espaço da cidade, torna-se difícil deslocar o domínio da produção destas representações e seu controlo para o mundo rural, até porque este não tem o mesmo poder competitivo a nível económico e a mesma força de influência cultural no seio da globalização. De qualquer forma, por 67 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto todas estas razões, o papel dos poderes públicos sai reforçado, naquilo que diz respeito à regulação, orientação e gestão destes problemas e potencialidades, bem como na coordenação das estratégias de promoção e desenvolvimento territoriais. Deve ser igualmente reforçado que o turismo rural aparece como a actividade sobre a qual são depositadas mais esperanças, enquanto fonte de rendimento e estímulo ao desenvolvimento do mundo rural, e que é em torno desta actividade que mais se reforça e utiliza o poder de atracção e promoção do ideal rural. Para além do turismo, a gastronomia, o artesanato e os chamados “produtos da terra”, parecem compor o conjunto dos produtos rurais mais promovidos e conectados ao ideal rural. Percorridas as estratégias e eixos de desenvolvimento e reanimação do mundo rural, discutida a sua “matéria-prima” cultural, pela descrição das dinâmicas que rodeiam a produção, aproveitamento e promoção do ideal rural, importa então pensar nos produtos, apregoados como estratégicos neste processo de reinvenção. As actividades e produtos “vendidos” sob o signo da ruralidade podem ajudar a percorrer o caminho que vai desde as intenções políticas que regem as estratégias de desenvolvimento, baseadas em grande parte na imagem idílica de ruralidade (cultura, tradição, património, paisagem, artes e ofícios), até aos serviços e bens de consumo que na realidade concreta e económica, são apresentados como potenciais alavancas para as crises funcionais e produtivas do mundo rural. Esperamos analisar as linhas em torno das quais se tecem as potencialidades e os valores estratégicos destes produtos e entender até que ponto alimentam e são alimentados da imagem de rural idílica, ao que parece cada vez mais difundida e dominante nas negociações simbólicas que de forma competitiva se constroem ao redor dos territórios. Posto isto, e porque o turismo rural assume uma centralidade ímpar nos discursos sobre as possibilidades de desenvolvimento rural, tomá-lo-emos de forma mais aprofundada, para depois ir tocar na gastronomia, nos “produtos da terra” e no artesanato, e desenhar assim o quadro de produtos mais recorrentes nos discursos em torno desta ruralidade consumível. 68 Capítulo III 3. O Rural enquanto produto e os produtos rurais. O discurso promocional e comercial em torno do rural consumível. Três grandes factores contribuem para que na actualidade o turismo rural assuma tanta visibilidade, pelo menos discursivamente. Por um lado, o papel incentivador do sector público, que no quadro das políticas de desenvolvimento rural tem promovido e apoiado iniciativas de implantação de serviços turísticos como uma das principais medidas de concretização da diversificação funcional do mundo rural e muitas vezes como a possível “salvação” para decadência económica destes territórios. Por outro, as transformações nas pautas de comportamento dos consumidores turísticos nos últimos anos, que faz ascender destinos alternativos, ao turismo massivo de litoral, numa linha de valorização dos patrimónios natural e cultural, como elementos essenciais para a qualidade e consistência dos espaços turísticos. Finalmente, a importância do crescimento dos discursos e práticas ecológicas na contemporaneidade, que impõe progressivamente preocupações de sustentabilidade às práticas turísticas e que, no rural, parecem encontrar possibilidades de sua concretização, aliadas ao usufruto do contacto com a natureza (Mediano, 2004). A primeira dinâmica prende-se com as estratégias políticas de desenvolvimento rural que anteriormente já foram exploradas e com o importante papel das administrações públicas no incentivo e apoio financeiro à implantação de actividades turísticas no mundo rural. A segunda, por seu turno, cabe desenvolver brevemente neste ponto e diz respeito a um novo tipo de consumo turístico que ganha cada vez maior peso, enquanto influência da oferta de destinos e serviços. As características do chamado “turista pós-fordista” prendem-se com a sua preferência por destinos pouco procurados ou sem os desconfortos de uma concentração massiva de turistas, com o carácter eclético das suas escolhas, podendo ser muito distintas ao longo do tempo, com o seu elevado poder de compra e capital cultural e com o facto de terem preocupações com a qualidade, autenticidade e sustentabilidade dos elementos patrimoniais de cada lugar visitado (Mediano, 2004). Uma maior segmentação do mercado turístico, um crescimento em termos de importância do segmento de maiores de 55 anos, uma maior exigência de qualidade, tanto do destino como dos serviços prestados, uma preferência por experiências turísticas mais participativas, um aumento do número de viagens independentes e 69 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto de viagens de longos percursos e um binómio recorrente – falta de tempo/disponibilidade de dinheiro, são as tendências que actualmente marcam a procura turística. Estas, aliadas à referida eminência das preocupações com o meio ambiente, justificam a preferência crescente que o turismo rural tem angariado nos últimos anos (García Henche, 2006). Este último ponto prende-se com a importância da consciência ecológica que deve acompanhar tanto a promoção como o consumo turísticos nos contextos rurais na actualidade, a bem da sustentabilidade dos patrimónios naturais que compõe os destinos e da manutenção da aura de “turismo inofensivo”, que dita as preferências dentro destas novas lógicas de consumo. Assim, no rural, este elemento deve assumir cada vez mais centralidade, tanto enquanto argumento de sua promoção como destino, como enquanto preocupação a contemplar nas políticas públicas de seu incentivo e nas medidas reguladoras dos diversos níveis de administração (Mediano, 2004). Estes apelos à sustentabilidade, bem como os que se prendem com os elevados níveis de exigência dos “novos consumidores turísticos”, heterogéneos nas escolhas e com alto nível de informação, aumentam, de facto, a necessidade de cumprir uma elevada fasquia no turismo rural, que deve contemplar diversos tipos de demandas e oferecer serviços à altura de um público multifacetado (Ivars Baidal, 2000). Definir “turismo rural” ou “turismo em espaço rural” pode ser uma tarefa complexa, atendendo, como vimos à própria noção de ruralidade, que tampouco parece ser simples de traçar. No entanto, remetendo para a definição de turismo da Organização Mundial de Turismo (1993) podemos assumir que turismo rural é o conjunto de actividades realizadas pelos indivíduos durante as suas viagens e estâncias em lugares diferentes ao seu contexto habitual, por um período de tempo consecutivo inferior a um ano e superior a uma noite, com fins de desfrutar dos atractivos do “rural”, em territórios de tradição agrária recente ou em curso, com paisagens naturais abundantes, baixa densidade de povoamentos e edificações e em que esteja garantida a sustentabilidade dos patrimónios naturais e culturais. Dentro do que são os “derivados” do turismo rural, apontamos consoante a procura (motivação, tipo de práticas a desenvolver e serviços exigidos), um conjunto de ofertas ou tipologias relacionadas, mas distintas em determinados elementos. Pode identificar-se o agro-turismo, cuja procura está motivada pelo contacto e fruição das actividades agrícolas ou pecuárias; o ecoturismo, motivado pela vontade 70 Capítulo III de participar em trabalhos de preservação ambiental, ou pela intenção de visitar e conhecer reservas, parques naturais ou todo o tipo de espaços de preservação dos ecossistemas, o turismo desportivo ou de aventura; o turismo cultural rural; o turismo de interior, definido pela demanda com critérios geográficos de selecção excludentes das franjas litorais; o turismo alternativo, entre outros (Ivars Baidal, 2000). A filosofia por detrás do turismo rural assume, como dissemos, a sustentabilidade como valor inalienável, sendo vasto o conjunto de factores que suportam a sua garantia. Entre eles podemos apontar, de forma sintética, a integração dos empreendimentos de acordo com a paisagem, a escala da comunidade local, a autenticidade dos elementos “vendidos”, o contacto pessoal entre turistas e autóctones, a predominância de empresas familiares, o favorecimento do desenvolvimento local, a preservação do meio ambiente, o incrementar do conhecimento e qualidade do património cultural, o apoio aos meios de vida rurais, a implicação da população na gestão e controlo do desenvolvimento turístico, e uma visão integrada e a longo prazo, voltada para o desenvolvimento territorial. Assim, quando nos discursos políticos e técnicos se fala de turismo rural, é patente a omnipresença do argumento que este é de grande utilidade para desenvolvimento local, dentro da filosofia de valorização do empreendedorismo local, associado sempre às questões de sustentabilidade ambiental e de preservação dos patrimónios culturais. “Los fundamentos de los paradigmas del desarrollo mencionados parten de una sensibilidad sociopolítica que se plasma en un proceso de desarrollo, con objectivos preferentemente cualitativos, instrumentado a través de una organización institucional adecuada y de un necesário apoyo técnico.” (Ivars Baidal, 2000, pág. 79). Objectivos como a satisfação das necessidades da população, a sua manutenção e o seu favorecimento primordial, segundo lógicas institucionais e organizativas em que os distintos poderes agem de forma concertada e em coordenação e existe a participação dos contributos privados, em articulação com actores públicos, numa estratégia planificada a longo prazo, que antecipe as mudanças, faça a gestão de recursos escassos e proceda a uma monitorização permanente dos resultados, são apresentados como preocupações de sustentabilidade na implementação do turismo rural. A estas linhas soma-se a 71 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto existência de uma ampla e sólida base social, uma sensibilidade para com a escala local, seus recursos, necessidades, dinâmicas específicas, etc., a preservação dos ecossistemas e o logro da tão referida diversificação funcional (Ivars Baidal, 2000). Como foi referido aquando da reflexão sobre o ideal rural, os consumidores de turismo rural procuram uma mudança de ambiente, uma ruptura com o contexto urbano do dia-a-dia, num lugar tranquilo, que permita o contacto com a natureza, o convívio humano, uma alimentação saudável ou com sabores alternativos aos do quotidiano, uma sensação de “familiaridade” com um eventual passado perdido e uma espécie de regresso à tradição. “Los turistas que deciden realizar turismo rural tienen en mente romper con la formalidad de su comportamiento en la ciudad. Buscan el campo y una oportunidad para restituir sus energías y el equilibrio. Un turista que valora su calidad de vida busca un pueblo pequeño, tranquilo, con naturaleza viva y cultura local atrayente.” (García Henche, 2006, pág. 137). A procura turística tem como intenção encontrar os traços que do ideal rural se pretendem transpor para os territórios, a saber, povoações pequenas e pouco densas, uma estrutura produtiva agrícola e artesanal, uma paisagem natural aberta e que favoreça a contemplação, contactos interpessoais facilitados, maior ligação entre os espaços privados e públicos, gastronomia típica, arquitectura tradicional, etc. (Millán Escriche, 2002). O rural, enquanto produto turístico, tem, de facto, as suas especificidades e entre elas está o facto de não estar implantado nos grandes circuitos de comercialização, nem conter grandes empreendimentos, tal como em outros tipos de turismo. A falta de presença do turismo rural nos grandes circuitos de promoção e comercialização turística, aliada à necessidade de criar uma estratégia de marketing e gestão apropriada, que possibilite o aumento da procura e mantenham ao mesmo tempo os níveis de qualidade exigidos pelo público deste tipo de produto, destaca a necessidade de revisão das estruturas organizativas existentes. O associativismo é extremamente aconselhado, já que, os agentes privados e empresas familiares, que normalmente constituem os promotores do turismo rural, parecem não ter um grau de coordenação e uma estratégia comum, suficientemente capazes de reverter as dificuldades, que a pulverização dos empreendimentos, a fragmentação de propriedades e agências, a juventude do mercado em causa e a falta de instituições de alçada, vão criando ao desenvolvimento deste sector. 72 Capítulo III De facto, a criação de estruturas organizativas comuns a todos os intervenientes da cadeia turística rural, com a inclusão da população, a definição institucional de uma estrutura de liderança, que sirva de rosto e orientação para o sector, o desenho de uma estratégia concertada, com metas e linhas operativas claras, constituída participativamente, e a garantia de uma efectiva monitorização desta, para o logro do sucesso dos objectivos, são algumas das condições essenciais para que o turismo rural evolua positivamente e se cumpra enquanto factor de reanimação económica do mundo rural. Falta igualmente que os instrumentos de ordenação e protecção dos espaços rurais se orientem para a preparação de estruturas de oferta turística de qualidade, sustentáveis e benéficas ao desenvolvimento. Falta uma apresentação eficaz com denominação clara do produto turístico rural, dentro de estratégias de comunicação concisas mas capazes de informar com rigor os possíveis consumidores. Falta atrair mais público sem ceder, contudo, à massificação. Falta constituir um amplo rol de actividades complementares, para dar resposta às exigências ecléticas da procura, mas também para estimular actividades económicas várias (Millán Escriche, 2002). A qualificação e a profissionalização da mão-de-obra seriam desejáveis a bem da qualidade dos serviços, mas também como forma de dotar o tecido social local de maiores possibilidades de emprego e maiores níveis de escolaridade (García Henche, 2006). Uma aposta na qualidade dos destinos e serviços pode igualmente ajudar à diferenciação e prestígio do rural como produto turístico, bem como para fidelizar um público muitas vezes disperso e errante. Outro elemento essencial à consolidação do sector do turismo rural é um incremento do número de publicações, folhetos, itinerários, guias e todo o tipo de suportes e veículos de promoção e informação (García Henche, 2006). Como consequências positivas possíveis do turismo no desenvolvimento rural, podemos apontar o facto de este sector poder contribuir para a diversificação funcional e para o incremento das rendas de algumas famílias rurais, para a fixação da população, para a preservação patrimonial e cultural local, para o aumento do emprego e principalmente do emprego feminino, para a melhoria dos acessos, meios de comunicação e infra-estruturas das localidades e para uma valorização do potencial rural (Mediano, 2004). Ainda assim, com tantas possibilidades e potencialidades auspiciosas, deve ser assinalada a ilusão que, muitas vezes, rodeia o turismo rural, mais 73 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto concretamente, a sua recorrente sobrevalorização enquanto panaceia para a resolução de todos os problemas do mundo rural. Mesmo havendo casos de sucesso, existem diversos sinais de que muitas contradições existem ainda, para que seja inquestionável o papel mobilizador do turismo rural no desenvolvimento das localidades (Santos Solla, 1999; Ivars Baidal, 2000; Ribeiro & Marques, 2002; Silva, 2009). A falta de coordenação entre os diferentes serviços locais (pousadas, restaurantes, artesãos, etc.) e o isolamento de grande parte dos serviços turísticos não permite, muitas vezes, a desejável disseminação dos consumidores pelos diversos negócios da localidade visitada, o que limita o efeito estimulador das economias locais, discursivamente atribuído ao turismo em espaço rural (Silva, 2009). O facto da actividade turística ser caracterizada ainda por uma sazonalidade marcada e por épocas de grande estagnação, pode ser um motivo para que não possa ser considerada uma alternativa consistente ao progressivo abandono do sector primário (Ivars Baidal, 2000). O facto de que um eventual desenvolvimento do turismo rural possa contribuir para o abandono total das actividades agrícolas e para um desenvolvimento excessivo do sector terciário, deve ser, de facto, motivo de algumas preocupações, no sentido em que a perda das práticas agrárias significa o desaparecimento de um elemento central na cultura rural e na identidade colectiva das comunidades. “En defenitiva, vemos o turismo como a gran salvación do mundo rural en declive dende hai bastantes décadas, malia as contínuas matizacións do seu papel e a cautela á hora de lle atribuir excesiva importância.” (Santos Solla, 1999, pág. 151). Dúvidas existem, por exemplo, quanto ao real favorecimento comunitário com estas actividades, já que são recorrentes os exemplos em que apenas uma minoria de proprietários privilegiados é directamente beneficiada. O facto de serem preferidas as construções de maior qualidade e dimensão, em melhor estado de conservação, para o estabelecimento de serviços de alojamento, implica, em muitos casos, a exclusão das pequenas casas camponesas e a preferência estratégica por solares de famílias de classes sociais favorecidas (Santos Solla, 1999; Ribeiro & Marques, 2002). Outro aspecto importante é a tendência para que sejam os proprietários, com maior capital cultural e social, aqueles que tomam a iniciativa de solicitar apoios e 74 Capítulo III subsídios para investir em serviços de turismo rural. A escassez de informação, escolaridade, disponibilidade económica, capacidade de iniciativa e de redes de conhecimentos, impede que os agricultores ou habitantes rurais consigam mobilizarse para o trabalhoso e burocrático percurso de solicitar apoios públicos e começar um projecto turístico (Santos Solla, 1999;). Obstáculos deste tipo, apresentam-se igualmente após a implantação dos empreendimentos, aparentemente pelas mesmas razões, no sentido em que o trato com os turistas, o domínio de outros idiomas, a capacidade de gestão do negócio, a falta de fluidez financeira para sua manutenção, carências ao nível da profissionalização e qualificação, para a flexibilidade exigida neste tipo de trabalho, entre outros factores, podem contribuir para que apenas uma minoria de privilegiados possa ter sucesso no sector (Santos Solla, 1999). Outro aspecto contraditório é o baixo nível de criação de outros postos de trabalho, fora do círculo familiar dos empresários que, mesmo que recorram a mãode-obra local, fazem-no sazonalmente, sem exigências de qualificações e sob grande precariedade laboral. Isto porque, para além de serem escassos os trabalhadores rurais qualificados para serviços de hotelaria e turismo, a contratação de um trabalhador especializado é custosa e vista muitas vezes com desconfiança, principalmente porque os proprietários não estando profissionalizados, preferem não ver a sua autoridade ameaçada por pessoal mais preparado (Francés i Tudel, 2003). Por outro lado, o trabalho feminino, que tendencialmente é mais requisitado pelo sector turístico em espaços rurais, mesmo que pouco qualificado, tem permitido que as mulheres rurais ganhem independência progressiva, maior contacto com pessoas externas à comunidade, mais auto-estima, um incremento do seu rendimento e, consequentemente, do peso deste nos orçamentos familiares (Santos Solla, 1999). No entanto, para além deste exemplo, não é líquido que se tenha sentido um grande aumento do número de postos de trabalho nas comunidades já integradas nos circuitos de turismo rural (Santos Solla, 1999). Ora, na realidade, os rendimentos do sector têm crescido significativamente, estando a aparente 75 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto sobrevalorização do turismo rural bastante afastada, a este nível, dos dados estatísticos disponíveis em vários países da Europa4. Como última crítica a assinalar, volta a ser necessário apontar a carência de coordenação das políticas de promoção turística e desenvolvimento nos espaços rurais, já que podem ser encontrados muitos exemplos de medidas infrutíferas ou contraditórias (Santos Solla, 1999). A integração e coordenação de políticas é essencial para a implementação do sector turístico no mundo rural, sob pena de estas contradições e obstáculos perpetuarem os desequilíbrios sociais, económicos, funcionais e ambientais existentes. Para que o turismo favoreça as comunidades locais e o desenvolvimento, há que reverter as lógicas de exclusão e manutenção das hierarquias seculares no mundo rural e ensaiar novas formas de mobilização colectiva, para que de facto a evolução seja endógena e democrática. Também aqui, há que sublinhar a exterioridade do controlo dos recursos e actividades locais, fortemente condicionadas pelo poder de dominação das elites urbanas. “Isto leva-nos cara a outra consideración non menos importante que é que o turismo non é tanto (ou non debería ser) o motor do desenvolvemento local, como unha consequencia deste último. É decir, unha vez que unha comunidade rural acadou un elevado greo de equilibrio, no relativo a dinamismo económico e respecto polo seu patrimonio, é cando debería entrar o turismo. De suceder o contrario, ou sexa, o turismo como impulsor do desenvolvemento, moi probabelmente as cosecuencias serían perniciosas.” (Santos Solla, 1999, pág. 160). * Importa agora centrar a reflexão nos chamados “produtos da terra”, na gastronomia, no artesanato e em alguns outros elementos que, em conjunto com o turismo, constituem o quadro de produtos em suposta ascensão, dentro das estratégias de reinvenção e desenvolvimento para as áreas rurais. Sobre o artesanato, a gastronomia, a arquitectura tradicional rural, a paisagem e alguns elementos específicos, como o cavalo, por exemplo, deve ser dito que parecem estar sob uma valorização ascendente, enquanto actividades, experiências, elementos ou produtos, incluídos nas ofertas do turismo rural. A arquitectura rural serve de motivo de atracção para os serviços de alojamento 4 Sobre o caso Português aconselha-se a consulta de Silva, Luís (2009), Casas no Campo – Etnografia do Turismo Rural em Portugal, Lisboa, ICS. 76 Capítulo III turístico, os produtos artesanais funcionam como os souvenirs da estância turística e a gastronomia típica compõe a experiência idílica de regresso à tradição (Barrado Tímon & Castiñera Ezquerra, 1998). O cavalo, se no passado tinha uma função essencialmente produtiva, hoje é um elemento central nas actividades desportivas e recreativas (e até terapêuticas) do turismo rural, bem como mais um pormenor iconográfico que completa a paisagem sonhada. Aliás, em Portugal o burro aparece também como um animal muito associado às actividades recreativas em contexto rural, sendo até elevado, em algumas regiões, a património ecológico autóctone, justificando a criação de pequenos centros de preservação da espécie, transformando-se em pretexto de visita turística e em souvenir regional, como em Miranda do Douro, por exemplo. Estes elementos, que durante décadas constituíam sinais do atraso rural, por não acompanharem os avanços industriais da produção em massa, os desenvolvimentos tecnológicos, as mudanças nos estilos de vida e nos quotidianos, passam hoje a ser, como nunca antes tinham sido, motivos de curiosidade, bens de consumo e objectos de prestígio (Barrado Tímon & Castiñera Ezquerra, 1998). O artesanato, por exemplo, destaca-se por rejeitar os métodos de produção em série, sendo os seus produtos valorizados, por serem sempre únicos, por remeterem aos ofícios tradicionais, por estarem invariavelmente ligados a um território e porque, por todas estas razões, se diferenciam dos produtos industriais. O vínculo de todos estes elementos (arquitectura, paisagem, artesanato, gastronomia) a um lugar, a uma cultura e a uma suposta tradição, destaca-os dos bens de consumo industriais do mundo globalizado, tidos como homogéneos e desvinculados dos territórios de origem. Aqui importa referir que os “produtos da terra” sobressaem nesta lógica, no sentido em que, tal como os vinhos, estão cada vez mais integrados em sistemas de classificação e garantia de qualidade, baseadas na denominação de origem. Esta revalorização passa, sobretudo, por estarem associados a uma paisagem, a um património cultural e a um modo de vida, o que os dota de uma aura de confiança e qualidade, que aumenta o seu prestígio e o seu valor (real e simbólico) nos mercados de produtos alimentares (Barrado Tímon & Castiñera Ezquerra, 1998). Os produtos alimentares artesanais, além de uma origem determinada, destacam-se por serem fruto de modelos de produção não industrial, sendo que, mesmo quando não se tratam de bens transformados, derivam de formas de cultivo 77 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto menos intensivas e pouco modernizadas (Espeitx Bernat, 1996). Não são apenas produtos “feitos à mão”, mas são sobretudo produtos associados à natureza, à tradição, à não contaminação e à ruralidade, em oposição à indústria que é conotada com o meio urbano. “Esta oposición está en la base de uno de los discursos más ampliamente interiorizados en relación a estos produtos.” (Espeitx Bernat, 1996, pág. 87). O seu carácter tradicional e a aura de perenidade de que gozam, são motivo de grande valorização, no sentido que a ideia de que sempre se produziram da mesma maneira, que sempre existiram, que mantêm as mesmas características, sendo fruto de uma sabedoria que passou de geração em geração, tende a incrementar o seu valor simbólico e a facilitar a sua preferência. No entanto, com as novas exigências sanitárias e mesmo com o aumento da procura, os métodos de produção têm sofrido alterações, sendo claro que estes “velhos” produtos não deixam também de se renovar ao longo do tempo, técnica e, como dissemos, simbolicamente (Espeitx Bernat, 1996). Os consumidores não querem apenas um produto, mas sobretudo o que por ele é sugerido e evocado, sendo interessante perceber que os conteúdos simbólicos associados a bens de consumo tendencialmente mais valorizados na actualidade estão precisamente relacionados com os valores do ideal rural – natureza, ecologia, saúde, tradição, etc. Para além deste aspecto, a associação de alimentação e tecnologia tende a ser vista socialmente como algo perigoso ou negativo, pelo que, em contraposição, os produtos rurais se apresentam como objectos de confiança. A noção de que a natureza é imutável e que, pelo contrário, a técnica é falível e incerta, reforça esta tendência para preferir os produtos ditos naturais, aos industriais e de origem tida como urbana (Espeitx Bernat, 1996). O binómio de valorização destes produtos mais estabelecido - qualidade/origem - tem vindo a ser legitimado pelas políticas públicas de classificação e normalização, no sentido de proteger e promover estes patrimónios alimentares e fomentar o desenvolvimento das actividades económicas com eles relacionadas. Aproveitando uma tendência crescente do mercado, os produtores apoiados pelas instituições públicas, têm vindo a desenvolver uma estratégia de aumento da sua rentabilidade, quer através de um incremento na produção, quer através de mecanismos de garantia de qualidade e denominação de origem. 78 Capítulo III Dentro da linha política que advoga a reanimação económica dos meios rurais, através de uma diversificação funcional que rentabilize os recursos locais, esta estratégia de promoção e protecção dos produtos da terra faz todo o sentido, levando a que, desde as mais diversas escalas de poder, fosse iniciado um processo de sua classificação. Esta estratégia visa a reinvenção imagética dos produtos e alia o rigor técnico do controlo de qualidade, a uma visão de mercado adaptada às novas exigências de competitividade. “La autenticidad, la tradición, las raíces son objeto de una intensa manipulación en una época en que la comunicación lo domina todo. Son muchas las partes implicadas en esta apropiación de la imagen. Muchas entidades locales buscan una identidad. Las entidades administrativas que representan a las regiones adquieren un protagonismo cada vez mayor en Europa.” (Bérard & Marchenay, 1996, pág. 35). De facto, desde 1992, que no contexto da União Europeia, existem pelo menos dois instrumentos de classificação deste tipo de produtos, a DOP – Denominação de Origem Protegida e a IGP – Indicação Geográfica Protegida, que certificam, respectivamente, produtos cujas características se devem exclusivamente ao lugar de origem e produtos que por algum aspecto remetem para um contexto geográfico preciso (Bérard & Marchenay, 1996). Estes selos de qualidade ou de origem determinada implicam uma fiscalização exigente, uma selecção cuidada das candidaturas e a avaliação técnica necessária, para determinar as delimitações geográficas e as especificidades de cada bem de consumo. Por outro lado, também é certo que nem sempre é fácil ou justa esta selecção, no sentido em que muitos produtos são excluídos por falta de documentação histórica que comprove a sua proveniência específica, ou por outros critérios semelhantes, o que mais uma vez facilita a classificação de produtos de países, regiões, localidades e produtores com maiores rendimentos, capacidade de iniciativa, capital social e cultural, etc. Em qualquer caso, a origem geográfica parece ser mais valorizada do que as questões temporais, como a antiguidade do produto, do método de produção, etc., já que esta estratégia política tem uma tónica profundamente territorial, isto porque é uma medida proteccionista que visa desenvolver os tecidos económicos das áreas rurais e, paralelamente, fazer frente à tendência crescente de deslocalização das empresas de produção agro-alimentar (Bérard & Marchenay, 1996). 79 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto A avaliação, das candidaturas de classificação e protecção destes produtos, tende a ser mais técnica que cultural, definindo sobretudo a especificidade da origem de cada elemento. Paralelamente, as denominações deste tipo de produto tendem a remeter para os nomes das suas localidades ou regiões, reforçando-se, uma vez mais, a importância dos vínculos territoriais. De facto, a questão da tradição é mais difícil de definir, se comparada com a origem geográfica, não deixando, apesar disso, de ser socialmente assumida como uma garantia importante da qualidade do produto, num plano menos técnico e mais simbólico de valorização do bem de consumo. “A pesar de las situaciones de desigualdad entre denominaciones, de los casos de inadecuación al procedimiento, incluso de abuso, hay que destacar la originalidad del funcionamiento de esta protección, cuyo cometido es definir, para protegerlo, productos que pertenencen colectivamente a quienes han sabido ponerlos de manifesto y son sus depositarios.” (Bérard & Marchenay, 1996, pág. 48). É óbvio que a valorização destes produtos parte dos espaços de consumo urbano e que estes bens estão integrados na bateria de representações idílicas, em torno do rural, que se vêm centralizando. Pratos que no passado eram comida dos trabalhadores do campo, pouco variada e feita com os ingredientes menos nobres, hoje são petiscos inigualáveis nos restaurantes para urbanitas, em busca da diversificação dos paladares. A autenticidade e a tradição são, também aqui, valores aclamados de forma recorrente e remetem, uma vez mais, para as construções sociais que, em torno das valorizações culturais do rural e do passado, vão sendo tecidas (Espeitx Bernat, 1996). Se a iconografia rural, estilizada o mais das vezes, vai sendo, como dissemos, cada vez mais utilizada na venda de todo o tipo de bens de consumo, no caso dos produtos da terra permite uma valorização simbólica acrescida, que muitas vezes justifica um preço bastante superior ao dos produtos industriais equivalentes. Os produtos nacionais, os produtos locais e regionais, os produtos “gourmet”, os produtos familiares, e todos os bens que remetem para um imaginário do prazer e da qualidade da vida rural, ganham prestígio, ainda que a sua comercialização continue bastante inferior numericamente à dos produtos comuns. Na verdade estes produtos sempre foram comercializados, acontece que hoje ganham prestígio e deixam de ser restritos ao contexto de produção, cruzando fronteiras e conquistando as “mesas” dos urbanitas, que no paladar parecem 80 Capítulo III encontrar uma porta para um passado imaginado seu, uma herança, uma tradição, que hoje todos partilham, por fazer parte da bagagem de representações e valorizações territoriais mais recorrentes. Os mitos da natureza, da vida rural, da tradição, parecem condensados na carga simbólica destes produtos, cujo consumo é sentido como uma pequena ruptura, também ela simbólica, com a vida urbana e com o consumo de massas. Claro que diferentes imaginários remetem para diferentes produtos, estando o consumo e a produção bastante diversificados e fragmentados, mesmo que debaixo do mesmo “chavão” – “produtos da terra”. Certamente, que a sua produção e comercialização não é suficiente para reanimar economicamente os espaços rurais, como o seu consumo não o é, na concretização de experiências de vida rural e natural para os consumidores urbanos. No entanto, não deixam de ser muito importantes no seio das relações rural/urbano que, dentro das novas pautas de valorização rural para consumo urbano se apresentam e para o entendimento da influência do ideal rural em produtos concretos ou bens de consumo quotidiano. Em resumo, os produtos rurais concretizam, alimentam e são alimentados pela imagem de ruralidade promovida politicamente e fortemente valorizada discursiva e comercialmente, dentro das estratégias de desenvolvimento e reanimação do mundo rural, hoje muito baseadas nos patrimónios naturais e culturais das localidades. 4. Ponto de Situação (Estratégia → Matéria-Prima → Produtos) Em jeito de recapitulação, pode dizer-se que estamos perante uma estratégia de desenvolvimento, que desencoraja a dependência funcional para com a agricultura e estimula a aposta nos recursos patrimoniais rurais, alimentada por um conjunto de representações e mitos que romantizam e legitimam esse potencial de reanimação e fazem vender os chamados produtos rurais. Por outras palavras, assistimos ao desenvolvimento de uma estratégia de reinvenção da ruralidade, sustentada por um património estável e disseminado de representações positivas, que facilitam a promoção das áreas rurais enquanto espaço de consumo. Desta feita, as diferentes dimensões do discurso, aqui “artificialmente” apartadas, constituem um corpo de dependências, remissões e sobreposições. O registo político e técnico ganha força e legitimidade por via da sustentação oferecida 81 O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto pelas concepções romantizadas da ruralidade culturalmente disseminadas, ao mesmo tempo que estas são continuamente reforçadas pela institucionalização deste clima de consenso em torno da valorização do mundo rural. Nesta relação dialéctica promovem-se os produtos rurais e o rural enquanto produto, já que o registo promocional do discurso é permanentemente amplificado, estando cada vez mais próxima a concretização do projecto de ruralidade reinventada (ou, se quisermos, consumível). Para avançar na discussão, deve ser referido que este projecto de ruralidade é legitimado pelos valores patrimonialistas que sacralizam os patrimónios culturais e naturais, atribuindo-se aos espaços rurais a missão de preservar tudo o que está em risco na cidade e nas sociedades ocidentais em geral. A ruralidade romantizada preserva o passado, as identidades, as tradições, ao mesmo tempo que garante o futuro, a natureza, a sustentabilidade e os patrimónios ecológicos. Posto isto e dado o interesse e a importância social e histórica destas questões, importa desenvolvêlas com mais detalhe no próximo capítulo, sendo em torno deste campo temático que seguiremos desde já. 82 IV. Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural He who controls the present, controls the past. He who controls the past, controls the future. 1949, George Orwell. 5 Quando pensamos nos valores que legitimam o discurso de valorização desta ruralidade patrimonial e simultaneamente projectada para o futuro e para a renovação, somos levados a seleccionar um binómio de argumentos, centralizados nos apelos à construção de uma ruralidade conservacionista - Cultura e Natureza, ou mais concretamente Património e Sustentabilidade Ambiental. De facto, o exercício de desconstrução do discurso de reinvenção da ruralidade passa, necessariamente, pela reflexão em torno dos valores que sustentam e legitimam a sua aparente consensualidade e os critérios de definição do projecto veiculado. É nossa intenção, portanto, dedicar alguma atenção aos valores por detrás do seu pendor patrimonialista e conservacionista, integrando-os nas dinâmicas culturais maiores, que servem de contexto a esta valorização e que orientam o apuramento desta ruralidade reinventada. Assim, tomaremos as preocupações com a preservação patrimonial e ambiental como temática central das próximas páginas, no sentido de perceber os valores que, enquanto argumentos para o discurso, reforçam o seu poder e facilitam a sua disseminação e aceitação cultural. Por serem valores que gozam de uma considerável consensualidade no nosso contexto histórico, pela sacralização que rodeia a memória e a natureza, principalmente no contexto urbano (em que se sente mais a fragilidade e volatilidade do mundo tal como o conhecemos), acabam por conferir, por associação, algum desse consenso e sacralidade a este projecto de ruralidade. 5 Frase retirada do famoso livro “1984”. Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural A ruralidade é sentida como estando em risco, tal como a natureza, as tradições, as identidades e tudo o que está associado com a nossa memória colectiva. Ao mesmo tempo, valoriza-se a ruralidade precisamente por conter, nos contornos deste projecto de reinvenção, a memória e a natureza e por funcionar como uma reserva do que, supostamente, nos arriscamos a perder com a urbanidade e com o avanço da civilização. De facto, é através destas associações mútuas que, nos discursos, se tece a legitimação axiológica deste projecto de ruralidade patrimonial, próximo da ruralidade-refúgio, que funciona como uma reserva para os valores em risco. Nesta linha, sublinham-se discursivamente as funções culturais desta ruralidade em reinvenção, também por correspondência para com os valores que acumula, protege, representa e alimenta. Ou seja, atribui-se ao mundo rural a missão de preservar esses valores, conservando património e natureza, no sentido de garantir a perenidade de um passado construído como melhor e a sustentabilidade, perante um futuro incerto e desesperadamente frágil. Desta feita, encontramos nesta valorização da ruralidade uma associação com a necessidade de preservação dos patrimónios culturais, das memórias e das tradições – conservar o Passado. Estes elementos recordatórios, muito embora remetam aos lugares, acabam por agigantar-se e representar o "património de todos", a matéria-prima de uma identidade comum, que distingue os povos até à escala nacional e que reitera uma origem unificada. A importância dada à preservação deste vínculo, que supostamente a cidade vai delapidando, acaba por funcionar como um aglutinador de consensos, em torno da importância da ruralidade e enquanto seu repositório. Por outro lado, encontramos a sacralização do património natural e ecológico, que praticamente remete para os espaços rurais a missão de conservação (para as gerações vindouras), não apenas dos ecossistemas, mas sobretudo do "segredo" por detrás da manutenção de relações harmoniosas entre o Homem e a natureza – garantir o Futuro. Mais uma vez como contraponto, por relação à suposta incapacidade de garantir, na cidade, uma sustentabilidade a esse nível e, novamente, como um ponto de consenso – a indiscutível importância da ruralidade para o bem geral e não apenas das comunidades locais. Resumindo, pode ser dito que é atribuída aos territórios rurais a missão de preservar o passado (imaginado e não histórico) e garantir o futuro, ou por outras 84 Capítulo IV palavras, conservar o património cultural, as tradições, a memória colectiva, etc. e, ao mesmo tempo, proteger os patrimónios naturais para as gerações futuras. Património e sustentabilidade ambiental acabam assim por remeter genericamente para o espaço (o rural como paisagem simbólica ou como categoria territorial) e para o tempo (percepcionado colectivamente como herança e projecto) em forma de passado e de futuro. Estes, são construídos no presente, quer enquanto matériaprima para as identidades, quer enquanto argumentos e valores que precipitam a nova ruralidade e, ainda, enquanto emblemas de um tempo histórico de grandes ansiedades estruturais. Se cultura sustentabilidade e natureza funcionam são como os as valores bandeiras a preservar, que património e estimulam a acção, precisamente por remeterem para os projectos de passado e de futuro colectivos, enquanto arquétipos que condicionam ideologicamente o nossa concretização de presente. A transversalidade desta lógica axiológica legitima os discursos que patrimonializam a ruralidade, mas sobretudo revela as ansiedades estruturais do nosso tempo histórico. Parece claro que em diversas esferas da vida social existe um interesse crescente pela natureza e pela cultura e pelas diversas actividades e elementos patrimoniais que lhes estão associados. No turismo, por exemplo, é nítida esta centralidade, havendo mais procura orientada por motivações culturais e ecológicas (Padró Werner, 2002). Esta valorização da herança e o progressivo alargamento dos critérios de sua selecção têm vindo a intensificar-se desde a Segunda Guerra Mundial, mas sobretudo desde os anos 80, tal como acontece com as preocupações ambientais, dentro das chamadas culturas ocidentais. A destruição causada pela Segunda Grande Guerra Mundial, as primeiras crises energéticas, a globalização, com a progressiva homogeneização cultural, a expansão das preocupações ecológicas, entre outros factores históricos e sociais, levaram a que os governos nacionais e organizações mundiais como a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), por exemplo, começassem a mostrar interesse e vontade política em proteger o meio ambiente e o património cultural dos povos (Santana Talavera, 2003). Na actualidade, as preocupações ambientais e a valorização dos patrimónios culturais fazem parte da vida quotidiana, da vida política e da vida económica dos países ocidentais, sendo discursivamente inquestionáveis, mesmo que na prática 85 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural não se revertam em acções efectivas de preservação. A esta valorização dos patrimónios naturais e culturais está profundamente associada a sustentabilidade, enquanto preocupação com o futuro e com o legado a ser deixado para as próximas gerações (Santana Talavera, 2003). É precisamente sobre a "indiscutível" centralidade dos argumentos patrimoniais (culturais e ecológicos) e sobre a emblemática omnipresença das preocupações com a sustentabilidade ambiental que nos debruçaremos nesta etapa da reflexão. Não apenas pela sua importância no discurso de reinvenção da ruralidade e na sua própria (re)definição, mas também pela sua centralidade conjuntural e histórica, que obviamente faz, deste processo discursivo e cultural, uma manifestação das grandes lógicas, tendências e valores que caracterizam os nosso tempo histórico. Estas são aqui discutidas com remissão aos territórios, precisamente, porque, ao nível dos discursos, a necessidade de preservação patrimonial resulta na atribuição de uma missão conservacionista aos territórios rurais, cujo património natural e cultural é elevado a bem comum. Este é assim "expropriado" ao mesmo tempo que circunscrito a uma territorialidade estratégica, que facilita a sua leitura, gestão, apropriação e sobretudo a sua comercialização. Chegados a este ponto, deve ser dito que, no mesmo discurso, é precisamente no potencial de rentabilização desses patrimónios que reside a contrapartida para a sua preservação, no sentido em que natureza e cultura são apresentadas como as grandes oportunidades de negócio e renascimento económico dos territórios rurais. Nesta dinâmica, as cidades parecem desresponsabilizadas da função de preservação destes patrimónios, que afinal ganham importância precisamente pelo suposto fracasso urbano a este nível. Ao mesmo tempo que assim se redefinem as relações rural-urbano, nesta nova perspectiva da funcionalidade rural. Ainda nesta linha, as cidades passam a ocupar a posição de consumidoras e beneficiárias do recém identificado potencial estratégico rural, que tem, nesta lógica, o retorno da tarefa de preservação e manutenção dos valores comuns. O discurso de reinvenção da ruralidade pende, de facto, para um forte cariz patrimonialista (tanto no sentido cultural como ecológico), tendo uma perspectiva estratégica baseada no potencial patrimonial, estando baseado num conjunto de representações da ruralidade que romantizam os elementos tradicionais e naturais e 86 Capítulo IV apresentando possibilidades de negócio que assentam principalmente na sua rentabilização. Ora, não sendo linear nem de fácil abordagem, importa desconstruir o discurso também por aquilo que parecem ser os argumentos indiscutíveis que o legitimam, enquanto estratégia e projecto de ruralidade. Esses argumentos, paradigmas ou valores patrimoniais, destacam os patrimónios e a sustentabilidade ambiental como bens de importância transversal e necessidade inalienável, sendo sobre si que se constrói o próprio discurso e que assenta toda a lógica de reinvenção da ruralidade e quase a sua própria definição renovada. De facto, deixando de ser definida pela sua funcionalidade agrícola, a ruralidade passa a definir-se pela sua nova funcionalidade patrimonial (conservacionista e consumível) e por aquilo que encerra e constitui. Indo mais longe, sendo a sua principal função a preservação das suas características patrimoniais e ecológicas, que afinal a definem enquanto objecto e enquanto agente, pode dizer-se que a própria ruralidade passa a definir-se também como patrimonial. A crescente promiscuidade entre os conceitos de território e de património e o paralelo alargamento da definição do último, contribuem para que mais do que histórico ou temporal o património seja territorial, no sentido em que se associa aos lugares. Estes passam a constituir eles próprios os objectos patrimoniais, enquanto elementos e paisagens simbólicas com funções emblemáticas (Peixoto, 2002). "No limite, a elasticidade da noção de património revela que estamos perante um processo de patrimonialização de um território." (Peixoto, 2002, pág. 8). Importa, portanto, reflectir em torno do poder do património enquanto valor aglutinador de consensos e enquanto argumento de legitimação do discurso de reinvenção da ruralidade. Importa discuti-lo na sua versatilidade e abrangência, em toda a sua flexibilidade e remetendo para o rural, para a cultura, para a natureza, antes de prosseguirmos para o segundo grande argumento - a Sustentabilidade. 1. O Património e os valores culturais - identidade, tradição, memória. (Preservar o Passado) Vivemos num momento histórico em que a noção de património se alarga permanentemente para abarcar um conjunto cada vez mais vasto de objectos. Quase tudo é património e uma espécie de obsessão pelo passado parece 87 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural concretizar-se numa progressiva colecção, classificação, conservação e promoção de objectos, que pretendem ser representativos de uma vasta herança colectiva (arquitectónica, natural, cultural, musical, urbana, rural, genética, ecológica, etc.) (Guillaume, 2003). Celebra-se o passado através de reciclagens e reinvenções de antigas tradições, renegociando-se os significados dos velhos rituais e recriando-se os particularismos culturais, no sentido de reconstruir o sentido de localidade (Hobsbawm, 2002; Featherstone, 1997; Fortuna e Silva, 2001). Por esta via as colagens de estilos e tradições, bem como de pastiche de símbolos e representações, vão fazendo renascer o sentimento de pertença territorial e cultural, num contexto em que a instabilidade axiológica e referencial vai fazendo crescer a necessidade de segurança ontológica e de uma ancoragem originária (Featherstone, 1997). Entre esta tendência para o revivalismo exclusivista e a abertura à diversidade global, associados à intenção competitiva dos lugares, existe todo um posicionamento estratégico e consciente, em relação ao contexto mundial e às relações territoriais, orientado por políticas culturais, que promovem as especificidades locais, os particularismos históricos e geográficos, etc. Assim, o tema do património parece conseguir um consenso cada vez mais alargado, ainda que muitas vezes bastante superficial. Expande-se o conjunto de elementos que podem constituir património, acelera-se o processo de patrimonialização e sobretudo emerge uma lógica de gestão patrimonial que ganha terreno em relação a uma mera preocupação com a sua preservação (Peixoto, 2002). O património, não sendo algo espontâneo ou eterno, constitui-se como uma construção social moderna, que funciona como uma espécie de religião laica, sacralizando discursos e os objectos que neles são exaltados, segundo uma sustentação científica e política (Prats, 2006). "It is a secular version of the consolations of religion, addressed to the adherents of contemporary 'habitus'." (Brett, 1996, pág. 158). Um conjunto de relíquias patrimoniais contribui para a consolidação das identidades, nacionais, regionais e locais, por relação a um conjunto de referências padrão que estabelecem as imagens culturais percebidas, no que diz respeito a um passado imaginado e à construção de uma memória colectiva, à natureza em estado 88 Capítulo IV puro ou intocada e à excepcionalidade ou genialidade como transgressão dos limites humanos (Prats, 2006). Existe portanto um estabelecimento dogmático (técnico, científico e político e não mais religioso) das referências em relação às quais nos definimos enquanto humanidade no nosso tempo histórico (e noutras escalas enquanto nação, cidade, lugar, etc.). Estas são dominantemente patrimoniais e configuram as representações que ditam o que é (ou deve ser) a cultura, a memória, a natureza... (Prats, 2006). "At its best, heritage fabrication is both creative and an act of faith. By means of it we tell ourselves who we are, where we came from, and to what we belong. (Lowenthal, 1997, pág. xviii). Os governos nacionais e locais alimentam a propaganda e a política do património, numa postura proteccionista por relação aos objectos que eles próprios definem como sendo dignos e representativos do passado construído e assumido como dominante. Após a generalização de um sentimento colectivo de perda patrimonial, a figura do Estado protector fortalece a ideia de recuperação e preservação dos objectos destacados primeiro como vulneráveis e depois como preciosos (Guillaume, 2003). Esta dinâmica política não se concretiza apenas no plano discursivo ou ideológico, sendo que as instituições públicas mobilizam grupos e agentes sociais e desenvolvem um conjunto de dispositivos legais e normativos para fortalecer a preservação patrimonial. Este reforço proteccionista do Estado fortalece o controlo territorial, no sentido em que este acréscimo normativo e institucional acaba por criar novas dinâmicas e novos dispositivos de segregação e organização espacial (Guillaume, 2003). Enquanto negócio, o património expande o seu espectro de possibilidades e nele são depositadas vastas expectativas de criação de emprego, riqueza, desenvolvimento e oportunidades. A chamada "indústria do património" é alimentada pelo sector público e por grandes organizações internacionais como a UNESCO, por exemplo, através de financiamento de projectos, criação de infra-estruturas, mecanismos de promoção e classificação, etc. Este tipo de medidas é encarado e apresentado como um investimento num sector em franco crescimento, sendo divulgado como um passo estratégico para o desenvolvimento local (Brett, 1996). Os seus recursos são inesgotáveis, na medida em que múltiplos passados são resgatados e exaltados pela recriação, desde a pré-história à última década, 89 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural proliferando memoriais e monumentos, restauros e classificações e mesmo os objectos mais corriqueiros do quotidiano ascendem a elementos de valorização (Lowenthal, 1997). "To reiterate, heritage is that part of the past which we select in the present for contemporary purposes, be they economic, cultural, political or social. (...) Clearly, it is an economic resource, one exploited everywhere as a primary component of strategies to promote tourism, economic development and rural and urban regeneration. But heritage also helps define the meanings of culture and power and is a political resource; and it thus possesses a crucial socio-political function." (Graham et al., 2000, pág. 17). O aparecimento da expressão "indústria do património" demonstra bem o reforço da noção de que as apostas na conservação patrimonial são cada vez mais encaradas como investimentos estratégicos. Isto porque, em todos os níveis de governação e tanto no sector público como no privado, são esperados retornos e mais-valias e abertas, progressivamente, novas oportunidades de negócio, no que parece ser um campo inesgotável de recursos patrimoniais a explorar e rentabilizar (Graham et al., 2000). Desta dinâmica de permanente aglutinação de novos recursos e de grande abrangência de consideração, é exemplo a oficialização da categoria de Património Imaterial (convencionada em 2003 pela UNESCO) e serve a protecção dos elementos culturais intangíveis dignos de valorização.6 Para além da utilidade estratégica e económica do património enquanto recurso, a sua crescente centralidade justifica-se por um conjunto de dinâmicas históricas e sociais, que acabam por ser transversais ao mundo globalizado. As transformações ao nível da família, cada vez mais nuclear e desenraizada, o aumento das migrações, a atomização social, grandes destruições com causas naturais e humanas, o desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia, com a proliferação exponencial dos bens de consumo cada vez mais descartáveis, ou a chamada "sociedade do desperdício", o acentuar dos problemas ambientais e da consciência colectiva destes, os efeitos da globalização ao nível da homogeneização cultural, etc., têm contribuído para o fortalecimento desta tendência de valorização patrimonial (Lowenthal, 1997). 6 Deve ser dito que uma importante parte da "indústria do património" se concretiza no âmbito das políticas locais, no sentido em que são as localidades que disseminam as práticas de preservação e promoção territorial e, na insinuação dos seus "pequenos tesouros", rasgam os limites e a abrangência do termo. 90 Capítulo IV Esta valorização do passado, da herança, das tradições, vem assim colmatar o vazio e a insegurança que estas dinâmicas e transformações vêm provocando, constituindo um processo regenerativo de luto que facilita a restauração cultural da confiança no futuro. A constância das referências patrimoniais serve de contraponto à contingência e instabilidade material e cultural que caracteriza o nosso tempo histórico. "Jogando com uma certa sensibilidade ecológica, ele surge em todo o caso como um contraponto razoável às ameaças e incertezas do futuro." (Guillaume, 2003, pág. 39). Numa sociedade em que a efemeridade das coisas é permanentemente relembrada pelo ritmo das mudanças, existe assim a necessidade de algo duradouro e estável (Lowenthal, 1997). Esta reacção contra o desaparecimento ou contra a "morte" das coisas é uma forma de regenerar a confiança no futuro (seja do mundo, do nosso modelo de desenvolvimento, do nosso estilo de vida, do nosso bairro, da nossa família, etc.), mas é igualmente um recurso para o futuro, se pensarmos na sua dimensão estratégica (política e económica) (Peixoto, 2002). "Para aqueles que já não possuem nem território nem identidade social própria, a única possibilidade que continua aberta é a da reconstrução de "raízes", de um espaço compensatório fictício no passado, uma pseudo-topia, numa tentativa de aí recriarem artificialmente as diferenças que o presente já não tolera. O passado, como a ecologia, torna-se um valor refúgio." (Guillaume, 2003, pág. 41). Desta feita, o património funciona como um conversor de resíduos históricos em "comprovativos" das nossas virtudes ancestrais enquanto povos, para que não se acumulem despojos e ruínas que atestem a nossa efemeridade colectiva e a fragilidade do nosso mundo (Lowenthal, 1997). O passado através do património é apresentado como uma narrativa simplificada e enaltecedora dos aspectos que permitem sustentar o presente e projectar a possibilidade de um futuro desejado, naquilo que pode ser considerado uma espécie de encenação e até uma configuração performativa do pretérito. Esta tendência, sendo tão característica do nosso tempo histórico, justifica que apelidemos o património de “invenção moderna” (Faria, 2006). O património não é apenas um conjunto de relíquias do passado pois, enquanto invenção cultural, funciona como representação de tudo o que nos arriscamos a perder e, enquanto repositório de tudo o que nos define, daquilo que 91 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural compõe a nossa identidade colectiva (Peixoto, 2006 b). Esta "magnificação do defunto" permite que se proceda ao luto que facilita a assimilação colectiva da mudança (Peixoto, 2006 b). "O momento de concessão de um estatuto patrimonial corresponde ao reconhecimento que algo desapareceu ou deixou de estar integrado nas práticas quotidianas. A consagração patrimonial é um acto de luto. Mas é um acto de luto exacerbado, magnificado, porque corresponde a um momento de depuração." (Peixoto, 2006 b, pág. 73). A perda ou morte de que é feita a história, o vazio ou amputação, são assim reinventados e redefinidos, destilados em património, para compor uma imagem de passado e consequentemente de presente (uma identidade), que melhor sirva os propósitos culturais, políticos, económicos e territoriais que nos projectam para o futuro. Os objectos excluídos do quotidiano são assim devolvidos com uma roupagem e uma encenação que reforça o seu poder de indução identitária e que os torna, pelo exagero, mais reais do que nunca. A valorização do património constitui-se como um produto da modernização, precisamente pela sua importância cultural, perante a necessidade de "segurança trans-histórica" num tempo de profundas e rápidas transformações sociais (Brett, 1996). Do património pretende-se que confira esta ancoragem cultural e identitária, pelo que deve ser permanentemente reforçado o seu carácter selectivo e purificado. Ora, deste processo constante de selecção, depuração e reinvenção dos vestígios do passado, que se quer o espelho da nossa cultura, resulta uma identidade cultural genérica para auto-contemplação passiva (Choay, 1982). Desta feita, o património parece ser processual e dinâmico, dada a sua permanente construção e actualização, ao mesmo tempo que é defensivo e cristalizado, no que diz respeito ao dogmatismo selectivo com que faz representar o passado desejado ou dominante (Choay, 1982). Sobretudo, constitui-se como uma figura narcísica que tem nessa solidez (temporal e ideológica) e sacralidade (científica e política) o seu poder tranquilizador (Choay, 1982). "The appeal of heritage is based more than anything else upon this freedom from real, concrete time because to be held within heritage is, like the fly in amber, to be preserved from real time and from what Eliade describes as 'the terror of history' the fear that human actions have no meaning, that wickedness is not punished, that 92 Capítulo IV there is no redemption and that we stand continually at the point of maximum responsibility and utter helplessness." (Brett, 1996, pág. 158). Num período histórico em que o tempo e o espaço são redefinidos permanentemente, nas práticas, nos imaginários e também ao nível identitário dos sujeitos, o confronto dinâmico e transversal do velho e do novo constitui um traço importante das reinvenções que neste campo se vão tecendo (Fortuna, 1999). Os vestígios dum passado colectivo estimulam a definição das identidades no presente, na medida em que, ao reconstituir o primeiro, segundo os cânones actuais, dota-se de sentido o segundo, encontrando o rasto dos caminhos que o construíram (Fortuna, 1999). As interpretações subjectivas do passado, trazidas e digeridas para e num presente em assimilação e redefinição, substituem a ausência da materialidade dos quotidianos perdidos, mas acentuam a irrealidade do sentimento comum de uma identidade, de um imaginário, de uma ancoragem originária, que fazem falta no agora (Fortuna, 1999). Assim, os exemplares do património de uma história comum assumem a condição de espaços ritualísticos, onde é mais fácil imaginar sentidos para o passar do tempo e para o desenrolar dos acontecimentos e, portanto, mais acessível suportar as transformações identitárias colectivamente, como se de um rito de passagem partilhado se tratasse (Fortuna, 1999). “Só um rito colectivo de passagem, que inclua o luto e a magnificação do defunto, permite aos indivíduos suportar ou admitir a mudança, dando início à regeneração.” (Peixoto, 2003, pág. 214). A assimilação colectiva do presente e do futuro é facilitada, no sentido em que a consciência patrimonial ajuda a responder às necessidades no porvir de uma comunidade. A invenção cultural do património parece constituir um mecanismo reactivo em relação ao desenraizamento e atomização social que caracterizam a acelerada vivência contemporânea, já que faz renascer, na partilha de um passado colectivo, um sentimento comunitário, modos de vida tradicionais, ofícios, sabores e paisagens perdidas e nessa recuperação reforça a consciência retórica de uma possível sustentabilidade cultural urbana, tendo um efeito “calmante” nas preocupações relativas ao futuro deste modelo de cidade (Peixoto, 2003). As estratégias e os objectivos políticos e económicos funcionam como os condutores destas valorizações e destas buscas por uma autenticidade identitária definida e estanque, artificialmente localista e pura. Desta feita, não são critérios 93 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural objectivos, nem a sensatez científica e despojada de poder, que estabelecem os limites da patrimonialização. Também por isso acaba por prevalecer a incessante necessidade de conquistar e garantir (a tal) autenticidade e a tendência para a inventariação infindável de bens a valorizar, numa voragem que sobrepõe, muitas vezes, quantidade a qualidade (Bourdin, 1996). Fazer da autenticidade uma bandeira é, de facto, entrar em contradição com o inerente dinamismo social e territorial, na medida em que habitualmente esta atitude faz-se acompanhar por uma cristalização purificante dos elementos patrimoniais, que perdem assim a sua historicidade e se transformam, ao invés de se vitalizarem, em testemunhas embalsamadas de uma origem artificialmente estabelecida (Bourdin, 1996; Ferreira, 2004). Quer se emblematizem os elementos patrimoniais, como relíquias em vitrinas que se preservam cuidadosamente, quer se especializem demasiado os seus usos, profissionalizando-os rigidamente num jogo de mise en scène, estaremos a restringir os seus significados, a negar-lhes uma evolução “espontânea” e abrangente, retirando-lhes a sua participação no processo imprevisível de “lugar” (Bourdin, 1996; Ferreira, 2004). Como referimos, a necessidade de ancorar a passagem do tempo através da cristalização e conservação de objectos patrimoniais deriva do "pânico" social provocado pela consciência da efemeridade e contingência da nossa existência colectiva. As relíquias funcionam assim como "objectos de sutura" que vêm colmatar as carências e fechar as feridas simbólicas e os vazios mnemónicos das sociedades ocidentais. Estas, estando tão vulneráveis às ansiedades, que a aceleração do tempo e da história parece ter tornado crónicas, acabam por definir-se nesta carência e instabilidade, como traços da sua personalidade colectiva (Guillaume, 2003). "A efemeridade do presente e o individualismo têm o seu contraponto na conservação colectiva, que acentua compensatoriamente os valores da duração e do passado." (Guillaume, 2003). "Com efeito, esta necessidade imperiosa de uma imagem de si forte e consistente pode ser interpretada como um refúgio das sociedades contemporâneas face a transformações de que não dominam nem a profundidade, nem a aceleração e que parecem pôr em causa a sua própria identidade. A adição de cada novo fragmento de um passado distante, ou próximo e dificilmente moderado, concede a 94 Capítulo IV esta figura narcísica mais solidez, precisão e autoridade. Num certo sentido, torna-a mais tranquilizadora e mais capaz de conjurar a angústia e as incertezas presentes." (Choay, 1982, pág. 253). A nossa imagem de passado e, consequentemente, as representações que tecemos em relação a nós enquanto colectividade, são construídas através das camadas de valores patrimoniais que seleccionamos para colecção e cristalização. Talvez não seja uma realidade reflexiva ou uma verdade histórica e científica, mas é certamente a poderosa versão de uma identidade que adoptamos como emblema, uma narrativa que funciona como "retrato de família" e que preservamos e difundimos como a melhor e mais estável imagem de nós próprios (Hall, 2000; Prats, 2006). A consagração dos elementos a cristalizar e a adoptar como próprios e emblemáticos passa, não só por uma selecção, como também pelo reconhecimento, que deve ser intergeracional e legitima a bagagem cultural vinculada ao sentimento de grupo (Santana Talavera, 2003). Esta eleição sociocultural da história, que processada, resultará em património e portanto em identidade, compõe-se de muitas nuances e trabalha com a mitologia, com as ideologias, com os nacionalismos, o patriotismo e os orgulhos locais, com o marketing, a arte e a literatura, etc. (Santana Talavera, 2003). "Se trata de discursos coherentes y bien fundados en las academias, que explican las afinidades de los vivos presentes con los muertos de ayer. Se trata de idearios que, sin concretar, indican las pautas posibles para mirar los bienes y la naturaleza cultural." (Santana Talavera, 2003, pág. 9). A utilização dos recursos da história e do passado na construção das identidades, neste contexto de intenso e quase obsessivo retorno às raízes, resulta mais naquilo em que nos tornamos e em que nos queremos tornar, do que simplesmente na assunção daquilo que fomos ou somos neste momento, ou seja, nesta dinâmica de negociação das rotas mais do que das raízes, ainda que estas constituam o ponto de partida (Hall, 2000). É importante ter em mente que as identidades são construídas dentro e pelos discursos, discursos esses que remetem sempre para um conjunto de circunstâncias definidas e para um poder dominante (Hall, 2000). O mesmo poder que define a história e portanto o património de onde se reconhece e consagra a matéria-prima dessas mesmas identidades. É esse o discurso que interessa discutir, mais 95 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural precisamente no que diz respeito ao seu papel na construção da ruralidade que, a partir do que é o património rural (por ele seleccionado, valorizado, consagrado e promovido) parece estar em processo de reinvenção. De facto, esta aparente histeria patrimonial encontra nos meios rurais uma ampla e nutritiva possibilidade de alargamento do seu espectro de colecção e valorização. O património e os argumentos patrimoniais, sendo destacados, enquanto recurso dos territórios rurais, pela necessidade de resolução de problemas funcionais e económicos, saem reforçados pelos discursos em torno do desenvolvimento rural, como aliás já foi referido anteriormente (Peixoto, 2002). "Évoquer ensemble campagne et patrimoine revient presque à comettre un pléonasme (...)"(Ratenberg et al., 2000, pág. 1). A elasticidade da noção de património permite que várias dimensões e múltiplos aspectos da ruralidade sejam incluídos no rol de bens a preservar e promover, tanto no que diz respeito à cultura e às tradições como no que se refere à natureza e à paisagem. Tudo parece ser património rural, desde os produtos agrícolas e gastronómicos, como os saberes, as construções, os ecossistemas, os costumes, o folclore, as danças e os cantares, as celebrações, os trajes, os instrumentos agrícolas tradicionais, etc. Assim, ao património construído junta-se tudo o que sobreviveu à passagem do tempo e que compõe o património imaterial, a memória colectiva, as manifestações culturais e a vida quotidiana (Alves, 2004). O rural é desta feita um poderoso campo patrimonial, no sentido em que, ao acumular potencial cultural/histórico e natural/ecológico, concretiza na plenitude a polivalência e a elasticidade que a noção de património tem ganho neste processo de crescente valorização (Peixoto, 2002). De facto, se pensarmos que "Rural", "natureza" e "ecologia" têm vindo a transformar-se em palavras de culto (Uzzell, 1989), ao mesmo tempo que os apelos à valorização patrimonial têm crescido, facilmente constatamos que estamos perante uma conjuntura cultural em que a ruralidade ganha em valorização, precisamente por combinar ambos os recursos. Em paralelo, deve ser dito que esta valorização se deve igualmente à ideia de que a ruralidade está em risco ou que muitos dos seus elementos já se perderam ou caíram em desuso, mas que ainda podem ser salvos do esquecimento (Lowenthal, 1997). Assim, para além de concretizar a elasticidade da noção de património, o rural acumula uma segunda condição importante para auferir o estatuto patrimonial, a sua fragilidade ou um desaparecimento iminente. Verifica-se, portanto, que a 96 Capítulo IV elevação da ruralidade a vasto campo patrimonial, coincide com o anúncio da sua "morte" (Peixoto, 2002). Ora, desta constatação de eventual desaparecimento e do correspondente luto nascem novas possibilidades de renascimento para a ruralidade ou assim anunciam os discursos políticos e técnicos que incitam à conversão desta "glória" patrimonial em recurso para o futuro. Se pensarmos que em poucas décadas os símbolos da vida rural passaram de sinais de atraso a conteúdo de cartões postais, ou que as refeições camponesas figuram hoje nos menus dos melhores restaurantes urbanos, constatamos que este processo de reinvenção dos significados associados à vida rural acompanha, de facto, o ritmo veloz dos processos de patrimonialização. "Qualquer artefacto patrimonial necessita, para substituir e perdurar, de ser alvo de uma reinvenção ou de uma reactivação por indivíduos que o introduzem no seu quotidiano. Por isso, numa época de grande transformação, a descoberta do património pelos meios rurais traduz-se na constatação que é necessário repensar certos espaços e objectos em função de novos usos, atribuindo-lhes outras finalidades e integrá-los, mesmo que tenham sido marginalizados durante muito tempo, nas dinâmicas do novo desenvolvimento local." (Peixoto, 2002, págs. 13 e 14). Esta patrimonialização serve assim de reacção à ideia disseminada que o rural está em crise (uma crise genérica e desespacializada), ao mesmo tempo que cria uma imagem renovada e um conjunto de "novos" recursos e possibilidades de negócio para, em alguns territórios, fazer efectivamente frente aos problemas funcionais e económicos. Por outro lado, constitui também uma reacção à atomização social e a algumas inquietações da vida moderna, no sentido em que corresponde à valorização de uma alteridade à vida urbana e de tudo o que pode servir de contraponto e compensação para os problemas ambientais, para o sentimento de desenraizamento e para outras inquietações culturais que caracterizam o nosso tempo histórico (Peixoto, 2002). A patrimonialização do rural pode promover a efectiva descoberta e a recuperação de legados materiais e culturais, mas suscita igualmente a invenção de supostas tradições ou a encenação de quadros bucólicos que nunca existiram, forçando muitas vezes os territórios rurais a corresponder a um conjunto de expectativas e exigências, precipitadas pela voragem patrimonial na sua vertente mais economicista e tecnocrática. Deve ser dito igualmente, que o aproveitamento 97 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural do potencial patrimonial oscila entre alguns projectos concretos de recuperação e capitalização dos recursos patrimoniais em espaço rural, que servem efectivamente o desenvolvimento local, e uma retórica inconsequente de exaltação folclórica (Peixoto, 2002). A "descoberta" do património rural reveste-se de uma dupla importância para os territórios. Por um lado, encontramos a renovação dos significados associados à ruralidade, naquilo que se constitui como uma valorização cultural e simbólica do património rural e por sua via, dos territórios em si. E, por outro, podemos apontar a sua utilidade económica e política, quando pensamos no património como recurso estratégico para a reinvenção funcional dos meios rurais. Desta feita, parece claro que existe uma consciencialização social crescente da importância memorial e simbólica, mas também económica e política do património rural (Alves, 2004). De facto, existe um amplo consenso social em torno da importância e do potencial do património rural, alimentado pelas instituições públicas, através da disponibilização de meios para incentivar o seu estudo, preservação, promoção e divulgação. Inúmeros movimentos cívicos apelam à sua preservação, os media dão centralidade e recorrência ao tema, nos meios científicos e académicos é objecto de um vasto interesse e literatura, configurando-se portanto um discurso disseminado e coeso em torno do património rural (Alves, 2004), que pretendemos aqui desconstruir. 2. A Sustentabilidade e os valores ambientais - natureza e ecologia. (Garantir o Futuro) As preocupações com a natureza e o meio ambiente crescem progressivamente à medida que crescem também as ameaças à vida no planeta. Nas últimas décadas os temas ambientais foram ganhando espaço nos discursos sociais, nos quotidianos, nas agendas políticas, nos programas escolares, nos media etc., ao mesmo tempo que o jargão que lhes está associado se torna familiar e disseminado (Adam, 1998). O termo "sustentabilidade" é um bom exemplo por ter vindo a ganhar uma recorrência e uma centralidade que o destacam como conceito, 98 Capítulo IV mas sobretudo como valor ou argumento, mesmo se muitas vezes a sua omnipresença nos discursos sirva a sua banalização.7 "Efectivamente, se hoje "tudo é ambiente", o risco é que amanhã "nada seja ambiente"! Com a noção de sustentabilidade passa-se algo de semelhante: hoje, a maior parte dos comportamentos sociais e das práticas políticas devem ser "sustentáveis" - o que, só por si, não deixa de ser uma afirmação banal, se não mesmo redundante." (Ferreira, 2004, pág. 96). Existem múltiplas definições de sustentabilidade, mas para simplificar e porque não se pretende esmiuçar todas as suas nuances etimológicas, diríamos que tem como ideia fundamental a continuidade intergeracional da saúde dos ecossistemas (porque falamos de sustentabilidade ambiental). Por outras palavras, a garantia do futuro da biosfera ou a responsabilidade da sua manutenção em condições óptimas para as próximas gerações (Heywood, 1992). Os valores relacionados com a noção de sustentabilidade têm portanto uma grande correspondência com a lógica de defesa do património, no sentido em que estão relacionados com o esforço de garantir a continuidade de uma herança, de preservar um legado que está em risco e cuja centralidade se deve, precisamente, à consciência da possibilidade de sua perda iminente. Ou seja, tal como no caso do património, na proximidade da perda sacraliza-se o objecto a preservar e acentua-se nos discursos a recorrência das preocupações com a sustentabilidade ambiental. Este conceito que aparece na segunda metade do século XX nos círculos internacionais de discussão dos problemas ambientais, começa por ganhar recorrência em relatórios, recomendações e planos das instituições públicas, mas depressa passa para outros registos e suportes discursivos, à medida em que cresce também em abrangência. De facto, tal como no caso do património, crescem os apelos à sustentabilidade de um conjunto muito vasto de coisas e a sua polivalência e largura 7 O termo "sustentabilidade" deriva da noção de "desenvolvimento sustentável", que surge pela primeira vez em 1987 no Relatório Bruntland, preparado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Foi sendo instituído e reforçado nos anos seguintes, através de iniciativas como a chamada “Agenda 21” (oficializada em 1992 na Conferência Eco-92 da ONU – Organização das Nações Unidas) e consequentes revisões, de onde se assinala a criação dos chamados Objectivos para o Milénio (2000). Outro instrumento importante para a reafirmação e a institucionalização da noção de “sustentabilidade ambiental” é a Campanha Europeia das Cidades e Vilas Sustentáveis (CECVS), lançada numa Conferência Europeia realizada em 1994, da qual resultou na chamada “Carta de Aalborg”. Estas iniciativas visaram incentivar a reflexão em torno da sustentabilidade do ambiente urbano, o intercâmbio de experiências entre países, a difusão das melhores práticas ao nível local e o desenvolvimento de recomendações para influenciar positivamente as políticas ao nível Mundial, Europeu e local. 99 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural conceptual são incrementadas. De sustentabilidade ambiental e desenvolvimento sustentável, passamos para sustentabilidade económica, social, cultural, etc., naquilo que se concretiza como um valor a aplicar em todas os aspectos da vida humana em que é desejável uma continuidade. No entanto, no âmbito desta reflexão, centrar-nos-emos naquilo que diz respeito à sustentabilidade ambiental, não só porque remete para a génese ideológica e histórica do termo, mas sobretudo porque é precisamente no quadro das preocupações ambientais que a sua recorrência marca os discursos de valorização da ruralidade. De facto, existe uma estreita conotação da ideia de sustentabilidade com a vida rural e seus elementos, por oposição à cidade, tantas vezes definida como insustentável nos discursos e portanto nas representações, mas também pela associação de perenidade aos estilos de vida campestres. O valor da continuidade, patente na aparente secularidade dos hábitos e dos espaços rurais, é assim contraposto com a volatilidade urbana, aparentemente incompatível com a manutenção da vida natural. No reforço desta ideia, deve ser dito igualmente que nos discursos sociais, ecologistas inclusive, as comunidades rurais tidas como tradicionais e os estilos de vida que lhes estão associados, nomeadamente no que diz respeito às relações entre Homem e Natureza, são frequentemente apresentados como inofensivos para o ambiente e até exemplos de boas práticas (Szerszynski, 1996). Ora isso não acontece com a agricultura industrializada, que para além de não estar conotada nas representações, nem com a ruralidade tradicional, nem com esta ruralidade “em crise” centralizada nos discursos de reinvenção, acumula grande criticismo em torno das suas consequências ambientais. "In contemporary environmentalism, it manifests in the conviction that vernacular communities, living through traditional forms of knowledge, are by their nature ecologically benign." (Szerszynski, 1996, pág. 120). Nos nossos dias, a valorização da natureza e as preocupações ambientais deixaram de estar circunscritas à sensibilidade artística ou a facções políticas radicais, respectivamente e como acontecia no passado. De facto, assistimos à disseminação dos discursos ecologistas e das manifestações de romantismo bucólico, naquilo que parece ser uma maior consciencialização para os problemas ambientais, mas ao mesmo tempo uma suavização ideológica do debate e da 100 Capítulo IV ecologia (dominante), que resulta da adopção da causa por parte do mainstream (Szerszynski, 1996). Voltando às preocupações patrimoniais, podemos dizer que se agora tudo é património, também somos todos ecologistas, o que inevitavelmente transforma a natureza dos discursos ambientalistas (Szerszynski, 1996). Se a valorização patrimonial e rural, em particular, é reforçada pela necessidade cultural de pertença identitária e de segurança ontológica, remetendo para a construção de uma ruralidade refúgio, ao estilo reserva ambiental e cultural, ao que parece, hoje a natureza é também discursivamente apresentada, não só como mãe, nascente, raiz ou génese, mas precisamente também, como refúgio, santuário e enclave a preservar. Tal como o passado ou o mundo rural - "Nature is the home you can go back to." (Smith, 1996, pág. 43). Ainda na mesma linha de raciocínio, tal como a valorização patrimonial, também as preocupações ambientais e as consequentes práticas de preservação da natureza (selecção de prioridades, hábitos de consumo "verde", capacidade de interpretação e reprodução dos discursos e argumentos ecologistas, entre outros exemplos) acabam por ser profundamente elitistas, ainda que em vias de democratização e massificação (Smith, 1996). No entanto, deve ser acrescentado que apesar de tantas correspondências entre a centralidade das questões patrimoniais e ambientais, a sustentabilidade e a natureza constituem valores de poder acrescentado, enquanto argumento, mas sobretudo enquanto necessidade, precisamente por serem biologicamente vitais. A ideia de que a vida do planeta e, consequentemente, da humanidade depende da preservação da natureza vai-se disseminando e com ela saem logicamente reforçados os discursos ambientalistas e a inquestionável importância de garantia da sustentabilidade. A romantização da natureza e a ecologia como corrente ideológica constituem reacções à industrialização e à urbanização. Por um lado, com o Romantismo do século XIX, que dissemina imagens purificadas da vida rural e sacraliza a natureza no contexto da revolução industrial e de um crescimento urbano sem precedentes, sai reforçada a tendência cultural para alimentar o ideal rural e um certo misticismo naturalista transversal às culturas ocidentais (Heywood, 1992; Bunce, 1994). 101 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural Por outro, a partir da segunda metade do século XX, intensificam-se os discursos ecologistas num período de grande aceleração do capitalismo, ao nível da produção e do consumo e perante as consequentes dúvidas em relação à sustentabilidade deste modelo de desenvolvimento económico, dos estilos de vida, das cidades, dos recursos, etc. (Heywood, 1992). Assim, ao que parece, é em alturas de maior ansiedade por relação às transformações sociais e económicas, de maior incremento das ameaças à sustentabilidade dos recursos e da saúde do planeta e de maior distanciamento para com o "estilo de vida rural", tal como está estabelecido culturalmente nos nossos imaginários colectivos, que se acentuam os discursos de preservação e louvor à natureza. De facto, nos discursos dominantes, natureza e ruralidade confundem-se, sendo nos imaginários urbanos que começa esta promiscuidade. Neles a natureza é uma paisagem pastoral que existe "por aí" e que está sempre acessível para promover a fruição, o relaxamento, o consumo ascético e a nossa redenção colectiva (Adam, 1998). No entanto, se a natureza e a ruralidade recolhem um conjunto de conotações positivas, o ambiente, pelo contrário está associado à poluição e às preocupações ecologistas, ainda dentro das representações moldadas pelos discursos dominantes (Adam, 1998). Desta feita, a natureza corresponde nos imaginários colectivos a uma entidade ou mundo alheio e exterior à produção humana, à técnica, aos artefactos e à cultura, ao mesmo tempo que o ambiente, por seu turno, (enquanto meio natural em que nos encontramos e, portanto, que não nos é estranho ou apartado) está esvaziado de qualquer conotação idílica e é fortemente associado à intervenção nefasta da humanidade (Adam, 1998). A ideia de natureza intocada e pura, por pertencer a um tempo ido, condensa a ideia de primitivismo e transmite nostalgia. Passamos a considerar o mundo primitivo e selvagem como o mundo máximo, o verdadeiro mundo, depois de abandonado o antropocentrismo e a sua visão utilitária da natureza, característico da modernidade (Oelschlaeger, 1991). Ou seja, depois de rejeitarmos colectivamente a ideia de que a dominação da natureza pelo Homem é natural, no verdadeiro sentido do termo, depois de termos construído uma consciência colectiva que não só externaliza como universaliza a natureza e depois de louvarmos o nosso saudosismo culpado perante a sua destruição (Oelschlaeger, 1991). 102 Capítulo IV Este eco-centrismo contemporâneo rodeia a natureza de misticismo, na medida em que reitera a indiscutibilidade da sua beleza e perfeição ascéticas e reforça a sua independência por relação aos homens e as mulheres (Oelschlaeger, 1991). "Nature is an established, trenchant and powerful weapon in 'western' discourse; its power trades precisely on the slippage from externality to the universality of nature. The authority of 'nature' as a source of social givenness and unalterability of natural events and processes that are not susceptible to social manipulation." (Smith, 1996, pág. 41). A consciência dos problemas ambientais e a disseminação das preocupações com a preservação da natureza contribui para a construção de uma "cidadania ambiental global" e para um sentido de comunidade global unificada pela abrangência das ameaças. Perante um risco global ergue-se, portanto, um sentimento global de pertença, de responsabilidade e de missão que tem sido aproveitado e capitalizado pela, também global, economia de mercado e pelas grandes corporações (Smith, 1996). Neste domínio, deve ser dito que tal como a valorização patrimonial, também esta atenção reforçada para com as questões ambientais parece abrir um vasto rol de novas perspectivas de negócio, ao invés de podar o crescimento económico e o capitalismo de mercado tal como o conhecemos. "Likewise, as the enthusiastic bureaucratic appropriation of 'sustainable development' makes clear, environmental policy actually provides a new, clean, and socially acceptable cover for imperialism at a global scale - that is, business as usual." (Smith, 1996, pág. 41). Paradoxalmente, a valorização da natureza é argumento para estimular o consumo de um vasto conjunto de produtos, não parecendo existir uma retracção no consumo ou um sério apelo à sua contenção que se compare à intensidade do marketing dos produtos "verdes". Esta lógica de promoção reforça a ideia de que é um dever ecológico comprar certo tipo de produtos, já que protegem o ambiente, acentuando a sua rentabilidade através do poder comercial, simbólico e argumentativo de tudo o que está associado com a ecologia (Urry, 1998). Nesta linha, para além do negócio dos produtos "verdes", da rentabilidade das novas fontes de energia renovável, do mercado internacional de compra e venda de quotas de emissão de CO2, entre outros exemplos, temos na capitalização dos 103 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural patrimónios naturais para promoção turística e dentro das disputas competitivas territoriais, uma forte manifestação da lógica de rentabilização das preocupações sociais para com a natureza e o ambiente. É patente a aposta nos patrimónios naturais (enquanto recurso para o desenvolvimento económico e territorial), numa clara tendência para a chamada "ecologia de restauro", traduzida num investimento na renaturalização das paisagens, na reabilitação e promoção dos patrimónios naturais e rurais, em busca de uma rentabilização do seu valor simbólico acrescentado (Smith, 1996). É importante olhar para as preocupações ecológicas como um discurso, no sentido em que os problemas ambientais são tidos como indiscutíveis e é na sua interpretação que se focam as atenções (Hajer, 1995). Como dissemos, a ecologia deixa de pertencer às margens e perde o radicalismo ideológico, à medida que se torna inclusiva, pela construção da tal comunidade de risco global, disseminando-se como discurso nestes valores, interesses e responsabilidades comuns. A unificação do problema, do património planetário, da missão de salvamento, da culpa e das responsabilidades, reitera a axiologia e o imaginário que legitimam o discurso, ao mesmo tempo que o dota de poder, precisamente por via da força sustentadora da cultura. Resumindo, perde-se em radicalismo ideológico mas acentua-se a radicalização patrimonial (da natureza, da cultura, da ruralidade, etc.) "Hence, sustainable development should also be analysed as a story-line that has made it possible to create the first global discourse-coalition in environmental politics. (Hajer, 1995, pág. 14). Existem certamente conflitos na interpretação do discurso, que não deixa de ser fragmentado, contraditório e volátil consoante os interesses, a conjuntura, as conveniências, as lutas de poder, as práticas, as agências, etc. De qualquer forma, é o discurso dominante, baseado nas representações colectivas em torno da natureza e das ameaças e problemas ambientais, que molda e legitima as políticas ambientais, segundo um conjunto de valores e argumentos ancorados culturalmente (Hajer, 1995). Qualquer estratégia discursiva deve ser, portanto, vista em perspectiva, dentro do contexto social em que se enquadra. Pelo facto de ser o discurso dominante que hierarquiza os problemas ambientais, as prioridades ao nível da acção e as agendas políticas, atribuindo significado aos fenómenos, identificando culpados, etc., esta é certamente uma questão de poder (Hajer, 1995). 104 Capítulo IV Uma determinada calamidade natural só existe para as consciências colectivas se for devidamente constituída como tal política e discursivamente, se for criado em seu redor um significado, se for disseminada e promovida mediaticamente, por parte de agências com poder de influência e segundo uma estratégia insistente de enumeração, descrição, inventariação das suas características, preferencialmente através do jargão científico. Por outras palavras, é o discurso que faz com que determinados fenómenos sejam considerados calamidades e é o discurso que as torna reais nas consciências colectivas (Hajer, 1996). Esse é o poder do discurso. O discurso é poder. "Environmental discourse is essentially political, shaped by vested interests struggling to control the future and shrouded, therefore, in a great deal of 'expressive propaganda'." (Milton, 1996, pág. 226). A ciência aufere neste âmbito uma centralidade sem precedentes ao nível dos processos de decisão política, principalmente porque é através dela que se identificam os problemas, se comprova a sua gravidade e se encontram estratégias de solução. A ciência legitima o discurso para o qual contribui, enquanto saber e agência de poder dominante (Hajer, 1996). Nas questões ambientais, a ciência têm de facto um poder de influência reforçado ao nível do discurso, atingindo um nível de autoridade muito elevado, no que toca à definição das estratégias de conservação dos patrimónios naturais (Ashworth & Howard, 1999). "Natural heritage experts are very loath to surrender their scientific status. Of course they are very aware that the difficult decisions of what to conserve and when and where are political and social decisions, but they have used their scientific authority very successfully in the past." (Ashworth & Howard, 1999, pág. 28). Importa dizer, sobretudo, que a disseminação das preocupações ecológicas, em paralelo com o reforço do ideal rural, tem contribuído para a legitimação do discurso de valorização da ruralidade. Não apenas no plano da valorização do chamado património natural rural, mas principalmente por via da atribuição de uma função central aos territórios rurais, a conservação da natureza. Aparentemente, espera-se que a agricultura seja progressivamente substituída por actividades de preservação da natureza, mais precisamente a manutenção e protecção das florestas, a renaturalização progressiva das paisagens, a conservação da fauna autóctone, etc. 105 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural Assim, para além da preservação das tradições, das identidades, da memória colectiva e dos valores familiares, os territórios rurais têm como missão a protecção da natureza e a garantia da sustentabilidade ambiental. O mundo rural vem sendo centralizado pelos argumentos patrimonialistas e ecologistas, que tendem a valorizar o seu potencial conservacionista. O poder que estes argumentos e valores atingem culturalmente nos nossos dias e a sua disseminação nos discursos dominantes reforça o poder da ruralidade enquanto paisagem simbólica e legitima o optimismo que cresce em torno das suas possibilidades de reinvenção funcional. O valor simbólico e o potencial funcional da ruralidade, legitimados pelos valores patrimonialistas e ecologistas, fazem parecer viável a transformação dos territórios rurais, mas sobretudo tornam-na essencial às nossas consciências. Por outras palavras, os argumentos patrimonialistas e ecologistas transformam o mundo rural no passado que não podemos deixar para trás e, ao mesmo tempo, na nossa garantia de um futuro e de uma continuidade. Em suma, reiteram a estratégia da reinvenção dos espaços rurais, reforçam a sua matéria-prima cultural e os argumentos de sua promoção e consumo, ajudando, no processo, a definir a sua funcionalidade reinventada. 3. Ponto de Situação (Eixos → Valores → Missões) Valores Património Sustentabilidade Ambiental Estímulo à substituição da agricultura por actividades ligadas aos recursos patrimoniais locais. Conservação e promoção do património rural. Reanimação das tradições locais. Aposta nas artes e nos ofícios. Investimento no Turismo Rural. Conservação da natureza. "Renaturalização" das paisagens. Aposta em actividades ecológicas e de preservação da natureza. Promoção da sustentabilidade na agricultura (agricultura biológica) e no turismo (ecoturismo). Exaltação do passado. Pertença vs. Instabilidade. Rural conotado com tradições, valores familiares, coesão social, estabilidade, etc. Sacralização da natureza. Biológico vs. Tecnológico. Rural conotado com saúde ambiental, paz, pureza, equilíbrio nas relações entre o Homem e a natureza, etc. Eixos Estratégia (acções legitimadas pelos valores) Matéria-prima (representações positivas legitimadas e reforçadas pelo poder dos valores) 106 Capítulo IV Produtos (centralidade de valores e argumentos na promoção de produtos e territórios) ↓ Missões Autenticidade, tradição, retorno às raízes, cultura, identidade, continuidade, passado... (gastronomia, artes e ofícios, arquitectura rural, trajes e musica tradicional, etc.) ↓ Preservar o Passado Qualidade de vida, relaxamento, saúde, fauna e flora selvagens ou autóctones, ecologia, futuro... (paisagens naturais, fauna e flora, agricultura, etc.) ↓ Garantir o Futuro (funções discursivamente atribuídas à ru\alidade reinventada) Para facilitar o entendimento de como se cruzam, na prática, os eixos do discurso e os valores de suporte que assinalámos, apresentamos o quadro síntese, que concretiza essa relação com alguns exemplos. Deve ser dito que o quadro não pretende ser exaustivo, mas antes ilustrativo de como os alicerces axiológicos do discurso legitimam e reforçam o mesmo, nos seus diferentes registos. Pretende-se que seja sintético e claro, porque a sua função é precisamente permitir que neste ponto da reflexão se consolide a relação dos pontos essenciais expostos anteriormente. Assim, cruzamos a estratégia, ou o discurso técnico e político pelo desenvolvimento rural, com os valores patrimonialistas e ecologistas, para ilustrar de que forma as acções, levadas a cabo no âmbito dos projectos de intervenção que dele brotam, são legitimadas por estas tendências de valorização. Neste âmbito, percebemos que os apelos à diversificação funcional das economias rurais, com aposta em actividades de rentabilização dos recursos patrimoniais (naturais e culturais) endógenos, saem fortemente reforçados, por esta aparente unanimidade cultural que rodeia a valorização desse potencial. Integrados nesta tendência cultural, os discursos e estratégias que pretendem estimular o desenvolvimento local incentivam, de facto, a que os espaços rurais assumam funções de conservação e promoção dos patrimónios identitários e ecológicos e que não só cumpram com a preservação das tradições e dos vestígios do passado (construído e imaginado como colectivo), mas também com o garante da sustentabilidade ambiental das nossas sociedades. Neste sentido, a estratégia não só é legitimada e reforçada por esta lógica de valorização cultural do património e da sustentabilidade ambiental como valores e, neste caso, como argumentos, como não faria sentido sem esta remissão. 107 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural Quanto ao cruzamento do segundo eixo com ambos os valores, é nítido que a bateria de representações idílicas em torno do rural brota da mesma matriz cultural, que enaltece o passado purificado e sacraliza a natureza. As representações positivas em torno da ruralidade saem reforçadas pela valorização patrimonial no que diz respeito à perspectiva de que o rural é uma espécie de enclave tradicional em que ainda se mantêm os valores, laços e elementos que, supostamente, se foram perdendo com o tempo e com o avançar da civilização. Por outro lado, reforça-se ainda mais com esta tendência cultural para a defesa do meio ambiente, já que na génese, o ideal rural e a sacralização da natureza se confundem e saem reforçados (simultaneamente) nos mesmos períodos históricos (no Renascimento, durante o Romantismo e na actualidade). Resumindo, podemos dizer que o ideal rural (a matéria-prima do discurso) condensa e atribui um conjunto de características à ruralidade, que correspondem precisamente àquelas que são mais valorizadas e centralizadas por estas tendências culturais de valorização do património e do ambiente. Para enunciar algumas delas, podemos apontar a manutenção das tradições, dos localismos, da herança identitária, da memória colectiva, dos saberes e ofícios, da arquitectura secular, do vernáculo, das paisagens, da fauna e da flora autóctones, de um estilo de vida sustentável, da relação harmoniosa entre o Homem e a natureza, etc. O ideal rural está associado aos valores patrimonialistas e aos valores ecologistas precisamente por sair reforçado enquanto resposta às inquietações transversais da civilização. A instabilidade de um tempo em aceleração e as inquietações de um mundo globalizado levam à necessidade de uma ancoragem cultural reforçada e à construção sôfrega de pertenças em torno das quais gerar um sentimento. A insustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento e a disseminação da consciência de que o planeta está em risco, acrescentam valor ascético à natureza e ao que lhe é amigável. A estabilidade rural é exaltada por comparação à instabilidade que supostamente a vida urbana representa, ao mesmo tempo que o biológico é glorificado por relação a um mundo tecnológico (em demonização). Em suma, a matéria-prima do discurso, dizendo respeito à sua dimensão cultural, acaba por constituir uma condensação destas lógicas de valorização, para o que ao rural diz respeito. O poder dos valores legitima os elementos que no rural se 108 Capítulo IV concentram e que ao nível do mito, do imaginário e do projecto, parecem corresponder exactamente ao que é socialmente enaltecido. Por último, cruzando a dimensão comercial do discurso com os valores que destacámos, percebemos facilmente que estes funcionam como a estrutura axiológica, simbólica e representativa em que assenta toda a lógica promocional do rural enquanto produto. Os produtos rurais e a própria ruralidade são promovidos pelo seu potencial patrimonial, ou pelo menos tradicional, através de fortes apelos ao saudosismo urbano, e também pela sua dimensão natural. Ora, estas características não seriam alvo de destaque promocional, nem objectos de interesse comercial, caso não fossem valorizadas culturalmente. Perante estas tendências de valorização patrimonial e ambiental é lógico que se exaltem este tipo de virtualidades da vida rural, sendo o seu poder simbólico indissociável deste contexto cultural. Sintetizando, a valorização patrimonial e ambiental legitima a orientação estratégica para o desenvolvimento das áreas rurais, integrada no discurso de reinvenção da ruralidade, reforça o ideal rural e com isso oferece os argumentos para a promoção da ruralidade e dos seus produtos. Neste processo, precipitam-se as funções conservacionistas da ruralidade reinventada, enquanto reserva para a memória colectiva (tradições e identidades) e enquanto santuário ambiental, onde a harmonia das relações entre Homem e natureza é preservada e reproduzida, como uma sabedoria transmitida de geração em geração. 109 Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural 110 V. A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta, Saber que existe o mar e as praias nuas, Montanhas sem nome e planícies mais vastas Que o mais vasto desejo, E eu estou e ti fechada e apenas vejo Os muros e as paredes, e não vejo Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas. Saber que tomas em ti a minha vida E que arrastas pela sombra das paredes A minha alma que fora prometida Às ondas brancas e às florestas verdes. 1944, Sophia de Mello Breyner Andresen. 8 Não podemos discutir o discurso de reinvenção da ruralidade, suas dimensões e suporte axiológico e cultural, sem pensar na sua origem e nas expectativas e interesses que o alimentam. Tendo já tocado esta temática ao longo deste percurso reflexivo, importa aprofundá-la, reforçando por um lado o carácter urbano do discurso e debatendo, por outro, as relações territoriais, dentro desta lógica de reinvenção da funcionalidade das áreas rurais. Por outras palavras, pretendemos justificar e explicar a afirmação da urbanidade deste projecto de ruralidade, enquanto o integramos nas lógicas que regem as relações territoriais, neste contexto. Olhar para o discurso de reinvenção da ruralidade como um fenómeno urbano, parece-nos ser a melhor forma de explicar a sua centralidade e contextualizar os contornos do projecto veiculado. Parece-nos a melhor forma de o situar e integrar numa matriz cultural e ideológica e de o relacionar com as grandes lógicas conjunturais que dominam os territórios e a vida quotidiana na actualidade. “(…) jamais o ponto de vista do habitante rural esteve tão longe das decisões sobre o destino dos seus espaços de vida.” (Figueiredo, 2003 b, pág. 165). “Existe 8 Poema “Cidade”, retirado de Andresen, Sophia de Mello Breyner (1995), Obra Poética I, Porto, Caminho. A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses um outro olhar sobre a natureza, o ambiente e a vida rural que se tem, inclusivamente, revelado mais importante que o das populações rurais: o olhar dos urbanos e o olhar do Estado.” (Figueiredo, 2003 b, pág. 170). Importa então esclarecer a origem urbana deste discurso e reforçar a exterioridade das expectativas que conduzem esta reinvenção no mundo rural. A dominação dos estímulos e da influência urbana na reconfiguração funcional, paisagística, demográfica, cultural e imagética da ruralidade, não só é clara, como é patente em todas as dimensões do discurso e nos valores que o sustentam e projectam. Senão vejamos... A estratégia de requalificação funcional e simbólica das aldeias, com base no seu potencial patrimonial, com vista a uma rentabilização turística e residencial, vai beber muito ao que foi ensaiado nos centros históricos das cidades. Baseando-se numa lógica muito semelhante, para satisfazer propósitos muito próximos e com base nos mesmos recursos, a estratégia de desenvolvimento que projecta o rural patrimonial, não só é pensada e estimulada externamente, como respeita uma tendência urbana de gestão e promoção territorial. A matéria-prima deste discurso e projecto de reinvenção, o chamado ideal rural, bem como os valores ambientalistas e patrimonialistas que o reforçam e precipitam, fazem sentido no quadro das grandes inquietações urbanas e, afinal, da civilização. A valorização das virtualidades rurais não brota do orgulho interno, mas é, antes, uma consequência da urbanização, principalmente em períodos históricos em que esta se acentua e ensombra, pela dominação, outras formas de território. A ruralidade idílica é um enclave simbólico ou um refúgio imaginário que se afirma nas consciências e nos discursos, sempre como um contraponto à cidade demonizada. Tendo poder enquanto alteridade, esta ruralidade projecta-se como nunca, num contexto em que muito criticismo se acumula, em torno do nosso modelo de desenvolvimento, e em que muito cepticismo vai afastando a esperança na sustentabilidade das cidades e do estilo de vida urbano. As "missões" de preservação dos patrimónios ecológicos e culturais, delegadas discursivamente ao mundo rural e que, afinal, desresponsabilizam as cidades, em jeito de compensação por um eventual fracasso a este nível, parecem ser concedidas dentro de uma lógica urbana de "divisão territorial do trabalho". Quanto aos produtos rurais e ao rural enquanto produto, deve ser dito que estão igualmente orientados para os consumidores urbanos e que são as suas 112 Capítulo V necessidades de consumo, entretenimento, habitação, etc. que moldam a reinvenção funcional do mundo rural, adaptado para corresponder às expectativas dominantes. Indo mais longe, não é líquido que os dividendos a retirar destes novos negócios se convertam em desenvolvimento local, nem que sejam autóctones os seus grandes promotores, existindo fortes possibilidades de que, muitas vezes, um grande aproveitamento do potencial comercial rural seja feito, por parte de empresários externos. Assim, estando perante uma lógica urbana de gestão e promoção de um potencial territorial, valorizado segundo um conjunto de valores e representações, que fazem sentido no contexto das necessidades e inquietações urbanas e que promove um conjunto de produtos para consumo urbano, eventualmente também para servir interesses externos ao mundo rural, reforça-se a pertinência de discutirmos este projecto de ruralidade pelo seu vínculo à cidade. Será este o âmbito das próximas páginas, seguindo a sequência apresentada. Começaremos por discutir a estratégia de reinvenção dos territórios rurais, em analogia com o caso de requalificação dos centros históricos das cidades, para posteriormente continuar a reflexão em torno do contexto do qual derivam as representações e de onde saem reforçados os valores que alimentam a ruralidade, enquanto alternativa idílica à cidade demonizada. Espaço haverá, ainda, para debater os interesses e expectativas por detrás destas transformações, bem como para perceber a quem poderá favorecer a aplicação deste projecto de ruralidade consumível. 1. Uma estratégia urbana de reinvenção da ruralidade? A analogia com as estratégias de requalificação dos centros históricos das cidades Tal como no caso do desenvolvimento rural, nas últimas décadas, muita centralidade tem sido dada aos centros históricos das cidades, aos seus problemas, potencialidades, possibilidades de futuro, etc. Após um período em que as cidades perderam gradualmente os seus habitantes para as periferias, em que viram a sua prosperidade económica posta em risco pela mudança das lógicas produtivas e foram sendo vítimas de inúmeras mortes anunciadas, com a sobreposição dos problemas às suas vantagens, ensaia- 113 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses se um “renascimento” urbano em que o potencial patrimonial é recurso estratégico (Ferreira, 2004). Durante esse processo, os antigos centros que encarnavam todos os sinais de decadência e se confundiam até com estes nos imaginários colectivos, passam a estar associados aos melhores traços de urbanidade e a importantes trunfos para o futuro. Os impactos dos novos desafios desta fase do capitalismo parecem exigir o incremento da capacidade de redescobrir as potencialidades económicas, culturais e sociais dos aglomerados urbanos e também dos seus antigos centros. Nesta dinâmica, estes passam de obsoletos e desertos a “históricos”, nos discursos de quem tomou consciência de que alguns problemas, se reinventados, podem passar a mais-valias, no processo de construção de um protagonismo territorial (Ferreira, 2004). Aposta-se assim no património, na sua reabilitação, preservação e promoção, como mais um factor de desenvolvimento e como riqueza e benefício para a comunidade local. Desse potencial espera-se que seja capaz de estimular a reanimação económica, atraindo turismo, investimentos, melhorando a imagem do lugar e reforçando a identidade deste, para que sejam alcançadas simultaneamente singularidade e visibilidade à escala global. “La cultura, el patrimonio cultural, ya no sólo es importante por su valor histórico y por ser el soporte de la identidad de los pueblos, sino que se ha revelado como un recurso de desarrollo fundamental“(Bernal Santa Olalla, 2000, pág. 32). Óbvio parece ser, portanto, que os mesmos princípios que, como vimos, se aplicam às actuais estratégias de desenvolvimento rural, estão patentes nesta lógica de promover a cidade e requalificar a sua imagem e o seu tecido económico, com base nos seus patrimónios culturais e históricos. Da crise ensaia-se a rentabilização patrimonial, o vazio funcional dá lugar a usos recreativos, turísticos, emblemáticos e mnemónicos, em manobras de reinvenção muito semelhantes, orientadas sob os mesmos cânones. A gestão das cidades segundo moldes quase empresariais e a sua promoção através da utilização dos métodos do marketing urbano, recorre, muitas vezes, às relíquias e elementos emblemáticos da paisagem construída da cidade, na elaboração de uma imagem de marca forte e vendável. O património histórico das cidades encerra um valor concorrencial e comunicacional inquestionável, sendo isto claro se pensarmos que “As cidades históricas representam, aliás, um dos modelos 114 Capítulo V identitários de desenvolvimento urbano que mais se tem multiplicado, embora, com alguma frequência, essas cidades não sejam eminentemente históricas.” (Peixoto, 2003). A dinamização cultural, a “reciclagem” das paisagens urbanas e a nutrição do “espírito de lugar”, são etapas importantes do processo de, no âmbito local, agir para acompanhar os desafios impostos pela economia global, que exigem uma reacção e adaptação territorial a diferentes escalas. Isto acontece principalmente em contextos em que a reconversão das capacidades competitivas tem na sua base o património, que funciona como a “tábua de salvação” habitual para as localidades que não possuem outros motivos de mediatização, singularidade identitária e prestígio, ou outros recursos a capitalizar (Peixoto, 2001). Ora, mais uma vez, esta não parece ser uma tendência exclusivamente urbana, aplicando-se, como vimos, aos espaços rurais. A capitalização dos recursos patrimoniais, a reversão de estigmas e reputações pejorativas e a promoção dos territórios, com base nos seus elementos mais distintivos (produtos locais, estâncias termais, reservas florestais, fenómenos naturais específicos, artesanato típico, gastronomia, etc.) ensaiam-se, assim, para fazer frente a situações de marginalidade competitiva no quadro da globalização. Neste contexto e tal como acontece com a ruralidade, os centros históricos convertem-se numa representação do que, supostamente, está em risco de desaparecer nas cidades, remetendo para valores ou arquétipos que, eventualmente, podem nunca ter sido concretizados, mesmo no passado, tais como: espaço público, qualidade de vida, o modelo tradicional de família, a cidade à escala humana, segurança, ausência de tráfego automóvel e poluição, entre outros. E se a cidade histórica é a cidade "melhor" que nos arriscamos a deixar para trás, o mundo rural é o enclave natural e tradicional que desaparece com ela e que importa preservar. Podendo ser reconfortantes, por confirmarem a possibilidade de uma continuidade e de um renascimento, os vestígios do passado podem igualmente ser angustiantes, caso estejam deixados ao abandono. Isto porque no seu carácter ultrapassado e por vezes decrépito, está patente a transitoriedade e contingência dos tempos e dos espaços e ilustrado o imediatismo dum presente que pode não conhecer um futuro, mesmo que das ruínas se construam os alicerces de um futuro mais próspero (Fortuna, 1999). Reabilitando as ruínas da história e do passado, 115 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses apaziguam-se as consciências, no sentido em que os sinais de descuido, abandono, destruição e degradação da cidade construída estão associados à noção de uma cultura arruinada, a um presente hipotecado e a um futuro pouco provável (Fortuna, 1999; Ashworth, 2000). Os lugares históricos são, assim, decisivos na construção da ideia que temos da cidade, bem como da possibilidade do seu futuro e continuidade. Desta feita, a forma como são tratados acaba por ser um barómetro identitário para os urbanitas, cujas consciências parecem descansar perante a sua saúde e preservação. Estes elementos espacializam a utopia urbana, fixam os sujeitos aos seus significados, ao mesmo tempo que alimentam os seus imaginário e confundem plasticamente tempos e espaços contraditórios, em combinações singulares dispostas à apropriação (Fortuna, 1999, Ashworth, 2000). Identitariamente, então, os vestígios do passado jogam um papel muito importante, principalmente no sentido em que dotam os lugares de singularidade num contexto de grande homogeneização das referências culturais dominantes (Choay, 1982). Assim, as cidades e as aldeias patrimoniais têm a sua valorização, em boa parte, associada à função de dotar o tempo de sentido histórico e sequencial e de materializar os testemunhos de um passado imaginado, representando territórios idealizados, que servem de compensação e contraponto para os desconfortos dos territórios reais. Nesta lógica e quando pensados e desconstruídos, os centros históricos permitem analisar o hiato entre a cidade vivida e a cidade imaginada (Peixoto, 2003). Como referimos, o centro histórico das cidades representa os valores da cidade perdida, no curso de uma urbanização desequilibrada, estando na sua degradação o sentimento de um presente inviável e na sua recuperação um novo fôlego e esperança identitária. Enquanto testemunho de um passado comum, enquanto ancoragem originária de uma comunidade em busca de um sentido e de um lugar no curso da globalização, ou enquanto recurso para atrair os fluxos turísticos, é pretexto para todas as atenções, preocupações e intervenções. Neste sentido, não podemos deixar de estender estas funções a outros territórios patrimoniais e, nomeadamente, aos rurais, no sentido que acabam por constituir igualmente referentes identitários, pontos de ancoragem cultural, projectos de território mais próximos da sustentabilidade e dos valores tradicionais, novos campos de negócio e pretextos para o consumo, mas sobretudo bálsamos para as 116 Capítulo V inquietações urbanas, enquanto enclaves livres dos problemas associados às cidades. "Cette sensibilité a pris forme lorsque est née une critique de l'urbanisme moderne s'appuyant sur un double mouvement: la redécouverte du centre historique et attrait pour l'écologie." (Remy, 2004, pág. 258). Sendo assim e porque esta noção (de centro histórico) é recente, a proeminência que ganha só é possibilitada pelo que existe de novo e crescente na cidade. Por outras palavras, o protagonismo da cidade histórica reside na alteridade que revela em relação ao resto da urbe e em relação ao que é construído no rasto do processo de urbanização, alvo do habitual criticismo. Neste quadro, os centros históricos das cidades e o mundo rural acabam por ser problemas em que se quer pensar, pois nas soluções para a sua decadência, para além de recursos importantes, pode encontrar-se a ilusão de uma sustentabilidade urbana, há muito desacreditada. Se pensarmos que na busca de um futuro para esse passado, garantimos a ilusão de sustentabilidade do presente, que muitas vezes é sentido como despojado de esperanças e projectos, e provamos, mesmo que ilusoriamente, que o nosso modelo de desenvolvimento pode não ser assim tão contingente e volátil, ganhamos em segurança neste cenário de instabilidade. É frequente designar por "centro histórico" áreas que não são nem centrais nem históricas, já que na intenção de reforçar o potencial competitivo das cidades e dos seus recursos, cria-se muitas vezes uma imagem de autenticidade e de tradição que não tem qualquer fundamento técnico ou científico. O sucesso da cada projecto de reinvenção e promoção territorial depende mais das suas repercussões políticas e mediáticas, do que de uma eventual “verdade” histórica ou geográfica (Peixoto, 2003). É no centro histórico que a reposição simbólica das identidades é efectuada, passando este a conter o poder de representação da cidade em geral, mesmo que dela não seja de forma nenhuma representativo, correspondente ou fiel, quer na realidade construída, como nos modos de vida, no ambiente ou na vivência concreta. Nestes processos, transformam-se as zonas históricas em lugares restringidos funcionalmente, que se destinam a actividades festivas e cénicas, invocadoras do passado e da identidade urbana, em que muitas vezes é olvidada a 117 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses riqueza e diversidade que decorre da passagem de diferentes usos e tempos, gentes e imaginários (Martínez, 2001). Da reinvenção e promoção destes territórios resulta, frequentemente, uma simplificação destas justaposições e a construção de uma imagem agregadora e de fácil apropriação, numa tendência mercantilista e normalizadora que pretende facilitar a sua gestão e aproveitamento. Tal como sucede nos centros históricos das cidades, nos territórios rurais sob o mesmo tipo de processos de reinvenção, é comum existir uma redução do espectro de imagens que correspondem a tão estruturadas e poderosas expectativas. Por outras palavras, o que se espera das paisagens rurais é um conjunto bastante reduzido de imagens e significados, que pelo seu romantismo e perfeição, dificilmente são compatíveis com a diversidade e complexidade das realidades sociais e territoriais. Simplifica-se a projecção dos lugares, estruturam-se expectativas e como consequência exige-se que os territórios se moldem para caber na "reputação construída" que os precede. Ora o peso dessas exigências pode, muitas vezes, ditar uma homogeneização de territórios que tinham a distintividade como principal trunfo. O trabalho de renaturalização de paisagens, de criação de cenas agrícolas inspiradas em técnicas arcaicas, a ocultação dos sinais do tempo e do progresso (como antenas, maquinaria, estufas, etc.), a redução do rural ao património, ao passado e à natureza, etc., podem de facto, ser factores opressores e condicionadores das vidas autóctones e das possibilidades de desenvolvimento destes lugares. Sendo claro que nenhum renascimento pode ser concretizado sem uma crise ou decadência prévia, encontramos em ambas as estratégias de desenvolvimento, um difundido consenso por relação à existência de quadros de marginalidade e entorpecimento anteriores ou ainda presentes. Nos discursos populares, políticos e mediáticos, a crise rural e a crise dos centros históricos passa (ou pelo menos passou muitas vezes, num passado não muito distante) pelos mesmos consensos: abandono, desfuncionalidade, degradação, ruína, falta de oportunidades de futuro, nostalgia por um eventual passado de prosperidade, etc. Mesmo sendo territórios diferentes, encontramos de forma recorrente os mesmos valores e narrativas, naquilo que são os argumentos para a necessidade de uma intervenção pública capaz de transformar e fazer renascer estes espaços. 118 Capítulo V Enquanto pretexto para uma intervenção urgente e pela centralidade que a zona histórica tem hoje na nossa ideia de cidade, a concentração dos esforços autárquicos na reabilitação do centro patrimonial urbano faz, muitas vezes, desviar as atenções de outras áreas ou problemas urbanos, segundo os interesses do poder político e de outras agências influentes. É comum a dramatização da condição dos centros históricos, a fim de difundir uma imagem calamitosa da cidade, para atrair investimentos e agilizar os esforços de recuperação ou mesmo para legitimar decisões políticas e despesas públicas. Assim, não deixa de ser preocupante a sobreposição da centralidade dos espaços patrimoniais em relação às áreas de mais recente urbanização, que são muitas vezes mais problemáticas social e ecologicamente e que ficam, assim, relegadas para uma posição, que pela carência comparativa de mediatismo e “representatividade”, impede que cheguem ao estatuto de prioridade política (Peixoto, 2003). Extrapolando, podemos questionar também as causas da centralidade crescente das questões rurais e dos possíveis interesses por detrás de tamanha "consensualidade" discursiva, em torno da urgência das soluções e do potencial dos seus recursos. Como foi dito, estes são problemas em que se quer pensar e para os quais se exige todos os esforços possíveis, não só porque se encara a reinvenção como uma solução, mas principalmente também (a nível discursivo) como uma oportunidade de desenvolvimento e atracção de mais-valias. Desta feita e institucionalizada esta perspectiva, os poderes públicos encabeçam as estratégias de desenvolvimento e promoção destes territórios, no sentido de criar as condições, para que os interesses privados aproveitem estes recursos locais e os mobilizem económica e culturalmente, de maneira a reproduzir os estímulos à sua requalificação funcional. No turismo este ponto é claro, no sentido em que o poder público reabilita o património, apoia financeiramente o estabelecimento de iniciativas e promove o potencial local mediaticamente, esperando das empresas que aproveitem o estímulo fertilizador de economias em ascensão, materializadas nestes novos investimentos, iniciativas, exemplos, interesses, etc. Esta lógica, mesmo que em escalas e estruturas diferentes, é aplicada tanto nos mercados turísticos, patrimoniais e simbólicos dos centros históricos das cidades, como nas localidades apresentadas como rurais, que aspiram à sua 119 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses diversificação funcional, com base nas estratégias que apresentamos anteriormente. Assumindo que os recursos simbólicos e materiais capitalizados, embora diferentes e até alternativos, se baseiam nos mesmos critérios de valorização, no mesmo tipo de lógicas culturais e discursivas de exaltação e nos mesmos argumentos legitimadores (de atenção e investimento), podemos apresentar ambas as dinâmicas como integradas numa mesma matriz de gestão territorial e de estímulo ao desenvolvimento. Esta estratégia procura rentabilizar os recursos patrimoniais e a aura romantizada dos espaços, tendo como argumento a urgência de uma intervenção pública que resolva uma aparente crise generalizada e assume, na contemporaneidade, uma transversalidade tendencial. Não sendo uma coincidência, deve ser dito que as diferentes políticas territoriais têm uma origem comum, derivando de estados nacionais, governos locais, técnicos de planeamento, empresas e promotores, que estão inevitavelmente integrados num sistema económico e cultural dominante, cujos interesses devem ser servidos (Williams, 1990). As políticas territoriais são uma forma de remediar os impactos e jogar com as oportunidades de um modelo de desenvolvimento esmagador, que dificilmente pode ser contrariado. As decisões políticas devem, portanto, favorecer os interesses económicos dominantes, remetendo para a uma orientação estratégica maior (Williams, 1990). Neste sentido, devem ser interpretadas enquanto manifestações ideológicas dessas vontades e conveniências e relacionadas pela sua coerência e complementaridade, no sentido em que, enquanto discursos científicos e técnicos, contribuem para o status quo e estão integradas nos processos hegemónicos de produção de significados (Foucault, 1972). No que toca ao conteúdo dos valores, trabalhados enquanto recursos, que preenchem os discursos e determinam as potencialidades a promover, podem igualmente ser encontradas muitas semelhanças em ambos os casos. O património histórico e cultural, em conjunto com a paisagem e os elementos naturais (no caso dos espaços rurais), funciona como a base dos argumentos proteccionistas, dentro de uma mesma lógica de valorização das tradições, traços identitários, mitos, lendas, estilos de vida do passado, ícones e outros aspectos relacionados. Estes valores são centrais nos discursos de valorização e promoção, legitimando a valorização e indicando os recursos essenciais para o renascimento territorial. 120 Capítulo V O trabalho de reforço dos laços identitários e do espírito do lugar, construído com base nos elementos patrimoniais, bem como o trabalho de transformação e promoção de uma imagem potente e atractiva destes espaços, também feito a partir destes, são processos semelhantes e com objectivos comuns – o desenvolvimento e o fomento das capacidades competitivas de territórios em crise ou desadequados funcionalmente perante as exigências contemporâneas. De um quadro de abandono demográfico, marginalidade funcional e competitiva e de inadaptação às lógicas produtivas, económicas e territoriais em configuração há várias décadas, ensaia-se uma centralização, por via de um passado reinventado e posto sobre a mesa, como recurso e valor de futuro. Por outro lado, se a cidade histórica refeita e requalificada apresenta a ilusão de um passado urbano sustentável, em que os valores e os estilos de vida não “contaminados” pela globalização, representam singularidade, identidade e tradição, o mesmo acontece no rural idílico, onde se publicita o resgate da vida pastoral e campestre, em que as famílias urbanas podem desfrutar do contacto com a natureza e da tranquilidade perdida nas teias da modernidade. O regresso aos elementos sonhados do passado, constitui em ambos os casos, uma esperança para um futuro sustentável, em que a qualidade de vida, a cultura, a tradição e a família podem sempre viver e ser encontradas por perto ou em lugares mais isolados, num enclave de autenticidade e paz, que promova alguma segurança ontológica e ancoragem originária, neste mundo rápido e globalizado. A teatralização e a estetização dos lugares patrimoniais, rurais ou não, funcionam em lógicas igualmente simétricas, no sentido em que a transformação de espaços multifuncionais em espaços lúdicos ou turísticos, mesmo que numa situação de entorpecimento ou marginalidade, implica a sua simplificação e adaptação a leituras simbólicas de apreensão comercial, em que as paisagens são manipuladas para corresponder a um sonho, a um imaginário, a uma narrativa. Exige-se um trabalho de construção de uma autenticidade tecida a partir de um projecto onírico de território e identidade, exige-se a concretização de toda a iconografia natural ou histórica que materialize as narrativas e faça corresponder o espaço vivido ao espaço sonhado. Museifica-se e cristaliza-se o espaço para preservar a pureza que atrai os olhares, como se parasse o tempo e tudo tivesse ficado ali, tal como havia deixado a nossa memória colectiva, alimentada e construída, pelos discursos políticos e 121 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses mediáticos que, dos patrimónios culturais, pretendem fazer ascender novas oportunidades, de desenvolvimento (para os territórios) e de fruição (para os eternos turistas que, ao que parece, devemos ser todos). Numa dupla dinâmica desenhamse estratégias políticas de desenvolvimento, aproveitando aquilo que culturalmente “sempre” foi valorizado, como a natureza e o património e, promovendo esses elementos como produtos culturais, que em osmose, constituem óptimos recursos para vender e fazer viver os territórios mais frágeis nas engrenagens da globalização. Problemas como a sustentabilidade, tendo em conta a utilidade lúdica e turística, ou como a possível descaracterização e esvaziamento simbólico, podem ser encontrados tanto no rural idílico, como nos centros históricos das cidades, dados os processos frequentes de gentrificação, museificação e aproveitamento comercial excessivo, os desequilíbrios relacionados com os limites da estetização, as contradições vindas da necessidade de combinar diferentes interesses e usos, entre outras debilidades. A falta de rigor na denominação de “centro” e de “histórico” e até de “rural”, a falta de garantia de que as populações locais possam de facto ser os maiores beneficiados nestes processos de valorização e renascimento, a falta de regulação pública dos aproveitamentos privados ou externos excessivos, a falta de conteúdo de muitos processos de patrimonialização, que são reproduzidos mimeticamente de casos de sucesso anteriores, etc., devem ser motivo de preocupação em qualquer tipo de lugar, a bem da sustentabilidade deste tipo de políticas. Dúvidas existem ainda que estes processos de reinvenção e requalificação sejam sempre bem sucedidos ou que constituam uma “tábua de salvação” para todos os territórios. Mesmo que em muitas cidades europeias a reabilitação e promoção dos centros históricos tenha resultado num novo fôlego e prosperidade, muito através do turismo cultural urbano e da atracção de grandes eventos e seus investimentos, não pode ser dito cabalmente que isso tenha sido, em tudo, vantajoso. A cidade histórica pode ter passado a representar a cidade como um todo, mas fez esquecer as áreas menos nobres e mais problemáticas, em que não se quer ainda pensar e que não têm nenhum valor patrimonial; pode ter passado a ser uma fonte de rendimento, mas perdeu em muitos casos os seus habitantes e com eles a sua aura de espaço vivido, a sua dinâmica própria, a sua graça e identidade. 122 Capítulo V Na mesma lógica, podem existir já pequenas povoações rurais que vivam do turismo, do artesanato, dos produtos regionais, mas deve ser sempre questionado se são as suas gentes que estão por detrás dos negócios, das políticas, das campanhas e não apenas atrás dos balcões e das vassouras. Deve ser questionado se por causa da teatralização do rural se desligaram as máquinas agrícolas ou os sistemas de rega, conseguidos com os subsídios comunitários anteriores, para não estragar o quadro e não incomodar os visitantes. Deve ser questionado se os habitantes não passaram a figurantes, se os rurais não preferiam ter passado a urbanos e se não temem que a moda passe e volte o esquecimento e a invisibilidade. Deve ser questionada a tradição dos produtos, a reprodução dos monopólios e privilégios dos senhores rurais, que ainda vêm da cidade para vender a outros urbanitas o seu pedaço de vida bucólica. Entre outras coisas, entre outras dúvidas. Sobretudo, deve ser questionada esta estratégia enquanto receita, para todos os espaços e as intenções que a promovem, já que os espaços, os seus recursos e populações não são todos iguais e não deixa de ser recorrente que, do poder privado, venha mais o aproveitamento dos dinheiros públicos e o monopólio dos benefícios, do que a continuidade dos investimentos e dos estímulos a novas oportunidades para as comunidades locais. Importa reforçar assim que, por muito que se simplifiquem discursivamente as realidades territoriais e as respectivas abordagens políticas, estas não deixam de ser complexas demais para que a aplicação deste tipo de soluções estandardizadas conduza, de facto, ao desenvolvimento e à real e sustentável resolução de problemas tão diversos e difíceis. 2. Um campo para a cidade – a valorização e reinvenção da ruralidade à luz das necessidades e expectativas urbanas Vivemos num mundo em permanente transformação, em que o ritmo da mudança se acelera e em que a par do alongamento espácio-temporal, quase todas as esferas da vida social e económica parecem desespacializar-se (Giddens, 2000). A vida urbana concentra o trabalho e os sintomas da globalização, acabando assim por representá-la, enquanto modelo de desenvolvimento territorial e económico, mas sobretudo enquanto civilização. 123 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses Neste quadro, a natureza e as tradições ganham uma importância reforçada, por representarem a continuidade com o passado e darem sentido às transformações. Elas dão a noção de eternidade e organização temporal, respectivamente, dando uma ancoragem à vida descontextualizada e volátil das cidades da globalização (Giddens, 2000). Com a erosão da família alargada e das redes de solidariedade tradicionais, com a aceleração temporal e a descontextualização espacial de diversas esferas da vida social, com tantas dúvidas em relação à sustentabilidade ambiental do nosso modelo de desenvolvimento, com o crescimento dos sentimentos de insegurança, com as crises económicas e a vulnerabilidade do emprego, com a escassez de recursos energéticos, com os problemas associados ao terrorismo internacional, entre outras questões transversais ao nosso mundo globalizado, a vida nas cidades está imbuída de um vasto conjunto de inquietações e problemas. "Em resumo: as cidades converteram-se no depósito de lixo de problemas de origem mundial. Os seus habitantes e aqueles que os representam confrontam-se habitualmente com uma tarefa impossível, seja para onde for que viremos os olhos: a de encontrar soluções locais para contradições globais." (Bauman, 2005, pág. 28). A incerteza por relação ao futuro e o sentimento de insegurança, tornam-se assim omnipresentes no mundo globalizado, à medida que cresce a noção de que as nossas vidas dependem de factores, forças e decisões que escapam ao nosso controlo individual e que se apresentam como longínquas e deslocalizadas (Bauman, 2005). Neste sentido, a aparente imutabilidade do mundo rural é promovida e valorizada como um contraponto à volatilidade da vida moderna e como um elemento estabilizador num mundo em constante e acelerada mutação (Lengkeek et al., 1997). A própria figura do camponês sai reforçada enquanto referência para o Homem urbano, estável e segura, como modelo e representação da ruralidade que dele depende (Chamboredon, 1980). As grandes dinâmicas associadas à globalização têm influenciado de forma complexa os territórios rurais, já que, por um lado, têm contribuído para a sua marginalização competitiva, numa lógica económica que centraliza fortemente as cidades, pelos seus recursos e capacidade de consumo, trabalho e comunicação e, por outro, têm elevado e promovido as suas virtualidades ambientais e culturais (Veiga, 2006). 124 Capítulo V "As we shall see, the significance of the rural as a cultural "reservoir" is usually in complete contrast to its importance as an economic space." (Lowe et al.,1995, pág. 65). De facto, o rural profundo e remoto, onde tudo permanece intocado pelo tempo e que, sem a respectiva valorização, poderia ser considerado estagnado ou obsoleto, representa precisamente a estabilidade e eternidade que sai valorizada, nos contextos em que a grande efervescência económica parece vir acompanhada de grandes inquietações e ansiedades (Veiga, 2006). Assim, o mundo rural acaba por constituir um locus de resistência aos efeitos da globalização, mais precisamente às consequências dos processos de desespacialização, aceleração temporal, homogeneização cultural e insustentabilidade ambiental (Wanderley, 2000). Assumindo este potencial de valorização e principalmente devido à sua associação com a preservação do meio ambiente, o rural passa a ser encarado como um valor indispensável ao futuro, reconfigurando-se, assim, as relações e o diálogo entre o mundo rural e a sociedade (Wanderley, 2000). Esta, por ser eminentemente urbana e dominada pela influência de uma globalização construída nas e pelas cidades, confunde-se com a urbanidade. As crises da civilização são a crise da cidade, que representa o capitalismo, a modernidade, o poder e, portanto, os problemas que lhes estão associados (Williams, 1990). Desta feita, a dicotomia rural/urbano continua a ser central na definição e no entendimento que fazemos de nós próprios, enquanto civilização e continua a servir de forte referente identitário (Lowe et al. 1995). O rural parece manter o que a cidade perdeu, precisamente porque não possui os recursos que tornaram a cidade no motor da civilização. Sendo assim, se a urbe é essencial à motricidade da globalização e da economia capitalista, o mundo rural insinua-se como essencial à sua saúde ambiental e "mental", por manter a esperança na sustentabilidade e no futuro e por preservar uma estabilidade cultural, identitária e ontológica. A centralidade desta dicotomia reforça a importância dos conflitos ou distâncias, entre ambas as categorias e entre aquilo que lhes está associado. Essa tensão está contida na dificuldade de combinar progresso económico e tecnológico com sustentabilidade ambiental, futuro com tradição, diversidade e mudança com estabilidade e segurança, prosperidade e justiça social, territórios desejados e territórios reais, resumindo, está contida nos dilemas da civilização. 125 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses "A ideia de campo tende à tradição, aos costumes humanos e naturais. A ideia de cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento. Assim, num presente vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entre campo e cidade para ratificar uma divisão e um conflito de impulsos ainda não resolvidos, que talvez fosse melhor encarar em seus próprios termos." (Williams, 1990, pág. 397). A manutenção desta dicotomia facilita o encontro de um sentido no caos social, permitindo um posicionamento mais claro dentro de um conflito complexo que, mesmo não se reduzindo aos territórios, utiliza-os como contentores ou referentes que autorizam a sua interpretação e a sua "digestão" social e individual (Williams, 1990). Aproveitando as associações positivas que em torno da ruralidade se tecem, as estratégias de reinvenção da ruralidade pretendem dar resposta ao interesse urbano no rural (preservado enquanto alteridade). Procura-se restaurar a aura de tradição e sustentabilidade nos espaços rurais, projectando as suas características não-urbanas, não só para reforçar a possibilidade de sua preservação no mundo actual, inocentando assim a ordem capitalista, mas também para as rentabilizar e integrar no jogo económico urbano/global (Sampaio, 2002). Como aliás já aconteceu no passado, assiste-se a uma reconfiguração funcional e produtiva dos territórios rurais, para melhor servirem as lógicas do mercado. O capitalismo reage às crises buscando novas formas de acumulação e rentabilização dos recursos, sendo que, no caso do rural, assiste-se à tentativa de colmatação do vazio funcional, de reversão da marginalidade competitiva e da aparente desadequação às exigências destas novas lógicas territoriais e económicas, através da substituição do anterior modelo. Desta feita, transforma-se o rural agrícola, ou o rural em crise, numa ruralidade reinventada (patrimonial ou consumível) (Perkins, 2006). Uma nova lógica de rentabilização do rural enquanto recurso é posta em prática, à medida que recua a dominação do sector agrícola e crescem estas novas formas de produção e consumo. Por outras palavras, nascem novos tipos de negócio, ligados a recursos que ultrapassam o sector primário e terciarizam o mundo rural. Assim, para além da agricultura muito especializada e de ponta, de actividades ligadas à floresta e das emergentes actividades "verdes" (como a produção de energias renováveis, por exemplo), que podem estar ainda associados ao sector primário, embora numa versão "up-to-date", insinuam-se principalmente o turismo, o 126 Capítulo V comércio de produtos artesanais e gastronómicos e os negócios imobiliários (para segunda residências, por exemplo) (Perkins, 2006). Estimula-se, portanto, com este projecto de reinvenção, uma combinação aparentemente paradoxal entre uma ruralidade intencionalmente tradicional e pastoral (na apresentação) e uma ruralidade rentável e integrada nas lógicas de um mercado urbano feroz e exigente. Para manter a aura pastoral e depurada dos territórios rurais, exige-se um trabalho de renaturalização das paisagens e camuflagem das marcas de modernidade, esperando-se alcançar, com este "regresso às origens", o reforço do potencial de consumo dos espaços e, portanto, um novo fôlego para enfrentar os desafios do futuro. Acontece que os processos de pastoralização da ruralidade, estão habitualmente próximos de uma exacerbação cenográfica, que “hiper-ruraliza” os lugares para que estes correspondam às expectativas dos consumidores urbanos. "Recognizing the potential for profit, in recent times entrepreneurs in conjunction with local governments have attempted to satisfy consumers desire for this imagined countryside." (Perkins, 2006, pág. 253). Os novos negócios podem ter um impacto económico mais modesto, se comparados com a agricultura intensiva, mas a aposta na qualidade e em sectores de mercado com consumidores de elevado poder de compra, como é o caso do turismo rural, por exemplo, faz com que as expectativas de relançamento económico se mantenham elevadas, nem que seja ao nível dos discursos políticos, já para não falar da apregoada garantia da sustentabilidade ambiental, que obviamente aparece como outra vantagem compensatória. Espera-se assim algum retorno económico, até porque, se espera destes sectores de actividade que reproduzam exigências e oportunidades de negócio, ao nível dos transportes, por exemplo, para fazer face às necessidades de mobilidade quer de turistas, quer de produtos perecíveis (Perkins, 2006). O facto de exigirem uma forte aposta na promoção territorial, no sentido em que os produtos valem pelo vínculo à localidade, faz com que se defendam estes novos negócios, pelo seu potencial de requalificação da imagem dos lugares e, consequentemente, de relançamento económico. Neste quadro, diversos interesses se erguem na tentativa de retirar um maior aproveitamento destas novas oportunidades. Sendo o sector público responsável por grande parte dos investimentos, necessários ao estímulo desta tentativa de reanimação económica, 127 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses muito espaço fica para que o aproveitamento privado possa seguir o isco, com vista a tirar partido das tais oportunidades de negócio. Os territórios bafejados pelos estímulos públicos ao turismo ou associados a um produto de prestígio, promovido com apoios institucionais, e cuja imagem se encontra em requalificação, passam frequentemente também a ser rentáveis como mercado de segundas residências e a recolher conotações positivas. A promoção destes lugares, estando já em curso e com o apoio das instituições públicas, tem um poder acrescido, sendo aproveitado esse trabalho de reinvenção do valor simbólico dos territórios, para potenciar o negócio de compra e venda de terrenos, construção de vivendas, etc. Com o aumento da procura de casas de campo, por parte de habitantes urbanos, aumentam também as manobras especulativas, o preço dos terrenos, dos víveres no comércio local e de alguns serviços, exacerbando-se um conjunto de dinâmicas muitas vezes prejudiciais e excludentes para os rurais, o que acaba por criar complexos conflitos de interesses (Perkins, 2006). Por outro lado, também sucede que pequenas empresas de material agrícola ou mesmo antigos trabalhadores do sector, prejudicados pela crise na agricultura e em situações de grande dificuldade, passem a servir os novos proprietários de terrenos, normalmente adeptos da jardinagem e da horticultura, criando-se novas perspectivas de negócio e de pequeno emprego (Perkins, 2006). Os solos passam progressivamente para o controlo externo, à medida que são adquiridos ou geridos por promotores turísticos, proprietários de casas de férias, instituições públicas de gestão de reservas naturais e extensões florestais, etc. Neste processo, acentua-se a influência das leis do mercado em boa parte dos terrenos rurais e, por outro lado, reitera-se progressivamente o espaço rural como paisagem, na medida em que o seu valor deixa de ser considerado produtivo, passando a funcionar mais como cenário de actividades recreativas e contemplativas (Chamboredon, 1980). A progressiva apropriação dos solos rurais por parte de entidades externas tem acentuado a demarcação de propriedades, a normativização e burocratização da gestão desses terrenos e, portanto, o controlo desses territórios. Este poder crescente é facilitado pela desestruturação das comunidades camponesas, muito fragilizadas pelo êxodo, pelo envelhecimento demográfico, pela consequente delapidação das redes familiares, pelo enfraquecimento dos sistemas de agricultura 128 Capítulo V comunitária, pela miséria, pela dependência subsidiária, pela distância que as afasta das agências decisoras, entre muitos outros factores (Chamboredon, 1980). Desta feita, a utilização urbana dos espaços rurais passa não só pela reinvenção dos territórios segundo os imaginários colectivos e expectativas correspondentes, mas também pelo aproveitamento das fraquezas deixadas pela desestruturação das sociedades camponesas (Chamboredon, 1980). O reinventado projecto de ruralidade combina, assim, interesses económicos e culturais, naquilo que se constitui como um ensaio de território em que se cruza a “ocidentalidade” (consumo, potencial de negócio, conforto material, etc.) com todas as premissas que compõe a retórica do desenvolvimento sustentável, numa espécie de reencontro com a natureza e o passado, sem renunciar às comodidades da vida moderna (Favareto, 2006). Rentabilizar o poder simbólico e argumentativo da natureza e dos valores patrimoniais passa, não apenas pelo aproveitamento do seu magnetismo comercial e reanimador, mas também por uma utilização retórica da sua sacralidade, para legitimar e inocentar os interesses por detrás das manobras de transformação dos territórios. "Os "materiais antigos" são usados para fins modernos – mais particularmente para criarem legitimidade para os sistemas de poder emergentes." (Giddens, 2000, pág. 90). As ideias e valores associados aos territórios exprimem interesses e os territórios são então levados a corporificar esses projectos e representações, naquilo que é uma produção estratégica e ideológica dos lugares para finalidades previstas (Williams, 1990). "The attachment of value to a particular environment or landscape feature reflects the wider power relations and social divisions. Science, scientists, politicians, policies continue to pay attention to certain representations against others. Through their 'scientific' power and policy power they provide legitimacy and authority to these representations. The final result is a complex politics of representation of the environment and of rurality, a constructed imagination." (Hadjimichalis, 2003, pág. 111). Desta feita, o valor impresso nos espaços rurais para diferentes finalidades, quer seja para o turismo, para uso residencial, para protecção ambiental ou para fins agrícolas, depende das estratégias de gestão e regulação das agências políticas e 129 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses económicas envolvidas e das suas dinâmicas de poder. Ora, estas acabam por criar novas e diversas geografias de valor, o que complexifica as realidades territoriais, a sua hierarquização e relações mútuas (Marsden, 1999). Indo mais longe, a existência de conflitos de interesse vem acrescentar ainda maior complexidade a estes processos, já que disputas existem quer no plano da definição de usos para os espaços e consequente valor simbólico e material, quer ao nível do aproveitamento das possíveis vantagens a retirar e mesmo no âmbito da competição entre as diferentes agências e grupos envolvidos (Lengkeek et al., 1997). Existe a luta pelo uso do espaço e pelo controlo do curso dos acontecimentos, sendo esta competição acentuada com o integrar dos territórios rurais nos circuitos de consumo urbano (Lengkeek et al., 1997). As disputas pelo controlo dos territórios rurais acabam por abranger diversos tipos de regiões e contextos, pois nas zonas com proximidade às cidades sobem os preços dos solos devido à pressão da expansão urbana e cresce o interesse no loteamento, ao mesmo tempo que nas aldeias mais remotas aumenta o interesse no potencial idílico, florescendo o negócio imobiliário de segundas residências ou de promoção turística (Lengkeek et al., 1997). "Rural space begins to play a key role in the political economy of the modern consumerist state. By becoming variable repositories of consumption relations, rural areas become more attractive to the outsider, in legitimating inequality in markets and in social relationships." (Marsden, 1999, pág. 207). Vende-se o mundo rural aos habitantes urbanos como o seu "quintal", numa estratégia de promoção turística que, apesar de ser apresentada como a "tábua de salvação" para estes territórios, acarreta dinâmicas especulativas que inflacionam os custos de vida nas localidades e colide com eventuais intenções de estimular a fixação dos seus habitantes. Isto acontece precisamente por se sobreporem as expectativas de consumo dos tais visitantes ou consumidores, às expectativas de desenvolvimento das populações locais (Hoggart, 2001; Silva, 2009). "Significantly, the fiercest struggles in this redefinition of rural space were not with ordinary country people, who remained idealised but neglected, but between the conflicting recreational tastes and means of different urban strata and landed interests, such as the hunting and shooting of the gentry, plutocrats and nouveaux riches, the botanising, rambling and golfing of the genteel middle class, and the hiking and coursing of the working class. The battles between these groups over 130 Capítulo V rural space were microcosms of their struggles for control over the urban social order." (Lowe et al., 1995, pág. 70/71). A complexidade destes processos de reinvenção acarreta, portanto, diversos conflitos e disputas de interesses, nomeadamente pela multiplicidade de agentes envolvidos e dado o facto que é extremamente difícil hierarquizar pacificamente os aspectos ambientais, económicos, culturais e políticos, em territórios que tradicionalmente se organizavam apenas sob a égide dominadora do sector agrícola (Favareto, 2006). De qualquer forma, fica clara a influência externa nestes processos de reinvenção e a crescente complexificação das dinâmicas territoriais neste novo mundo rural. É, sem dúvida, na procura urbana que se deposita o futuro das áreas rurais, tal como têm evoluído (Ferrão, 2000). Depois da delapidação da agricultura e da indústria, em muitos casos, resta esta rentabilização dos recursos patrimoniais e naturais, naquilo que se traduz na transformação dos territórios rurais em espaços de consumo, orientados para as exigências e expectativas urbanas (Chamboredon, 1980). O rural não produtivo e terciarizado, ao integrar-se nas lógicas de consumo urbano e ao transformar assim as suas dinâmicas relacionais e económicas, acaba por urbanizar-se cultural, territorial e laboralmente (Wanderley, 2000). "Les territorires/patrimoines ruraux ne se construisent ni seuls, ni dans un face-a-face avec les pouvoirs publics: les mondes extérieurs, assimilés grossièrement à l'urbain, représentés par les figures du touriste, du consommateur, du néo-rural ou du fonctionnaire, disent chacun leur mot, en manifestant avec leurs pieds lor des fêtes de transhumance, en restaurant le patrimoine bâti, en étant à la pointe de ce qu'on pourrait nommer les «traditions innovantes» que sont les productions dites de terroir. Par leur action, leur présence, ils vont signifier aux habitants l'intérêt de leurs «patrimoines» paysager, agricole, culturel. Ils vont favoriser la relance d'anciennes pratiques ou productions, ils seront à la fois des aiguillons, des médiateurs et les principaux agents de promotion de cette campagne «reinventée»." (Rauntenberg et al., 2000, pág. 9). Fica claro que as expectativas, interesses e a procura urbana estimula, configura e orienta a concretização deste projecto de ruralidade reinventada, mas há igualmente que reforçar que a dominação urbana é conjuntural e soberana às relações territoriais a várias escalas (Hadjimichalis, 2003). As cidades como motores do desenvolvimento económico, como centros de comunicação e informação e como 131 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses referências culturais, dentro de um jogo competitivo feroz à escala global, que as hierarquiza e legitima em termos de soberania, têm uma influência inabalável na forma como se orientam as dinâmicas territoriais e, consequentemente, na forma como se configuram os próprios territórios e suas possibilidades de desenvolvimento (Hadjimichalis, 2003). Nesta linha, deve ser dito que este projecto de ruralidade nasce das necessidades urbanas, configura-se segundo as suas representações e expectativas, favorece a expansão do consumo e dos negócios urbanos e apresenta-se como cultural e ambientalmente benéfico para a sociedade como um todo (Hadjimichalis, 2003). No entanto, é interessante notar que nos discursos em torno do desenvolvimento rural, os quais, afinal, ensaiam a aplicação deste projecto de ruralidade, a tónica é sempre posta nos interesses locais e na urgência em solucionar a afamada e supostamente generalizada crise do mundo rural. Neste discurso é, assim, notório e transversal um certo paternalismo que, pensando bem, acaba por condizer com a soberania urbana nestas matérias (Marsden, 1999). 3. O rural como um problema em que se quer pensar – os interesses culturais, económicos e políticos que sustentam este projecto de ruralidade Depois de vários anos, muitos esforços e elevados investimentos nas políticas de desenvolvimento rural, os resultados continuam a ser modestos e ainda não se encontram muitos exemplos de territórios que, efectivamente, tenham logrado alcançar um renascimento económico consistente, sob esta estratégia de rentabilização patrimonial. Ainda assim, nem o discurso de reinvenção e respectivo projecto de ruralidade patrimonial e consumível, nem as políticas que ensaiam a sua aplicação, parecem estar a esmorecer, o que nos faz indagar qual o quadro de motivações por detrás desta persistência e convicção política (Silva, 2009). A título ilustrativo, entre 1985 e 2007 movimentaram-se em Portugal 306 milhões de euros de dinheiros públicos, maioritariamente provenientes dos fundos europeus, apenas para a promoção do turismo rural, não havendo ainda sinais irrefutáveis que os impactos positivos deste sector, no desenvolvimento local, se aproximem sequer, das altas expectativas tantas vezes apregoadas (Silva, 2009). Apesar disso e tal como dissemos, não temos assistido a um abrandamento da apologia dos seus benefícios nos discursos políticos e, muito menos, a um 132 Capítulo V enfraquecimento do projecto maior, em que se integra a actividade turística e que prevê a transformação do mundo rural num cenário de consumo e contemplação. A justificação para a resistência deste discurso pode estar pulverizada no vasto conjunto de interesses culturais, económicos e políticos que parecem estimular o seu projecto de ruralidade. O poder de apaziguamento das consciências, que está contido na ruralidade "verde", está, para as preocupações ambientais e para as dúvidas em relação às possibilidades de sustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, como a suposta estabilidade da dimensão tradicional e cultural do mundo rural parece estar, para a complexidade das dinâmicas espácio-temporais da globalização. A ruralidade serve de referente identitário, permite uma ancoragem cultural e providencia espaços de materialização do sentido histórico da nossa existência colectiva. Assim, concede alguma segurança a uma civilização ensombrada por inquietações, cujas causas parecem estar demasiado longe do nosso alcance, para deixarem de ter consequências pouco inteligíveis. Com o reforço da ruralidade como referência apaziguadora, como alternativa retórica e refúgio permanentemente disponível, atenua-se o espanto colectivo perante a aparente falta de futuro dos nossos estilos de vida, das nossas cidades, dos nossos recursos, dos nossos desejos de consumo e conforto, etc. Desta feita, prolonga-se a esperança, estendem-se as possibilidades de futuro do mundo, tal como o conhecemos, aliviando-se o cepticismo ou o pessimismo realista e, sobretudo, inocentando-se em boa medida a ordem capitalista. Resumindo, esta função atenuante, contida na ruralidade idealizada, alivia a preocupação colectiva com o futuro, dá um sentido ao caos identitário e temporal, que a globalização faz pairar sob a civilização e subtrai alguma da culpa capitalista. Isto porque, dando a ilusão de um novo futuro, desresponsabilizado as cidades da preservação ambiental e aliviando algum do desconforto estrutural ao nosso modelo de desenvolvimento (em si insustentável e fracturante), esta ruralidade "disponível" vem, enquanto suposta compensação, renovar os votos de confiança no sistema capitalista, permitindo a manutenção e a legitimação dos mesmos estilos de vida. Culturalmente, estas parecem ser as funções e as causas que justificam a força e a transversalidade do discurso, mesmo perante a sua aparente inconsequência ao nível do desenvolvimento local. Mas indo mais longe, arriscaríamos questionar se este discurso não funcionará igualmente, em 133 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses antecipação, como uma forma de domesticar e integrar, nas tendências do mainstream, eventuais ímpetos rebeldes de ruptura com a cidade/civilização, perante tão poucos sinais de esperança, de sustentabilidade e de futuro. Por outras palavras, como uma forma de rentabilizar esse potencial desviante ou alternativo, por via da sua integração nos circuitos de consumo e, consequentemente, pelo seu esvaziamento ideológico e eventualmente revolucionário. Nesta lógica, perguntamos se a manutenção deste sonho de ruralidade disponível e desta alteridade que "trabalha" a favor da cidade, não contraria ou atrasa um eventual êxodo urbano progressivo ou possivelmente iminente, ou pelo menos, se não rentabiliza esse potencial de ruptura. De qualquer forma, parece claro que estamos perante uma tentativa de reintegração do rural enquanto recurso desaproveitado, nos circuitos económicos urbanos, naquilo que é uma reorganização das relações territoriais, com o reforço da dominação urbana. Desta feita, se pensarmos nas motivações económicas que podem ajudar a justificar a consistência deste projecto de reinvenção da ruralidade, facilmente relacionamos a expansão dos negócios e do consumo urbanos, com os estímulos à disseminação desta versão trendy do mundo rural. Neste sentido, se não são palpáveis os resultados positivos das políticas e investimentos, para concretizar este projecto patrimonial de ruralidade ao nível local (entenda-se nas áreas rurais), não será de todo complicado, por outro lado, enunciar algumas das suas vantagens para os mercados e habitantes urbanos. De facto, o turismo rural pode não ter tido ainda grandes impactos no desenvolvimento rural, mas já se consolidou como uma franja importante do mercado turístico e tem vindo a ganhar prestígio e valorização, enquanto actividade económica. Indo mais longe, se a requalificação das imagens associadas à ruralidade não fez ainda desaparecer alguns dos estigmas que assombram as localidades marcadas pela marginalização, nem fez, por exemplo, recuar a sua desertificação progressiva, no contexto urbano, por seu turno, alimenta um circuito comercial crescente de lojas de produtos rurais, que ascendem ao estatuto de gourmet (e isto só para dar um exemplo dos inúmeros aproveitamentos que se têm feito do poder comercial do chamado ideal rural). Ora, com isto pretende ilustrar-se que, mesmo que não sirva o desenvolvimento rural, apresentado como prioridade estratégica e legitimadora de esforços e investimentos, a disseminação desta ruralidade reinventada é certamente 134 Capítulo V favorável à vitalidade dos circuitos de comércio e consumo urbanos. Neste processo de abertura do espaço rural ao exterior e através do seu usufruto turístico e residencial, consolida-se a sua apropriação pelas classes médias, naquilo que se apresenta como uma espécie de democratização do ideário pastoral, outrora apenas reservado a uma elite de gosto requintado e de elevado poder de compra (Silva, 2009). Se a propriedade de uma casa de campo deixa de ser um luxo reservado a grandes herdeiros e se banalizam progressivamente actividades como a ornitologia, a caça, o turismo termal, a contemplação da paisagem, o montanhismo, etc., podemos encontrar nesta integração do rural e dos seus produtos, nos circuitos comerciais urbanos, uma espécie de vitória da classe média, ainda que se mantenham diferenças de oferta, para distintas franjas de públicos, segundo o poder de compra (Lengkeek et al., 1997). Importa ainda acrescentar às motivações culturais e económicas enunciadas, os interesses políticos que reforçam a sustentação e a robustez deste projecto de reinvenção da ruralidade. Ora, as questões rurais constituem temas centrais das políticas da União Europeia, aliás como é notório, se pensarmos que as políticas agrícolas e de desenvolvimento rural constituem a maior fatia de despesa da instituição até aos nossos dias (Favareto, 2006). Há, de facto, que reforçar "(...) a centralidade que a questão dos espaços rurais - seu surgimento, sua dinamização - vem assumindo no debate sobre a própria construção da União Europeia e em torno da qual se expressa uma grande diversidade de interesses, de grupos sociais e de regiões particulares. Neste caso, o "rural" se constitui como um locus de onde emergem questões, conflitos e rupturas." (Wanderley, 2000, pág. 27). Tendo este peso na conjuntura política à escala Europeia, importa desconstruir as motivações estratégicas e ideológicas por detrás das orientações políticas que rodeiam as questões rurais, até porque estas acabam por influenciar de forma intensa não apenas e, obviamente, as políticas nacionais e locais, mas principalmente a forma como, a estas escalas, se constroem os discursos e se perspectiva a situação do mundo rural e dos seus problemas (Billaud et al., 1997). De facto, a substituição de uma abordagem sectorial por uma perspectiva territorial das questões rurais, operada com a reformulação da PAC (Política Agrícola 135 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses Comum) na década de 80, veio a desencadear a consolidação de um novo paradigma de desenvolvimento rural, não só no âmbito dos programas europeus, mas em geral nos discursos sociais sobre estas matérias (Veiga, 2004). O aperfeiçoamento deste pacote de medidas, um dos primeiros compromissos políticos à escala comunitária, culmina com o programa LEADER (já na década de 90), cuja filosofia de intervenção tem resistido até à actualidade, enquanto orientação estratégica e posicionamento ideológico a manter, perante os desafios que se apresentam às áreas rurais. Falamos de uma estratégia de desenvolvimento baseada na diversificação funcional e na rentabilização dos recursos culturais e naturais locais, que pretende estimular o empreendedorismo endógeno e, assim, fazer recuar progressivamente a dependência subsidiária, que ficou como consequência dos apoios à actividade agrícola da PAC (Gray, 2000). Reforça-se discursivamente a importância do potencial local e da capacidade de endogenamente serem tomadas as rédeas da reanimação económica, bem como de diminuir a aposta na agricultura, naquilo que parece ser uma forma de reduzir a despesa pública com o sector. Por um lado porque o sector de maior exigência subsidiária (o primário) é estimulado a perder peso relativo e, por outro, porque se consolida a substituição de uma lógica de grande intervencionismo público, para uma modalidade em que a UE dá maior espaço às supostas iniciativas privadas de negócio. Ainda que se mantenha o apoio a estes projectos, não estamos mais perante a sustentação financeira de um sector produtivo, mas antes de uma estratégia de estímulo ao pequeno empreendedorismo, acompanhado caso a caso, negócio a negócio. A redução da dependência subsidiária ou o "desmame" da PAC e em geral da despesa pública com as áreas rurais, que como dissemos anteriormente, constituía a maior fatia do orçamento da UE, pode constituir, de facto, pela sua importância económica, uma das grandes motivações políticas para a disseminação deste discurso e projecto de desenvolvimento para o mundo rural (Ray, 2000). Mas podemos ir mais longe, se pensarmos que esta pode ser uma forma de recuperar a confiança nas instituições europeias, após anos de grande conflituosidade social, resultante da implementação da PAC, devido ao grande prejuízo que esta representou para muitas das áreas rurais (principalmente nos países do Sul da Europa), subitamente desprotegidas e marginalizadas num quadro competitivo, assimétrico e feroz (Ray, 2000). 136 Capítulo V Esta estratégia política pós PAC para as áreas rurais, faz transparecer uma sensibilidade e um interesse reforçado nos patrimónios locais, na participação popular, na iniciativa privada, nas especificidades de cada contexto, etc. Ora, a estratégia de estimular a rentabilização destes elementos pode, de facto, apresentar-se como um interesse quase humanitário de dar voz à participação popular na gestão dos seus valores e territórios, o que não deixa de ser muito favorável à imagem da União Europeia, à escala regional e local (Ray, 2000). Estreitar as distâncias entre as localidades e as instituições europeias, cicatrizar algumas das feridas deixadas pela conflitualidade e pelas polémicas em torno da PAC, criar ou recuperar a confiança na autoridade política europeia e reforçar assim a sua legitimidade, bem como, melhorar a sua imagem institucional, constituem, sem dúvida, boas razões para que se mantenha o interesse na continuidade desta estratégia. Podemos ainda acrescentar que este novo paradigma político de desenvolvimento, ao apelar ao envolvimento privado e endógeno, ensaia o reforço da legitimação da sua agenda estratégica, na medida em que ao integrar a participação local na sua aplicação, acaba por consolidar uma espécie de conivência para com as orientações políticas que estão a montante (Ray, 2000). Em suma, com esta estratégia de reinvenção dos territórios rurais, legitimam-se as escolhas políticas da UE, que melhora a sua imagem junto das comunidades locais, diminuise a despesa pública com a agricultura e com os territórios rurais e recupera-se, assim, de algumas das mazelas deixadas pela PAC. Desta feita, este parece constituir um conjunto de interesses políticos suficientemente fortes, para manter a convicção no projecto de ruralidade que discutimos e para angariar esforços e consensos, em torno da sua aplicação. A nova ruralidade começa a ser consolidada nos documentos e políticas da UE e é principalmente através destes que se dissemina o discurso de valorização do potencial consumível do rural e dos seus produtos (Hadjimichalis, 2003). São as políticas europeias que ensaiam a aplicação da visão urbano-cêntrica da ruralidade e é o discurso europeu que, permanentemente, reforça a importância que a preservação, do rural ambiental e patrimonial, tem para o bem da sociedade como um todo (Gray, 2000). No entanto, deve ser dito que os interesses políticos, latentes às políticas europeias de desenvolvimento rural, estão associados por seu turno a 137 A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses interesses culturais, económicos e territoriais, como os que discutimos anteriormente. Neste sentido, a mudança de abordagem estratégica às questões rurais, com a revisão da PAC e a posterior criação do programa LEADER, corresponde ao fim de um longo período, em que o lobby do sector agrícola representava um grupo de pressão poderoso, às escalas nacional e europeia. Este parece ter sido suplantado, pela influência dos interesses das classes médias urbanas, cujas práticas de consumo ultrapassam os limites da cidade e se estendem progressivamente sob os territórios rurais, onde vivem, onde passam férias, onde depositam os seus planos para a idade da reforma, onde ancoraram as suas identidades culturais, onde recuperam a esperança no futuro, onde encontram um sentido para a existência, onde compensam os desconfortos urbanos, etc. (Hadjimichalis, 2003). Desta feita, as políticas e perspectivas em torno da ruralidade, através dos discursos que lhes estão associados, acabam por revelar muito do que são os grupos, as influências, os interesses e a forma como, em cada contexto, estes se agigantam, para controlar os territórios e o rumo do seu desenvolvimento. "For example, the imaginative shift in rural space, from production to consumption/leisure, is a crucial cultural factor of enormous political, economic and social significance as the assumptions, pre-images and stereotypes on which is based predetermine decisions and strategies. Without grasping the significance of geographical imagination it is impossible to identify the broad direction of changes in Europe and on global scale." (Hadjimichalis, 2003, pág.104). Concluindo, é interessante discutir estes discursos para que, ao traçar o projecto de ruralidade que estes precipitam, consigamos vislumbrar o que se espera dos territórios e o que se prevê que estes concretizem num futuro próximo. Por outras palavras, ao agarrarmos o discurso para conhecer o projecto de ruralidade, que se tenta politicamente materializar, estamos a conhecer as "mãos" que moldam os territórios e as forças que as animam, bem como os contornos do modelo de ruralidade que se estabelece como desejado. Posto isto e perante a urbanidade destas dinâmicas, torna-se mais do que pertinente descer à cidade em busca da anatomia dessas expectativas, sendo precisamente esta a linha que seguirá a presente investigação. 138 VI. As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Por isso ele tinha aquela grande tristeza Que ele nunca disse bem que tinha, Mas andava na cidade como quem não anda no campo E triste como esmagar flores em livros E pôr plantas em jarros... 1925, Alberto Caeiro (Fernando Pessoa). 9 Feito este caminho reflexivo e após ter sido discutido o discurso de reinvenção da ruralidade nas suas diferentes dimensões, os argumentos que o sustentam e legitimam, os interesses que o estimulam, e chegados à assunção do seu carácter urbano, cumpre-se de certa forma um dos objectivos deste trabalho. Isto porque uma das suas ambições centrais era a de conseguir articular teoricamente, numa mesma reflexão, muitas das temáticas que rodeiam as discussões em torno do mundo rural na actualidade, tratadas frequentemente de forma dispersa e divorciada. Pretendia-se contribuir para estes debates, fornecendo um quadro teórico e reflexivo coerente e íntegro, que servisse de mote para múltiplas possibilidades de trabalho de campo. Ou seja, proporcionar uma problematização base que, ao suscitar diversas questões interessantes, articuladas, mesmo que diferentes, pudesse sugerir e apoiar variados caminhos de investigação. Apesar das questões ligadas ao desenvolvimento rural e ao potencial patrimonial rural estarem bastante em voga na actualidade, quer no que toca às suas políticas e programas, quer no que diz respeito ao turismo e aos produtos da terra, às preocupações ecológicas, etc., não tem sido alcançada a articulação destes debates, por via da sua relação e interdependência "na fonte". Achamos, de facto, que o que aqui se ensaia é o colmatar dessa dispersão reflexiva, por via da consolidação da indissociabilidade destas questões, e o destaque desconstrutivo da 9 Excerto do poema “Cesário Verde”, in “O Guardador de Rebanhos – Poema III”. As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada sua ascendência original, ou seja, do discurso hegemónico de valorização estratégica de uma determinada versão consumível da ruralidade. Integrando estes debates numa mesma reflexão e centrando-a no discurso dominante (que agrega nas suas versões, argumentos, interesses, origem e consequências, aquilo que são as principais expectativas e influências para os territórios rurais na actualidade), compõe-se, como foi dito, um estímulo poderoso e versátil para múltiplas possibilidades de pesquisa empírica. Não se pretendia, portanto, direccionar demasiado a reflexão teórica central deste trabalho, para servir o estudo de um objecto muito específico e circunscrito. Pelo contrário, foi assumida a ambição clara de discutir o discurso hegemónico de reinvenção da ruralidade, de forma suficientemente genérica e abrangente, para lhe ser condizente (já que este é, em si, generalista e agregador das diferenças, dirigindo-se aos territórios rurais como se estes fossem de definição una, tivessem os mesmos problemas, recursos e soluções), mas sobretudo para se adaptar à infinidade de realidades empíricas, que podem ser estudadas, sob o prisma da hegemonia deste discurso de reinvenção, quer na sua dimensão política, quer cultural, comercial, axiológica ou estratégica. Para dar alguns exemplos ou sugestões, poderíamos partir deste quadro teórico para estudar a ruralidade veiculada na literatura portuguesa de tradição pastoralista, de Júlio Dinis ou Eça de Queiroz, por exemplo, pela influência cultural que tem tido desde a modernidade em Portugal, ou até fazer a análise da publicidade a serviços de turismo em espaço rural, para perceber quais os valores simbólicos instrumentalizados nas estratégias de atracção de turistas urbanos. Seria também interessante estudar a evolução do comércio de produtos rurais em espaço urbano, ou a evolução do mercado das residências de férias em espaço rural, identificar os públicos para estes circuitos comerciais, conhecer as suas motivações, etc. Assim, partindo desta reflexão teórica e com a noção da infinidade de possibilidades de objectos de estudo, decidiu-se seleccionar um caminho de investigação empírica que centrasse o olhar fora do mundo rural. Em primeiro lugar, no reforço da ideia de que não estamos a discutir territórios determinados, mas antes paisagens imaginadas ou projectos de território; segundo, porque nos parece importante reforçar a urbanidade do discurso e ir à sua origem (a cidade); e por último, porque as manifestações e influências do discurso em meio rural acabam por 140 Capítulo VI estar mais estudadas, nomeadamente com os estudos de caso sobre patrimonialização e promoção turística de aldeias, parques naturais, tradições locais, etc. Desta feita, se este é um discurso urbano, importa ir procurá-lo no corpo da cidade, encontrar os espaços em que este se materializa antes de "sair" da urbe e ir moldar, pela expectativa, os territórios rurais. Importa conhecer os lugares onde se alimenta a imaginação colectiva, em que se materializam os contornos das paisagens rurais sonhadas e onde se "abre o apetite" urbano para os produtos rurais e o rural enquanto produto. Escolhemos, portanto, procurar na cidade espaços de recriação da ruralidade idílica veiculada pelo discurso. Da sua análise, pretende ensaiar-se a desconstrução dos projectos de bucolismo, que se adiantam sobre os territórios "reais", bem como das paisagens desejadas dominantes, para assim reforçar a noção do que se espera dos territórios rurais, dentro desta lógica de correspondência às expectativas do mercado de consumo urbano. Se, como vimos, os discursos precipitam projectos para os territórios, configurando as paisagens reais através da influência das paisagens imaginadas, em disseminação cultural, política, comercial, etc., nos espaços de recriação combinam-se dois aspectos interessantes: o facto de serem a sua materialização, mas simultaneamente, de manterem o carácter onírico e fantasioso, que só uma encenação permite. Quase como um ensaio de lugar, conseguem ser, portanto, paisagem real e paisagem imaginada, condensando num só espaço a materialidade e a fantasia, as pedras e os sonhos. Conhecer estes cenários acaba por ser um meio para conhecer os projectos de lugar que, através dos discursos, exercem pressões sobre os territórios, forjando os espaços que se aproximam, imprimindo o poder das expectativas, concretizando, em suma, a hegemonia urbana sobre o mundo rural. Obviamente que esta pesquisa não tem a pretensão de, ao analisar exemplos de recriação da ruralidade em espaço urbano, alcançar resultados que possam ser extrapolados ou tidos como representativos, daquilo que são esses projectos ou expectativas. Pretende-se antes que esta incursão ao terreno sirva para incrementar a reflexão que até aqui se tem desenvolvido, testá-la enquanto filtro para a análise da realidade territorial e cultural e demonstrar o seu interesse, enquanto quadro teórico de base para novas pistas de investigação. 141 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Recapitulando, após a ponderação de diversas possibilidades de trabalho empírico para ilustrar esta pesquisa, tornou-se claro que o objectivo seria o de encontrar e desconstruir possíveis casos de recriação da ruralidade idílica no corpo da cidade. Desta feita, através de algum trabalho de prospecção e selecção, tomamse dois casos de suposta recriação da ruralidade e desce-se ao terreno para perceber se, de facto, podemos afirmá-lo e, mais ainda, se estamos perante a recriação de uma ruralidade depurada e bucólica, como a que é veiculada pelos discursos dominantes, que servem de tema ao presente trabalho de investigação. O objectivo desta investigação empírica é alcançar um entendimento profundo dos dois casos seleccionados e perceber se podemos considerá-los exemplos de recriação da ruralidade idílica, tradicional e natural que temos vindo a discutir. O foco de análise centrar-se-á assim nas motivações, projectos e estratégias que concretizam a suposta recriação da ruralidade nos casos estudados, bem como na sua utilidade pública e funções sociais. Ensaia-se, portanto, uma avaliação do seu carácter ou potencial bucólico e cenográfico, em articulação com a discussão dos contornos da ruralidade desejada, que é alimentada pelo discurso urbano. Não se espera representatividade dos dois casos analisados, nem que a partir da sua análise possamos extrapolar ilações para outras cidades, outros casos de recriação, outras paisagens, ou outras ruralidades. Pretende-se sim alimentar o debate e a reflexão em torno destas questões e, sobretudo tentar contribuir para a identificação das linhas que desenham a ruralidade desejada em espaço urbano, linhas essas que servem de molde para forjar os territórios reais, por via da pressão de desenvolvimento que é imposta ao mundo rural, naquilo que é a sua reintegração nos mercados de consumo capitalistas e urbano-cêntricos. Dos espaços de recriação, dos lugares encenados e "acondicionados", acabam por ser (re)alimentadas as paisagens rurais imaginadas (que inspiraram em primeiro lugar a sua criação), ao mesmo tempo que se precipitam modelos para forjar os territórios reais, engolidos na voragem das expectativas e dos interesses urbanos de consumo e recreação, bem como dos estímulos políticos e económicos ao seu desenvolvimento patrimonial e turístico. Posto isto e perante o objectivo de ir à cidade procurar pelos lugares em que se alimenta essa ruralidade desejada, restava decidir qual a cidade que serviria de meandro para essa busca e, dentro dela, dos casos, em redor dos quais, se centraria a pesquisa e a partida para a reflexão. Escolhe-se então a cidade do Porto 142 Capítulo VI (41,5 Km2 e cerca de 265 mil habitantes10), por ter uma dimensão considerável, principalmente tendo em conta a sua área metropolitana, mas ao mesmo tempo estar muito ligada, pela localização, concentração de serviços, equipamentos e infraestruturas, bem como pela influência cultural, económica e política, a todo o Norte de Portugal. “Toda a actividade da Região Norte se desenvolve à volta deste centro urbano, em forma de círculos concêntricos, cuja importância se vai esbatendo à medida que o raio aumenta e portanto a distância ao Porto se vai tornando maior.” (Ayres, 1981, pág. 204). Funcionando como a "capital" do Norte de Portugal, o Porto acaba por representar, na sua urbanidade indiscutível, uma região de grande tradição rural e palco de uma ampla aplicação das estratégias de desenvolvimento rural, mais centradas no potencial estratégico dos patrimónios culturais e naturais. A região (que combina Minho, Douro Litoral e Trás-os-Montes) é a zona do país com a maior concentração de Parques Naturais, o maior número de produtos de origem classificada, entre os quais se destaca o Vinho do Porto, que foi o primeiro produto no mundo de origem protegida (por via dos esforços de protecção do Marquês de Pombal) e, finalmente, de maior concentração e crescimento de equipamentos de turismo rural e de natureza. De facto, no que diz respeito ao turismo em espaço rural, a região norte acumula 44% da oferta (dados de 2008) (Silva, 2009). “Tal situação estará associada ao facto de ser no Norte que encontramos o maior número de estruturas físicas susceptíveis de adaptação ao turismo e um espírito mais empreendedor por parte dos proprietários. É nesta área do país que existe o maior número de solares e casas apalaçadas, muitos deles afectos ao turismo de habitação, especialmente no Minho, que é justamente considerado o berço desta forma de alojamento turístico.” (Silva, 2009, págs. 67/68). Sendo uma cidade com um passado rural muito recente, devido a uma expansão urbana tardia e exponencial, na segunda metade do séc. XX, o Porto caracteriza-se por ter um tecido social fortemente ligado ao mundo rural, identitária, histórica e demograficamente. A sua recente expansão e consolidação urbana e metropolitana e o forte êxodo rural que sempre serviu para aumentar a população da 10 Dados do Instituto Nacional de Estatística, Sensos de 2001. 143 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada cidade, explica a estreita ligação de uma grande parte da sua população à vida rural e, em grande medida, a uma origem regional. Assim, reforça-se o interesse de escolher o Porto como ponto de partida, muito pela eventualidade desse apelo cultural e histórico das origens rurais, mas também pela proximidade com uma região que se projecta económica e identitariamente por via do seu potencial patrimonial e natural dominantemente rural. A cidade do Porto, funcionando quase como a “ponta urbana de um iceberg regional”, que ensaia o seu desenvolvimento dentro do que destacamos como o conjunto de estratégias de valorização do potencial patrimonial rural, acaba por ser, por um lado, o seu consumidor mais imediato e, por outro, a “montra” daquilo que mais se insinua no mercado de consumo. Por outras palavras, acaba por ser na cidade que mais se alimentam as representações, que projectam a ruralidade nos circuitos de consumo urbano e onde, de forma mais intensa, são geridas estas economias simbólicas. É na cidade que se define a ruralidade desejada e as linhas com que esta se desenha nas imaginações e, posteriormente, nos territórios. Portanto, tendo o Porto esta importância e influência estratégica no contexto da região Norte e tendo esta, tanta importância e poder de influência, no que são as dinâmicas económicas e culturais rurais, à escala nacional, pelo facto de ser a zona do país de mais extensa e profunda implementação das estratégias patrimonialistas de desenvolvimento rural, tomá-lo como ponto de partida para esta fase da pesquisa acabou por ser uma decisão lógica e até estratégica. Dentro da cidade, era necessário encontrar os tais espaços de recriação da ruralidade e assim tentar conhecer os seus contornos. No Porto destacam-se dois aparentes exemplos de recriação da ruralidade que importava explorar, pelo seu interesse e protagonismo, já que estão ambos integrados nos dois maiores parques urbanos públicos da cidade e representam origens e épocas diferentes de valorização da ruralidade idílica11. Um, integrado no Parque de Serralves, criado na primeira metade do séc. XX, dentro do que era a influência da tradição romântica do séc. XIX, e de origem privada, fruto do poder económico de um aristocrata ligado à indústria têxtil, de educação refinada, com grande influência cultural europeia. E um outro, de iniciativa 11 Ver mapas em anexo para localização precisa da cidade do Porto no território nacional, dos dois parques urbanos referidos no espaço da cidade e, dentro destes, de ambos os objectos de estudo. 144 Capítulo VI pública (CMP – Câmara Municipal do Porto), bastante recente, inaugurado na última década, resultante da recuperação de uma zona de pequenas quintas e integrado no Parque da Cidade do Porto. Ao primeiro exemplo chamaremos Mata-Sete, nome original do lugar onde foi construída a quinta que tomaremos por objecto e, ao segundo caso, daremos o nome de Núcleo Rural de Aldoar (NRA), que é aliás a sua denominação oficial e pública. Mas antes de avançarmos com a apresentação dos casos tomados como objecto nesta parte da pesquisa, devem ser esclarecidas as opções metodológicas que pautaram o trabalho de campo. 1. Notas Metodológicas A parte empírica da presente investigação tem por base o trabalho de campo realizado ao logo dos primeiros quatro meses de 2010. Este serviu-se de uma metodologia qualitativa para concretizar uma abordagem compreensiva dos dois objectos seleccionados. Uma combinação de diferentes técnicas, permitiu uma recolha de material rica e extensa, cuja análise autorizou uma problematização dos objectos, pautada pela destreza e pela segurança que se exige numa pesquisa desta natureza. Especificando, desenvolveram-se diversas visitas, a ambos os espaços, para conhecê-los e perceber os seus quotidianos e foram tiradas cerca de 250 fotografias para análise posterior. A propósito, assinala-se que uma selecção destas fotografias, devidamente legendada, está disponível para consulta em anexo, para ilustrar o corrente capítulo, facilitar o seu entendimento e permitir ao leitor interpretar e verificar por si próprio, algumas das ilações apresentadas. Salvaguarda-se igualmente, que não faremos remissões foto a foto, no corpo do capítulo, para não criar demasiadas interferências à leitura e para evitar que o mesmo caia num registo demasiado descritivo. Também por isso, optámos por uma legendagem mais detalhada (das fotos presentes em anexo), pontuada por algumas remissões comparativas, no caso do NRA, já que (para este objecto) apresentamos fotografias relativas a dois momentos diferentes. Pelo facto de termos tido acesso ao levantamento fotográfico feito ao NRA, antes das obras de requalificação, pudemos apresentar uma selecção de fotos desse período, para ilustrar e demonstrar o alcance da sua transformação, 145 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada nomeadamente por comparação com as imagens tiradas recentemente (durante o trabalho de campo). Desta feita e para esclarecer qualquer tipo de dúvida a este respeito, basta consultar a selecção fotográfica em anexo. Foram igualmente desenvolvidas várias conversas informais, circunstanciais ou com marcação prévia e seis entrevistas semi-directivas com marcação prévia e gravação em formato áudio com pessoas que, pela sua vida profissional, estiveram ou ainda estão envolvidas com os objectos em estudo e, portanto, em posição de prestar esclarecimentos e contribuir com informações interessantes para a pesquisa. Distinguimos as entrevistas das conversas informais, pela existência ou inexistência de guião orientador preparado, senão com perguntas, pelo menos com tópicos de conversação a abordar. Sobre aspectos relacionados com o Núcleo Rural de Aldoar tivemos a oportunidade de falar com: Arq. João Rapagão (autor do projecto de recuperação do espaço); Dr.ª Maria João Vasconcelos (historiadora, autora do estudo de levantamento patrimonial do NRA, quando ainda se cogitava a hipótese de transformá-lo no Pólo Rural do Museu da Cidade do Porto e uma das primeiras pessoas a valorizar e alertar para o seu potencial patrimonial); Dr.ª Maria do Céu Moreira (responsável pelo Centro de Educação Ambiental do NRA) - conversa informal, não transcrita; Eng. Orlando Gaspar (Vereador do Ambiente da CMP na altura do projecto de recuperação do NRA, mentor do projecto de recuperação e autor da iniciativa de preservação do conjunto). Sobre o Mata-Sete, sua história, evolução e função educativa realizámos entrevistas com: Dr.ª. Teresa Andresen (actual directora do Parque de Serralves e membro da comissão instaladora de Serralves, uma das primeiras pessoas a entrar e intervir no Mata-Sete depois de ter passado para o domínio público); Arq. André Tavares (autor do livro "Os Fantasmas de Serralves" que resulta de uma profunda investigação sobre o processo de construção do projecto de casa/jardim/quinta do Conde de Vizela); 146 Capítulo VI Eng. Elisabete Alves (coordenadora do serviço educativo do Parque de Serralves na actualidade); Dona Teresinha (antiga caseira do segundo proprietário da quinta, Delfim Ferreira, moradora do espaço por cerca de cinquenta anos) – conversa telefónica informal, não transcrita; Arq. Nuno Tasso de Sousa (especialista na obra do Arq. Marques da Silva, autor do conjunto) – conversa informal, não transcrita. Durante as visitas, as entrevistas e algumas incursões a bibliotecas, centros de documentação, livrarias, lojas, páginas Web, entre outros locais de interesse, foi recolhido um considerável número de material documental, literário e alguns outros elementos relevantes (fotografias, livros, artigos científicos, estudos, mapas, merchandising, folhetos, etc.) que vieram incrementar o conjunto de pistas e objectos a aprofundar e analisar. Deve ser dito que o encadeamento das conversas, das entrevistas, das visitas e dos momentos de recolha de materiais foi pouco programado e foi sendo precipitado pelas pistas e sugestões que iam surgindo, segundo o ritmo do próprio trabalho de campo. Ou porque um entrevistado sugeria uma conversa com outra testemunha, ou porque fornecia um documento que levava à busca de um novo elemento ou material, ou até porque na pesquisa e posterior leitura de um artigo, se abriam novas dúvidas que suscitavam o contacto com outras testemunhas estratégicas, outros textos, documentos, olhares, perspectivas, etc. Mesmo no caso das entrevistas com marcação prévia, semi-directivas, em que se contactava a pessoa em causa com antecedência, explicando o motivo do interesse na entrevista e todo o trabalho de investigação por detrás da incursão ao terreno, não foi uma preocupação preparar os guiões muito estruturados, precisamente porque se pretendia que a cadência do raciocínio do entrevistado e os conteúdos por ele abordados, não fossem podados por eventuais ideias prévias do que era esperado ouvir. No entanto, alguma orientação foi dada, por via de perguntas ou pelo lançamento de tópicos ou temas de conversa, para que fossem esclarecidas as principais dúvidas da pesquisa. Nomeadamente, se estamos, de facto, perante dois casos de recriação da ruralidade, se esta é a ruralidade idílica e depurada, que é veiculada pelos discursos políticos, culturais e comerciais dominantes e qual a 147 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada história, as motivações, os contornos e as estratégias de concretização desses dois projectos. Importante é também relembrar que, logicamente, o convite para a entrevista e a explicação da temática do trabalho, bem como, da motivação por detrás da mesma, podem ter tido, por si só, uma influência na forma como as pessoas contactadas conduziram os seus discursos sobre o objecto em causa. De qualquer forma, foi sempre uma intenção e orientação clara, tentar dar às entrevistas realizadas a aura de conversas informais, em que o interlocutor tivesse o máximo de liberdade para conduzir o encadeamento dos conteúdos e das suas opiniões, com o mínimo possível de perguntas estruturadas, precisamente para não influenciar a relevância dada a cada item, ou a forma como se expunham os pontos de vista. Comparativamente, pode ser dito que o volume de informação recolhido em torno dos dois objectos é equivalente, não havendo grandes desequilíbrios, mesmo perante algumas diferenças. Isto porque, se pensarmos por exemplo que, no caso do Mata-Sete, a literatura científica é mais abundante, mesmo que não especificamente sobre a quinta, mas em torno de Serralves, no caso do NRA, apesar da escassez de estudos científicos relacionados, o material documental original, sobre o projecto de recuperação do espaço e sua abertura ao público, foi bastante acessível, acabando por ser compensada a diferença. Desta feita, mesmo estando um dos objectos integrado numa Fundação, com centro de documentação e biblioteca próprios, e o outro, eventualmente por ser municipal e estar integrado num parque público, não ter uma estrutura de preservação de memória tão visível ou organizada, não foi sentida uma grande discrepância no volume de informação disponível. Talvez pelo facto de o projecto de recriação do NRA ser mais recente e pelo contacto com o Arquitecto João Rapagão (um dos autores do projecto) e com o antigo Vereador da CMP Orlando Gaspar (de quem foi a iniciativa de aproveitamento do conjunto) se terem verificado muito frutíferos, no que diz respeito à cedência de material documental sobre o caso. Ou até mesmo porque ainda existem algumas dúvidas e lacunas na documentação sobre o processo de construção do complexo casa/jardim/quinta de Serralves e em torno da sua história. O que é facto é que foi logrado um volume de material recolhido bastante equilibrado para os dois objectos e com bastante interesse para ilustrar a pesquisa. 148 Capítulo VI Para facilitar a análise, organizando e sintetizando a informação recolhida, foram realizadas diversas tabelas resumo, disponíveis em anexo para consulta integral, cuja leitura oferece uma noção clara dos conteúdos das entrevistas, da documentação, das fotografias e de todo o restante material. Estes quadros resumo estão divididos e organizados para que o primeiro ofereça uma síntese da caracterização genérica do objecto, o segundo enuncie todo o material recolhido e os restantes três sistematizem os seus conteúdos, segundo o tipo de suporte. Por outras palavras, na primeira tabela (Tabela síntese de caracterização e análise – 1.1 e 2.1) resume-se toda a caracterização do objecto, segundo diversos critérios de análise, a saber, a sua história e localização, as construções e equipamentos que contém, a sua fauna e flora, estilo arquitectónico e decorativo e actividades que nele têm lugar, em dois momentos diferentes (um primeiro destacado no passado e o segundo nos meses correspondentes à realização do trabalho de campo). É também incluída na tabela a informação respeitante aos equipamentos comerciais, apenas existentes no caso do NRA. Esta caracterização específica é organizada e concretizada pelas seguintes categorias: tipo de actividade comercial, produtos vendidos, espaço ocupado, estilo decorativo da loja. Finalmente há ainda espaço no quadro para acrescentar outras observações suplementares, que eventualmente não tenham tido lugar em nenhuma das outras entradas da tabela. O segundo quadro (Tabela resumo do material recolhido – 1.2 e 2.2) tem lugar para o registo de todo o material angariado durante o trabalho de campo, dividido por várias categorias, listando-se separadamente as entrevistas e conversas realizadas, o material documental conseguido, a literatura consultada, o número de fotografias cedidas ou tiradas e outros elementos suplementares, que possam ter sido considerados. Finalmente, foram criadas mais três tabelas para resumir os conteúdos das entrevistas (1.3 e 2.3), do material documental recolhido (1.4 e 2.4) e das fotografias (1.5 e 2.5), separadamente, sendo que, no caso do Mata-Sete, a síntese foi adaptada para incluir outros materiais de interesse, que não necessariamente documentais. Com este exercício de síntese e organização das informações e materiais recolhidos ou, em suma, dos elementos de caracterização de ambos os objectos, era pretendido lograr uma visão geral e, ao mesmo tempo, detalhada e rigorosa, de 149 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada toda a matéria-prima de análise extraída. Neste tipo de incursão ao terreno, em que se combinam diversas técnicas de investigação, materiais e conteúdos, sob um intenso trabalho de observação e recolha, nem sempre é fácil sistematizar e organizar com rigor todos os resultados e elementos, pelo que se exige um esforço acrescido de síntese e arrumação das informações. Ora, tratando-se da análise de dois objectos distintos e, portanto, de diferentes fontes, materiais, suportes, testemunhas, etc., mais importante se tornava sistematizar a informação através de critérios de organização e síntese semelhantes, para que fosse possível lograr uma análise equilibrada e coerente de ambos os casos em estudo.12 São precisamente os resultados deste trabalho de recolha e análise que iremos apresentar, enquadrados na reflexão e problematização maior que tem lugar nas próximas páginas e que pretende partir dos dois casos de suposta recriação da ruralidade, para tentar agarrá-la, enquanto o projecto de paisagem que é precipitado discursivamente, em tantas esferas da vida social. Começaremos pelo Mata-Sete. 2. Dois Projectos de recriação da ruralidade idílica? 2.1 A Quinta do Mata-Sete A Quinta do Mata-Sete está integrada naquilo que é vulgarmente chamado de Parque de Serralves e a sua história passa invariavelmente pela referência a Carlos Alberto Cabral (Segundo Conde de Vizela). Isto porque os 18 hectares que compõe a propriedade de Serralves foram por ele agrupados, por via de aquisições de terrenos e permutas, para alargar as terras que herdara de sua família e concretizar um projecto para a sua residência na cidade do Porto. O talhão do Mata-Sete resulta precisamente de uma troca efectuada com o seu irmão, em mais uma diligência esforçada para cumprir com um plano ambicioso de expansão da sua propriedade (Andrade, 2009). 12 Sublinha-se que os mapas de localização dos objectos no espaço da cidade, as tabelas resumo referidas e algumas fotografias seleccionadas e legendadas estão disponíveis para consulta em anexo. 150 Capítulo VI A história deste processo, estando relativamente estudada e documentada 13, não responde, contudo, de forma cabal e inequívoca às questões, que se prendem com as motivações por detrás de tão ambicioso projecto, cujos limites se imaginam, mas não se podem confirmar com toda a certeza. Especula-se, por exemplo, que o Conde quisesse alargar a sua propriedade até ao Douro e que quisesse fazer da Avenida da Boavista a sua mais visível frente, mas sobre estas e muitas outras questões existem ainda algumas deficiências de documentação. De qualquer forma, é possível traçar no essencial a história deste projecto, que remonta ao princípio do século XX e marcou sem dúvida a história da cidade do Porto. Fá-lo-emos em seguida, embora de forma breve, por já existir bastante literatura que, de forma detalhada, tenta contar a história de Serralves, mas sobretudo para nos podermos alongar mais, no que diz respeito especificamente ao Mata-Sete. Carlos Alberto Cabral (1895-1968), filho do Conde de Vizela, empresário da Indústria Têxtil, herda em 1923, para além das fábricas, da fortuna e dos negócios da família, uma propriedade na Rua de Serralves, composta por uma casa com capela, jardim e alguns terrenos agrícolas. Esta funcionava com a casa de veraneio da família que, como era costume no seio da classe mais abastada da cidade, saía do centro para ir passar os meses quentes do ano à Foz ou a outras zonas periféricas da cidade e que hoje fazem parte integrante do seu denso tecido urbano (Tavares, 2007; Andrade, 2009). Nos terrenos herdados já existiam jardins requintados, que serviam de cenário para “chás dançantes” e outros eventos, um lago, algumas hortas e alguns terrenos lavrados, aos quais foram acrescentadas, como foi dito, parcelas e quintas vizinhas, para compor o actual Parque de Serralves. Em 1925, Carlos Alberto Cabral vai a Paris para visitar a Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais, acompanhado pelo Arquitecto Marques da Silva, mestre de arquitectura da cidade do Porto e responsável por muitos dos seus edifícios emblemáticos (Andresen & Marques, 2001; Andrade, 2009). Ao que parece, esta experiência tem uma influência preponderante na transformação, do que era a intenção inicial de remodelação da casa da família 13 Sobre a história detalhada do projecto de construção da Casa de Serralves consultar Andrade, Sérgio C. (2009), Serralves - 20 anos e outras histórias, Porto, Fundação de Serralves e Tavares, André (2007), Os fantasmas de Serralves, Porto, Dafne Editora. 151 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Cabral, numa nova ambição de construir de raiz uma casa com jardim, segundo os cânones arquitectónicos, decorativos e paisagísticos mais modernos. Desta feita, auxiliado por Marques da Silva, contacta com os mais afamados arquitectos e decoradores franceses (como Charles Siclis e Jacques-Émile Ruhlmann) e inicia o projecto colectivo que resultou na casa de Serralves (Tavares, 2007). Esta fica pronta no ano de 1944 (após alguns atrasos provocados pela Guerra Civil Espanhola e pela Segunda Guerra Mundial) e é considerada a obra de Art Déco mais notável em Portugal, mesmo tendo sido construída numa fase posterior ao período áureo deste estilo arquitectónico. A casa caracteriza-se pela opulência e pela sua dimensão exagerada, sendo quase desmesurada, aliás como toda a propriedade circundante. O seu requinte é visível na qualidade dos materiais (mármores e madeiras exóticas) e a sua importância é patente na avultada fortuna gasta na construção, bem como no tempo e nos esforços empregues em todo o processo de junção dos diversos terrenos do parque. De assinalar é também a preocupação em escolher os melhores artistas e o cuidado com o detalhe, até ao mais ínfimo pormenor, naquilo que foi um projecto hercúleo, principalmente se pensarmos que foi feito por um privado e não por uma grande empresa ou instituição pública. O jardim é encomendado ao paisagista Jacques Gréber, cujo projecto data de 1932 e é um exemplo único, na cidade, do cruzamento hábil e harmonioso, entre os ideais românticos e modernos, na arte de fazer jardins. Este jardim, integra elementos anteriores, como o lago, por exemplo, combina ambientes de traçado organicista, numa estrutura geral bastante geometrizada, e alcança uma modernização das suas influências clássicas, quase como uma reinvenção Déco dos jardins franceses dos séculos XVI e XVII (Andresen & Marques, 2001). A educação primorosa do Conde, com uma forte influência da cultura francesa, as suas permanentes viagens à Europa, as suas estadias prolongadas na sua casa em Biarritz, bem como os seus contactos pessoais com a “fina flor” cosmopolita da cidade do Porto, tiveram uma influência determinante em todo o projecto de Serralves. Mais do que um homem da indústria, Carlos Alberto Cabral era um homem do mundo, um homem moderno e de grande sensibilidade, mas sobretudo um homem determinado em transformar todas as suas influências num projecto, que apesar de ter sido sempre colectivo, foi acima de tudo pessoal (Andrade, 2009). 152 Capítulo VI Apesar dos esforços e investimentos, Carlos Alberto Cabral e a sua esposa Blanche Daubin tiveram poucos anos para desfrutar do complexo casa/jardim/quinta em Serralves (apenas habitaram lá de 1944 até 1957), já que, devido a problemas financeiros na sua fábrica de fiação, se viram obrigados a vender a propriedade. O comprador foi outro industrial da cidade, Delfim Ferreira, que prometeu não transformar a obra e preservá-la cuidadosamente na sua integridade. Foram precisamente os seus herdeiros que, em 1986, venderam ao Estado toda a propriedade para albergar um Museu de Arte Moderna. Uma comissão instaladora prepara a abertura ao público da casa e do parque de Serralves, que abre as portas à cidade em 1987, deixando de ser a misteriosa “casa do Conde”, para passar a albergar actividades educativas e exposições de arte. Com a institucionalização da Fundação de Serralves solidifica-se e materializase (em 1996) o projecto de criação de um Museu de Arte Contemporânea, reforçamse os trabalhos de preservação do património arquitectónico e natural deixado pelo Conde de Vizela e consolidam-se as actividades de educação para a arte e para o ambiente (Millan, 2000). Actualmente, o Museu e o Parque de Serralves são visitados por cerca de 350 mil pessoas por ano e a sua projecção, prestígio e utilidade pública chegam a ser incontestáveis. Como um intrigante contraponto à casa e como remate de um jardim desmesurado, aparece a quinta do Mata-Sete, situada na extremidade sul do parque. Trata-se de um conjunto de edifícios rodeados de terrenos de cultivo, aparentemente destinados a actividades relacionadas com a agricultura, projectados pelo Arquitecto Marques da Silva em 1934. Os terrenos do Mata-Sete, acrescentados à propriedade do Conde em 1918, por via de uma permuta, eram previamente agricultados, constituindo já uma quinta com casa, jardim, horta, palheiro, eira, pomar, etc., que foi demolida e transformada para criar a paisagem que existe até à actualidade (Cardoso, 1992). O conjunto é constituído por duas casas e cavalariça, uma delas de habitação e a outra (desde sempre) chamada de pavilhão/salão de caça, ambas com fachadas praticamente idênticas, unidas por um telheiro. Nas traseiras, existe também uma construção que alberga uma adega e um celeiro, que completam o fechamento das casas sobre um pátio interior, emparedado pelos próprios edifícios e por alguns muretes complementares. Em redor deste “núcleo” existe ainda um estábulo (aumentado posteriormente pela Fundação), um pequeno anexo que armazena 153 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada carros e alfaias agrícolas e uma eira acompanhada de um pequeno edifício de apoio. “As construções seguem uma disposição ortogonal e são construídas com paramentos de granito em blocos contrafiados com asnas de madeira para a cobertura em telha Marselha. Os lintéis de portas e janelas são em betão armado aparente, com acabamento bojardado de modo a não contrastarem excessivamente com as paredes de granito de que fazem parte. Nos cunhais, o depósito de água, as chaminés das lareiras e os telheiros de protecção das entradas são desenhados de modo a dissolver a racionalidade das formas e a conferir um toque pitoresco ao conjunto.” (Tavares, 2007, pág. 277). As suas funções originais, sugeridas pelos próprios edifícios e pelos nomes que (perdurando no tempo) ainda hoje lhes estão associados, levam-nos a pensar que, para além da casa de habitação e do salão de caça, as restantes construções estariam directa ou indirectamente ligadas a actividades agrícolas. No entanto, pela dimensão dos terrenos da quinta e pelo facto de o Conde ter outras propriedades agrícolas, nomeadamente em Vizela, onde se localizava o Solar da família e detinha uma grande propriedade vinhateira e agrícola, as dimensões e qualidade dos equipamentos do Mata-Sete não deixam de ser despropositadas. De facto, o Mata-Sete, desde a concretização do projecto de Marques da Silva para o Conde de Vizela, não pode ser considerado propriamente uma quinta de produção agrícola, no sentido em que o volume da sua produção parece ter sido sempre irrisório e insuficiente para justificar a dimensão do seu celeiro ou da sua adega. Assim, dúvidas se levantam em torno das motivações que estimularam a criação do conjunto e das razões que terão levado a tamanho investimento e cuidado na construção, orientada inclusivamente por Marques da Silva. “Ele era o mestre da arquitectura do Porto, e o facto de ter sido chamado a trabalhar para a família Cabral demonstra bem o grau de exigência desta.” (Andrade, 2009, pág. 20). Nesta pequena quinta viviam, segundo o que foi apurado, alguns empregados do Conde, substituídos após a venda a Delfim Ferreira, por um casal de “caseiros”, que arrendava a casa e os terrenos agrícolas e que permaneceu até à última década. O casal chegou a participar inclusive em algumas actividades desenvolvidas no Mata-Sete, já enquanto equipamento público, transmitiu informações importantes 154 Capítulo VI sobre a memória do lugar à comissão instaladora e colaborou com a administração do Parque na manutenção do espaço, até à sua saída em 2008. Actualmente e praticamente desde que a propriedade passou para as mãos do Estado, a quinta serve para albergar a administração do Parque e grande parte das actividades do Serviço Educativo da Fundação. As construções mantêm-se exteriormente intactas, mas os interiores foram, em grande medida, transformados para acolher as novas funcionalidades. Foi construído mais um estábulo, o pavilhão de caça transformado em escritórios, o celeiro, o lagar e o armazém da eira em espaços para actividades educativas, entre outras pequenas alterações arquitectónicas. Apesar das significativas alterações de funcionalidade, o aspecto exterior do edificado foi preservado intacto. Em redor das construções existem, por outro lado, algumas alterações ou acrescentos, nomeadamente uma cabana de palha com chão de madeira, recheada de mesas e cadeiras, bem como um bebedouro para pássaros, ladeado de uma mesa em xisto, no meio de um concentrado de ciprestes, que compõem a obra paisagística da artista Maria Nordman, uma pequena estufa e possivelmente muitos outros detalhes que serão impossíveis de conferir. Os caminhos de terra batida circundam os campos que estão delimitados por sebes de madeira. Existe um prado que serve de pasto para os animais da quinta (vacas, ovelhas e um burro) e vários tanques, uma represa, um antigo poço e uma levada, quase todos originais. Podem ser vistos tractores em circulação e muitas crianças a participar em actividades educativas. As chamadas “hortas pedagógicas” (desenvolvidas nas oficinas que envolvem a comunidade escolar) têm localização central, mesmo em frente à casa, rodeadas pela cabana de palha, antes do prado, entre a instalação de Maria Nordman e os estábulos que abrigam os animais. Não é possível saber se as vinhas e os animais que existem na actualidade são em maior ou menor número do que nos primeiros anos do Mata-Sete, nem que tipo de produtos agrícolas eram cultivados. O facto de existir um celeiro e um lagar pressupõe que houvessem cereais e vinhas, em todo o caso, a extensão da propriedade reservada para o cultivo, mesmo que este fosse muito produtivo, não parece ser suficiente para “encher” tamanhos equipamentos. De facto, somos levados a pensar que, tal como hoje, a quinta não fosse primordialmente produtiva, mesmo que tivesse um trabalho de lavoura permanente, 155 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada coisa que não acontece na actualidade, tirando as pequenas hortas tratadas pelos grupos escolares. De qualquer forma, mais do que comparar o “antes” e o “depois”, estabelecendo as principais diferenças entre a quinta do Conde e a quinta da Fundação de Serralves, interessa aqui discutir, por um lado, se esta foi construída enquanto recriação de uma qualquer ruralidade fantasiada e quais as motivações por detrás disso e, por outro, qual a função social e o aproveitamento que é feito deste espaço desde que foi aberto à comunidade e se este passa, de alguma forma, pela exaltação de um eventual carácter bucólico. Por outras palavras, interessa discutir o Mata-Sete enquanto eventual projecto de recriação de uma ruralidade, discutir se essa ruralidade cabe no chamado Ideal Rural veiculado pelos discursos culturais dominantes de valorização do mundo rural e que tipo de aproveitamento tem sido feito desse eventual bucolismo, no quadro das suas novas funcionalidades, enquanto equipamento público. Em primeiro lugar, há que destacar novamente o facto de os equipamentos da quinta serem desmesurados para as reais necessidades produtivas da propriedade que, apesar de grande, não dispôs nunca de muitos terrenos de lavoura. De reforçar é, também, o facto de o seu criador e proprietário inicial ter outras quintas realmente produtivas, não fazendo grande sentido investir de forma tão intensa e cuidada nos equipamentos de uma quinta de produção agrícola residual como o Mata-Sete. “Desde sempre fiquei muito impressionada com a qualidade arquitectónica e muito surpreendida pela dimensão dos celeiros e dos lagares, porque aquilo que havia à roda dos muros da quinta eram umas ramadas de vinho americano, até já postas pela Teresinha e pelo Sr. Júlio e, portanto, tudo aquilo era um bocadinho non sense, era seguramente uma estrutura “afuncional”, sem uma função propriamente pré-definida, a não ser para resolver o problema da extremidade da quinta 14 (…)”. (Teresa Andresen ). “O Conde Vizela manifestamente não precisava daquilo, daquele projecto para a sua quinta, porque ele nunca viu a sua quinta como um espaço de produção, mas sim uma quinta da lazer, de passeio e de percurso.” (Teresa Andresen). “Porque esta é a segunda casa, ele vinha lá de Vizela, onde tinha as fábricas de têxtil, tinha lá um casarão. (…) É uma casa enorme, que tem uma zona de vinhas que impressiona bastante 14 Arquitecta Paisagista. Actual Directora do Parque de Serralves e membro da Comissão Instaladora que preparou a abertura da propriedade ao público. Uma das primeiras pessoas a entrar e intervir na quinta do MataSete, já enquanto equipamento cultural. 156 Capítulo VI quando se vem da estrada. (…) Ou seja, ele tem esse espaço de produção agrícola nesse contexto, 15 portanto isto no Porto é só para fazer de conta.” (André Tavares ). Nesta linha, faz sentido indagar qual a função e a motivação por detrás da construção de uma pequena quinta, munida de todos os equipamentos comuns de uma quinta de produção agrícola, numa propriedade cujo projecto de transformação se pauta por uma orientação vanguardista e por uma ambição quase desmedida em seguir as novas tendências da arquitectura, do design e do paisagismo europeu. Se, por um lado, podemos interpretar este elemento como um apontamento saudosista numa obra voltada para o futuro e, sendo assim, como um aparente paradoxo, por outro, faz sentido olhar para a quinta precisamente como uma manifestação das influências do mais requintado paisagismo europeu e como uma provável aproximação à chamada Arquitectura Regional Francesa, em toda a sua modernidade. “O Conde é um homem de grande modernidade, das modas que vão no mundo e é um homem que conhece muito bem a cultura francesa. Estes espaços eram comuns nos jardins… Versailles era um dos casos típicos e não estou a comparar Serralves a Versailles, mas há memória que se pretende reproduzir, de uma coisa para a outra… tem um grande palácio e depois tem o chamado “l´Hameau de la Reine”, feito pelo Luís XV para a sua cortesã, um sítio idílico…portanto Versailles tem também a sua versão rural erudita… Depois vemos isso nos grandes parques alemães também…Há um parque na Alemanha, em Weimar, que é no rio Ilm, em que a certa altura temos a cabana do Goethe. Hoje chegamos lá e é um parque urbano e depois há lá uma casinha rural onde o Goethe fazia colecção de plantas, lia e escrevia…mas é um sítio perfeitamente romântico do século XIX.” (Teresa Andresen). “Nos anos 30, em 1937, quando se faz a quinta do Mata-Sete, na exposição de Paris, estava uma espécie de Portugal dos Pequeninos, uma França mas à escala 1/1, com as várias regiões francesas, como já se tinha feito em Turim e na Suíça, no final do séc. XIX, mas com essas lógicas construtivas de grande racionalidade. O conde foi à exposição, porque o Porteneuve, que é um dos arquitectos da casa, diz-lhe que tinha o trabalho atrasado porque ia apresentar na exposição e o Gréber, que fez os jardins, também era o arquitecto chefe da exposição, portanto o conde foi à exposição e deve ter achado graça àquilo para o seu jardim. Mas acho que a coisa não foi com a intenção de fazer igual, mas mais pela noção de cultura que está ali subjacente e de relação da construção e das formas com determinadas ideias… com essa ideia de que é possível construir racionalmente coisas que tivessem essa expressão mais campestre e rústica.” (André Tavares). De facto, ao olhar para o estilo arquitectónico e construtivo do Mata-Sete é notório um grande racionalismo, apesar dos apontamentos rústicos e pitorescos que 15 Arquitecto. Autor do livro “Os Fantasmas de Serralves” (2007), Porto, Dafne Editora, resultante de uma profunda investigação sobre o projecto da Casa de Serralves e respectivo processo de construção. 157 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada dão a aura “campestre” aos seus edifícios. Os materiais (pedra e betão) estão expostos, assim como a transição entre eles, assiste-se a uma grande simplicidade nos adornos, prevalecem as linhas direitas e a lógica ortogonal na organização do espaço, sendo o quadro desenhado sob um racionalismo pragmático, aparentemente paradoxal num espaço “inútil”. “A quinta do Mata-Sete não revela nenhuma procura identitária baseada na redescoberta de elementos formais do passado e sua reinvenção numa síntese original, mas exprime uma grande racionalidade na organização dos processos construtivos, que são expostos sem pudor e que, com essa exposição, revelam uma imagem sugestiva e equiparável à construção popular. O carácter agrícola da função e a necessidade de criar espaços ligados à tradição vernácula (espigueiro, eira, adega, galinheiros, etc.) complementam essa proximidade da expressão do construído com o imaginário rural propagandeado para a cultura portuguesa à construção do conjunto.” (Tavares, 2007, pág. 279). Assim, apesar da racionalidade do projecto e da construção, o ruralismo do conjunto garante-se pela presença dos equipamentos agrícolas que são recorrentes nas quintas do norte de Portugal (adega, eira, tanques, etc.), bem como pelos apontamentos arquitectónicos pitorescos que dão detalhe aos seus edifícios simples, como é o caso das grandes chaminés, dos alpendres, da cozinha com mobiliário popular e forno de lenha, dos tectos com grandes vigas de madeira, etc. Estas opções de estilo e nomeadamente a combinação entre a simplicidade estética e construtiva com o detalhe pitoresco e popular, parecem estar, de facto, associadas a uma forte influência da Arquitectura Regionalista Francesa16 (Tavares, 2007). Esta corrente estilística e as políticas culturais na sua retaguarda, advogam, de facto, o recurso e a preservação de elementos tradicionais e folclóricos, na construção de um mundo moderno “melhor”. Incentiva-se a modernização e o progresso que conservem activamente os patrimónios tradicionais, ao mesmo tempo que estes se tornam mais atractivos pelo aperfeiçoamento que só o desenvolvimento da técnica pode lograr (Whalen, 2007). 16 A chamada Arquitectura Regionalista Francesa nasce, ou pelo menos intensifica-se com a necessidade de reconstrução rápida e massiva em França, após a Primeira Guerra Mundial, bem como da intenção política em reforçar a identidade nacional, numa Europa em conflito e num tempo histórico pautado por grandes e rápidas mudanças. Consistiu no estudo dos estilos arquitectónicos populares de cada região francesa, para a criação de modelos construtivos de habitação familiar que, apesar de simples, económicos, equipados com as comodidades modernas e de fácil reprodução, mantinham detalhes e características tradicionais, no sentido de perpetuar e até reforçar os patrimónios identitários locais e trabalhar na criação de paisagens “tipicamente” francesas. Resulta numa espécie de moderno pitoresco (Vigato, 1994). 158 Capítulo VI Da mesma forma, ao nível da arquitectura e no que respeita o Mata-Sete, os elementos rústicos são reinterpretados e combinados com o conforto e a qualidade dos materiais e da construção. Assim, projecta-se uma quinta com belíssimos equipamentos, materiais nobres, uma casa confortável, casas de banho modernas e amplas, uma cozinha de decoração rústica mas com todos os apetrechos comuns nas cozinhas urbanas da época, etc. Esta clara combinação de referências à arquitectura popular, com o modernismo das construções apresenta-se, de facto, como uma forte intenção de louvar o ruralismo, mantendo lógicas construtivas racionais, métricas e tipicamente urbanas (normalmente antitéticas da circunstancialidade desordenada e orgânica da habitação rural). E se, num primeiro olhar, parece estranha esta combinação do bucolismo ruralista com o racional e o moderno, tanto no estilo construtivo regionalista, como no projecto de Serralves, de tanta audácia e luxo, devemos pensar que a valorização das tradições, do passado, da natureza e (na sua combinação) da ruralidade, acaba por ser um dos maiores sinais de modernidade e até de contemporaneidade (Peer, 1989). Na exposição Internacional de Paris de 1937, que o Conde Vizela visita, no mesmo ano em que se constrói o Mata-Sete, existe um grande destaque da França rural e do seu folclore, por via da mostra das casas regionais francesas, mas também pela venda de produtos “da terra”, demonstrações de ofícios e artesanato, desfiles de trajes tradicionais, etc. É patente uma forte intenção política de reforçar a identidade francesa, por via do louvor e do reforço da ruralidade tida como tradicional e das suas manifestações culturais, num tempo de grandes conflitos, incertezas, anomia social e de rápida industrialização e urbanização (Peer, 1989). As especificidades locais, as particularidades identitárias, a vida campestre, os produtos artesanais e orgânicos são, na altura, tomados como objecto de valorização, precisamente enquanto contraponto e quase como um antídoto para a estandardização cultural, a “americanização” da sociedade e a produção mecanizada e em massa, tidas como as manifestações ruins da industrialização, da urbanização, mas principalmente da modernidade (Peer, 1989). “In sum, then, the positive representations of folklore in the 1937 Exposition did not constitute a disinterested tribute to rural and provincial folk. Instead, they provided a nostalgic refuge from industrial capitalism in crisis.” (Peer, 1989, pág. 72). 159 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Um mundo rural imaginado e colectivo era estrategicamente centralizado como referência útil à modernidade, pelo seu poder de animar os valores sociais em crise, acalmar as ansiedades culturais, mobilizar interesses políticos e promover produtos regionais (Whalen, 2007). Este reencontro com as origens rurais do povo francês garantia também uma ponte para o auto-entendimento e para o reforço da identidade colectiva, sobretudo porque definia um património nacional e uma unidade cultural, a partir dos patrimónios regionais e locais e suas particularidades (Whalen, 2007). De facto, se a consideração do património colectivo das nações, por via do estímulo à valorização quase emocional das paisagens, no caminho para a formação das identidades, é fruto do século XIX e da tendência neo-romântica, não podemos, por outro lado, ler os últimos parágrafos sem associar estas estratégias políticas e culturais, de instrumentalização do louvor à ruralidade, àquilo que é o discurso actual correspondente e que se constitui como tema central desta pesquisa. Sendo esta valorização dos patrimónios rurais uma resposta às crises e ansiedades dos tempos e da civilização, sendo a ruralidade e os modos de vida que lhes estão associados, apresentados como uma fonte de boas práticas e quase de lições para a cidade e para a sociedade como um todo, tratando-se de uma instrumentalização de referentes culturais, reforçados como tradicionais, para satisfazer interesses políticos e promover bens de consumo, é impossível não tecer paralelismos entre o chamado Regionalismo Francês do princípio do século XX, com a tendência equivalente que se tem acentuado nas últimas décadas nas sociedades ocidentais. No passado, tal como hoje, a fantasia pastoral é vendida aos “parisienses”, habitantes de grandes cidades e primeiras vítimas das suas ansiedades, de forma mais sugestiva do que autêntica e, sobretudo, sob uma estratégia comercial fortíssima, movida pelos interesses em alargar os mercados de consumo urbano e animar os mercados locais no mundo rural, cuja rentabilização é exigida pelo capitalismo, que não aprova o seu atraso e desaproveitamento, dentro dos exigentes cânones do progresso. “This strategy succeeded politically because it linked existing cultural interests to emerging business practices.” (Whalen, 2007, pág. 55). 160 Capítulo VI “Indeed, the commercialization of tradition potentially extended even to lifestyles and landscapes which could also be packaged as objects of consumption.” (Peer, 1989, pág. 73). No passado, tal como na actualidade, promovem-se as referências culturais rurais e seus patrimónios vernáculos no sentido de estimular o turismo, o comércio de produtos rurais e a rentabilização capitalista do mundo rural, ao mesmo tempo que se visa legitimar escolhas e tendências políticas e apaziguar as consciências, em tempos de grande incerteza em relação ao futuro. No passado, tal como nos dias de hoje, a imagem de ruralidade que é veiculada e alimentada nos imaginários colectivos está longe da dureza do trabalho agrícola, da modéstia das habitações, da imprevisibilidade das colheitas e de todos os desconfortos e dificuldades que estão ligadas à vida no campo. Pelo contrário, disseminam-se imagens que exploram a vertente tradicional, familiar, pastoral, gastronómica e paisagística da ruralidade, por uma perspectiva eminentemente positiva e quase que purificada. Desta feita, passa-se a ideia de que o mundo rural funciona como uma reserva de perenidade cultural, harmonia com a natureza, saúde e qualidade alimentar, serenidade e paz, valores familiares, seculares e tradicionais, etc. Neste sentido, se pensarmos nesta influência dos princípios do chamado Regionalismo Francês no projecto do Mata-Sete e o interpretarmos como uma leitura desta valorização da ruralidade tradicional, adaptada às exigências de conforto e funcionalidade da vida moderna, é lógico pensar nele como uma recriação da ruralidade idílica, segundo uma perspectiva urbana e contemporânea. E, sendo esta uma parte importante do “projecto de representação” do Conde, não só estamos perante uma recriação requintada da arquitectura popular portuguesa sob uma perspectiva urbana, racional e de grande qualidade construtiva, como estamos perante a elevação desta a elemento de ostentação e sinal de status. Ora, isto não é mais do que uma valorização da ruralidade reinterpretada e destilada pelo filtro das exigências urbanas, ao ponto de a considerar dimensão importante de um projecto de tanta exigência, qualidade e investimento e, sobretudo, pautado por uma modernidade sem precedentes, no contexto da cidade do Porto. Assim sendo, a quinta, para além de funcionar como uma “solução” para o final do jardim, resolvendo a sua transição com a área circundante (quase que completamente rural e agricultada à data da construção da quinta) e dando escala e 161 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada limite a um jardim que, pela sua dimensão exagerada, está perto de perder a domesticidade, deve ser sobretudo pensada como quinta de recreio à moda europeia e como espaço de representação ou símbolo de status. “A ideia do Conde de Vizela, de facto, é criar uma fantasia. Ele tem de dar uma solução ali em baixo e, portanto, faz um núcleo rural, sobredimensionado. (…) Nos desenhos do Arquitecto Marques da Silva, percebe-se que aquilo é manifestamente intencional, de recriar lá em baixo uma quinta de ambiente idílico como contraponto aos seus jardins formais, com grandes alamedas, tanques, lagos…” (Teresa Andresen.) “No caso da quinta do Mata-Sete, (…) fazia parte do conjunto e colocava precisamente essa contraposição entre a casa de representação, completamente cosmopolita a querer ser Paris e essa representação do mundo rural. Mas acho que é mesmo uma questão de representação, pura e simplesmente, aliás como toda a casa. Aquela casa não serve para nada, é assim uma espécie de casa inútil, um casarão de 2000 m2 ou coisa assim, é claramente para mostrar e eu acho que é isso que faz sentido. E para mostrar também essa preocupação e valorização do mundo rural e etc.” (André Tavares). Perante estas influências e motivações para o projecto da quinta do MataSete, é também importante discutir se, com a passagem do património de Serralves para o domínio do Estado e a sua consequente abertura ao público e dinamização, este carácter ruralista e temático foi aproveitado e alimentado. Por outras palavras, importa pensar se o trabalho da Fundação e, nomeadamente, da Administração do Parque e do seu Serviço Educativo, tem mantido a sua aura campestre e aproveitado esse potencial simbólico, quer ao nível paisagístico (com a preservação ou alteração do seu aspecto inicial) quer nas actividades desenvolvidas (com a integração e utilização dos seus elementos e equipamentos ou, simplesmente, tomando-os como sua moldura contextual). Ora, como já foi referido, no que toca o aspecto exterior dos edifícios e sua paisagem circundante, foi intenção da Fundação respeitar e preservar o projecto de Marques da Silva e do Conde de Vizela e, neste sentido, não foram feitas grandes alterações ao edificado, a não ser nos interiores, adaptados para as novas funcionalidades. Foi também indiscutivelmente preservada a aura agrícola do contexto, com a existência de animais de quinta, para os quais foram aumentados os estábulos, com o cultivo de hortas com as crianças, com a presença de uma meda de palha e de uma estufa, com a preservação de quase todos os tanques e com o acrescento de novos pontos de água, com a manutenção dos terrenos de cultivo para as pastagens, com a presença de tractores, videiras, sebes de madeira e de muitos outros elementos que, de facto, perpetuam a ideia de que estamos 162 Capítulo VI numa quinta agrícola, mesmo que não seja produtiva (aliás como se especula que já acontecesse no tempo do Conde). Como as principais intervenções paisagísticas que contribuíram para acentuar o ambiente rural do espaço, devemos enunciar a construção da vacaria, para possibilitar o aumento do número de animais na quinta, o desafogo da alameda que vem do jardim até ao Mata-Sete (com a substituição de árvores e a retirada de uma piscina que rematava o eixo de passagem), o que favorece a sua visualização desde o caminho e, portanto, a sua valorização e destaque enquanto cenário, bem como a transladação do horto da casa, destruído com a construção do Museu de Arte Contemporânea e transferido para as imediações da quinta, para ser convertido em jardim de plantas aromáticas (Millan, 2000). Aliadas à cabana de palha e à estufa, por exemplo, estas opções acabam por acrescentar potencial cénico à quinta, incrementando o seu carácter lúdico e pedagógico, tendo em conta que existem mais animais e um horto de aromáticas, mas sobretudo enriquecendo o seu leque de elementos iconográficos e cenográficos e dando maior protagonismo paisagístico à quinta, não mais escondida atrás de grandes árvores, como no passado, em que não era tão visível do jardim. De facto, com as alterações efectuadas, as actividades desenvolvidas e com a vivência e apropriação do espaço, a quinta tem ganho em diversidade de equipamentos e elementos paisagísticos e tem desenvolvido muito o seu potencial educativo. “Transferiu-se uma estufa e o jardim de aromáticas para o local onde está actualmente, como memória a um espaço que tinha desaparecido e simultaneamente ampliou-se o espaço das quintas para crianças. As aromáticas estão naquele nível mais alto e as hortas das crianças ocuparam uma área muitíssimo maior do que tinha sido assumido inicialmente, portanto aumentou-se a vacaria, instalaram-se as hortas e, simultaneamente, o celeiro e o lagar e a cavalariça foram sendo transformados em espaços de educação ambiental.” (Teresa Andresen). “Na estratégia de recuperação foi assumido que esta área da propriedade, que tinha um carácter rural de qualidade e de excepção numa envolvente densamente urbanizada, reunia a maior aptidão para introduzir, na quinta, uma componente pedagógica de promoção da percepção da arte e da natureza.” (Andresen & Marques, 2001, pág. 99). De facto, enquanto espaço para actividades pedagógicas, subordinadas ao projecto educativo da Fundação de Serralves (que pretende combinar a sensibilização das crianças para a Arte e para a Natureza), o Mata-Sete tem sobretudo acolhido (tal como o parque em geral) as que dizem respeito à educação 163 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada ambiental e científica, sendo que as artísticas têm no Museu o seu palco preferencial. Desde as visitas à quinta e ao parque (aos animais, plantas, árvores, etc.), passando pelas oficinas regulares de manutenção das hortas ou de recolha de material para análise científica e respectiva monitorização de resultados, debates e pequenas actividades experimentais e laboratoriais, até aos eventos com as famílias, que assinalam determinados momentos e festividades (como a desfolhada e o magusto, o dia do ambiente, etc.), deve ser dito que existe um leque muito completo de abordagens educativas (Marques, 1996; Millan, 2000). Organizam-se também colóquios, seminários e exposições, dirigidos ao público adulto e é clara a intenção de envolver pais, professores e a comunidade em geral no projecto educativo, no sentido de tornar o processo de sensibilização ambiental e alfabetização científica mais efectivo, abrangente e adaptado às necessidades do nosso tempo histórico. Apesar das transformações que têm ocorrido no trabalho educativo do parque de Serralves, devido ao elevar das exigências (de eficiência e abrangência), provocado pelo aumento acentuado do número de visitantes, sobretudo após a abertura do Museu de Arte Contemporânea em 1996, o aproveitamento do carácter rural do Mata-Sete permanece claro. Isto porque as actividades ligadas à sua identidade de quinta, iconograficamente construída como agrícola (pela presença de elementos geralmente associados a granjas produtivas, como as hortas e os animais), se mantêm, mesmo com a progressiva preocupação em acrescentar actividades de pendor mais laboratorial, ligadas às ciências naturais e ambientais. Sendo verdade que o celeiro e o lagar se transformaram em pequenos laboratórios e salas de actividades de educação ambiental e científica, não se conservando pela sua funcionalidade original, parece continuar a existir a vertente agrícola e rural do projecto educativo, já que este ainda contempla as hortas pedagógicas e, mesmo que pontualmente, alguns eventos que reforçam supostas tradições rurais, como a construção de espantalhos, por exemplo. Se no início do projecto educativo de Serralves, este pendor para a realização de actividades de quinta era uma tendência mais acentuada, com os anos a abordagem científica tem ganho protagonismo. No entanto, o Mata-Sete é ainda valorizado pela sua função social de aproximar as crianças da cidade, aos elementos naturais e rurais esquecidos pela vida urbana, e é associado ainda à sua 164 Capítulo VI função agrícola. Isto é patente se pensarmos, por exemplo, nos produtos vendidos na loja de Serralves como sendo do Mata-Sete, como os cabazes e produtos como a marca “Sabores de Serralves”, como compotas de frutas variadas, ervas aromáticas para infusões e saquinhos de condimentos, que não sendo produzidos na quinta, são associados a ela, perpetuando a ilusão (agrícola) que parece ter rodeado sempre a sua função (lúdica e cénica). “Esses equipamentos fizeram parte de toda a orientação para o programa, sempre orientámos o Mata-Sete numa matriz rural e montámos o projecto dos espantalhos para aproximar as crianças da vida do campo, da vida da natureza. (…) Tínhamos um velho jardineiro que tinha trabalhado durante 50 anos em Serralves, o Mestre Sousa, mais o carpinteiro Mestre António, o Sr. Júlio e a Teresinha e juntando os conhecimentos do carpinteiro, do lavrador, do jardineiro, montámos uma quinta para crianças e continuámos sempre a fazer as cabanas de milho, a transmitir-lhes o que os que sabiam fazer podiam ensinar. (…) E portanto era um entrosamento entre as pessoas e os saberes das pessoas que estavam lá e as crianças e tudo associado ao ritmo das estações do ano.” (Teresa Andresen). “Depois temos também o projecto das hortas pedagógicas que está mais ligado à ideia de rural, em que as crianças do pré-escolar vêm todas as semanas cultivar os canteiros em modo biológico, aliás estamos a trabalhar sob o conceito de permacultura que é muito interessante e mais uma vez é a ideia de promover a biodiversidade e o potencial da biodiversidade, inclusive na produção orgânica de alimentos e também contactam com animais, com as árvores, etc. e muitas das crianças são da cidade e nunca tiveram essa oportunidade e esse contacto é muito interessante.” 17 (Elisabete Alves ). “Por vezes recriamos, quer com escolas, quer com famílias, ao fim de semana, alguns momentos mais ligados à tradição rural, porque faz parte do imaginário, faz parte da história e faz algum sentido. Por exemplo, tivemos a festa do Outono no ano passado, em Setembro, foi um domingo todo, uma coisa lindíssima para as famílias, em que tivemos cá ranchos folclóricos, em que se fez a desfolhada e andou um burro a passear e os miúdos a perceber a importância do burro, porque representava a força e o trabalho, tivemos também espantalhos… (…) E é interessante recuperarmos essas tradições e essas vivências. A minha melhor recordação foi de quando estávamos a fazer uns espantalhos pequeninos que os pais faziam com as crianças e tínhamos palha, pauzinhos, tecidos e eles iam fazendo experiências e o mexer com a palha foi completamento inebriante para as famílias, eu só posso dizer que eram 19h já tinha terminado a festa do Outono, já só tínhamos palha, não havia mais nada e toda a gente estava a fazer bonecos de palha com palha. Ora eu acho que isto é algo a reflectir, talvez pela orgânica do material, pelo regresso às origens, quer dizer, há coisas que acontecem que nem estão previstas e são profundamente interessantes e depois estavam ali horas numa felicidade e depois desceu a luz do fim do dia e as pessoas estavam mesmo bem... foi como uma ligação à Terra, foi fantástico.” (Elisabete Alves). 17 Engenheira do Ambiente. Coordenadora do Serviço Educativo do Parque de Serralves. 165 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada De facto, com a abertura ao público e respectiva dinamização, o Mata-Sete parece ter ganho em potencial cénico, em complexidade iconográfica e em protagonismo, não só no contexto envolvente (por estar mais aberto ao jardim e pelo destaque, que a urbanização crescente, da zona da cidade em que se encontra, lhe confere pelo contraste) como socialmente, dado o elevado número de visitantes que recebe por ano (em crescimento nos últimos anos). Adicionalmente, este protagonismo social e a sua utilização educativa vão acrescentando importância e valor ao próprio lugar, sobretudo pelo reforço da sua função social. Desta feita, o Mata-Sete não é apenas uma recriação da ruralidade, outrora privada, que vai sendo aperfeiçoada e divulgada publicamente ao longo dos anos, constituindo principalmente um espaço que alimenta a ligação dos habitantes da cidade àquilo que é tido, à distância, como ruralidade, bem como ao conhecimento dos saberes e imaginários, associados a um rural de pendor agrícola, numa versão limpa, organizada, lúdica, educativa e agradável. Por outro lado, sendo a Fundação de Serralves uma instituição de grande prestígio nacional e internacional, conotada com arte contemporânea, arquitectura e cultura em geral, o Mata-Sete na sua ruralidade depurada, acaba por reforçar e actualizar a elevação/associação do bucolismo a bom gosto, como aliás já tinha feito o Conde Vizela. De facto, tendo sido construída como uma fantasia de gosto refinado para recriação e ostentação de status no passado, a ruralidade moderna e limpa do Mata-Sete continua associada, ainda hoje, com contemporaneidade e cultura. Resumindo, o Mata-Sete não é apenas a recriação de uma ruralidade amigável ao olhar urbano, mas sobretudo um seu catalisador, pela sua função social de alimentá-la e perpetuá-la nos imaginários colectivos. 2.2 O Núcleo Rural de Aldoar (NRA) Ao contrário do Mata-Sete, o Núcleo Rural de Aldoar nasce da valorização patrimonial de um lugar e da vontade de preservá-lo, enquanto objecto mnemónico. Se o Conde de Vizela, como um homem da modernidade, não poupou a casa da sua família e, muito menos, a quinta que havia no local do Mata-Sete, para a construção do seu projecto vanguardista, na actualidade, pelo contrário, é muito comum a valorização dos vestígios do passado, numa perspectiva muito abrangente 166 Capítulo VI do que pode ser considerado património. Sendo o NRA um projecto do final do séc. XX, inaugurado já no novo milénio, acaba por ser fruto desta tendência e por revelar o interesse público no passado e no que é elevado a património. Ao mesmo tempo, é um exemplo da valorização de uma dimensão específica da memória colectiva, mais concretamente, a que se prende com a ruralidade e com o passado rural da cidade e dos seus habitantes. Por estas razões é um objecto de estudo muito interessante e que importa analisar cuidadosamente. O espaço do NRA está localizado na Freguesia de Aldoar, na Cidade do Porto, mais precisamente no Beco de Carreiras, entre a Rua da Vilarinha e uma das extremidades do Parque da Cidade (Nordeste), funcionando inclusivamente como uma das suas entradas. Ora, o lugar que hoje constitui o NRA era, até ao inicio da década de 90 (altura em que se realizaram os primeiros levantamentos e projectos preliminares), um conjunto de quatro quintas de propriedade municipal, três das quais habitadas por famílias ligadas à agricultura. Este conjunto estava confinado entre a malha urbana densificada da freguesia de Aldoar (uma zona fortemente residencial da cidade do Porto) e a vasta área destinada ao Parque da Cidade, funcionando como uma espécie de enclave de ruralidade residual dentro da urbe. As quatro pequenas quintas compunham um conjunto de quatro casas idênticas (apesar de duas delas estarem ligadas entre si por um acrescento posterior), rodeadas de múltiplos anexos, telheiros e galinheiros, um celeiro, três eiras e dois sequeiros, tudo aconchegado por detrás de um muro que separava o lugar do resto da cidade. Este muro do Beco de Carreiras tem abertura em quatro portões numerados e é a única face visível do conjunto para quem passa na rua da Vilarinha, como se este estivesse de costas voltadas para a cidade e apenas aberto para as bouças, baldios e terrenos lavrados que, há pouco mais de duas décadas, foram convertidos no Parque da Cidade do Porto. Foi o pelouro do Ambiente da Câmara Municipal do Porto (CMP) que tomou a decisão de preservar o conjunto, durante o processo de criação do Parque da Cidade, para transformá-lo num equipamento público, preservando com isso alguns vestígios do Porto rural. O facto das quintas serem de propriedade municipal facilitava a intervenção e a sua localização privilegiada, numa das extremidades do Parque da Cidade (ainda em construção na altura), garantia-lhe um certo protagonismo. Estes dois factores potenciaram o interesse no lugar e foram tomadas 167 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada todas as diligências para concretizar um projecto de transformação das quatro quintas em causa, num equipamento público. Os seus habitantes foram realojados e foi encomendando um projecto de transformação das quintas (entretanto realizado pelos Arquitectos João Rapagão e César Fernandes) e que resultou na sua conversão em espaço comercial, estabelecimento de hotelaria e num centro de educação ambiental. O lugar foi então baptizado de Núcleo Rural de Aldoar e inaugurado em 2001, estando aberto ao público até aos dias de hoje. Deve ser dito, porém, que a valorização patrimonial deste lugar partiu inicialmente do Pelouro da Cultura da CMP, mais concretamente do Departamento de Museus e Património Cultural, de onde saiu o interesse em preservar o núcleo e transformá-lo no pólo rural de um futuro Museu da Cidade do Porto, que nunca chegou a ser concretizado. Foram inclusivamente encomendados pareceres sobre a musealização do núcleo e lavrada a programação preliminar dos pólos do Museu da Cidade, em que o NRA figurava como o primeiro, dedicado ao passado rural do Porto. Foi ainda realizada uma exposição acompanhada de livro 18, que pretendia atrair interesse público e sensibilizar a cidade, para a riqueza deste lugar como património e vestígio da sua história. Esta valorização baseava-se no potencial do lugar enquanto “zona da cidade onde permanecem ainda, embora em condições degradadas e em condições de abandono, construções e vivências que documentam uma das formas mais recuadas de viver nos “arrabaldes” da cidade”19. De facto, durante a década de 90, este projecto de musealização do núcleo corria a par e em colaboração, com as primeiras diligências do Pelouro do Ambiente, que tentava dar seguimento ao processo de transformação do conjunto do Beco de Carreiras. No entanto, devido a eventuais divergências estratégicas ou políticas, ou simplesmente dado o facto de o projecto do Museu da Cidade se ter protelado indefinidamente, a orientação do projecto acabou por ser tarefa exclusiva do Pelouro 18 Vasconcelos, Maria João (1995), Essas Pedras Quebradas... Permanências da Ruralidade no Contexto Urbano, Porto, Departamento de Museus e Património Cultural - Casa Tait, CMP. Livro tratado enquanto material documental relativo ao objecto e não como literatura científica, para mais detalhe consultar Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo. 19 Viana, Teresa e Mª João Vasconcelos (1993), Programa Preliminar para o Museu da Cidade, pág. 35 e 36. Texto tratado e referenciado como material documental e não como literatura científica – para mais detalhe consultar Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo. 168 Capítulo VI do Ambiente, até porque a gestão de todos os assuntos relacionados com o Parque da Cidade eram de sua tutela. Assim, não se concretizou a ideia inicial de combinar as funções museológicas com o projecto do Pelouro do Ambiente, mais voltado para a polivalência do espaço, acabando este por resultar num equipamento de pendor comercial, recreativo, paisagístico e de educação ambiental. No entanto, mesmo não tendo nenhuma pretensão museológica, o NRA nunca deixou de ser encarado como patrimonial e como um lugar que representa a memória da cidade. Desta feita, da intenção em elevar o lugar a pólo do Museu da Cidade ou simplesmente a património histórico protegido, resultou uma valorização do potencial do lugar, que pela localização e conveniência, foi tomado pelo Pelouro do Ambiente como objecto de reconversão e integrado no grande projecto do Parque da Cidade. A valorização patrimonial do conjunto, a sua consideração como pretexto para lembrar a história da evolução da cidade e a sua existência como lugar com potencial para acolher a nostalgia dos muitos portuenses com passado rural, justificaram o projecto. No entanto, o NRA não se constitui como sítio histórico, como museu ou muito menos como monumento, nem a intervenção nele feita pode ser considerada um restauro. Para perceber melhor o NRA e o projecto se sua transformação, devemos discutir o seu alcance e respectivos contornos visíveis, bem como as motivações e as linhas filosóficas que sustentaram a intervenção. Começaremos por destacar as mudanças fundamentais ocorridas no espaço e por descrever o lugar, os seus edifícios, equipamentos e elementos, para depois reflectir em torno dos critérios e orientações que pautaram o projecto e a intervenção. Queremos perceber o que foi valorizado, o que foi destruído e de que forma foi aproveitado o carácter rural que justificou, em primeiro lugar, a sua valorização. Em suma, queremos perceber se estamos perante uma recriação de uma ruralidade adaptada às expectativas e memórias urbanas, construídas no quadro do discurso que dá mote a este trabalho de investigação. Até às obras de criação do Parque da Cidade, as quintas do Beco de Carreiras eram ocupadas por três famílias que desenvolviam actividades agrícolas e pecuárias nos terrenos contíguos às casas. Não sendo uma grande propriedade com um volume produtivo de assinalar, a agricultura praticada era provavelmente para subsistência familiar e para combinar com rendimentos resultantes de outras 169 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada actividades. O ambiente do lugar era fortemente marcado por este pendor agropecuário, já que, para além das construções relacionadas com a lavoura (sequeiros, celeiro, eiras, etc.), os animais, as ferramentas e utensílios vários, a omnipresença de videiras e esteios, a vegetação hortícola, entre muitos outros elementos, preenchiam o lugar e reforçavam a sua aura rural. O conjunto era complexo e saturado de elementos, no sentido em que, às construções originais se sobrepunham acrescentos e anexos em madeira e chapa metálica com aspecto abarracado e todos os recantos estavam carregados, com os tais utensílios e objectos ligados às actividades domésticas e agrícolas, os esteios e ramadas acrescentavam densidade ao quadro, diversos vasos estavam distribuídos pelas escadarias, havia ainda inúmeros tanques em pedra e um poço de água, entre despojos, tralhas e sinais de vivência intensa do lugar. Assim, apesar das quatro casas serem iguais, era difícil vislumbrar o traçado original, por entre tantos acrescentos, anexos, telheiros e com esta parafernália de objectos espalhados. As casas eram de arquitectura popular característica da região entre o final do século XVIII e princípio do século XIX. Tinham dois pisos (um térreo para as lojas e estábulos e um piso superior para habitação) e cozinhas de forno exteriores. As paredes eram de granito, os telhados em telha "Marselha" e as estruturas dos tectos em madeira. A subida para o primeiro andar fazia-se pelas escadarias exteriores, que culminavam em pequenos alpendres que protegiam as portas de entrada. O chão era em madeira no primeiro piso e de terra batida no piso térreo. As portas de madeira tinham dimensões muito variáveis e por vezes eram reforçadas com chapa metálica. As janelas eram em "guilhotina" e, no interior, algumas eram acompanhadas de "namoradeiras". Algumas paredes tinham nichos e reentrâncias. Antes do realojamento das famílias que habitavam o Beco de Carreiras, todo o conjunto sofria de um acentuado grau de degradação. É bastante visível nas fotografias do espaço (ainda habitado) e no levantamento fotográfico feito antes das obras20, o elevado desgaste nas construções e seus materiais: madeiras envelhecidas, portas e janelas remendadas, paredes com a tinta muito gasta, telhados precários, etc. Como foi dito, o traçado original das construções estava consideravelmente alterado pelo acrescento dos diversos anexos e telheiros e os caminhos e muros de pedra estavam camuflados por entre a vegetação. 20 Reforça-se que algumas dessas fotografias (devidamente legendadas) estão disponíveis para consulta em anexo. 170 Capítulo VI Existiam videiras e múltiplos esteios e arames pendentes ao longo de todas as quintas, um esgoto a céu aberto e bastantes animais domésticos à solta (como galinhas, vacas, cães, coelhos, etc.). As casas estavam rodeadas de hortas, pequenas pastagens e da vegetação autóctone, típica da chamada "bouça" (pequena mata, cercana a lameiros e terrenos agrícolas) muito comum na região. Deve ser dito que, vendo as fotografias do espaço antes das obras, pode parecer difícil vislumbrar o potencial "pitoresco" do lugar, dado o elevado grau de degradação do conjunto e alguma insalubridade. No entanto, pela intensidade da apropriação quotidiana que dele era feita, pela sua vida e pela diferença que representava, quando contraposto com a cidade envolvente, tornava-se num lugar muito particular e interessante, principalmente porque era nessa especificidade que estava fundada a sua valorização. “E havia, sobretudo, o Beco de Carreiras, que a citadinos habituados aos brilhos rutilantes do Guarany e do Coliseu oferecia a experiência de espaços, cheiros, ruídos e gente que mais pareciam figuras de Aldeia da Roupa Branca ou desenhos da D. Laura Costa, no livro da 4ª classe, do que lugares portuenses.” (Pacheco, 2002, pág. 32). Actualmente, o aspecto do conjunto é muito diferente. Apesar de se terem preservado todas as construções originais e em pedra (o muro, as quatro casas e respectivos anexos e cozinhas, os sequeiros, as eiras, o celeiro, os tanques e o poço), tendo sido apenas destruídos os acrescentos em madeira e chapa metálica de carácter provisório e de fraca qualidade, as obras de recuperação do edificado, as operações de limpeza, as novas utilizações e a integração do conjunto no Parque da Cidade, transformaram profundamente o lugar e o seu ambiente. As construções originais, agora remodeladas, foram convertidas em equipamentos de uso público ou, simplesmente, em elementos decorativos, como é o caso do sequeiro, por exemplo. Numa das casas funciona o Centro de Educação Ambiental (que faz parte da rede municipal de equipamentos do género), composto por escritórios, uma sala de reunião, espaços para oficinas e formação de crianças e jovens, uma cozinha exterior e as hortas pedagógicas nas imediações. No celeiro funciona uma casa de chá, com esplanada na eira junto ao sequeiro. Nas duas 171 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada casas “siamesas21” tem actividade uma escola de gastronomia, com loja de produtos “gourmet” e os respectivos escritórios. Nos anexos maiores funciona uma loja de “comércio justo” e uma loja de produtos biológicos, apelidadas de “Ecolojas” no mapa afixado à porta do núcleo. Sendo as restantes construções ocupadas por armazenamento de materiais relacionados com as actividades citadas, bem como pelos serviços de apoio ao NRA e ao próprio Parque da Cidade (não sendo de assinalar com pormenor). Deve ser reforçado, que estas utilizações dizem respeito ao período do trabalho de campo, visto que, ao longo dos anos de funcionamento do núcleo, existiram inúmeras alterações de uso e funcionalidade em alguns equipamentos e espaços. Para dar um exemplo importante, ainda faz parte do conjunto um picadeiro para póneis, construído no processo de transformação do espaço, que funcionou durante vários anos, mas que neste momento está inoperante. Mesmo com mudanças e trespasses, verifica-se que as construções se têm mantido praticamente inalteradas, pelo menos exteriormente, desde a sua recuperação e que, no geral, o ambiente e aspecto do conjunto não tem sofrido grandes alterações, segundo o que foi apurado. Acrescentadas foram as casas de banho modernas para uso público, inexistentes até às obras, bem como o mobiliário de jardim que caracteriza os parques urbanos (caixotes do lixo, bancos, iluminação, etc.). Foram incluídos também uma espécie de cobertos com um banco no interior, de tecto e chão em madeira, desenhados pelos arquitectos responsáveis pelo projecto do NRA e inspirados nas ripas de madeira dos sequeiros tradicionais, que estão reproduzidas nas suas paredes. Este tipo de mobiliário assume um certo protagonismo visto que figura em diversos recantos do núcleo, estando espalhado, desde os jardins circundantes às casas até para além dos terrenos das hortas, já em pleno parque urbano. Estes cobertos servem, por um lado, como elemento de transição das quintas para o parque, já que estão pintados com o mesmo vermelho das portas e janelas das casas, estando-lhes relacionados pela cor e pela alusão aos seus sequeiros e, por outro, como espaços de descanso e contemplação para os visitantes, que podem sentar-se e abrigar-se do sol ou da chuva, sem deixar de ver 21 Chamamos “siamesas” a duas das casas do núcleo por estarem ligadas por uma varanda de madeira e por, na prática, funcionarem como um só imóvel. 172 Capítulo VI confortavelmente o pitoresco conjunto, através das ripas, quase como nas cabanas para observação de aves, existentes em muitos parques naturais. Como acrescento, pode ser encontrado ainda o tal picadeiro de póneis, que embora não esteja mais em funcionamento, como foi dito, continua a fazer parte do conjunto e a ter uma localização central para quem olha para o núcleo desde o parque. Não existem animais de quinta, nem outro tipo de espécies, desde a desactivação do picadeiro de póneis. Existem pequenas hortas de leguminosas e ervas aromáticas, feitas durante os ateliers do Centro de Educação Ambiental, mantidas nas visitas semanais das crianças das escolas do Conselho do Porto, inscritas nesta actividade. Para além disso, não existe produção agrícola e a vegetação existente está integrada nas opções paisagísticas do Parque da Cidade do Porto. Se no passado o lugar tinha usos residenciais e agro-pecuários, actualmente serve de palco para actividades comerciais e de hotelaria, bem como para as actividades educativas do Centro de Educação Ambiental. De assinalar é também a sua função recreativa, no sentido em que o núcleo está completamente integrado no parque urbano que o rodeia e no seu ambiente, funcionando como um lugar de passeio, desporto, contemplação, convívio, etc. De acrescentar é ainda o facto de o NRA acolher a feira semanal de produtos biológicos (ao sábado de manhã), em que se reúnem produtores e consumidores de legumes, fruta, pão, compotas, mel, frutos secos e flores, com selo de produção em modo biológico. Esta feira, a loja de produtos do chamado “comércio justo”, a loja da NaturoCoop (cooperativa de produtores de agricultura biológica) e a loja “gourmet”, que compõe o conjunto de estabelecimentos comerciais do núcleo, estão associadas a este universo de produtos de qualidade, ecológicos ou do chamado “consumo consciente” (relembra-se aliás que são chamadas de “Ecolojas”). Estes espaços caracterizam-se por decorações simples, em que predomina a madeira, no chão, tecto e estantes e o granito das paredes, sendo salvaguardado o protagonismo dos edifícios rústicos e despojados do NRA e mantido o ambiente singelo e rural do lugar. A loja “gourmet”, por exemplo, vende bens alimentares de origem classificada, produtos regionais de qualidade superior ou muito prestigiados (vinhos, compotas, conservas, chocolates, chás e infusões, biscoitos, etc.) que, mesmo não sendo todos de origem rural, estão associados a modos de confecção artesanal, a matérias-primas seleccionadas, a saberes seculares e a tradições, em suma, a todo 173 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada o universo simbólico que rodeia a manufactura, por oposição à produção tecnológica, massiva, industrial, etc. Em consonância com o contexto do próprio NRA e com os produtos vendidos, na sua decoração predomina o mobiliário rústico. Destacam-se os armários de madeira pintada e as inúmeras cestas de vime, de vários tamanhos, usadas para expor a mercadoria. É nítido que as características arquitectónicas do edifício orientam o estilo decorativo, pelas cores usadas no mobiliário (que condizem com a cor da madeira dos tectos e das janelas), pelos materiais, mas também pelo aproveitamento do potencial do espaço, por exemplo com a utilização dos nichos e das “namoradeiras” como recantos para dispor os produtos. O pendor ecológico e gastronómico destes negócios parecem estar em consonância com a dimensão educativa do núcleo e com a ideia de que estamos num nicho de ruralidade, principalmente se pensarmos que culturalmente se associa o mundo rural à harmonia entre o homem e a natureza e à qualidade alimentar (com produtos orgânicos, saudáveis, saborosos e opostos à comida de “plástico” que supostamente se come nas cidades). O Centro de Educação Ambiental, por seu turno, desenvolve actividades regulares com crianças das escolas do concelho do Porto, no âmbito da sensibilização para as boas práticas ecológicas e para temas mais ligados à vida rural. Assim, existem oficinas ligadas à reciclagem e ao aproveitamento de resíduos domésticos para artes plásticas, ao conhecimento de árvores, de plantas, das estações do ano e dos pássaros, bem como à manutenção de pequenas hortas e de algumas ervas aromáticas. De mencionar são também as actividades culinárias, que têm lugar na cozinha (exterior) da casa ocupada pelo centro educativo, em que se ensina às crianças algumas receitas simples e se faz a articulação teórica e prática, entre natureza e alimentação. Este espaço, que possui um velho forno de lenha original, está também decorado com mobiliário de estilo rústico, toalhas de padrões campestres, louça com pequenos detalhes figurativos, alusivos a frutos e legumes, potes metálicos, vassouras artesanais, entre outros elementos que reforçam a ideia de que estamos numa cozinha rural. Em todo o processo de transformação das quintas, é sobretudo claro que existiu um enorme esforço de limpeza e salubrização, não só em termos sanitários obviamente (com a ligação das casas à rede de saneamento básico e a instalação 174 Capítulo VI de casas de banho modernas), mas também de melhoria do aspecto geral do conjunto. A recuperação dos edifícios, com a pintura e destruição dos anexos abarracados que proliferavam, aliada ao desaparecimento dos animais e seus detritos, dos objectos, vasos, ferramentas, sacos, lixo e todo o tipo de tralha que estava espalhada pelo lugar, bem como a pavimentação de algumas zonas que eram lamacentas, contribuíram seriamente para dar uma imagem menos caótica e degradada às quintas. A diminuição do número de arames e ramadas, a limpeza das ervas invasivas que proliferavam entre as pedras dos muros e dos caminhos e o ajardinamento das imediações, deram também um aspecto mais limpo ao conjunto, para além de permitirem destacar pormenores pitorescos, como as condutas em pedra, que levavam a água da rega, na berma dos caminhos, por exemplo. Neste sentido, deve ser dito que o projecto de transformação do núcleo resultou numa profunda transformação do seu ambiente, de um espaço vivido, mas degradado e desordenado, para um espaço limpo, arranjado, salubrizado, mas sem a aura de lugar habitado. A complexidade de um lugar vivido e portanto desalinhado e desgastado, foi substituída por uma simplificação e limpeza que realça o potencial pitoresco do conjunto, mas que lhe retira a riqueza da vivência quotidiana de outrora. Esta consequência era aliás prevista pelos autores do projecto, muito conscientes da dificuldade de manter a aura castiça do lugar, após a concretização da operação de limpeza e transformação que se exigia. Assim, se por um lado existia a urgência de salubrizar e ordenar um espaço que, apesar de valorizado, era considerado sujo e degradado, existia também a intenção de manter muitos dos elementos originais que lhe davam o ambiente rústico e particular. “Foi esta a conjugação que se tentou fazer, que foi tentar manter alguma verdade, embora obviamente há ali muito trabalho de limpeza, porque há ali zonas que não eram pavimentadas e nós tivemos de pavimentar para as pessoas não andarem em lama, mas grosso modo, os caminhos de entre muros estão exactamente na mesma, todos tortos, com as pedras irregulares, aquela ideia de 22 calçada...” (João Rapagão ). “Aqui, por exemplo, era a tal casa de banho, isto era surrealista porque era directamente cá para baixo, aqui estava uma vaca, em baixo e o piso de cima terminava nesta construção que não sei o que terá sido antes, mas a família fez um buraco, meteu uma sanita em cima e eles faziam directamente em cima dos animais que estavam cá em baixo... Era um cheiro...Este compartimento 22 Arquitecto. Autor do projecto de requalificação do NRA em conjunto com o Arquitecto César Fernandes. 175 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada em baixo, quando abrimos a porta... eram dezenas de anos de porcaria acumulada com os animais a pisar... portanto era a porcaria dos animais mais a dos humanos, tudo junto.” (João Rapagão). “Houve muita coisa que só se viu durante a obra, porque haviam zonas que estavam tão cheias de coisas que não entrava a luz e haviam gatos mortos há anos e anos e sacos de farinhas e coisas abandonadas e ratos, quer dizer, haviam zonas em que não se conseguia sequer entrar para fazer o levantamento, quer dizer, foi muito no processo de desmantelamento, que umas coisas foram repostas e outras foram eliminadas para pôr à vista alguma verdade...” (João Rapagão) “Para nós original seria tudo... eu é que tinha pena de tirar, mas era preciso para fazer as obras, haviam muitos esteios e ramadas muito interessantes que davam um ar carregado e habitado àquilo tudo, mas para fazer a obra foi preciso tirar tudo, tudo, tudo, como é evidente. Tivemos que descarnar aquele corpo todo e depois a minha preocupação foi repor isso e portanto se reparar em todas elas existem esteios, ou perfis metálicos ou cabos ou arames, à espera e há muita vinha que está a começar a trepar, mas claro que demora, porque aquilo tinha uma carga de dezenas de anos que agora é preciso esperar que o tempo faça o resto.” (João Rapagão) A vontade de preservar o mais possível as características arquitectónicas, iconográficas e decorativas do espaço, funcionou quase como uma tentativa de cristalizar a aura rural e pitoresca do lugar, retirando-lhe a sua vivência e apropriação residencial e agrícola, juntamente com as suas consequências menos agradáveis (o mau cheiro, a confusão, o desgaste, os detritos dos animais, etc.). Como num processo de destilação, tenta-se preservar uns elementos e fazer desaparecer outros (menos compatíveis com as exigências de um equipamento público e do olhar urbano), mas sobretudo (e paradoxalmente) debaixo da ambição simultânea de manter o ambiente original do conjunto, pelo seu carácter habitado, vivo, popular, rústico, castiço e rural. Foi intenção preservar o mais possível todas as construções, mesmo os anexos e galinheiros, de pequenas dimensões, foram recuperados e aproveitados para arrumação de material de esplanada, por exemplo. Foram apenas destruídos os acrescentos que não eram em pedra, com aspecto precário e que escondiam a semelhança entre as quatro casas. Aliás, esse foi o critério principal, revelar o desenho original das quatro quintas geminadas e a sua lógica de envelhecimento e adaptação às vivências e funcionalidades atribuídas. Interessava também valorizar o facto de, ao longo do tempo, o conjunto se ter densificando, pela construção de mais anexos em pedra, ao redor das casas, no que resultou numa espécie de fechamento em casco, contra o muro do Beco. “Nesta procura da verdade daquela casa e daquela estrutura toda, nós percebemos que aquelas quatro casas eram exactamente iguais, se reparar, as quatro casas mãe, que nós 176 Capítulo VI designamos de casas mãe, são as únicas que têm sempre rés-do-chão e primeiro andar e que têm uma escada exterior, são exactamente iguais, as quatro casas (…) portanto há medida do tempo, foram sendo desenvolvidas pelas famílias ocupantes à medida das suas necessidades e (…) a nossa preocupação foi manter legível esta verdade de envelhecimento daquela lógica. Umas dispensaram anexos e estruturas de apoio agrícola e outras, porque se viraram mais para os animais, iam precisando muito de anexos, cortes, por ali fora, de uma série de coisas de apoio e, portanto, isso foise mantendo. A primeira, por exemplo, não tem nada porque era a casa do padre e o padre devia viver do que lhe davam e, portanto, não precisava de coisa nenhuma e a casa estava completamente solta. Portanto a nossa preocupação foi muito a de manter esta legibilidade do conjunto em que há alguma preocupação de verdade, entre aspas, histórica, arqueológica e etc. e também arquitectónica, no sentido de mostrar os valores daquela ruralidade que ali está. Porque depois as construções abarracadas eram impossíveis também de manter, porque eram chapas tortas, tijolos mal encaixados, portanto nem sequer construtivamente aquilo era compatível... E há ali um processo muito engraçado que é... as casas teriam estado soltas no terreno e à medida que a cidade cresce aquilo vai se fechando em forma de casca. Quando entramos no beco de Carreiras vemos um muro quase cego com 4 portões...que são das 4 quintas e é engraçado como esta espécie de evolução da cidade, esta espécie de invasão daquele território por parte da cidade, corresponde a um fechar das quintas sobre si mesmas e esse fechar vai sendo feito com muros, mas principalmente com anexos e os anexos vão se fechando em forma de casca protectora, muitas vezes muito mal resolvidos… há ali construções muito mal resolvidas e nós deixamo-las ficas todas. Nós só tiramos mesmo o que tinha ar de ser tirado com o vento quase...” (João Rapagão). De facto, as casas foram recuperadas, mantendo-se o traçado original e os mesmos materiais. A pedra foi limpa, as madeiras foram poupadas o mais possível, restauradas e pintadas de vermelho (janelas, portas, etc.) e as paredes exteriores e interiores de branco. Os tectos em madeira e o soalho dos pisos superiores foram restaurados e mantidos. Nos pisos térreos, a terra batida foi coberta por estrados de pôr e tirar. Os anexos em pedra, os tanques, os poços, o sequeiro, as eiras e os estábulos foram mantidos e recuperados. Já o celeiro foi reconstruído, pois tinha sido destruído num incêndio que ocorreu antes das obras. Em alguns locais o tabique foi propositadamente exposto e as técnicas construtivas de recuperação foram inspiradas nas tradicionais. Foram instalados os circuitos eléctricos, o isolamento térmico, o sistema de aquecimento, de telecomunicações e todas as infra-estruturas próprias para os estabelecimentos comerciais e de hotelaria, para além da, já referida, ligação à rede de saneamento pública. Por outras palavras, o conjunto foi adaptado às exigências de conforto, comunicação, salubridade e modernização, que um equipamento público comporta, principalmente dada a sua diversidade de funções. Aliás o 177 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada programa previsto para o núcleo e que serviu de orientação para o projecto, era bastante aberto e destacava a necessidade de preparar as quintas para receber serviços muito distintos (desde comércio, até à educação ambiental, passando por actividades equestres e por escritórios). “Acabámos por decidir que vamos recuperar as casas, instalar todos os meios actuais modernos, para que a casa fique preparada para ter uma exposição de arte contemporânea, se for preciso, que as casas possam receber um restaurante, possam receber computadores, possam receber telefones, tudo é viável, mantendo sempre a lógica do soalho de madeira no piso de cima, mas em baixo manter a ideia da terra, embora quando houvesse necessidade púnhamos um estrado de madeira que é de pôr e tirar.” (João Rapagão). O objectivo era o de conseguir lograr um equilíbrio entre a preservação das características arquitectónicas do conjunto e do seu ambiente rústico e a adaptação do espaço às novas funcionalidades. Esta proposta é bem patente no Estudo Prévio do NRA, elaborado pelos autores do projecto de transformação do lugar, os arquitectos João Rapagão e César Fernandes: “Fecha-se, assim, um sistema interno de vivências e de usos que associam as necessidades funcionais colectivas e recreativas e as necessidades funcionais e operativas, aos valores arquitectónicos do conjunto edificado, caracterizado pela sua identidade rural. Sem descaracterizar o construído existente, julga-se ter encontrado um equilíbrio entre o existente e o proposto, sem perda da identidade do núcleo rural.”23 Não nos cabe a nós julgar se foi uma tarefa ganha, mas deve ser destacado, a propósito, que esta perspectiva de transformação do lugar afasta-se do restauro (científico, pela fidelidade histórica) e aproxima-se da recriação, precisamente por estar baseada na selectividade estratégica ou subjectiva, do que é cristalizado, recuperado, enaltecido e, por outro lado, adaptado, suprimido, disfarçado, substituído. Esta abordagem tem em atenção, por um lado, as necessidades de adaptar o espaço aos novos usos e, por outro, assume como referência uma ideia de ruralidade, que orienta os critérios de selecção e que se aproxima mais do romantismo do que de uma ruralidade “real”. Esta realidade seria o ponto de partida (as quintas do Beco de Carreiras antes da transformação) que, através de um processo de selecção, limpeza e remodelação, é reconfigurada para corresponder a novas funcionalidades e a determinadas exigências e expectativas (estabelecidas discursiva e culturalmente, diríamos nós). 23 Para mais detalhe sobre o documento em causa consultar a Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo. 178 Capítulo VI “Chamaria uma recuperação ou uma renovação. Porque, de facto, restauro não é, porque o restauro passa muito pela manutenção da função e aquilo não tem uma manutenção da função... Repare quando eu tenho de meter cozinhas industriais, para responder à ASAE, por exemplo, não posso chamar isto de restauro. Há ali num ou dois sítios há ali uma intervenção mais violenta, porque é impossível que os espaços antigos respondam a 100%, porque há ali casas que se julga terem 300 e 400 anos, portanto, é impossível que satisfaçam os requisitos actuais. Mesmo larguras de portas... eu cheguei a andar, entre aspas, em guerra com o provedor para as pessoas com deficiência, porque em grande parte daqueles sítios os deficientes não entram, mas para proporcionar o acesso dos deficientes motores a todo o lado, também vou perder os valores arquitectónicos que estiveram na origem da manutenção das quintas e se vou meter rampas ou elevadores eu perco os espaços, porque há ali espaços tão exíguos, que se eu lá meto um elevador dentro, o espaço deixa de ser útil. Portanto, é impossível, é incompatível. Portanto há ali toda uma operação de adaptação que não é de restauro, por isso, nós afastamo-nos cada vez mais da ideia de restauro.” (João Rapagão). “Para nós os muros e toda aquela divisão, o não se ver tudo de uma vez, o ir descobrindo, o andar encaminhado, portanto toda essa lógica muito... eu diria romântica, porque tem muito a ver com as memórias que as pessoas fabricam e que tem que ver até com alguma aproximação, a uma ideia que eu detesto, mas que é cada vez mais permanente, que é a ideia de parque temático e que as pessoas procuram muito nos parques de aventura, em que é tudo muito ficcional, mas que é limpo, entre aspas, é como ir ao shopping e não encontrar lixo, nem prostitutas na rua, portanto é muito mais simpático viajar no shopping. Desta ideia toda do mundo limpo e preparado para receber…” (João Rapagão). De facto, cristaliza-se aquilo que são as características valorizadas, acrescentam-se as comodidades e recursos, que as necessidades contemporâneas e urbanas fazem prevalecer, mas suprimem-se outras, tidas como negativas. Neste processo, transforma-se o lugar numa versão daquilo que era, numa recriação sua, mais amigável ao olhar urbano e mais próxima da ruralidade imaginada como tradicional e como “nossa” (cultural e historicamente), mesmo que agora esteja adaptada a novas funções e usos. Aliás, na perspectiva de Sérgio Infante, a propósito do projecto do NRA, espera-se das intervenções no património arquitectónico, que provoquem este tipo de reacções: “Parece que não fizeram quase nada… Mas, ainda bem que mexeram nisto. Está melhor do que antes das obras!” (Infante, 2003, pág. 32). Isto porque se almeja a aproximação do construído ao imaginado, porque se adapta o património ao sonho e às representações que o classificam enquanto tal (num primeiro momento), gerando-se uma aura de familiaridade e naturalidade, em torno do que é produzido com cada “matéria-prima”. Nesta lógica, é maior a identificação com a reinvenção, do que com o “original”. 179 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Em suma, busca-se corresponder às expectativas colectivas de reencontro com o passado, transformando-se os territórios para serem como se sente e imagina terem sido sempre, nos nossos patrimónios simbólicos, nos nossos discursos, nas nossas memórias colectivas. E tal como não nos lembramos do nosso próprio nascimento, colectivamente esquecemos a circunstancialidade, a convencionalidade e a efemeridade, destas ideias construídas, naturalizadas pelas mesmas políticas culturais que as convertem em cultura e, por isso mesmo, as fazem parecer inatas. Posto isto, pode ser assumido que estamos perante um caso de conversão de um enclave de ruralidade residual dentro da cidade, numa sua recriação, em versão destilada, limpa, confortável e adaptada ao aproveitamento e usufruto urbano. Depois de tantos anos de fechamento e alheamento em relação à cidade, o lugar foi aberto e tornado público, propriedade de todos os portuenses. Por ironia, foi precisamente essa sua “virgindade” e “integridade” que suscitaram a sua valorização inicial. Agora o núcleo é da cidade, mas ainda lhe chamam “Rural”, concretizando a ideia urbana da ruralidade, numa versão domesticada do que foi, para parecer que foi assim sempre. Ora, importa então discutir a sua função social e a razão porque justificou este interesse e investimento. Interessa perceber porque é importante para a cidade e de que forma é que se legitima o gasto de 1.838.987,97 euros24 com a sua reconversão e outro tanto na sua manutenção permanente. Nesta linha e recorrendo às palavras dos responsáveis pela sua valorização e transformação, o NRA pretende servir de tributo à memória da cidade. Em primeiro lugar pelo seu passado rural muito recente, já que grande parte do concelho só foi urbanizada na segunda metade do séc. XX e, depois, porque uma larga fatia da sua população, resultante do êxodo rural, tem as suas raízes nas aldeias do Minho e Trás-os-Montes. “Nós na perspectiva da ruralidade, era muito importante também ser o espaço onde muita gente poderia encontrar ligação à sua própria origem fora do Porto, porque para além dos espaços da própria cidade serem rurais até há muito pouco tempo, há uma necessidade de muita gente (...) de origem rural próxima, de geração anterior ou duas, que vinham de zonas rurais e eu penso que o 24 Valor retirado da apresentação Power Point “Metodologia de Construção do Parque da Cidade do Porto”, de Março de 2006, realizada pelo Eng. Francisco Sendas (Director do Departamento Municipal de Espaços Verdes e Higiene Pública da CMP), no Congresso Internacional de Parques Urbanos e Metropolitanos, disponível em http://www.cmporto.pt/users/0/66/FranciscoSendas_79a0958f2144199b769db6b0413ada4e.pdf Esta apresentação foi tratada como material documental, sendo que para mais detalhe pode consultar-se a Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo. 180 Capítulo VI Porto tem essa ligação ao resto do Norte pouco trabalhada. (...) A ligação daquele espaço (NRA) à vida da cidade passava por essas dimensões de documentar do ponto de vista histórico a evolução da própria cidade, mas era um bom pretexto para trazer à tona alguns desses patrimónios, que as pessoas às vezes nem reconhecem como tal e nós só temos de dar o mote para que elas passem a 25 reconhecer.” (Maria João Vasconcelos ). “E tudo isto é memória, o núcleo rural é memória, estar ali, conservada e preservada, através da vontade de alguém ou de um grupo de pessoas. E portanto, aquilo também foi um tributo à memória, a recuperação do NRA, foi também um tributo à memória. Foi por isso que todo aquele trabalho foi feito com muita paixão. Portanto, é importante preservar a memória, eu mesmo tenho muito orgulho em dizer que sou aldeão. E até porque, ouça... até há pouco tempo dizia-se "vou de férias para a Foz!" metiam-se em carros de bois e vinham de Campanhã e dessa zona toda do centro e iam fazer as férias na Foz, como se fosse uma grande distância, de maneira que ainda há pouco 26 tempo metade do Porto era rural.” (Orlando Gaspar ). De facto, a cidade do Porto evoluiu de uma forma particularmente rápida, depois de séculos confinada ao seu núcleo original. Até à segunda metade do século XX, verificava-se que o crescimento populacional não era acompanhado pela dispersão da mancha urbana no território e que em redor do núcleo central antigo, caracterizado por uma elevadíssima densidade populacional, apenas existiam pequenos povoados rurais, praticamente sem construções. Este tardio avanço da urbanização, cristalizada no Porto durante muitos séculos de história, resultou no paradoxal facto de as periferias terem tido um desenvolvimento anterior à ocupação total do território municipal (Matos, 2001). O desenvolvimento das estradas e das linhas de transportes públicos contribuíram para a urbanização de algumas zonas periféricas ao município (como Matosinhos, Gondomar ou Vila Nova de Gaia), onde as rendas e os terrenos eram mais baratos e havia menos entraves burocráticos à construção, muito antes de a sua extensão se ter urbanizado. Assim, entre o núcleo fundador da cidade (hoje considerado o seu centro histórico) e as periferias em desenvolvimento, existia uma vasta coroa de terrenos agrícolas, matas e baldios, apenas pontuados por pequenos lugares (Matos, 2001). As freguesias de Ramalde, Aldoar, Lordelo, Paranhos e Campanhã (hoje integrantes do tecido urbano completamente densificado do Porto) eram compostas 25 Historiadora. Autora do estudo de levantamento patrimonial do NRA e uma das primeiras pessoas que promoveu a sua valorização e conservação, inclusive através da tentativa de torná-lo no Pólo Rural de um eventual Museu da Cidade. 26 Engenheiro Civil. Antigo Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Porto responsável pela iniciativa de requalificação do núcleo. 181 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada por pequenas aldeias e denominadas de “arrabaldes” da cidade. Esta designação dizia respeito à sua situação de exterioridade por relação ao núcleo urbano principal e ao facto de terem um cariz rural. Estes “arrabaldes” tinham duas funções essenciais, a de funcionarem como a “horta” de abastecimento da cidade, mas também como espaço de lazer para os seus habitantes mais abastados. De facto, era nas freguesias ocidentais da cidade que se construíam os palacetes de veraneio para as famílias ricas do Porto irem passar os meses quentes (Fonseca, 1998). A proximidade do mar e da natureza, o contexto campestre, a distância do buliço urbano, dos seus desconfortos e epidemias, favorecia o descanso e era muito apreciado por burgueses endinheirados e aristocratas, como a família do Conde de Vizela (criador da quinta do Mata-Sete), por exemplo. “O arvoredo das freguesias periféricas do Porto, escondia numerosas quintas, propriedades de famílias ricas, que nutriam um particular interesse por estas áreas rurais, reflectindo também o resultado de uma pujante actividade comercial. O gosto pela construção de habitações nos arrabaldes, em espaços amplos, começou a ser bastante frequente principalmente em famílias abastadas, pelo que a ligação ao campo e à propriedade rural foi algo que ficou marcado na paisagem pela imponência das construções então realizadas.” (Fonseca, 1998, pág. 66). Só na década de 50, com a construção da Via Norte e da Via Rápida, da ponte da Arrábida e da zona industrial de Ramalde, foram abertas novas frentes de urbanização. O Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto de 1956 e o Plano Director da Cidade do Porto de 1962, aceleraram esta dinâmica que levou à transferência de uma grande parte da população da cidade para as freguesias periféricas. Este processo funcionou como uma forma de higienização do centro, a braços com problemas de insalubridade, dada a exagerada densidade construtiva e populacional e permitiu também a sua terciarização progressiva (Fonseca, 1998; Matos, 2001). Novas políticas urbanas, autorizaram a descentralização residencial, a proliferação de novos empreendimentos e o aumento da qualidade habitacional, nomeadamente pelo investimento público em habitação social. De facto, diversos bairros sociais, disseminados nas freguesias periféricas, foram inaugurados como fruto destas políticas e a serviço do realojamento de habitantes do centro da cidade. Para dar um exemplo desta evolução repentina, só na década de 60, a freguesia de 182 Capítulo VI Ramalde (hoje a mais populosa da cidade) sofreu um aumento populacional de 41,4% (Fonseca, 1998). Assim, “No período de uma geração, a superfície urbanizada foi substancialmente aumentada e aquilo a que no início do século era habitual chamarse arrabalde ou periferia urbana, tornou-se componente, por excelência, do espaço urbanizado, que vai avançando em detrimento dos espaços rurais mais próximos. Esta expansão urbanística e demográfica, contribuiu para o abandono progressivo da actividade agrícola, transformando toda esta área num espaço eminentemente urbano, cuja posição excêntrica em relação ao centro da cidade do Porto e Matosinhos vai progressivamente diminuindo.” (Fonseca, 1998, pág. 4). Desta feita, a ideia de que a cidade necessita de um espaço de reencontro com o seu passado rural, legitima a valorização do lugar do Beco de Carreiras e posteriormente a sua transformação em equipamento público. O núcleo, na sua versão pública, funciona como um aproveitamento de um espaço degradado que era necessário transformar, aquando da criação do Parque da Cidade (dada a sua localização), mas constitui-se nos discursos (políticos, técnicos, promocionais, etc.) como um retalho do Porto rural, que importa preservar e acarinhar, a bem da saúde identitária da cidade. Este argumento é bem patente, por exemplo, no livro associado à exposição de 1995, “Essas Pedras Quebradas… Permanências da Ruralidade no Contexto Urbano”, realizada para sensibilizar a cidade para o valor do lugar do Beco de Carreiras, na altura em que a valorização do seu potencial museológico (para o pólo 1 do Museu da Cidade) começa a ganhar corpo, ainda pelo trabalho conjunto dos Pelouros da Cultura e do Ambiente, e em que se encomendam os primeiros estudos, levantamentos, pareceres e projectos preliminares. O texto, realizado por um conjunto de historiadores e técnicos da Câmara Municipal do Porto, coordenado pela Dra. Maria João Vasconcelos, fala do projecto de musealização do núcleo, centrando-se precisamente no seu valor patrimonial e no destaque para a importância deste nicho de ruralidade residual, na reconstrução da história da cidade e como referência simbólica para a sua identidade colectiva. Curioso é perceber que no texto é colocada a iniciativa de preservação e valorização do lugar na própria cidade, como se esta fosse o agente mobilizador do projecto, elevado a necessidade inadiável e quase “natural”, no contexto civilizacional em que nos encontramos. 183 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada “O que torna este projecto deveras singular é o facto de ele ser gerado pela cidade enquanto sistema cultural, que desta forma procura manter os seus fantasmas de referência, a memória de si própria. (…) Desta forma, o ritmo biológico da cultura rural, em especial os seus signos e valores. Desperta o fascínio de um tempo antigo que adquiriu um estatuto de raridade, assumindo-se, por sua vez como uma espécie de paradigma perdido que urge retomar. Dir-se-ia que num período civilizacional pós-moderno, aparentemente esgotado de inovação, se retomam os valores de referência do período romântico de oitocentos, no qual o campo, e a província, adquiriram uma função de catarse em relação ao industrialismo então nascente.” (Vasconcelos, 1995, pág. 10). A nostalgia urbana do passado e da vida rural, que talvez nunca tenha existido como se imagina colectivamente, é identificada como o sentimento mobilizador do interesse pelo lugar do Beco de Carreiras, reputado como sendo uma amostra dos tempos idos e da cidade que já existiu, uma saudosa “não-cidade” em que ainda havia espaço para o rústico e para o tradicional. Esta preservação e apropriação pública do núcleo, é então apresentada como uma vitória desta necessidade identitária e nostálgica e como uma garantia do respeito por essa procura, por esse reencontro, por esse louvor ao passado e à história urbana colectiva. A nostalgia funciona como um catalisador da valorização destes espaços de preservação do passado, relíquias que ajudam ao luto e a sossegar a ansiedade perante as rápidas mudanças e a fracturante volatilidade urbana. “De tempos a tempos passo na Vilarinha. (…) Mas, confesso, entro naquela rua com misto de prazer e receio. O prazer de reencontrar a vereda do cemitério, as moradias oitocentistas (…), o fontanário, o Beco de Carreiras, as casas e os canastros da aldeia… O receio de que tudo isto, junto ou separado e em nome do progresso que por aí apregoam, apareça do dia para a noite arrasado ou, o que é o mesmo, achincalhado pela anarquia urbanística a que estamos habituados e a que vamos ficando insensíveis.” (Pacheco, 2002, pág. 33). A função social deste espaço é existir como amostra desse ideário e como a cristalização de uma imagem do passado. Esta, mesmo retocada e falsa, (e talvez por isso) encaixa bem na nossa identificação e com o nosso sonho recordatório. É adorável, agradável, limpa, não lembra trabalho, nem esforço, está ali bem perto (a poucos minutos de carro) e sobretudo é familiar, num duplo sentido. Primeiro porque 184 Capítulo VI é própria para as famílias da cidade, tendo todas as comodidades habituais (casas de banho, iluminação, comércio, serviço de hotelaria, bancos para contemplar a paisagem, relva para desfrutar, etc.), e segundo porque é reconhecível, próxima, relembra a “casa”. Paralelamente, identificamos a função comercial e educativa do espaço, que pelas suas características potencia o valor simbólico dos equipamentos que acolhe. Isto porque o próprio contexto e poder sugestivo do núcleo amplificam o potencial das suas funções educativas e comercias. O centro de educação ambiental encontra no seu seio diversos elementos, pretextos e condições para reforçar o interesse e a atractividade das suas actividades (o espaço das hortas integrado no cenário rural, a cozinha rústica com forno de lenha para as aulas de culinária, todo o património arquitectónico ligado à lavoura, etc.), podendo dizer-se que o conjunto é aproveitado pela alusão à ruralidade e suas conotações ecológicas. As lojas de produtos biológicos, “gourmet” e de comércio justo, bem como a feira semanal, na sua associação a valores como a qualidade, a ecologia, a tradição e a saúde, acabam por ser favorecidas pela aura rural do contexto que, de certa forma, corrobora essa conotação positiva e acrescenta valor simbólico aos produtos. Desta feita, o comércio e o centro educativo, ao mesmo tempo que dinamizam e enriquecem as virtualidades do espaço, alimentam-se do seu ambiente bucólico. A associação do núcleo com estes equipamentos, fundidos num mesmo conjunto, reforça a correspondência simbólica deste universo de valores (ecologia, tradição, qualidade, saúde) à ruralidade, nos imaginários urbanos. Assim, a versão dominante de ruralidade alimentada discursivamente, e veiculada neste tipo de recriações no espaço da cidade, para além de estar associada à memória, está também conotada com a ética de preservação da natureza. A memória e o património, a sustentabilidade e a ecologia, parecem, de facto, acompanhar a ideia de ruralidade, sendo esta sua recriação marcada pela função social de alimentar essa associação. O NRA não só cumpre a função social de preservar a memória da cidade, enquanto seu património histórico e referência identitária, como alimenta a associação da vida rural aos valores que a vida urbana, supostamente, ameaça. A qualidade alimentar, a sustentabilidade ambiental, o consumo consciente e os produtos orgânicos, aproximam-se do ideário pastoral por oposição à ideia de cidade tecnológica, insustentável, plástica e contaminada. Ora, passado e futuro, 185 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada património e sustentabilidade, são afinal os valores associados ao binómio axiológico que cultural e discursivamente legitima o discurso de reinvenção e valorização da ruralidade. Como vimos, a sacralização dos patrimónios cultural e natural, funciona como o reforço da consensualidade em torno da valorização do rural, não só pelo seu potencial comercial, mas como depósito de tudo o que nos arriscamos a perder com o estilo de vida urbano. Assim, o mundo rural, não só se torna atractivo enquanto mercado, como concentra a responsabilidade de preservar o passado e garantir o futuro. O NRA enquanto sua recriação, condensa precisamente o pendor patrimonial, ecologista e comercial, associado à ruralidade, com a vantagem de, sendo um espaço destilado, encenado e acondicionado, poder corresponder ao sonho e às expectativas urbanas de uma forma optimizada e perfeitamente adaptada a um consumo quotidiano, livre dos inconvenientes que a “realidade” acarreta. 3. Reflexões e cruzamentos finais Constituindo uma espécie de campo de fim-de-semana27, que os habitantes da cidade integram nos seus passeios pelo Parque, o NRA tem uma função, de certa forma, complementar ao Mata-Sete, que é mais activo durante a semana, com as actividades educativas para grupos escolares. De qualquer forma, ambos os objectos podem ser aproximados pelo seu carácter recriativo e pelo facto de cumprirem funções bastante semelhantes. O Mata-Sete deve ser perspectivado como uma dupla recriação, em duas épocas diferentes: num primeiro momento de origem privada e inspirada nas modas europeias de valorização do ideário pastoral (séc. XIX e princípio do séc. XX), com um pendor moderno e requintado e, num segundo momento, pela adaptação ao uso público, em que se reforça o seu potencial pastoral e educativo. Esta adaptação e abertura à cidade aproximam os dois objectos, no sentido em que, apesar de terem origens diferentes e terem nascido em épocas distintas, convertem-se ambos em equipamentos públicos com funções comuns. 27 É de assinalar o facto de o NRA ter uma afluência muito superior ao fim-de-semana, pela proximidade com o Parque e eventualmente pela feira semanal de produtos biológicos, o que justifica até que a loja de produtos NaturoCoop esteja fechada aos dias úteis. 186 Capítulo VI Nesta linha, podemos questionar se o NRA não funcionará como uma versão contemporânea e pública do Mata-Sete, no sentido em que acaba por constituir uma recriação da ruralidade adaptada às exigências urbanas, dentro da tendência actual de valorização patrimonial. De facto, a distância temporal acaba por justificar essa diferença fundamental, que consiste no facto de o NRA resultar do aproveitamento de um lugar pré-existente e da sua valorização patrimonial, ao contrário do MataSete, que se enquadra na visão modernista do Conde de Vizela, apesar de tudo, menos saudosista. Ainda dentro desta questão, acrescenta-se a possibilidade de o NRA constituir uma espécie de Mata-Sete democratizado, como um espaço de valorização do imaginário rural, de origem pública e aberto à cidade. Por outras palavras, como o emblema da apropriação mainstream do elitismo pastoralista, outrora reservado às famílias abastadas, sensíveis às modas românticas e com possibilidades de desfrutar da paisagem campestre, sem a associar ao trabalho e à dureza da vida do campo. Esta democratização do ideário pastoral acompanha a abertura do espectro de patrimonialização, que passa a incluir os conjuntos arquitectónicos e as manifestações culturais populares e não apenas monumentais, bem como a massificação do turismo. Por outro lado, sai também facilitada pela facilidade de recuperação e recriação paisagística de um cenário pastoral, isto porque o quadro valorizado, sendo singelo e campestre, acaba por ser de fácil e económica recriação, baseando-se muito na sua “cultura material” (Denis, 1998; Hitchcock, 2000), com a presença de elementos cenográficos domésticos e até corriqueiros (cestas de vime, alfaias, poços, etc.), associados a uma arquitectura simples e popular (chaminés, celeiros, casas térreas, etc.) e à presença da fauna e flora de quinta (hortas, galinhas, árvores de fruto, vinhas, rebanhos, etc.) (Claval, 2003). Acrescentando, pode dizer-se que a cultura material associada ao mundo rural, ganha prestígio e valor simbólico e, consequentemente, utilidade e poder cenográfico, integrando-se nas paisagens urbanas para concretizar os tais quadros pastorais e bucólicos. No entanto, tal como acontece na composição de cenários turísticos, a cultura material aproveitada para a “decoração” dos lugares e, consequentemente, para a exaltação da experiência turística, é cuidadosamente seleccionada, no sentido de alimentar uma determinada dramatização (neste caso) da ruralidade. Desta feita, em ambos os objectos estudados e devido à selecção e 187 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada aproveitamento progressivo do seu potencial cénico, a cultura material “original” dos lugares, difere (principalmente no NRA) daquela que materializa a sua rusticidade na actualidade. A valorização contemporânea do mundo rural, constitui uma generalização de algumas práticas de valorização associadas ao ideário bucólico, que se reforça sobretudo durante o Romantismo, sendo, de facto, muito interessante pensá-la como a abertura às massas de um património simbólico, que num passado recente era reservado a gostos requintados e que, hoje, pelo contrário, é amplamente veiculado pelas políticas públicas. Estas, por via da generalização do discurso na sua dimensão estratégica, apoiam-se na estabilidade destes referentes simbólicos culturalmente enraizados, cuja robustez se deve, em grande medida, ao poder das elites que, ao longo dos últimos séculos, têm contribuído para elevar a ruralidade a bucolismo. Neste contexto e como já foi amplamente exposto neste trabalho, as políticas culturais e territoriais, constroem paisagens, estratégias de desenvolvimento, criam equipamentos públicos e programas educativos, dentro de uma estrutura discursiva multifacetada, que agrega e capitaliza o poder cultural, de um universo simbólico enraizado, generalizando-se eficazmente em todas as esferas da vida social. Ora, o enraizamento cultural da valorização da ruralidade e a aparente consensualidade dos argumentos que a sustentam, justifica-se, em grande medida, pelo facto de os interesses e perspectivas em torno dos territórios, que moldam e movem este discurso, serem as hegemónicas, ou seja, as que estão, não apenas no lado das cidades, mas sobretudo do lado das elites, antes de se generalizarem socialmente. As paisagens concretizam um ponto de vista estabelecido segundo os interesses hegemónicos. As instituições e agências do poder têm um espectro de influência paisagística suficientemente capaz para reformular as paisagens vernaculares que, à partida, não estariam sob a sua égide (mais directamente ligada à monumentalidade, por exemplo). É esse o caso do NRA, que ascende a “paisagem”, no sentido em que se torna um lugar digno de contemplação e fruição e deixa de ser apenas uma amostra de “campo” e espaço de trabalho de lavoura, associado a todos os desconfortos e injustiças sociais que historicamente lhe estão imputados (Zukin, 1991). É como se o campo se elevasse a paisagem, através do condão da intervenção urbanística e da promoção simbólica, que reformula as manifestações 188 Capítulo VI históricas e populares, através da hipérbole ruralista. Constrói-se assim um microcosmos saudosista em que a paisagem é utilizada como um tema visual e em que a descontextualização anacrónica do lugar autoriza um reforço do seu potencial de consumo. A decadência dá lugar à novidade, a utilidade dá lugar ao consumo, o presente dá lugar a um passado actualizado, enquanto os habitantes dão lugar aos visitantes, tanto no NRA como no mundo rural (Zukin, 1991). Voltando ao cruzamento dos casos estudados, é importante reafirmar a sua coerência em muitos aspectos importantes e sublinhar ambos os objectos, como uma recriação urbana da arquitectura rural e da iconografia cenográfica que lhe está associada. Ambas as paisagens ensaiam a reprodução de cenários campestres, mas estão adaptadas a exigências urbanas de comodidade e modernidade, que as afastam da rusticidade tosca e singela. Desta feita, estão transformadas em versões sofisticadas e limpas de quinta, paisagem, quadro rural, em que se combinam cozinhas rústicas e casas de banho modernas, pormenores arquitectónicos populares e com travo a saudade, com apontamentos de design moderno, etc. Disto são exemplos os bancos cobertos de linhas modernas, inspirados nas ripas de madeira dos espigueiros (no NRA) ou a instalação de Maria Nordman no Mata-Sete, composta por uma mesa de xisto ladeada de um bebedouro para pássaros e por um conjunto de ciprestes. Estes elementos contemporâneos e potencialmente ousados, acrescentados aos conjuntos, longe de serem intrusos no meio de edifícios valorizados patrimonial e arquitectonicamente, servem a integração dos lugares no contexto temporal e territorial em que se encontram (a cidade de hoje), ao mesmo tempo que lhes acrescentam requinte. Os detalhes de modernidade aproximam os lugares das expectativas de conforto dos visitantes. Deve ser dito a propósito que, em nenhum dos casos, existe a cristalização fundamentalista do quadro, ou algum puritanismo exacerbado por relação à sua preservação patrimonial. De facto, os objectos não são tomados como sítios históricos sacralizados, que importa manter intactos, pelo contrário, foram sendo aproveitados de forma adaptada (a usos e exigências evolutivas) e foram sendo recriados, pelo acrescento de novos elementos (como a estufa e a cabana no Mata-Sete, as hortas pedagógicas, o picadeiro do NRA, etc.). É esse potencial plástico que reforça a sua força cenográfica e o poder adaptativo às novas funções e exigências, para estar à altura dos elevados standards urbanos de eficiência, conforto, recreação e riqueza iconográfica. Estas 189 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada dinâmicas de preservação selectiva de determinados elementos e sua adaptação aos novos usos, permite reforçar a ilusão de que evoluímos como civilização, sem a perda daquilo que de bom seleccionamos do passado (Park & Coppack, 1994). Neste caso, conservamos o bucolismo rural, excluindo os seus desconfortos e combinando as conveniências da vida urbana moderna. Nestes processos de transformação de paisagens, com base numa rede complexa de imagens, percepções, mitos e estruturas sentimentais associados ao mundo rural, muitos lugares acabam por tornar-se o negativo fotográfico da sua realidade histórica (Park & Coppack, 1994). Lugares decadentes ou disfuncionais, exageradamente povoados ou desertos, transformam-se, através de processos minuciosos de requalificação, restauro e “maquilhagem”, em paisagens bucólicas e adoráveis. É quase como um resgate de paisagens familiares, no que diz respeito às referências estáveis do nosso ideário colectivo (Park & Coppack, 1994; Remy, 2004). A nostalgia ruralista, para além de uma forte dimensão sentimental e cultural e de uma poderosa e lucrativa dimensão comercial e promocional (que lhe é derivada), concretiza-se, de facto, numa vertente cénica, que não pode ser ignorada (Park & Coppack, 1994). O rural é tratado como um espectáculo e usado como um tema, ao qual aludem inúmeros lugares, embalados para consumo recreativo e turístico (Urry, 1990). As encenações e recriações de ambientes rurais acabam por ter, desta feita, grande correspondência com os chamados “parques temáticos”, por se basearem na imaginação e por superarem, muitas vezes, a realidade que se pretende simetrizar (Clavé, 1999). É comum encontrar na tematização uma obsessão pela “autenticidade encenada” (MacCannell, 1973) e pela qualidade da cópia, que resulta no paradoxo de vermos os lugares mais sorridentes na “morte” do que em vida, mais genuínos e credíveis do que o modelo em que se basearam (Baudrillard, 1981; Frenkel & Walton, 2000). Numa época em que se reciclam todos os detritos históricos e os despojos do tempo em passagem, a voragem conservadora assume proporções hiperbólicas ao revitalizar faculdades, estilos de vida e hábitos perdidos, através da sua exacerbação (técnica, ideológica, estética, etc.) (Baudrillard, 1982). Este perfeccionismo está relacionado com dois binómios interessantes que rodeiam as tentativas de recriação: nostalgia/utopia e simulação/dissimulação. Isto porque nascem da necessidade de fazer o luto pela perda, restabelecendo valores 190 Capítulo VI em extinção, suprindo um vazio histórico por suturar, mas estabelecem nessa referência e alusão ao passado, as directrizes para definir uma utopia, um projecto de futuro desejável, um sonho a concretizar. Por outro lado, constituem um ensaio de simulação de um quadro, projectado a partir de referências reais e imaginárias que, pelo seu carácter assumidamente utópico de upgrade da realidade, exige a dissimulação de alguns aspectos mais incómodos e realistas. Pelo facto de vivermos num tempo de grandes transformações, mas também de um aparente vazio histórico, exacerba-se o fetiche pelo valor perdido, um apego ao passado, uma fixação no trauma. A história acaba por funcionar como o último grande mito, pelo poder tranquilizante de oferecer um encadeamento narrativo, num contexto de grande volatilidade. Esta “era da história”, funciona também como a “era do romance”, em que o passado é apresentado fabulosamente, sendo mistificado ao mesmo tempo em que se ensaiam todo o tipo de conservações da sua fugidia materialidade. A nostalgia exige a restituição. (Baudrillard, 1981). “Quando o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido. Sobrevalorização dos mitos de origem e dos signos da realidade. Sobrevalorização de verdade, de objectividade e de autenticidade de segundo plano. Escalada do verdadeiro, do vivido, ressurreição do figurativo onde o objecto e a substância desapareceram.” (Baudrillard, 1981, pág. 14). As cidades revelam muitas dessas simulações, pelo facto de grande parte da arquitectura urbana ser de inspiração histórica e revivalista. As festividades históricas, as reproduções miméticas, as alusões referenciais, as miniaturas e as tematizações, constituem uma espécie de disfarces para a urbanidade contemporânea e um conjunto de esforços para manter um vínculo “umbilical” com estilos de vida em extinção ou, simplesmente, apresentados como extintos nas grandes cidades (Sorkin, 1992). A nostalgia pelo passado revela o descontentamento com o presente, com a suposta perda de valores, a desilusão com a ordem estabelecida e o medo em relação ao futuro. A exploração deste saudosismo nos espaços temáticos, comerciais e musealizados, acaba por ser eficaz por suprir (suposta e aparentemente) a necessidade colectiva de lugares de carácter comunitário, verdadeiramente públicos, com significados estabelecidos colectivamente, livres da instrumentalização privada e sem a planificação e o design calculista que caracterizam as cidades contemporâneas, seus edifícios, equipamentos, etc. (Goss, 191 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada 1993). Por estas razões, a conservação selectiva e criteriosa dos lugares e a criação de ambientes temáticos e históricos, remete para a utopia. Ora, o saudosismo por alguns elementos do passado e a criação de quadros que, baseando-se neles, os ultrapassam em perfeição, sofisticação, segurança e beleza, acabam por revelar as linhas com que se projectam os lugares utópicos, as paisagens desejadas, o mundo perfeito. As simulações e encenações funcionam como uma apresentação de alternativas à realidade quotidiana, pelo que, enquanto paisagens, podem ser lidas como uma expressão palpável do nosso desejo de vida em colectividade (Sorkin, 1992). Num mundo hiper-simulado em que os mapas precedem e engendram os territórios e o real perde a racionalidade, podendo ser virtual, infinitamente reproduzível e em que a noção de viabilidade é muito abrangente e podem concretizar-se materialmente quase todos os sonhos, mesmo que estapafúrdios, a simulação consegue esbater as diferenças entre o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário (Baudrillard, 1981). A simulação assente no passado apresenta uma historicidade genérica, através da imagética pura, que prescinde da realidade e é de imediata apreensão, por estar simplificada em alguns referentes simbólicos e iconográficos convencionais e amplamente disseminados (Sorkin, 1992). Finge-se o que não se tem e dissimula-se o que não se quer ter (Baudrillard, 1981). Sendo que, neste caso, a cidade dissimula as suas carências, com relicários e lugares de celebração mnemónica, simulando paisagens imaginárias. No caso do NRA, por exemplo, em que se aproveita um conjunto pré-existente, é clara a dissimulação de muitas das características e de muitos dos elementos, que se afastam da referência romântica a que se almeja. Por outras palavras, simulam-se ambientes rurais em que estão dissimulados os aspectos incómodos, numa espécie de sanitarização histórica. Esta arquitectura “semiótica”, no sentido em que joga com referências e significados, cria ambientes de falsa familiaridade, mas que simultaneamente se distanciam da cidade quotidiana e “real” (Sorkin, 1992). De facto, o lugar temático destaca-se pela diferença, oferecendo um ambiente próprio à recreação e ao consumo, sendo a ruptura com o habitual, um dos elementos preponderantes na captação de turistas, consumidores, curiosos, etc. (Frenkel & Walton, 2000). A alienação criada pelos ambientes acondicionados e cenográficos e em que, nomeadamente, se incita ao consumo e à recreação, é concretizada precisamente 192 Capítulo VI por uma patine de nostalgia, por um toque carnavalesco e pela essência icónica de se estar “num outro lugar” (Goss, 1993). A atracção pela “fuga” e a necessidade de romper com a rotina da cidade, leva a que os urbanitas ensaiem estratégias de evasão, que vão desde o turismo, às casas de campo, passando pelos espaços temáticos e, neste caso, de recriação de uma ruralidade depurada. Esta associação entre ruralidade e fuga à cidade, reencontro com as raízes culturais e contacto com a natureza, eleva o poder comercial do mundo rural e acrescenta valor simbólico aos seus produtos, alimentares, turísticos, imobiliários, etc. (Bessiére, 1998). A este respeito e, relacionando com os objectos estudados, importa relembrar a importância que os produtos alimentares ditos “da terra” assumem neste contexto. Não deve ser descurado o facto do comércio presente no NRA ser quase exclusivamente dedicado a bens alimentares e, especificamente, de origem biológica, regional ou de “comércio justo” e que nos espaços comerciais da Fundação de Serralves sejam vendidos produtos alimentares ditos “gourmet”, numa lógica de associação com a quinta do Mata-Sete. O valor acrescentado deste tipo de produtos, que tantas vezes ultrapassam a condição de simples alimentos e são oferecidos como lembranças pessoais, ou experiências de degustação para ocasiões especiais, faz com que sejam encarados e utilizados como prolongamentos da “fuga”, após a visita (Bessiére, 1998). O consumo enquanto statement, tomada de posição, afirmação identitária e escolha ideológica, reforça a assunção de que a aquisição deste tipo de produto pode ser entendida como um reforço das estratégias de evasão, naquilo que se parece com uma “fuga de levar para casa”. Como um souvenir da experiência turística, este tipo de produto alimentar, adquirido nos espaços de recriação, tem no local de compra (enquanto contexto com um determinado poder simbólico) um acrescento valorativo importante, por conotação e associação. O seu pendor alternativo (por serem produtos biológicos certificados, tradicionais e dentro da categoria “gourmet” e, portanto, diferentes dos consumidos no quotidiano ou, ainda, por estarem associados ao trabalho de Organizações Não Governamentais com preocupações ecológicas e humanistas) em associação com a alteridade do próprio contexto (que rompe com a cidade), reforça o corte ideológico, a fuga e a rejeição simbólica para com a ordem estabelecida, a norma e o modelo de civilização. 193 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada Continuando e dentro da ideia de ruptura e fuga à cidade, não é de descurar o facto de ambos os objectos estarem integrados nos dois maiores parques urbanos da cidade e de terem ambos uma dimensão educativa importante, ao nível da sensibilização das crianças para as preocupações ambientais. Ora, isto remete, como já referimos, para a associação da ruralidade com os valores ecologistas e com a harmonia entre o Homem e a Natureza, bem como para a missão do mundo rural preservar o que a cidade supostamente se arrisca a destruir e em servir-lhe de exemplo de sustentabilidade, integração pacífica e respeitadora com o meio ambiente, de estilos de vida saudáveis e de baixo impacto contaminante, etc. A ligação dos parques urbanos com a ideia de ruralidade é latente desde a sua origem histórica, no sentido em que estes nasceram da necessidade de preservar ou trazer para o corpo da cidade, alguns dos elementos naturais e ascéticos, associados ao mundo rural, nomeadamente no contexto de forte urbanização resultante da Revolução Industrial (Burchardt, 2002; Jones & Wills, 2005). O parque representa a natureza, numa dimensão controlada, doméstica e confortável, que, tal como o rural, concretiza o controlo harmonioso da natureza pelo Homem (Cauquelin, 2008). O parque, tal como o mundo rural, deve ser acolhedor, esperando-se dele que eleve moralmente o Homem na sua vivência, por este contacto do espírito com a natureza e que funcione como um pulmão verde para a cidade, tantas vezes contaminada e insalubre (Jones & Wills, 2005). “The reason why reformers and planners of the nineteen century chose the park over playgrounds, town squares and amusement complexes had to do with education. (…) The park represented a moral landscape. The crucial ingredient that lent the park this hallowed reputation as a site of redemption and emancipation was the presence of nature itself. With its landscape of trees, meadows, lakes and flowers, the city park represented a conscious attempt to re-create the country in the city. (…) Park popularity pivoted on the concept of nature as a repository of purity, simplicity, harmony and morality – rendering an ideal foil for the perceived degradation, complexity, tension and corruption of city life.” (Jones & Wills, 2005, pág. 45). De facto, em grande medida por influência dos pensadores do Romantismo, generalizou-se a ideia, nas sociedades ocidentais, de que a vida rural (pelo sacralizado contacto com a terra) garante uma vida mais natural e portanto uma existência mais realizada aos indivíduos. Ainda dentro desta linha de pensamento, o 194 Capítulo VI campo é visto como o “lado bom” da civilização, onde ainda existe o espírito comunitário, a existência plena e natural do Homem, a harmonia com a natureza e uma estabilidade moral e familiar preservada. Desta feita, o mundo rural é elevado a refúgio mental e físico para a vida urbana e civilizacional (Bunce, 1994). “O jardim é, com efeito, a imagem daquilo que de melhor existe no homem, ao residir aí, torna-se semelhante ao que o envolve.” (Cauquelin, 2008, pág. 48). Acrescentando, é comum nos discursos mediáticos e populares, tomar-se as questões ambientais como algo que diz respeito a uma outra esfera (que não a urbana) – o mundo rural. Este representa o exemplo de boas práticas ecológicas e por isso mesmo, os parques acabam por funcionar como ensaios de representação do que idealmente deveria ser a paisagem urbana (Crouch, 1994). Não só enquanto espaços harmoniosos, naturais e saudáveis, mas também como espaços abertos, livres e públicos, sobretudo num contexto em que as cidades se assumem como espaços hiper-privatizados e, pelo contrário, os parques urbanos se democratizam progressivamente (Jones & Wills, 2005). A natureza, as paisagens rurais, a arquitectura popular, as pequenas aldeias e a ideia de “campo”, estabelecida culturalmente nos imaginários colectivos, têm influenciado em grande medida o tratamento e intervenções feitas dentro da própria cidade, muito dentro do que são os esforços em lograr maior qualidade de vida e sustentabilidade urbana. A construção de parques, a preservação de espaços verdes, a construção de subúrbios ajardinados, entre outros exemplos, funcionam como tentativas de aproximar a paisagem urbana às referências paisagísticas rurais e reflectem também a influência dos valores ambientalistas nas cidades (Bunce, 1994). Por este motivo também, procurar as manifestações destas dinâmicas no corpo da cidade, não deixa de ser importante, dentro da linha de perceber no território as influências, não só dos discursos, estratégias políticas e modas dominantes, mas sobretudo das grandes linhas culturais, axiológicas e históricas do nosso tempo. As exigências sociais, logísticas, políticas, económicas das civilizações, invariavelmente articuladas ao campo das ideias, têm influência nas paisagens e na configuração física do mundo. Para perceber esta relação é importante confrontar a realidade empírica com a sua dimensão teórica, reflexiva e discursiva. Por outras palavras, é importante cruzar as concepções que 195 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada colectivamente se tecem em torno do mundo e a forma como estas são projectadas na paisagem (Duncan, 1990). Desta forma, ensaia-se nesta reflexão a articulação entre a valorização de uma ruralidade bucólica, alternativa à cidade, com aquilo que são as crises, necessidades, ansiedades e desejos da civilização, bem como com um exemplo de sua influência nas paisagens urbanas (os espaços de recriação e reencontro com o rural romantizado). Escolhemos procurar estes impactos na paisagem, concretamente na paisagem urbana e, mais precisamente em paisagens “fantasiosas”, pela urbanidade do discurso (como já foi referido), pelo poder deste tipo de lugares imaginados em sugerir as utopias colectivas e em definir, por contraste, aquilo que não se quer para os territórios (como também já foi exposto), mas, antes disso e simplesmente, pelo poder simbólico das paisagens. A paisagem é um dos elementos centrais de um sistema cultural, por funcionar como uma espécie de autobiografia das sociedades. Esta, mesmo que seja escrita inconscientemente, é orquestrada pelos seus mentores. Assim, enquanto composição de diferentes objectos, este texto ou sistema significante, comunica um sistema social, revelando sobretudo o que os poderes ideológicos dominantes querem que se reitere materialmente. A paisagem reifica e incorpora, de forma aparentemente fixa, as linhas ideológicas do discurso hegemónico. No entanto, uma espécie de “amnésia cultural”, provocada pela naturalização do discurso e pela habituação quotidiana às paisagens, mascara o seu carácter ideológico e estratégico, ao mesmo tempo que reforça o seu poder (Duncan, 1990). Vivendo nós num mundo hiper-visual, em que tudo é engolido pela voragem imagética e até os territórios físicos se tornam objectos de consumo contemplativo (através da generalização de actividades como o sight-seeing, por exemplo) e de reificação iconográfica, as paisagens, enquanto matéria visual e recreativa, são instrumentos e recursos poderosos (Brett, 1996). Ora, se pensarmos na importância estratégica, económica e cultural que o turismo adquire na actualidade, acabamos por reforçar a relevância do poder de produzir paisagem e associá-la aos esforços que, um pouco por todo mundo, têm sido feitos para, através da requalificação dos territórios, lograr distintividade, competitividade, valorização patrimonial, correspondência para com as representações sociais em redor dos lugares, da natureza, etc. (Urry, 1995). 196 Capítulo VI De facto, políticos, comunidades locais, técnicos, entre outras entidades, vêm sendo sensíveis à importância estratégica de melhorar e promover a imagem física e simbólica dos territórios, no sentido de incitar ao seu consumo visual e turístico, dentro dos mercados regionais, nacionais e globais fortemente competitivos (Urry, 1995). O trabalho de produção de paisagem está, assim, suportado por interesses económicos e orientações estratégicas, bem como por patrimónios simbólicos e culturais, habilmente geridos e utilizados, na composição de quadros que se pretendem atractivos, competitivos e, portanto, fiéis a todas as expectativas. “The spatial consequences of combined social and economic power suggest that landscape is the major cultural product of our time.” (Zukin, 1991, pág. 22). Pelo seu poder, é importante perceber as “mensagens” transmitidas pela paisagem e a forma como estas são dadas a ler, ou seja, é eminente desconstruir o significado das paisagens e a sua retórica (Duncan, 1990). Tal como nos propusemos a fazer nesta etapa da reflexão, para chegar à desconstrução dessa retórica, é importante que se tenha em conta o impacto físico, a materialidade e efectividade do discurso, bem como a forma como este é inscrito na paisagem. Pegando na paisagem como um texto, pretende ler-se a mensagem e identificar as figuras de estilo usadas para transmiti-la: as alegorias e alusões, as representações do todo pela parte (supostamente) representativa, ou as miniaturas, as repetições, as hipérboles, etc. (Duncan, 1990). Desta feita, se olharmos para os objectos paisagísticos estudados, percebemos que uma imagem de ruralidade limpa, ordenada, recreativa, educativa e ecológica, é veiculada, por via de uma retórica que se faz valer de alusões à arquitectura popular campestre, à hipérbole da sua iconografia rural simplificada (chaminés, espigueiros, cabanas, hortas, entre outros elementos amplamente disseminados socialmente em associação à vida no campo) e à metonimia, já que, acaba por sugerir-se que estes lugares figuram em representação da totalidade do mundo rural. As paisagens, enquanto produtos de interesses, poderes, conveniências e hegemonias, acabam por funcionar como narrativas moralizantes e por ser normativas e prescritivas, no sentido em que concretizam materialmente e de forma intencional e orquestrada, as orientações ideológicas de que são fruto (Brett, 1996). 197 As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada “This double movement is a profound one: architecture is always dream and function, [an] impression of a utopia and instrument of a convenience.” (Barthes, 1979, pág. 6). Por isso mesmo, a sua análise possibilita o acesso às orientações que a moldaram enquanto projecto, sendo uma janela para os valores, necessidades e motivações dos seus autores. “A direct study of the physical manifestations of heritage – quite literally its construction – reveals something of the values and ideological functions of the concept.” (Brett, 1996, pág. 12). Falar de paisagem é falar de imaginação, sendo que no caso dos objectos em estudo, esta ligação é ainda mais clara. Urbanistas, arquitectos, artistas, trabalham todos com o imaginário como matéria-prima. Desta feita, sai reforçada a importância da evolução dos imaginários, precisamente porque a evolução das imagens, representações, projectos e ideologias que precedem as paisagens, resulta na evolução dos territórios e portanto até das sociedades. Assim, tratar a cidade imaginária é tratar do seu tecido urbano e da forma como se organiza o seu espaço social, os seus quotidianos, a sua existência concreta (Augé, 1997). “Imagination is after all the place where our landscapes begin” (Hoppkins, 1998, pág. 79). 198 VII. Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais. O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo. Sem data, Bernardo Soares (Fernando Pessoa). 28 Após percorrido um intenso caminho de questionamento e desconstrução do discurso de reinvenção da ruralidade, importa recapitular brevemente as principais ideias e concretizar os contornos do projecto de ruralidade veiculado. Ou seja, importa fazer desembocar este percurso reflexivo em torno do discurso, no projecto que este faz pairar sob os territórios (quase como um programa que impõe directrizes funcionais e estéticas) e que acaba por orientar as expectativas e políticas de desenvolvimento. Assim e antes de mais, deve ser reforçado que tomámos como objecto de debate o discurso de valorização da ruralidade, num quadro de simultânea generalização da ideia de “crise” funcional, económica e demográfica nas áreas rurais. Assumimos a intenção de discuti-lo teoricamente e de forma genérica, para poder pensá-lo no seu carácter desespacializado e abstracto, sem ter de circunscrevê-lo às circunstancialidades de um contexto ou território. Naturalizado, disseminado e homogeneizador de todas as ruralidades, que nele partilham características, crises, soluções e recursos, o discurso é veiculado em diversas esferas, sendo difícil abraçar analiticamente toda a sua complexidade. Dividido e discutido em três dimensões fundamentais, o discurso revela-se nas suas múltiplas sobreposições de registos (político e técnico, cultural e artístico, promocional e comercial), no sentido em que vive de um jogo de dependências mútuas entre diversas vozes, que o instrumentalizam e alimentam simultaneamente, reforçando o seu poder e coerência. Simplificando, o discurso é concretizado estrategicamente por um conjunto de políticas de desenvolvimento rural, baseadas 28 Excertos retirados do “Livro do Desassossego, por Bernardo Soares” (Vol. II). Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada num potencial patrimonial atribuído à ruralidade e legitimado pela sua enraizada romantização cultural, enquanto, no processo, institucionaliza esta valorização e ajuda a “vender” o mundo rural e um conjunto de produtos que lhe estão associados. Desta feita, mesmo que em âmbitos e registos diferentes, salta à vista a unanimidade em torno da valorização patrimonial da ruralidade romantizada e do seu potencial comercial. A robustez deste discurso está fortemente relacionada com a consensualidade de dois valores transversais à axiologia das sociedades ocidentais e que funcionam como poderosos argumentos a favor da valorização da ruralidade. O binómio cultura/natureza, condensado na sacralização dos patrimónios culturais e naturais e materializado nos esforços de sua preservação, centraliza a ruralidade enquanto reserva do que está em risco nas cidades e no nosso tempo histórico. Nesta lógica, precipitam-se as missões fundamentais para as áreas rurais, no que se configura como um programa de cariz conservacionista para a ruralidade: preservar o passado (a memória colectiva, as tradições, as identidades culturais, a coesão social, etc.) e garantir o futuro (a sustentabilidade ambiental, a chave da harmonia das relações entre Homem e natureza, etc.). Fazendo sentido enquanto contraponto à cidade e a um modelo de desenvolvimento insustentável, sendo moldada pelas expectativas urbanas de consumo e evasão, estando orientada para o mercado urbano e favorecendo um conjunto de interesses que lhe são externos e que remetem para a cidade, esta ruralidade deve ser encarada como um projecto urbano. Desta feita, assumimos a urbanidade do discurso e, por isso mesmo, fomos ao encontro de exemplos de sua materialização e alimentação na anatomia da cidade, para perceber como se desenha e inculca nos imaginários urbanos este sonho ruralista. Este percurso serviu para explorar a assunção da urbanidade do projecto e para agregar, pela sua remissão a uma fonte comum, um conjunto de questões e temáticas, habitualmente tomadas de forma divorciada, mas que brotam do discurso maior de reinvenção da ruralidade. Assim, foi nossa intenção construir um quadro teórico coeso, organizado e clarificador, que servisse a interpretação das múltiplas realidades empíricas associadas ao discurso/projecto de ruralidade reinventada (suportes, manifestações do mesmo, consequências, seu consumo e promoção, etc.). 200 Capítulo VII Posto isto, consideramos que grande parte dos objectivos da pesquisa foram sendo cumpridos ao longo do desenvolvimento desta dissertação e que resta, sobretudo, concretizar de forma mais directa e sistematizada, as linhas que compõe o projecto de ruralidade veiculado pelo discurso e adiantar algumas das suas possíveis consequências para os territórios. Por outras palavras, importa sistematizar os contornos da ruralidade depurada, que se impõe por via destas dinâmicas (discursivas e portanto políticas, culturais e comerciais), para esclarecer o que é esperado das áreas rurais e o que podem estas esperar neste contexto. Para isto, enunciaremos as principais ideias e conclusões a destacar do percurso desenvolvido, já que toda esta discussão serviu para ir desvendando este projecto, por via da desconstrução do discurso que o tece, difunde e concretiza. Que ruralidade é esta, a que chamamos de “reinventada”? Quais os seus contornos? Que consequências parece precipitar para as áreas rurais? São questões que têm resposta por via da sistematização das conclusões a extrair desta reflexão e que importa ver satisfeitas. 1. Os contornos desta ruralidade reinventada. (o que se espera das áreas rurais) Em primeiro lugar importa reforçar que o interesse crescente na ruralidade, que é visível em diversas esferas da vida social e que foi amplamente explorado ao longo deste trabalho, é fortemente selectivo, dizendo respeito a uma versão específica e simplificada de mundo rural. É um olhar, um interesse ou um discurso, que exclui e enfatiza determinadas dimensões da ruralidade e, neste processo de destilação, depura as características idílicas que melhor servem de contraponto à urbanidade dominante. Desta feita, assistimos a uma simplificação da ruralidade e à sua conversão naquilo que é amigável dentro dos parâmetros dominantes. A diversidade e complexidade dos territórios rurais são simplificadas discursivamente, para reforçar uma ruralidade coesa e de apreensão imediata. Nesta lógica, as paisagens mesmo sendo apresentadas como reais e acessíveis, históricas e patrimoniais, passam a fazer parte do domínio dos mitos. Isto porque ganham protagonismo e valor, ao estarem fora do tempo e da norma (pela aura de imutabilidade de que gozam e por funcionarem enquanto alteridade) e porque são destiladas exaustivamente até ao referente essencial que facilita a promoção, o 201 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada entendimento, a estandardização, o consumo e a repetição (Santana Talavera, 2002). Esta é uma ruralidade depurada e simplificada. Esta simplificação e adaptação às expectativas de conforto e consumo urbanos, não só é clara nos casos de recriação estudados empiricamente nesta pesquisa, como é comum em áreas rurais convertidas em destino turístico, alargando-se discursivamente à ruralidade representativa. Os lugares (pela recriação ou turistificação) e a ruralidade como categoria territorial (nos discursos e representações culturais) vão se afastando dos elementos objectivos que os ancoram a um contexto (geográfico, social e histórico), ao mesmo tempo que se moldam ao ideal rural (Santana Talavera, 2002). Assim, assistimos à difusão de uma versão limpa e amigável da ruralidade, em que se excluem os desconfortos do trabalho agrícola, a insalubridade dos animais, a decadência ou a modernização das actividades produtivas, etc. Esta ruralidade cómoda aproxima-se do ideal rural que, afinal, é a matéria-prima deste discurso e o arquétipo de perfeição ruralista que paira sobre os territórios e orienta os seus esforços de reinvenção. Desta feita (e como vimos no casos empíricos analisados), dissimulam-se determinados aspectos, menos condizentes com o modelo de ruralidade romantizada (a decadência e insalubridade do NRA, por exemplo) e simulam-se outros, para compor o quadro (enormes equipamentos agrícolas como um celeiro e um lagar para uma produção quase inexistente, no caso do Mata-Sete). Esta é uma ruralidade idílica. Outro aspecto que nunca é demais sublinhar, é que o apuramento, a valorização, a promoção e o aproveitamento desta ruralidade, tem um carácter externo e que as preocupações institucionais com as questões rurais brotam, sobretudo, daquilo que são as necessidades urbanas. Este projecto de ruralidade tem um programa funcional, uma configuração paisagística e um valor simbólico e económico que respondem às expectativas dominantes. Em todas as dimensões do discurso que a precipita (nas esferas política, cultural e económica), nos valores sociais que legitimam a suas “novas” funcionalidades, nos circuitos de sua gestão e consumo, etc., esta ruralidade é desenhada por mãos alheias. “De tudo o que ficou dito anteriormente podemos concluir que as políticas para o mundo rural em Portugal ao mesmo tempo que reconhecem (e materializam) 202 Capítulo VII a importância desse mesmo mundo para a sociedade entendida globalmente e que para ele propõem estratégias de desenvolvimento social e económico, acabam por dar resposta quase exclusivamente às necessidades criadas externamente. (…) a ênfase na protecção e preservação do ambiente e da cultura rurais, tendo como objectivo explícito a promoção do turismo, do recreio e do lazer revela uma atitude institucional de reinvenção do rural que não é compatível, na maior parte dos casos, com as aspirações, interesses e necessidades das populações locais. “ (Figueiredo, 2003 a, pág. 16). “O rural proposto pelas políticas de desenvolvimento nacionais e comunitárias é (…) uma aposta num rural que aparentemente apenas existe na imaginação de largos sectores da população urbana e dos técnicos responsáveis pela elaboração e implementação dos programas e medidas de desenvolvimento.” (Figueiredo, 2003 a, pág. 16). Esta é uma ruralidade urbana. Desta feita, faz sentido dizer que esta ruralidade, mais do que uma categoria territorial, uma paisagem simbólica ou uma bateria de representações, destaca-se enquanto recurso. Um recurso para reinvenção das áreas rurais e para a reversão da “crise” que lhes está associada. Um recurso para a indústria do património e do turismo, em permanente renovação e sempre em busca de novos mercados e produtos. Um recurso para o capitalismo, que a reaproveita sob novas lógicas de rentabilização, após um período de desadequação funcional. Um recurso para a cidade, enquanto bem de consumo, mercado, referente, ponto de fuga, contraponto, alteridade, etc. Esta ruralidade é um recurso. Acrescentando, há que apontar um outro traço essencial para compor esta ruralidade desejada – a sua aura de imutabilidade. O carácter genérico, descontextualizado e arquetípico que a define, faz como que se olhe para o mundo rural como um “fóssil”, em que estão cristalizadas as boas práticas de um passado romantizado, ou como um enclave (felizmente) intocado pelo progresso. A vantagem ilusória desta ruralidade e o seu poder enquanto contraponto à cidade e à civilização, prendem-se precisamente com o facto de esta funcionar como uma espécie de variável constante que serve de referência no caos. Neste contexto, o “atraso” evolutivo e a suposta estagnação do mundo rural são convertidos discursivamente numa mais-valia. E tendo em conta esta 203 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada valorização da “estabilidade” rural, chega a ser paradoxal constatar que, na verdade, este mesmo processo de reinvenção simbólica e estrutural é, em si mesmo, a demonstração cabal da falsidade dessa imutabilidade. Já que na verdade, as áreas rurais não são de forma nenhuma estáveis ou imutáveis, ao contrário desta ruralidade arquetípica e mitificada. Esta ruralidade é imutável. Ora, esta ausência de historicidade, enquanto qualidade conservacionista das áreas rurais, remete para ideia de que estas devem funcionar como uma espécie de reserva ecológica e cultural. O mundo rural deve ser uma reserva da ruralidade, enquanto arquétipo cultural que condensa estilos de vida, valores, práticas, relações sociais, identidades, etc., ou seja, os elementos que, supostamente, estão em vias de extinção nas sociedades ocidentais. Funcionando como um depósito daquilo que se perspectiva e constrói discursiva e culturalmente como rural e sendo mais fiel a paisagens imaginadas do que a paisagens concretas, esta ruralidade é pautada por um conservacionismo selectivo e muito associado ao chamado ideal rural (aliás como é patente no caso do NRA). O mundo rural representa, desta feita, uma reserva natural e ecológica, uma reserva patrimonial, mas transversalmente uma reserva moral/moralizante, num planeta em risco e num mundo carente de referências e “bancos de estabilidade”. Por outro lado, faz sentido enquanto reserva de si próprio, no sentido em que a sua valorização é estimulada, em primeiro lugar, pela suposta iminência do seu desaparecimento. Ora, se tivermos em conta a sua associação com os valores em risco na contemporaneidade, a sua fragilidade demográfica e evolutiva e a obsessão patrimonialista que caracteriza as nossas sociedades, a sua elevação a reserva é, mais do que uma valorização, um repto e a atribuição de uma função (Figueiredo, 2003; 2003 a; 2003 b). Esta ruralidade é uma reserva ecológica e cultural. Essa ruralidade a conservar tem, como foi dito anteriormente, duas dimensões fundamentais – a patrimonial e a ecológica – e, nestes âmbitos, destacase também pela sua utilidade recreativa e consumível. Isto porque está muito associada ao turismo e a actividades de lazer, normalmente relacionadas com a natureza ou a gastronomia, funcionando como um pretexto, um suporte e um espaço de consumo (Urry, 1995). Para além da terciarização e turistificação das áreas rurais propriamente ditas, que deixam de ser produtivas e passam a servir de palco para o 204 Capítulo VII consumo, a ruralidade, enquanto referente simbólico com uma carga muito positiva, é instrumentalizado para fazer vender todo o tipo de produtos, desde bens alimentares (de origem rural ou não) até condomínios de habitação, clínicas e casas de repouso, mobiliário, equipamento para jardins, etc. Esta ruralidade é consumível. A ruralidade produtiva deu lugar à ruralidade referencial, patrimonial, simbólica, lúdica e, portanto, consumível, mas também à ruralidade educativa. Já que, enquanto reserva, é um palco para o contacto urbano com o (que é construído como sendo o seu) passado, com as raízes e as tradições, mas também com a natureza e as boas práticas ecológicas. A associação entre ruralidade e educação ambiental é muito estreita (nomeadamente nos dois casos empíricos estudados) e a sua importância enquanto referência cultural, do que devem ser as relações entre o Homem e a natureza e até dentro do seu próprio âmbito comunitário, continua a pairar sob a cidade (tida como individualista, insustentável, desvinculada…). O rural funciona como exemplo moralizante e também como o “último” ponto de contacto do Homem urbano com a (ideia de) natureza. Esta ruralidade é educativa. Por todas estas razões, o mundo rural é visto como um refúgio ou um escape, um contexto apartado dos desconfortos quotidianos, onde é possível encontrar a paz e a qualidade de vida. Quer como paraíso de fim-de-semana, quer como “valor refúgio” que apazigua as consciências e mantém a esperança no futuro, funciona como um santuário ou um ponto de fuga, para as ansiedades urbanas e da civilização. Enquanto referência, reserva ou alteridade, esta ruralidade é um escape para a urbanidade hegemónica. Assim, o rural imaginário torna-se essencial para a saúde da cidade real, premente, dominante, omnipresente (Urry, 1995). Esta ruralidade é um escape. De qualquer forma, se esta ruralidade ganha centralidade e valor enquanto contraponto à cidade, não chega a alcançar o estatuto de alternativa real, no sentido em que não se verificam fluxos de êxodo urbano significativos (pelo menos nos países do Sul da Europa), nem se apresenta como um modelo territorial e de desenvolvimento passível de funcionar como um substituto estrutural viável, no contexto actual. Por outras palavras, apesar de discursivamente ser apresentada como desejável e de constituir uma referência comparativa, para as vozes que alimentam o criticismo que rodeia o nosso modelo urbano-cêntrico de organização 205 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada social e económica, esta ruralidade não se precipita como uma proposta viável de alternativa. Esta ruralidade funciona como alteridade, mais do que como alternativa. Sendo uma referência, um arquétipo e um modelo de território depurado e radicalizado, esta ruralidade é mais “rural” do que a própria realidade. Enquanto construção idealizada, ultrapassa a corriqueira materialidade dos lugares concretos, dos quais se espera uma aproximação ao mito, sob pena de não sobreviverem à exigência da comparação. Desta feita, quer nos cenários de recriação estudados, quer nas concepções discursivas em torno das áreas rurais, é dado um destaque à cultura material, aos estilos arquitectónicos e decorativos, às iconografias e às funcionalidades que servem a dramatização da ruralidade real. Os territórios rurais traduzem-se, assim, em espaços hiper-rurais, para facilitar a sua leitura, o seu consumo e a sua performance, enquanto tal. Esta é uma ruralidade hiper-rural. Importa ainda reforçar a ideia de que estamos perante uma versão democratizada da ruralidade valorizada, no sentido em que, apesar de se ter massificado e não estar mais reservada a uma elite de gosto refinado (como no passado), continua a ser um “valor” e a ser elevada a objecto de culto, sacralização, fruição e conservação. Estando longe do património monumental e sendo próxima dos patrimónios vernaculares, sendo de fácil recriação, encenação e dramatização, estando presente em diversas esferas da vida social e quotidiana, no espaço da cidade e no mercado de consumo (em associação a todo o tipo de produtos), a ruralidade idílica está democratizada. Esta é uma ruralidade democratizada. Contudo, o mesmo não pode ser dito da sua rentabilização enquanto mercado, valor capitalizável, território, solo ou força produtiva, que não tem revertido a favor do desenvolvimento local e regional, como seria desejável, e tem pouco de endógena ou redistributiva. A propósito, importa questionar quais as consequências deste processo de reinvenção da ruralidade para os territórios rurais em concreto, ou seja, urge enunciar os possíveis impactos deste modelo de ruralidade que, como vimos, tem orientado as políticas territoriais. Se os territórios são incentivados a cumprir este programa, a concretizar este projecto e a corresponder às expectativas urbanas, é sem dúvida importante conjecturar a respeito dos resultados da sua aplicação. Enquanto solução para a 206 Capítulo VII crise do mundo rural e bálsamo para a falta de perspectivas de futuro, esta reinvenção surge (supostamente) para contrapor o seu desaparecimento. No entanto, podemos perguntar qual o preço desta ressurreição e se esta não será, em si mesma, um desaparecimento do rural real, que precipitou esta valorização num primeiro momento e cuja decadência tem sido tão lamentada (Figueiredo, 2003 a). Assim, sabendo o que é esperado das áreas rurais, importa discutir o que podem estas esperar neste contexto. 2. As possíveis consequências deste projecto de ruralidade. (o que podem as áreas rurais esperar neste contexto) As possíveis consequências deste projecto estão obviamente relacionadas com a sua orientação e depreendem-se pela programação funcional que lhe está associada. Neste sentido, podemos especular em torno das suas diversas possibilidades, por entre esta recapitulação das propostas que discursivamente se apresentam às áreas rurais. Antes disso, importa salvaguardar que aquilo que aqui se ensaia é uma reflexão acerca das eventuais consequências da concretização do projecto de ruralidade veiculado pelo discurso, num plano, mais uma vez, genérico e desespacializado. Isto porque, como já foi dito, pretende discutir-se o discurso e seu projecto de ruralidade (e neste ponto as suas possíveis consequências) de forma abrangente e genérica, já que é desta forma que são apresentados como panaceia para as áreas rurais em crise. Não queremos, também aqui, circunscrever a reflexão à circunstancialidade de um lugar concreto, de um projecto particular ou de um exemplo específico. Estando desconstruído o discurso e desenhado o seu projecto para todos os territórios que cabem na sua definição de crise, queremos aqui pensar e adiantar as suas sequelas prováveis, de forma igualmente aglutinadora e abrangente. Por outro lado, importa também referir que, sendo este um projecto de ruralidade em aplicação e, portanto, ainda em desenvolvimento, qualquer tentativa de adiantamento dos seus resultados, acaba por ser conjectural. Remetendo para o que foi dito anteriormente, este processo de reinvenção da ruralidade favorece uma simplificação, no sentido em que contribui para que a complexidade das realidades territoriais seja reduzida a uma versão 207 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada “monocromática” e linear, que seja de fácil apropriação e leitura. Não é só a ideia de ruralidade que se estreita, os lugares também são reduzidos ao denominador comum estabelecido pela ruralidade idílica, por via da delapidação dos seus múltiplos significados, grupos e funcionalidades. Por outras palavras, a ruralidade patrimonial, recreativa e consumível agiganta-se, ao ponto de ocultar, ou passar a representar, todas as outras realidades rurais, ao mesmo tempo que os lugares, que antes acumulavam diversos usos e apropriações, correm o risco de afunilar para ir de encontro ao programa discursivamente estabelecido. Constrói-se discursivamente uma imagem agregadora da ruralidade, ao mesmo tempo que, para aproveitar esta tendência cultural de valorização do rural, se promovem os territórios dentro desta lógica simplificadora. Desta feita, espera-se do mundo rural que corresponda à ideia sintética do ideal, que domina os nossos imaginários colectivos, e negoceiam-se visibilidades locais, por via destes códigos, numa tradução redutora das diversidades territoriais. Esta simplificação acaba, portanto, por condicionar o olhar sobre as localidades, a sua gestão, a sua promoção e as expectativas externas e internas, que se tecem em torno das paisagens e das suas perspectivas de desenvolvimento. Simplificação. Esta simplificação pode acarretar uma homogeneização, se pensarmos que para de ir de encontro ao arquétipo de ruralidade, não só é provável uma redução da complexidade territorial (que facilite a leitura e a promoção dos lugares), como se pode cair na tendência de normalizar ou estandardizar as paisagens, as práticas, os produtos, etc. Nesse caso, ao invés de prestigiar e rentabilizar as particularidades locais, este projecto estaria a estimular a sua aproximação e adaptação à ideia de rural estabelecida, ao quadro idealizado e à norma de ruralidade apreciada. Mesmo que ao nível paisagístico e cultural não se venha a verificar esta tendência, pelo menos a nível funcional a homogeneização é esperada, já que, a aposta em actividades terciárias que rentabilizem e promovam os patrimónios culturais e naturais é incentivada, quase de forma indiferenciada. Homogeneização. Nesta linha, há que assinalar a forte possibilidade de exacerbação cenográfica dos lugares para corresponder ao quadro de ruralidade idílica promovido. A reconfiguração paisagística, por via da renaturalização do meio e do restauro arquitectónico do edificado tradicional, pode, de facto, cair no recurso 208 Capítulo VII exagerado a elementos rústicos e na tematização. Os lugares, dentro de uma lógica decorativa e cenográfica, são dramatizados para evocar costumes perdidos, práticas agrícolas ancestrais, memórias familiares, estilos de vida comunitários, etc. Convertendo-se facilmente em materializações de uma narrativa de ruralidade, engolidos pelo pastiche e pelo tema que dá mote à encenação, os lugares podem desaparecer por detrás da estetização, ficando descaracterizados e vazios de significado. Exacerbação cenográfica. Tematização. Outra possibilidade associada prende-se com a aura de imutabilidade que rodeia esta noção de ruralidade e concretiza-se no risco de cristalização das áreas rurais. Ora, se para este projecto é central a ideia de eternidade e estabilidade do mundo rural, como reserva natural e cultural e como referência sólida num mundo em rápida transformação, não é despropositado conjecturar esta tentação de “congelar” e museificar os lugares, para que seja materializada essa ilusão de perenidade. Tal como nos centros históricos das cidades, nas áreas rurais, a patrimonialização pode vir acompanhada da tentativa de parar a evolução paisagística dos lugares, para que a sua “espontaneidade” não prejudique a preservação das características e dos ambientes que são valorizados. Desta feita seleccionam-se os traços que melhor correspondem às expectativas idílicas e, da mesma forma que se amplifica o seu poder de sugestão cenográfica, cristaliza-se a sua materialidade sob o argumento (sacro) de conservação patrimonial. Cristalização. Com a delapidação das actividades agrícolas e, assim sendo, da função produtiva das áreas rurais, acentuam-se os estímulos à aposta no turismo e noutros serviços relacionados com o seu potencial recreativo e patrimonial. Os territórios rurais passam a espaços de consumo e, neste processo de terciarização, aprofundase a desestruturação das sociedades camponesas, já muito fragilizadas pelo êxodo, pelo envelhecimento, pela miséria, pela decadência do seu modo de vida secular e pela dominação externa dos seus destinos. Por outro lado, a terciarização pode servir para fixar a população mais jovem e qualificada, que pretende romper com a tradição agrícola e apostar em novas oportunidades de negócio e emprego. 209 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada De qualquer forma, passagem de espaço de produção a espaço de consumo, a terciarização, mas principalmente um eventual desaparecimento da agricultura, podem contribuir para a descaracterização dos lugares e desvirtuação identitária das comunidades locais. Ora, simplificando e reduzindo a complexidade das realidades territoriais para facilitar a leitura da sua ruralidade exacerbada, cristalizando a sua evolução paisagística para preservar a sua aura de perenidade, erodindo as suas particularidades para lograr uma aproximação à norma ou ao standard de ruralidade e substituindo a sua actividade produtiva principal por novos serviços, não é arriscado prever uma descaracterização dos contextos locais em favor do projecto de ruralidade dominante. Terciarização. Descaracterização. Com a prevalência do aproveitamento lúdico e turístico da ruralidade, aumenta a possibilidade de conversão do mundo rural numa espécie de colónia de férias, numa reserva aberta a visitantes, num bairro de segundas residências ou num povoado de “novos rurais”. Destas transformações demográficas e turísticas podem advir dinâmicas especulativas em torno do valor do solo e dos víveres, que prejudiquem as comunidades locais. De facto, com o interesse externo e com o reforço do valor simbólico das localidades, pode esperar-se um aumento do preço dos terrenos, a inflação dos preços dos serviços e dos produtos no comércio local e, consequentemente, um processo de exclusão progressiva da população local. Desta feita, não se conjectura apenas uma gentrificação, mas também um aumento da conflituosidade de interesses, derivada da diversificação social dos lugares. Com a abertura das comunidades rurais a novos habitantes e visitantes, a nova funcionalidades, a diferentes usos e expectativas de desenvolvimento, estão criadas as condições para que se intensifiquem os conflitos de interesses. Para dar alguns exemplos, se para as comunidades locais, as vias de comunicação são essenciais ao desenvolvimento, para os “novos rurais”, turistas ou proprietários de segundas residências, o isolamento é um factor positivo, que garante a preservação das características do quadro e a sua imutabilidade; se para as populações autóctones a maquinaria agrícola facilita o trabalho da lavoura, para os externos desvirtua a paisagem pastoral… 210 Capítulo VII Gentrificação. Conflitos de interesse. Tendo em conta este rol de possíveis consequências e considerando a externalidade da produção e gestão destas dinâmicas de reinvenção do mundo rural, com base no projecto urbano que descrevemos, podemos questionar se não está latente uma urbanização destes territórios. A substituição da população autóctone, a terciarização e delapidação da agricultura, a “comodificação” dos espaços e a sua adaptação aos usos, expectativas e exigências de conforto dos citadinos, a par da inclusão das áreas rurais nos circuitos de consumo urbano, pode, muito provavelmente, significar uma urbanização, no sentido lato do termo e não propriamente de expansão urbanística. Urbanização. Com este exercício não se pretende compor um quadro demasiado pessimista em torno das consequências possíveis para este projecto de ruralidade, já que a abertura das áreas rurais, a novas actividades, funcionalidades e grupos sociais, pode de facto, significar novas perspectivas de desenvolvimento, empreendedorismo, diversidade e vitalidade. Acrescentando, este processo de reinvenção simbólica e funcional da ruralidade acarreta a destruição de alguns estigmas, que rodeavam as áreas rurais. De facto, se era comum olhar para os territórios rurais como atrasados e decadentes, neste contexto de requalificação simbólica, podem progressivamente acumular conotações positivas e, consequentemente, melhorar a auto-estima local. É ainda de assinalar a importância que a valorização cultural e ecológica pode ter, no incremento dos esforços de preservação dos ecossistemas e dos patrimónios locais, bem como, a ajuda que todos estes factores podem constituir, para a fixação de população nas áreas mais desertificadas. Neste sentido a reinvenção simbólica da ruralidade pode trazer uma renovação funcional, cultural, demográfica, ecológica, patrimonial e, sobretudo, um reforço da auto-estima rural. Destruição de estigmas. Renovação. Em todo o caso, tendo em conta os contornos e possíveis consequências do projecto de ruralidade veiculado pelo discurso, é interessante discutir as suas possibilidades de concretização de desenvolvimento, principalmente se considerarmos a sua origem externa e o carácter urbano dos interesses que o 211 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada sustentam. Como vimos, apesar de constituir uma espécie de retórica do desenvolvimento rural, o discurso de reinvenção da ruralidade não é rural e não parece ter como prioridade a concretização do desenvolvimento. Não são ainda visíveis grandes impactos positivos neste domínio, sendo mais líquido o favorecimento dos circuitos de consumo urbano, a diminuição dos apoios económicos às áreas rurais (nomeadamente com a delapidação progressiva dos apoios da U.E. ao sector agrícola, sob o argumento de mudança de paradigma político e estratégico), o crescimento dos negócios imobiliários e turísticos de operadores externos às comunidades, ou que não revertem em postos de trabalho e em reprodução/disseminação da despesa dos visitantes, etc. Importa, como já dissemos, questionar se os habitantes das zonas rurais não passarão a figurantes e se as aldeias não se transformarão em parques temáticos para fruição externa; se esta não é mais uma estratégia de rentabilização do rural, enquanto recurso, e uma forma de o reintegrar nos mercados e nas lógicas do capitalismo; se temos motivos para confiar nesta retórica e na sua orientação programática para os meios rurais e se, de facto, esta pode contribuir para uma reversão real da crise, que assola muitos contextos (principalmente nos países do Sul da Europa, historicamente mais prejudicados pela PAC e com economias mais vulneráveis). Neste sentido, esta reflexão ultrapassa os limites deste trabalho e deve perpetuar-se até que sejam encontradas repostas para estas questões e, eventualmente, novas propostas de desenvolvimento para as áreas rurais. Desta feita, importa reforçar este olhar incisivo e atento, em torno deste processo de reinvenção da ruralidade, para que o carácter naturalizado e omnipresente do discurso, não embriague e turve o nosso sentido crítico e a nossa capacidade de questionar e monitorizar a forma como se produzem, gerem, promovem e aproveitam os territórios rurais na actualidade. De facto, no caso das áreas rurais esta necessidade é premente, considerando a externalidade da dominação que se exerce sobre os seus destinos e o fraco poder de determinação e gestão dos seus próprios projectos de desenvolvimento. Finalmente, e concluíndo que o projecto de ruralidade veiculado combina rusticidade e urbanidade (num reencontro entre natureza e passado, enquanto referências educativas e moralizantes, com modernidade, comodidade e uma forte dimensão comercial) e que esta é uma ruralidade patrimonial que deve funcionar 212 Capítulo VII como uma reserva dos valores em risco, nas cidades e no nosso tempo histórico, somos levados a pensar se esta não será acima de tudo a busca por um projecto de cidade melhor. E se a grande questão, inquietação e preocupação, ou pelo menos, o debate mais urgente, não será a cidade que temos, o modelo territorial dominante, o nosso estilo de vida, a insustentabilidade do quotidiano e as possibilidades reais do nosso futuro colectivo … 3. Considerações finais e propostas para futuras pesquisas. Posto isto, deve reforça-se a pertinência desta abordagem e a sua relevância para os processos de tomada de decisão sobre os territórios. Não só se logrou uma contextualização das políticas de desenvolvimento rural e das lógicas de promoção das áreas rurais, seus produtos e, sobretudo, da ruralidade enquanto referente simbólico, como se desvendou e discutiu criticamente os interesses que movem e alimentam estas tendências. Nesta linha, integrou-se o discurso e o seu projecto para os lugares, no quadro das grandes lógicas culturais e territoriais, que influenciam a forma como se perspectivam a realidade e se valorizam determinados recursos, em detrimento de outros. De facto, conhecer os valores, as representações e os interesses por detrás das ideias que se veiculam sobre os territórios, é essencial para interpretar, avaliar e monitorizar as estratégias de desenvolvimento que lhes estão associadas. Assim sendo, este exercício pretendeu organizar a reflexão e construir ferramentas teóricas que sirvam essa interpretação, ao mesmo tempo que ensaiou demonstrar a importância dos discursos no condicionamento da visão, hierarquização, gestão e produção dos territórios. Neste âmbito, é importante, uma vez mais, sublinhar que entendemos o discurso, não só enquanto estrutura de significados, mas sobretudo enquanto projecto, que pressupõe sempre a remissão a um poder e a uma historicidade. Esta reflexividade é importante, não só por ser essencial à ciência, mas principalmente porque exige que se discutam as estruturas ideológicas por detrás do poder instalado. Se o discurso dominante é produzido pelo poder e se a ciência e a técnica tendem a alimentar a sua legitimação e difusão, importa subverter a sedimentação cultural destas dinâmicas e questionar as consensualidades que, na 213 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada voragem naturalizada da norma, perpetuam as lógicas hegemónicas ao serviço dos interesses mais robustos. Só através desta consciência, é possível partir para uma discussão aprofundada das questões territoriais, ou seja, considerando as estruturas discursivas e ideológicas que produzem as categorias, as agendas, os significados e as propostas, que antecedem e precipitam os lugares e que condicionam a forma como os pensamos (em primeiro lugar), como sociedade, como cientistas e como técnicos. Num contexto em que a competição territorial é feroz e as disputas por recursos e visibilidade ocorrem, em grande medida, no plano simbólico, é interessante dissecar os processos de construção de representações em torno dos lugares, bem como as políticas culturais que precipitam e legitimam as estratégias de desenvolvimento, no sentido de contextualizar as realidades empíricas e entender a origem e orientação dos fenómenos sociais e territoriais (Harvey, 1993). As ideias forjam os lugares, ao mesmo tempo que os lugares forjam as ideias. Ora, sendo esta a filosofia por detrás desta abordagem, partimos do discurso para conhecer a ruralidade que se impõe sobre os lugares, descemos aos lugares para palpar a materialidade desse condicionamento e voltamos com os contornos do projecto que resulta desta dialéctica. A partir daqui sugerem-se múltiplas possibilidades de pesquisa e questionamento. Como já foi referido, um dos objectivos centrais deste trabalho é precisamente estimular o estudo de objectos empíricos associados a esta discussão teórica, enquanto filtro para a sua interpretação e elemento integrador de realidades e temáticas, que parecendo muitas vezes dissociadas, remetem para o mesmo quadro discursivo em torno da ruralidade. Assim sendo, poderíamos enunciar uma infinitude de objectos de pesquisa, que dando continuidade a esta reflexão, serviriam para concretizar esses esforços. No entanto, para não sugerir indiferenciadamente ou seleccionar de forma quase aleatória alguns dos caminhos possíveis, dada a multiplicidade de temáticas relacionadas com esta problemática, parece-nos mais interessante adiantar possibilidades de aprofundamento do estudo dos casos empíricos abordados nesta mesma pesquisa. Assim, seria interessante desenvolver e dar continuidade à incursão aqui iniciada, em redor dos dois espaços de recriação da ruralidade veiculada pelo discurso (na cidade do Porto), de forma a ultrapassar a análise da sua produção e 214 Capítulo VII respectivas motivações, e explorar também o seu consumo e interpretação, sob o ponto de vista dos visitantes. Por outras palavras, interessaria completar a abordagem desenvolvida, com o estudo das vivências e representações dos utentes do NRA e do Mata-Sete, para perceber como é experimentada e perspectivada a ruralidade de ambos os lugares. Ou seja, através de uma perspectiva complementar que facilitasse um contraponto entre os projectos, como foram aqui explorados (pela análise dos seus contornos, motivações e orientações criadoras) e a sua interpretação, leitura, utilização e consumo. Cruzar a produção e o consumo destes lugares poderia levar à identificação de eventuais contradições e novas atribuições de sentido e significados, mas também ao contacto com as representações que brotam da sua leitura, com as apropriações diversas que podem ser feitas e com possíveis conflitos entre usos, perspectivas, interesses, etc. Desta feita, serviria para dar seguimento à abordagem, já que estudamos o projecto e a materialização do quadro pastoral sugerido pelo discurso, e seria interessante aprofundar o seu impacto, nas representações de quem o consome, para acompanhar o seguimento da sua existência e influência, enquanto eventual arquétipo ou referência de ruralidade nos imaginários urbanos. Ainda dentro do âmbito do consumo, era igualmente interessante perceber se aqueles que frequentam os lugares estudados e que habitualmente recorrem a estes espaços para usufruir da sua aura de ruralidade e da sua dimensão recreativa (e comercial, no caso do NRA), são também consumidores assíduos de outros produtos rurais. Ou seja, indagar se estes lugares estão integrados num circuito de práticas de consumo recorrente, ou mais abrangente, da ruralidade e dos produtos que lhe estão associados, como os produtos biológicos, o turismo rural, os desportos de natureza, as casas de campo, etc. De facto, uma abordagem aos objectos pela perspectiva do consumo seria deveras interessante e certamente reveladora, permitindo inúmeros caminhos e contendo múltiplas nuances. No entanto e também por isso, ficamo-nos apenas pelo estudo do projecto, considerando que seria demasiado ambicioso da nossa parte desenvolver essa abordagem complementar, ainda no corpo desta pesquisa (tendo em conta, principalmente, que o volume de visitantes de ambos os objectos por ano é quase incalculável). E porque nos pareceu que as motivações por detrás da produção dos espaços, a sua identidade paisagística e o seu eventual carácter bucólico, respondiam por si só ao âmbito desta pesquisa. Ou seja, permitiam 215 Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada aprofundar o percurso reflexivo, ao encontro dos contornos da ruralidade veiculada nos discursos, que era afinal o nosso objectivo. Simplificando, para cumprir a proposta de investigação que estimula este trabalho, era premente procurar a materialização do projecto, antes sequer de pensar em explorar o seu consumo. Para finalizar, queremos reforçar uma vez mais que esta é uma discussão que se mantém em aberto e que, por isso mesmo, importa continuar a debater e a aprofundar estas questões e a contribuir para o questionamento crítico e para a produção científica, em torno dos discursos que precipitam os projectos e as dinâmicas territoriais. Conhecer esses projectos é essencial para prever, planear e preparar os territórios que se aproximam e, portanto, para trabalhar no sentido do desenvolvimento. Neste sentido, este trabalho pretende constituir uma humilde contribuição para essa importante, ambiciosa e sempre inacabada tarefa. 216 Bibliografia AA.VV (1997), Espant' homens - exposição de fotografia de Gérard CastelloLopes, Porto, Fundação de Serralves Abreu, A. Barbosa (1981), "A evolução da cidade do Porto e os sistemas de transportes", in Revista de História. 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Legenda: 1. 2. 3. 4. 5. Cidade do Porto. Centro histórico. Rotunda da Boavista. Avenida da Boavista. Parque de Serralves. Mapa 3: Localização da quinta do Mata-Sete no Parque de Serralves. Legenda: 1. 2. 3. 4. 244 Parque de Serralves. Mata-Sete. Museu de Arte Contemporânea. Casa de Serralves. Anexo 1 - Mata-Sete Fotografia Aérea 1: Imagem da quinta do Mata-Sete (retirada do serviço Google Earth). Legenda: 1. Casa. 2. Salão de Caça. 3. Celeiro/Lagar. 4. Eira. 5. Pátio. 6. Estábulo. 7. Hortas pedagógicas. 8. Instalação de Maria Nordman. 9. Prado. 10. Jardim das plantas aromáticas. 245 Anexo 1 - Mata-Sete Mapa 4: Espaço da Fundação de Serralves (parque, jardim, quinta, casa, museu e restantes infra-estruturas) www.serralves.pt). 246 com legenda detalhada (imagem retirada de Fauna e Flora Construções e Equipamentos Espaço (área e localização) História (origem e evolução) Presume-se que existissem cavalos e animais de quinta, vinha, terrenos cultivados com cereais (devido à existência do celeiro), hortas e pastagens, diversas árvores. Casa, estábulos, cavalariça, celeiro, lagar, eira e armazém contíguo, pavilhão de caça, diversos tanques, represa de água, um poço e supõe-se que existiriam igualmente alguns terrenos cultivados, pastagens e algumas vinhas. (1)Originalmente Existem vacas, ovelhas, um burro e outros animais de quinta, um prado para pasto dos animais, pequenas hortas cultivadas pelas crianças das escolas, nas oficinas do serviço educativo, algumas vinhas jovens e uma horta de ervas aromáticas, transferida para os limites da Quinta, desde a construção do Museu de Arte contemporânea nos terrenos em que estava localizado o pomar da propriedade, para além de diversas árvores centenárias e outras mais jovens (como na obra de M. Nordman). As construções mantêm-se exteriormente intactas, mas os interiores foram transformados em grande medida, para acolher novas funcionalidades. O estábulo foi aumentado, o pavilhão de caça transformado em escritórios, o celeiro, o lagar e o armazém da eira em espaços para actividades educativas, entre outras pequenas alterações arquitectónicas, apesar das significativas alterações de funcionalidade. Existe uma cabana de palha com chão de madeira e mesas e cadeiras no interior. Um bebedouro para pássaros e uma mesa em xisto rodeado de ciprestes que compõe a obra paisagística de Maria Nordman. Um conjunto de carroças antigas e velhas alfaias agrícolas guardaras num pequeno telheiro. Existem igualmente sebes de madeira a contornar o prado. (2)Actualmente Como foi dito a Quinta do Mata-Sete é uma parcela dos 18 hectares que compõe o Parque de Serralves, localizado na cidade do Porto, na freguesia de Lordelo do Ouro. Localiza-se mais precisamente na extremidade sul da propriedade numa cota mais baixa por relação à casa e a grande parte do parque. Construída em 1937, a quinta do Mata-Sete é parte integrante do projecto de Casa e Jardim do Conde de Vizela na Rua de Serralves, ficando numa das extremidades da propriedade. Era mantida por empregados e, depois da venda a outro proprietário, alugada a caseiros. Na década de 80 todos os 18 hectares de parque são comprados pelo Estado e em 1987 dá-se a abertura do Parque ao público. Neste processo a quinta deixa progressivamente de ser utilizada pelos caseiros que a ocupavam, para albergar os serviços administrativos do parque e para se tornar no espaço em que se desenrola grande parte das actividades de educação ambiental do Serviço Educativo da Fundação. Tomaremos como momento (1) o período entre a construção da quinta e a sua venda a outro proprietário (Delfim Ferreira) pelo Conde de Vizela, ou seja de 1937 a 1957 e como momento (2) os 4 primeiros meses de 2010 (período de realização do trabalho de campo). Tabela 1.2.1. Síntese de Caracterização e Análise da Quinta do Mata-Sete Anexo 1 - Mata-Sete 1.2 Tabelas 247 248 X X X Espaço Ocupado X Decoração A história da Propriedade de Serralves está até hoje pouco esclarecida, existindo algumas dúvidas por relação ao processo de sua construção, ao que existia antes, às motivações que estimularam uma obra tão ambiciosa, à utilidade da Quinta, etc., pelo que existe um carácter de certa forma especulativo na versão veiculada pela literatura científica que em torno dela se tece. No entanto, a ilação de que estamos perante uma quinta de recreio sobredimensionada e com demasiada qualidade para o normal na região e sobretudo para uma propriedade que não era produtiva, não só é consensual, como é coerente com a ideia de que todo o projecto do Conde de Vizela se reveste de uma espécie de megalomania de representação, mais para ostentação do que para usufruto. Isto porque não só era proprietário de diversas outras casas e propriedades, de recreio e agrícolas, como revela uma ambição exagerada no que respeita a escala da casa, do jardim, da quinta, à sua qualidade (contratando os melhores arquitectos), área, etc. Produtos Espaço para actividades educativas e espaço de passeio e fruição para os visitantes do parque. Dir-se-ia que terá sido uma quinta de recreio, com uma produção agrícola reduzida. Actividade O aspecto exterior dos edifícios mantém-se, as transformações no interior basearam-se na substituição de pavimentos, em pequenas recuperações, pinturas e na instalação de mobiliário apropriado a novos usos. Por exemplo, no lagar nada foi destruído, apenas se efectuou à limpeza e ocupação do espaço com material laboratorial e mesas de trabalho. Por outras palavras, parece ter sido objectivo transformar o mínimo possível dos espaços, na adaptação a novas funcionalidades. No exterior podem encontrar-se bancos de jardim em madeira, mobiliário de jardim em verga, sebes em madeira, caminhos empedrados ou areados, tanques de pedra e a cabana de palha. Obra do Arquitecto Marques da Silva, presumivelmente inspirado pela Arquitectura Regional Francesa, que resulta num conjunto de edifícios de linhas simples e construção racional, feitos em pedra de granito, com alguns apontamentos rústicos, como as chaminés desmesuradas, a pedra por pintar, acabamentos de madeira, etc. As janelas têm portadas de madeira pintada de vermelho, sendo que algumas são em arco e de grandes dimensões e outras funcionam como portas e têm grandes portadas de correr. Destaca-se a elevada qualidade da construção e a dimensão exagerada dos equipamentos, já que aparentemente não se tratava de um espaço de grande produção agrícola. As construções estão fechadas sobre si próprias criando um pátio e diversos recantos mais confinados, que de certa forma entram em contraste com a imensidão da propriedade. É de assinalar a cozinha do pavilhão de caça, pelo forno a lenha e mobiliário rústico que a preenche, tendo em conta o gosto do seu proprietário por mobiliário de design arrojado. Ao que parece a quinta estava de certa forma escondida por uma alameda de ciprestes que a separavam do jardim e da mata. (2)Actualmente Nota: Quando não especificado, a caracterização refere-se sempre ao período de realização do Trabalho de Campo, ou seja, aos 4 primeiros meses de 2010. Outros elementos ou observações Equipamentos Comerciais (caso existam) Actividades Decoração, Materiais e Estilo Arquitectónico (1)Originalmente Tabela 1.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise da Quinta do Mata-Sete Anexo 1 - Mata-Sete Anexo 1 - Mata-Sete Tabela 1.2.2. Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo) Mata-Sete Entrevistas Teresa Andresen (Directora do Parque de Serralves). (ver 3.2_Tabela das Entrevistas para mais detalhe) Dona Teresinha (antiga Caseira da Quinta do MataSete) - conversa informal, não transcrita. Nuno Tasso de Sousa (Arquitecto, especialista na obra de Marques da Silva) - conversa informal, não transcrita. André Tavares (Arquitecto e Autor de um livro sobre a Casa de Serralves). Elisabete Alves (Coordenadora do Serviço Educativo do Parque de Serralves). Material Documental (ver 4.2_ Tabela Resumo dos materiais relativos ao Mata-Sete para mais detalhe) Folheto informativo relativo aos Programas Educativos (Actividades e Projectos) da Fundação de Serralves para o ano lectivo 2009/2010. ((*)) Livros: Leite, Elvira e Helena Captivo (2004), Á descoberta de Serralves, Porto, Fundação de Serralves AA. VV (1997), Espant' homens - exposição de fotografia de Gérard Castello-Lopes, Porto, Fundação de Serralves (*) Analisaremos o catálogo "Espant'homens" e as duas páginas, que dizem respeito ao Mata-Sete, do livro "À Descoberta de Serralves", como material documental relativo ao objecto e não como literatura científica, pelo facto dos seus autores estarem envolvidos com o Serviço Educativo da Fundação de Serralves. Fotografias 32 Fotografias de Gérard Castello-Lopes tiradas no ano de 1996, presentes no livro "Espant'homens", que retratam a quinta e algumas das actividades nelas desenvolvidas na primeira década de Serviço Educativo no Mata-Sete. 95 Fotografias próprias, tiradas durante o Trabalho de Campo, ao espaço da Quinta e seus equipamentos, fauna, flora e actividades. 249 Anexo 1 - Mata-Sete Tabela 1.2.2. (cont.) Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo) Literatura Outros (ver 4.2_ Tabela Resumo dos materiais relativos ao Mata-Sete para mais detalhe) AA. VV (1997), Espant' homens - exposição de fotografia de Gérard Castello-Lopes, Porto, Fundação de Serralves (*) Andrade, Sérgio C. (2009), Serralves - 20 anos e outras histórias, Porto, Fundação de Serralves Andresen, Teresa (1988), "O Parque de Serralves", in AA. VV, Casa de Serralves Retrato de uma Época, Porto, Fundação de Serralves Andresen, Teresa & Teresa P. Marques (2001), Jardins Históricos do Porto, Lisboa, Edições INAPA Cardoso, António (1992), O Arquitecto José Marques da Silva e a arquitectura do Norte do País na primeira metade do séc. XX, Porto, Edições FAUP Leite, Elvira e Helena Captivo (2004), Á descoberta de Serralves, Porto, Fundação de Serralves (*) Marques, Teresa & Teresa Andresen (1989), "A Garden Restauration in Porto", in Seminário Internacional: "Restauració de Jardins Histórics", Barcelona, April, pp. 7-11 (Policopiado) Marques, Teresa (1996), "Parque de Serralves. Passado e Actualidade.", in Horto do Campo Grande Magazine, nº 2 Millan, Maria (2000), Parque de Serralves Intervenções (Prova Final), Porto, FAUP Tavares, André (2007), Os fantasmas de Serralves, Porto, Dafne Editora Página Web da Fundação de Serralves. Mapa de Telles Ribeiro de 1982. Produtos da Quinta de Serralves (compotas, chás, condimentos, azeite, azeitonas, etc.). Página Web dos arquitectos Ivo Poças Martins e Matilde Seabra, responsáveis pela transformação de alguns equipamentos da Quinta do Mata-Sete para fins educativos. 250 Data 01/03/2010 08/03/2010 08/03/2010 Entrevistado Teresa Andresen Dona Teresinha Nuno Tasso de Sousa Arquitecto, especialista na obra de Marques da Silva Antiga caseira do MataSete Directora do Parque de Serralves Função/Cargo Informações sobre a história de Serralves e das ambições do Conde de Vizela. Vida e obra do Arquitecto Marques da Silva. História dos jardins do Porto. (conversa informal - não transcrita) Trivialidades sobre a quinta, aspectos ligados ao seu passado e à produção agrícola. (conversa informal - não transcrita) Mata-Sete como espaço de fantasia ruralista do Conde de Vizela, como espaço de recreio e encenação, como reprodução das influências e modas europeias de valorização do bucolismo e da vida rural. A grande dimensão e qualidade do edificado do Mata-Sete e o aparente sobredimensionamento dos seus equipamentos para a sua (aparentemente) sempre modesta produção agrícola. O projecto educativo para a quinta (o conceito inicial, os objectivos, o projecto dos espantalhos, algumas outras actividades, o aproveitamento do carácter rural do espaço, etc.). História da quinta do Mata-Sete (os diferentes ocupantes e usos, a transição para o domínio público, as intervenções e transformações do espaço, toda a sua evolução até aos nossos dias) História de Serralves (desde o projecto do Conde de Vizela até aos nossos dias) Principais Ideias Tabela 1.2.3. Síntese das Entrevistas (Mata-Sete) Anexo 1 - Mata-Sete 251 252 Data 24/03/2010 14/04/2010 Entrevistado André Tavares Elisabete Alves Coordenadora do serviço educativo do parque de Serralves Arquitecto e autor do livro " Os Fantasmas de Serralves" Função/Cargo Exemplos das actividades que exploram o carácter rural do espaço e de algumas experiências de recriação de actividades rurais com famílias (desfolhada, cortejo de burro, construção de espantalhos, contacto com a palha, etc.). Ideia de que a ruralidade do espaço não é forçada ou acentuada. Aproveitamento do potencial do espaço (quinta e parque). Diferenças no Serviço Educativo antes e depois da abertura do Museu de Arte Contemporânea de Serralves (novas escala de actuação, novas exigências, novas ambições e objectivos). Descrição das actividades realizadas no parque e na quinta. Objectivos, orientações e filosofia por detrás do projecto educativo de Serralves e sua evolução ao longo dos anos. Mata-Sete como uma recriação racional e "urbana" de uma quinta rural, pela parca rusticidade e pela elevada qualidade, racionalidade e dimensão das construções. Influência da Arquitectura Regional Francesa. Ideia de que todo o projecto de Serralves, incluindo o Mata-Sete é motivado por um desejo de ostentação do Conde na sua megalomania. Alguns paradoxos arquitectónicos que marcam a obra do Mata-Sete (combinação de uma arquitectura muito racional e alguns detalhes rústicos) e algumas dúvidas em torno da motivação por detrás da sua construção (falta de necessidade de uma casa rural, visto já ter uma vasta propriedade produtiva em Vizela, grande dimensão do edificado para um uso muito limitado, o aparente vazio funcional do espaço, etc.). História da compra dos terrenos de Serralves, do projecto do Conde de Vizela e particularmente do projecto do Mata-Sete. Principais Ideias Tabela 1.2.3. (cont.) Síntese das Entrevistas (Mata-Sete) Anexo 1 - Mata-Sete Fundação de Serralves Vários Autores / Fundação de Serralves Livro com o título "Espant'homens" Origem ou Autoria Página Web Tipo de Material 1997 Em permanente actualização Data Página da Fundação onde estão todas as informações de contacto, actividades, história, etc. da Fundação (parque, museu, casa, biblioteca, auditório, serviço educativo, etc.). Livro de textos e fotografias sobre 10 anos do projecto "Arte Efémera na Paisagem", ou seja do projecto educativo de construção de espantalhos pelas crianças na quinta do Mata-Sete. Descrição Contêm diversas informações úteis sobre a história da Quinta, sobre as actividades realizadas no espaço do Mata-Sete, contactos úteis e apresenta os produtos alimentares, vendidos como sendo do Parque de Serralves. Desenvolve e explica o conceito do projecto educativo para o Mata-Sete, naquilo que constituiu a primeira década do seu Serviço Educativo, muito baseado na ligação entre arte e natureza e na aproximação das crianças à ruralidade. Deixa perceber os contornos do aproveitamento do carácter rural do espaço e seu reforço no desenvolvimento do projecto educativo. Interesse Tabela 1.2.4. Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete Este projecto específico "Arte Efémera na Paisagem" já não está em vigor, mas mantém-se como o projecto mais marcante e com mais repercussão e projecção desenvolvido até hoje, no âmbito do serviço educativo para o Parque de Serralves e mais precisamente no espaço do Mata-Sete. A importância do Serviço Educativo, para perceber o uso que é feito do Mata-Sete (desde que o parque é público), acaba por ser inquestionável, se pensarmos que também lhe chamam “Quinta das Crianças” e que a sua principal função é servir de pretexto e suporte para actividades educativas. www.serralves.pt Disponível em: Observações Anexo 1 - Mata-Sete 253 254 Folheto Informativo (seleccionou-se apenas a parte relativa à quinta do Mata-Sete) Fundação de Serralves / Serviço Educativo Elvira Leite e Helena Captivo / Fundação de Serralves Excerto de Livro Infantil com o título "Á Descoberta de Serralves" Origem ou Autoria Tipo de Material Ano Lectivo 2009/2010 2004 Data Folheto que apresenta as actividades educativas previstas para o ano lectivo, nomeadamente as visitas e as oficinas, para diferentes grupos escolares e etários. Duas páginas ilustradas que retratam crianças na Quinta do Mata-Sete a trabalhar na horta e a usufruir da obra de Maria Nordman, com pequenos diálogos e textos alusivos ao espaço e às actividades nele desenvolvidas. Descrição Revela uma preocupação em reiterar a ligação entre arte e natureza, partindo da obra paisagística de Maria Nordman. As crianças retratadas reforçam o interesse e a utilidade da obra e associam o seu carácter e utilidade à natureza, louvando a importância da arte e destacando o espaço em causa da cidade e dos seus bairros. Um pequeno texto explica a obra e outro explica que a Quinta das Crianças tem actividades relacionadas com a natureza e os seus ciclos, existindo também uma alusão ao cultivo das hortas, o que acaba por divulgar e reforçar a importância dada à aproximação das crianças às actividades agrícolas. Permite conhecer as principais actividades educativas anuais desenvolvidas no Mata-Sete e perceber para que públicos estão direccionadas. Interesse Tabela 1.2.4. (cont.) Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete Existe informação complementar sobre estas matérias na página Web da Fundação e noutros folhetos informativos, como é o caso do panfleto com a calendarização dos pequenos cursos ligados à jardinagem e agricultura, para adultos, que têm lugar no Parque, ao longo do ano. As autoras fazem parte do conjunto de consultoras do Serviço Educativo de Serralves, estando envolvidas no projecto educativos há vários anos, pelo que tomamos este documento como material documental (originário da equipa responsável pelas actividades da Quinta das Crianças). Trata-se de um livro que pretende dar a conhecer Serralves ao público infantil, acabando, de certa forma, por funcionar como uma espécie de propaganda da Fundação. Observações Anexo 1 - Mata-Sete Página Web Loja da Fundação / Parque de Serralves Produtos Alimentares Ivo Poças Martins e Matilde Seabra (Arquitectos) https://www.serralves.pt/catalogo/ listaprodutos. php?cat=11&sessao=1&p=1 ) http://www.serralves.pt/catalogo/ detalhes_produto.php?id=1293 (também disponível na loja Online de Serralves: Telles Ribeiro Origem ou Autoria Mapa Tipo de Material 2010 2010 1892 Data Página Web do Gabinete de arquitectura responsável pela transformação de alguns edifícios da Quinta do Mata-Sete em equipamentos educativos e administrativos. Compotas de vários frutos, chás e infusões de ervas aromáticas, condimentos variados, azeite e azeitonas, apresentados como sendo produtos do Parque de Serralves. Mapa da cidade do Porto que contempla e regista à data aproximada de 1892 os terrenos que hoje compõe o Parque de Serralves. Descrição Contém fotografias e plantas dos espaços transformados e a transformar, explica os objectivos dos projectos em causa e anuncia as próximas intervenções, permitindo perceber o tipo de adaptações e utilizações que têm tido lugar e/ou que estão previstas para o edificado do Mata-Sete. Demonstra um aparente interesse em passar a ideia de que se produzem realmente produtos alimentares artesanais na quinta de Serralves, quando na verdade estes não são de produção própria, o que parece reflectir a intenção de perpetuar a aura agrícola e produtiva da Quinta que é hoje Parque Urbano. Demonstra que antes da construção do grande projecto de casa/quinta/jardim do Conde de Vizela, grande parte dos terrenos do parque e das áreas circundantes eram agrícolas e que existiam algumas construções no local onde foram construídos os edifícios do Mata-Sete. Interesse Tabela 1.2.4. (cont.) Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete Disponível em: http://www.pocasmartinsseabra.com/ Destaque dado para o Cabaz da Quinta do Mata-Sete, composto por uma garrafa de Azeite, uma compota e uma lata de condimentos à escolha, vendidos dentro de uma lata vermelha com o símbolo de Serralves. As construções referidas parecem corresponder a uma casa ladeada de um jardim e rodeada de terrenos agrícolas. Observações Anexo 1 - Mata-Sete 255 256 Gérard CastelloLopes Própria 95 Autoria 32 Nº de Fotos (por grupo) Fotografias tiradas nos primeiros 4 meses de 2010, durante o trabalho de campo. Data ou momento do retrato 1996 As fotografias retratam as actividades desenvolvidas na primeira década de Serviço Educativo no Mata-Sete, nomeadamente o projecto "Arte Efémera na Paisagem", que consistia na construção de espantalhos com as crianças das escolas da cidade, sua exposição nos terrenos da quinta e posterior celebração, numa festa que terminava com a queima dos mesmos. O projecto pretendia acompanhar e celebrar os ciclos da natureza e isso é revelado nas fotos em três momentos, começando com a colheita dos cereais (1) e aproveitamento da palha na construção dos espantalhos (2) e acabando com a devolução das suas cinzas à terra como fertilizante (3). São retratados igualmente actividades agrícolas e algumas delas realizadas em conjunto com as crianças, como a desfolhada, a sementeira ou o tratamento do feno. É visível e interessante nestas imagens o envolvimento de vários lavradores e pessoas idosas nas actividades, ao que parece a realizar os trabalhos e a demonstrar às crianças a melhor forma de os fazer. De realçar é também o facto de em muitas das actividades retratadas o número de participantes ser muito elevado, transparecendo um forte dinamismo e muita animação. As fotografias retratam os edifícios no seu exterior e interior (casa, cavalariça, pavilhão de caça, lagar, celeiro, armazém de cereais, estábulo). Existem várias fotos dos detalhes arquitectónicos como as paredes de pedra, as janelas e portadas, chaminés, os tectos de madeira, assim como da cozinha de decoração rústica com fogão e forno de lenha, do lagar e suas dornas e restante equipamento vinícola, do mobiliário das salas de actividades, mesas, cadeiras, laboratório, etc. No espaço exterior destacam-se as hortas, a eira, os prados, a vegetação envolvente, os pontos de água em redor (represa, tanques, poços, levadas), a cabana e a estufa, os telheiros com material agrícola, alfaias, carros, pipos e cestos. O mobiliário exterior como os bancos de pedra e de jardim em madeira, as mesas e cadeiras em verga. Vêm-se tractores em andamento e actividades de conserto de ramadas. Crianças a passear pelo espaço e animais no pasto. Rebanho de ovelhas no prado, homem a semear, feno, construção de medas de palha, espantalhos, construção de espantalhos (com idosos e com crianças / no interior e no exterior), actividades educativas e grupos de crianças, espectáculo/festa dos espantalhos, desfolhada, trabalhos agrícolas com crianças, queima dos espantalhos. Panorâmicas e detalhes do espaço. Prado, animais, construções no interior (cozinha, mobiliário, WC, salas, pormenores decorativos, etc.) e exterior (alpendres, chaminés, janelas, telhados, cadeiras de verga, etc.), tanques, poços, ramadas, caminhos, muros, eira, represa, hortas, carros e alfaias, tractores, cabana, estufa, pipas de vinho, vegetação, etc. Descrição geral dos conteúdos retratados Conteúdos retratados Tabela 1.2.5. Resumo das Fotografias (Mata-Sete) AA. VV (1997), Espant' homens - exposição de fotografia de Gérard Castello-Lopes, Porto, Fundação de Serralves Fotografias presentes no livro: Observações Anexo 1 - Mata-Sete Anexo 1 - Mata-Sete 1.3 Fotos Fotografias relativas à quinta do Mata-Sete29. Foto 1: Caminho central do Mata-Sete. Vista sobre o edificado para quem desce vindo do Parque. Do lado esquerdo encontram-se as hortas pedagógicas, do lado direito podem ver-se crianças em actividades educativas e em frente o casario da quinta. Destaque para a grande dimensão da chaminé. Foto 2: Casa de habitação do Mata-Sete, onde moravam os caseiros da quinta. Repare-se nos pormenores de construção: a pedra de granito bem ordenada e com juntas em betão, as portadas em madeira pintada, a grande chaminé, o telhado em telha Marselha, etc. 29 Fotografias tiradas durante o Trabalho de Campo, ou seja, nos quatro primeiros meses de 2010. 257 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 3: Hortas pedagógicas. Estábulo ao fundo. Foto 4: Cabana de madeira com mesas no interior para actividades educativas. 258 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 5: Instalação de Maria Nordman (mesa de xisto com bancos e bebedouro para pássaros no meio de um conjunto de árvores). Foto 6: Prado com vacas em pasto, sebes de madeira e o arvoredo denso do parque ao fundo. 259 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 7: Tractor em funcionamento na alameda que ladeia o prado. Foto 8: Estábulo dos animais da quinta, ampliado pela administração do Parque, enquanto equipamento de suporte às actividades do Serviço Educativo. 260 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 9: Caminho coberto por ramada de vinha nas traseiras dos edifícios da quinta. Foto 10: Pátio central do Mata-Sete. Vista para o pavilhão de caça, desde o alpendre do lagar e do celeiro. Repare-se nas grandes portas e janelas de madeira, na vegetação que cobre as paredes de pedra, e no pavimento empedrado que cobre o pátio. 261 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 11: Alpendre do celeiro e respectiva entrada. Mesas e cadeiras em verga e grandes portas de madeira. Foto 12: Banco no pátio central. 262 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 13: Interior do lagar. Foto 14: Mesas para as actividades educativas no interior do lagar. 263 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 15: Interior da cozinha, com mobiliário original. Foto 16: Alameda de acesso ao Mata-Sete para quem desce do jardim. Do lado esquerdo pode verse o prado com o casario no horizonte. 264 Anexo 1 - Mata-Sete Foto 17: Tanque de pedra com nenúfares. Foto 18: Caminho que conduz ao portão traseiro da quinta, entre o muro que a separa do exterior e o relvado onde se localiza a instalação de Maria Nordman. Repare-se no rigor e na perfeição do empedrado e na ramada de vinha em toda a extensão do caminho. 265 Anexo 1 - Mata-Sete 266 Anexo 2 - NRA Anexo 2 - NRA 2.1 Mapas Mapa 1: Localização do distrito e do concelho do Porto no território português. Legenda: 1. Portugal. 2. Distrito do Porto. 3. Concelho do Porto. 269 Anexo 2 - NRA Mapa 2: Localização do Parque da cidade dentro do concelho. Legenda: 1. 2. 3. 4. 5. Cidade do Porto. Centro histórico. Rotunda da Boavista. Avenida da Boavista. Parque da cidade. Mapa 3: Localização do NRA no Parque da Cidade. Legenda: 1. Parque da Cidade. 2. NRA. 270 Anexo 2 - NRA Fotografia Aérea 1: Imagem da quinta do NRA (retirada do serviço Google Earth). Legenda: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Beco de Carreiras. Casas “siamesas” (loja de produtos “gourmet”). Centro de Educação Ambiental. “Ecolojas”. Celeiro (cafetaria). Esplanada na eira. Picadeiro (inactivo). Anexos. 271 Anexo 2 - NRA Mapa 4: Localização dos diversos equipamentos do núcleo. Nota: Esta imagem é uma fotografia do mapa que está localizado na entrada do NRA. A sua legenda não está actualizada: os espaços 4 e 5 estão desactivados, sendo que o espaço do Restaurante foi ocupado pela loja de produtos “gourmet”. 272 História Quatro quintas, constituídas por quatro casas, duas delas ligadas, cozinhas, vários anexos e estábulos, poços e tanques, três eiras, dois sequeiros, um celeiro e várias construções abarracadas, destinadas ao depósito de material doméstico e agrícola, etc. Existiam ainda, algumas alfaias agrícolas, hortas e campos agricultados. Vários animais de quinta, como galinhas, vacas, cães, coelhos, etc. Hortas, pastagens, vegetação autóctone, típica da chamada "bouça" (pequena mata, cercana a lameiros e terrenos agrícolas) muito comum na região. Fauna e Flora (1)Originalmente Não existem animais de quinta, nem outro tipo de espécies, desde a desactivação do picadeiro de póneis. Existem pequenas hortas de leguminosas e ervas aromáticas, feitas durante ateliers do Centro de Educação Ambiental, mantidas nas visitas semanais das crianças das escolas do Conselho do Porto, inscritas nesta actividade. Já não existe produção agrícola e a vegetação está integrada nas opções paisagísticas do Parque da Cidade do Porto. Acrescentadas foram as casas de banho e os cobertos com banco interior que estão espalhados nos jardins circundantes ao núcleo. Como mais um acrescento, pode ser encontrado ainda um picadeiro de póneis, que embora não esteja mais em funcionamento, continua a fazer parte do conjunto. Ao longo dos anos existiram algumas alterações de uso e funcionalidade em alguns equipamentos e espaços, devendo ser dito que a listagem anterior se refere apenas aos meses de trabalho de campo. No entanto, verifica-se que as construções se têm mantido quase inalteradas, pelo menos exteriormente, mesmo com distintas utilizações. Apenas foram destruídos os anexos abarracados e provisórios e acrescentadas algumas casas de banho para uso do público. Foram mantidas as construções originais, remodeladas e convertidas em vários equipamentos ou em elementos decorativos (como é o caso do sequeiro, por exemplo): um Centro de Educação Ambiental (com escritórios, sala de reunião, espaços para ateliers e formação, uma cozinha, etc.), uma casa de chá no antigo celeiro e com esplanada na eira junto ao sequeiro, uma escola de gastronomia com loja de produtos “gourmet” e respectivos escritórios, uma loja de “comércio justo”, uma loja de produtos biológicos. (2)Actualmente O espaço do NRA está localizado na Freguesia de Aldoar, na Cidade do Porto, mais precisamente no Beco de Carreiras, entre a Rua da Vilarinha e uma das extremidades do Parque da Cidade (Nordeste), funcionando inclusivamente como uma das suas entradas. O lugar que hoje constitui o NRA era, até ao inicio da década de 90 (séc. XX) ou mais precisamente das obras do Parque da Cidade do Porto, um conjunto de 4 quintas de propriedade municipal, 3 das quais habitadas por famílias ligadas à agricultura. Este conjunto estava confinado entre a malha urbana densificada e a vasta área destinada ao Parque da Cidade, funcionando como uma espécie de enclave de ruralidade residual, dentro da cidade. O pelouro do Ambiente da CMP decide preservar o conjunto e transformá-lo num espaço de preservação dos vestígios do Porto rural, realojando os seus habitantes e encomendando um projecto de transformação das quintas, em espaços comerciais e de hotelaria e num centro de educação ambiental. O NRA foi inaugurado em 2001. Tomaremos como o momento (1) o período prévio ao realojamento das 3 famílias que habitavam as quintas, ou seja, antes do início do projecto de transformação e, por momento (2), os primeiros 4 meses de 2010, ou seja, o período do Trabalho de Campo. Construções e Equipamentos (área e localização) Espaço (origem e evolução) Tabela 2.2.1. Síntese de Caracterização e Análise do NRA Anexo 2 - NRA 2.2 Tabelas 273 274 Actividades Decoração, Materiais e Estilo Arquitectónico Usos residenciais e agrícolas. [Vendo as fotografias do espaço no momento (1) é surpreendente perceber o quão difícil parecia vislumbrar o seu potencial "pitoresco", dado o elevado grau de degradação do conjunto, apesar de ser um lugar interessante pela intensidade da apropriação quotidiana que dele era feita.] O conjunto é densificado por inúmeros anexos de granito, um celeiro, um sequeiro, construções precárias e telheiros de madeira e zinco, poços e pequenos tanques de pedra, e fechado por detrás de um muro de pedra que dá acesso ao Beco por quatro portões. Todo o conjunto sofre de um acentuado grau de degradação, sendo visível um grande desgaste nos materiais: madeiras envelhecidas, portas e janelas remendadas, paredes com tintas muito gastas, telhados precários, etc. O traçado original das construções estava consideravelmente alterado pelo acrescento dos diversos anexos e telheiros. Os caminhos e muros de pedra estavam camuflados por entre a vegetação. Existiam videiras e múltiplos esteios e arames pendentes ao longo de todas as quintas. Para além dos objectos domésticos e de material agrícola, existiam diversos vasos com plantas ao longo das escadarias e em alguns recantos junto às casas e bastantes animais domésticos à solta. Quatro casas completamente iguais, sendo que duas estavam ligadas entre si por uma espécie de varanda em madeira. Casas de arquitectura popular, do final do século XVIII, princípio do século XIX, com dois pisos (piso térreo para as lojas e estábulos e piso superior para habitação) e cozinhas exteriores. Paredes e escadas exteriores de granito, com pequenos alpendres, telhados de telha "Marselha", chão de madeira no primeiro piso e de terra batida no piso térreo, portas de dimensões muito variáveis em madeira e por vezes reforçadas com chapa metálica, janelas "guilhotina". No interior das casas existem alguns nichos de pedra nas paredes e "namoradeiras" nos recantos das janelas. (1)Originalmente Actividades de lazer, educativas, comerciais e de restauração. [A complexidade de um lugar vivido e portanto desalinhado e desgastado, foi substituída por uma simplificação e limpeza que realça o potencial pitoresco do conjunto, mas que lhe retira a riqueza da vivência quotidiana e realista de outrora.] Nos terrenos ajardinados em redor do núcleo foram colocados uns pequenos cobertos com chão de madeira e um banco no interior, rodeados de ripas de madeira pintada de vermelho, inspirados nos sequeiros tradicionais e que servem de espaço de descanso para os visitantes que podem sentar-se e abrigar-se do sol ou da chuva e continuar a contemplar o núcleo e o parque através das ripas, quase como nas cabanas para observação de aves, existentes em muitos parques naturais. As casas foram recuperadas, mantendo-se o traçado original e os mesmos materiais. Todas as construções precárias e pequenos telheiros e acrescentos foram destruídos. O critério foi ir de encontro à semelhança original entre as quatro casas principais, apesar de se ter mantido a ligação entre as duas casas "siamesas". Os anexos em pedra, os tanques, os poços, o sequeiro, as eiras e os estábulos foram mantidos e recuperados. A pedra foi limpa, as madeiras exteriores pintadas de vermelho (janelas, portas, etc.), as paredes exteriores e interiores de branco. Os tectos em madeira e o soalho dos pisos superiores foram restaurados e mantidos. Nos pisos térreos a terra batida foi coberta por estrados de pôr e tirar. Os caminhos e muros de pedra foram limpos de vegetação. O celeiro foi reconstruído. As portas, janelas e portadas foram mantidas e restauradas. Todo o conjunto foi limpo e destacam-se a pedra de granito limpa, as paredes brancas e as madeiras em vermelho. Todos os telhados foram reconstruídos. O número de esteios e arames diminuiu drasticamente, existindo apenas algumas videiras em crescimento. A densidade do conjunto foi de certa forma simplificada pela destruição dos esteios, das construções precárias e dos telheiros de zinco, pela inexistência dos objectos domésticos e agrícolas pelos cantos, pelo desaparecimento dos vasos, dos animais e da vegetação invasiva. O espaço foi de certa forma salubrizado, com a limpeza dos esgotos a céu aberto e dos detritos dos animais, com a colocação de casas de banho e com a construção da rede de saneamento. (2)Actualmente Tabela 2.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise do NRA Anexo 2 - NRA NaturoCoop (apenas aberta ao fim de semana). Altromercado. 1000 Paladares. 2. 3. 4. Produtos variados de "Comércio Justo" (brinquedos, roupa, artesanato, produtos alimentares, objectos decorativos, etc.). Produtos alimentares "gourmet". 4. Produtos alimentares e domésticos de agricultura biológica. 3. Produtos de cafetaria. 1. 2. Produtos Anexo. Anexo. Casa com o nº65. 3. 4. Celeiro. 2. 1. Espaço Ocupado Tecto e chão semelhantes aos do celeiro original, paredes em pedra, cadeiras de verga, mesas de madeira e vitrinas que expõe brinquedos. Paredes em pedra, tecto, chão e mobiliário de madeira. Paredes em pedra, tecto, chão e mobiliário de madeira. Tectos e paredes pintadas de verde e móveis de madeira pintados também a verde ou a vermelho escuro. Mobiliário de madeira nobre, pintada e envernizada ou em vidro, ora com linhas rústicas, ora de design moderno e até minimalista. Cestas de vime e caixas de madeira ocupam vários recantos como expositores de produtos. Os nichos na parede em granito e as "namoradeiras" são aproveitadas para dispor a mercadoria. 1. 2. 3. 4. Decoração Deve ser acrescentada, como uma actividade importante no NRA, a feira semanal de produtos biológicos ao sábado de manhã, no espaço entre a casa e a eira do nº67 do Beco de Carreiras, onde diversos produtores ou revendedores de produtos de agricultura biológica, montam as bancas com a mercadoria debaixo do telheiro do portão, ou mesmo debaixo de guarda-sóis. É uma pequena feira com cerca de 10 bancas, em que os produtos estão dispostos em mesas ou em caixas, como num mercado e se vendem frutos, legumes, flores, mel, pão, compotas, cereais, frutos secos, etc. Casa de chá. 1. Actividade Nota: Quando não especificado, a caracterização refere-se sempre ao período de realização do Trabalho de Campo, ou seja, aos 4 primeiros meses de 2010. Outros elementos ou observações (caso existam) Equipamentos Comerciais Tabela 2.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise do NRA Anexo 2 - NRA 275 Anexo 2 - NRA Tabela 2.2.2. Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo) NRA Entrevistas Arquitecto João Rapagão (um dos autores do projecto de recuperação do NRA) (ver 3.1_ Tabela Síntese das Entrevistas para mais detalhe) Historiadora Maria João Vasconcelos (uma dos responsáveis pela valorização patrimonial do NRA) Maria do Céu Moreira (Centro de Educação Ambiental) - conversa informal, não transcrita. Orlando Gaspar (Vereador do Ambiente da CMP à data da recuperação do NRA) Material Documental Folheto sobre as Actividades de Educação Ambiental da CMP. (ver 4.1_Tabela Resumo do Material Documental do NRA (*) para mais detalhe) Programa Preliminar para o Museu da Cidade do Porto. Folheto da Exposição sobre o NRA. Livro: Vasconcelos, Maria João (coord.) (1995), Essas Pedras Quebradas... Permanências da Ruralidade no Contexto Urbano, Porto, Departamento de Museus e Património Cultural - Casa Tait, CMP Estudo prévio do NRA. Fotografias 45 Fotografias da autoria do Arquitecto João Rapagão, no âmbito do levantamento fotográfico prévio à recuperação do NRA. 21 Fotografias da autoria do Arquitecto João Rapagão, tiradas durante os trabalhos de recuperação do NRA. 156 Fotografias próprias tiradas durante o Trabalho de Campo, ao NRA, seus equipamentos e actividades. 276 Anexo 2 - NRA Tabela 2.2.2. (cont.) Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo) Literatura Infante, Sérgio (2003), "Reabilitação. Núcleo Rural de Aldoar, parque da cidade, Porto. Arqs. João Rapagão e César Fernandes", in Arquitectura e Vida, nº 37 Pacheco, Hélder (2002), Porto, Esquecimento, Porto, Afrontamento Outros Memória e Apresentação Power Point da autoria do Eng. Francisco Sendas (Director do Departamento Municipal de Espaços Verdes e Higiene Pública da CMP e, portanto, Administrador do Parque da Cidade do Porto) com o título "Metodologia de Construção do Parque da Cidade do Porto", para o Congresso Internacional de Parques Urbanos e Metropolitanos, datada de Março de 2006. (*) 277 278 Data 19/01/2010 11/03/2010 12/03/2010 25/03/2010 Entrevistado João Rapagão Mª João Vasconcelos Mª do Céu Moreira Orlando Gaspar Vereador do Ambiente da CMP na altura do projecto de recuperação do NRA Responsável pelo Centro de Educação Ambiental do NRA Historiadora, autora do estudo e levantamento patrimonial do NRA Arquitecto, autor do projecto de recuperação do NRA Função/Cargo Importância de preservar a memória rural do Porto, pelo seu passado e evoluções recentes. Razões que motivaram o projecto de intervenção no NRA. Explicação do programa previsto para o NRA e dos objectivos da intervenção. Recuperação do NRA baseada em técnicas de construção tradicionais. História do Parque da Cidade do Porto, seu projecto e concretização. Apresentação do espaço. Explicação e enumeração das actividades educativas realizadas no NRA. (conversa informal - não transcrita) Razões para a valorização daquele lugar específico (localização estratégica, propriedade municipal, exigência de intervenção iminente). História da evolução da cidade. Passado rural muito recente de muitas zonas da cidade e de grande parte dos seus habitantes, enquanto motivo importante para a valorização do património e da memória rural do Porto. Explicação da ideia de transformar o NRA no Pólo Rural do Museu da Cidade do Porto (que precedeu à sua recuperação e constituiu a primeira iniciativa de valorização patrimonial do lugar). Exposição de algumas ideias que existem para o futuro do núcleo. Enumeração do que foi preservado, destruído, transformado e porquê. Descrição do núcleo antes da recuperação (estado, características, potencial). Explicação dos objectivos e orientações do projecto, critérios e filosofia de intervenção, escolhas, polémicas e resultados. Explicação das razões por detrás da iniciativa de intervenção, da sua origem e dos contornos da "encomenda" do projecto de recuperação. História do lugar e do projecto de recuperação. Principais Ideias Tabela 2.2.3. Síntese das Entrevistas (NRA) Anexo 2 - NRA Título Guia de Actividades de Educação Ambiental Núcleo Rural de Aldoar. Parque da Cidade do Porto Programa Preliminar do Museu da Cidade do Porto Tipo de Documento Folheto Informativo Folheto Desdobrável Documento de Texto Policopiado Pelouro do Ambiente da CMP. Teresa Viana e Maria João Vasconcelos 1993 Gabinete do Ambiente da CMP. Autoria Março de 2002 Ano Lectivo 2009/2010 Data CMP. CMP. CMP e LIPOR Edição Apresentação do projecto do Museu da Cidade, que teria o NRA como seu pólo rural. Enunciação dos objectivos e das orientações metodológicas para o pólo temático do NRA. Parecer sobre a musealização do NRA. Apresentação do NRA e da exposição que pretende descrever o processo de sua recuperação. Descrição e calendarização das actividades de educação ambiental dos vários centros educativos da CMP, incluindo o do NRA. (integral ou em alguns casos seleccionado, pelo que diz respeito ao objecto) Síntese de Conteúdo Tabela 2.2.4. Resumo do Material Documental recolhido sobre o NRA Folheto da exposição sobre o NRA realizada em 2002, não disponível na actualidade. Folheto fornecido no Centro de Educação Ambiental do NRA. Observações Anexo 2 - NRA 279 280 Título Essas pedras quebradas... Permanências da ruralidade em contexto urbano. Estudo Prévio do Núcleo Rural de Aldoar Metodologia de Construção do Parque da Cidade do Porto Tipo de Documento Livro Documento de Texto Policopiado Apresentação Power Point Março de 2006 Sem Data 1995 Data Eng. Francisco Sendas João Rapagão e César Fernandes (coord.) Maria João Vasconcelos Autoria Congresso Internacional de Parques Urbanos e Metropolitanos Direcção do Projecto Municipal de Parques Urbanos CMP. Departamento de Museus e Património Cultural CMP. Edição Descrição do processo de construção do Parque da Cidade do Porto. Breve apresentação do NRA, suas funções e processo de recuperação. Apresentação detalhada dos custos da obra do Parque, incluindo os gastos com o NRA. Resumo e explicação do programa de ocupação funcional para os vários espaços do NRA Apresentação da ideia de transformação do Beco de Carreiras no pólo rural do Museu da Cidade e explicação da importância de preservar a memória do Porto rural. Algumas reflexões sobre ruralidade residual, transformações urbanas, memória e património. (integral ou em alguns casos seleccionado, pelo que diz respeito ao objecto) Síntese de Conteúdo Tabela 2.2.4. (cont.) Resumo do Material Documental recolhido sobre o NRA Disponível em: http://www.cmporto.pt/ users/0/66/FranciscoS endas _79a0958f2144199b7 69 db6b0413ada4e.pdf O livro em causa acompanha uma exposição com o mesmo nome, que contempla um espólio de objectos utilitários e agrícolas do quotidiano rural portuense do final do séc. XIX / princípio do séc. XX. Observações Anexo 2 - NRA Autoria João Rapagão João Rapagão Nº de Fotos (por grupo) 45 21 Conteúdos retratados Casas no exterior e, por vezes, no interior, caminhos, muros, construções abarracadas e anexos, sequeiros, celeiro, telheiros, recantos, animais, pormenores de construção e pequenos detalhes (janelas, portas, relógio de sol, escadas, pilares, namoradeiras, etc.), esteios, ramadas, hortas, portões, poço, vasos, varandas e alpendres. Fachadas, telhados, interiores, escadarias, vigas, casas em geral, em trabalhos de recuperação e restauro. Data ou momento do retrato Fotografias tiradas antes das obras de recuperação, aquando do levantamento fotográfico do núcleo. Fotografias tiradas durante os trabalhos de recuperação. São visíveis diversos pormenores de encaixes de vigas de madeira, de escadas e tectos principalmente, bem como estruturas de suporte dos soalhos. Existem imagens do interior e exterior das casas em plena obra de reconstrução. Estruturas de telhados em processo de aplicação de telhas. Chão por empedrar. Casas rodeadas de andaimes ou já com as fachadas em avançado processo de limpeza. E finalmente as casas já acabadas e pintadas de fresco, com as eiras e caminhos limpos, ao que parece imediatamente após a finalização dos trabalhos. As fotografias estão organizadas por casa. Em cada grupo, com maior ou menor detalhe, estão retratados os exteriores e zonas circundantes, ou seja, as fachadas e construções anexas, pátios e outros elementos em redor de cada casa, como vasos, material agrícola, ramadas, animais, hortas, etc. Existem poucas fotografias dos interiores, sendo que as existentes tendem a retratar pormenores arquitectónicos particulares, como pilares, janelas com namoradeiras, portas ou a estrutura interior do celeiro. Algumas das fotografias retratam detalhes muito específicos como o relógio de sol e outras, pelo contrário dão uma visão geral do conjunto. Existe também um conjunto de fotografias que retratam o beco, ou seja, o exterior do conjunto à face da rua, bem como, dos caminhos ladeados de muros em pedra, interiores ao núcleo. Descrição geral dos conteúdos retratados Tabela 2.2.5. Resumo das Fotografias (NRA) Conjunto de fotos desordenadas e misturadas com algumas plantas, esquiços, fotos aéreas do local, postais antigos e outras imagens já incluídas no levantamento fotográfico. Fotografias que compõe o Levantamento Fotográfico do NRA. Observações Anexo 2 - NRA 281 282 Autoria Própria Nº de Fotos (por grupo) 156 Conteúdos retratados Interior e exterior das casas, nomeadamente e com detalhe acrescido as salas, mobiliário e equipamento do centro de educação ambiental. Os pátios, recantos, tanques, eiras, sequeiros, telheiros e restantes elementos construídos do conjunto. O celeiro enquanto casa de chá e sua esplanada, as lojas (por fora e por dentro) seus produtos, decoração e mobiliário, o picadeiro, as casas de banho, a feira de produtos biológicos, a cozinha, diversos pormenores de construção, o beco de Carreiras e os portões que dão entrada para o núcleo, as hortas, canteiros, vegetação e os cobertos espalhados pelos jardins circundantes. Data ou momento do retrato Fotografias tiradas nos primeiros 4 meses de 2010, durante o trabalho de campo. As fotografias tiradas retratam desde o conjunto como um todo, com panorâmicas das suas casas e espaços circundantes, até aos detalhes de construção e a todo o tipo de pormenores com interesse, como por exemplo, os rótulos dos produtos vendidos nas lojas do NRA. Desta feita, podem observar-se as casas, pelas fachadas e elementos arquitectónicos característicos (telhados, janelas, alpendres, escadarias, etc.), mas também por dentro, sala a sala, passando pelo mobiliário e pelos pormenores de construção visíveis internamente (nichos em pedra, tabique exposto, etc.). São retratados os caminhos, recantos, escadas, muros e pátios, tanques, poços, canteiros e vegetação circundante, os anexos que albergam arrumos e lojas, a casa de chá e sua esplanada, o picadeiro central, as casas de banho, etc. Em resumo, todas as construções, equipamentos, restaurados ou acrescentados, como os cobertos com banco, por exemplo. As actividades comerciais estão igualmente documentadas, a feira semanal, mas também as lojas, cuja decoração e produtos estão registados, com muito detalhe principalmente no que toca à loja de produtos “gourmet “ "1000 paladares". O conjunto é patente pelo lado do parque, retratado de longe com o picadeiro ao centro e as casas por trás rodeadas do celeiro, de pequenos muros, sequeiros e pequenos anexos, mas também foi registado o beco e o muro que rodeia o núcleo pelo lado exterior ao parque, apenas aberto pelos portões de acesso às quatro quintas. Descrição geral dos conteúdos retratados Tabela 2.2.5. (cont.) Resumo das Fotografias (NRA) Não foi ensaiada uma correspondência rigorosa no retrato fotográfico do NRA para lograr uma comparação foto a foto com o levantamento feito antes das obras, no entanto, é possível, em muitos casos, fazer esse exercício de forma bastante detalhada, o que está patente na selecção de imagens legendadas em anexo. Observações Anexo 2 - NRA Anexo 2 - NRA 2.3 Fotos a) Fotografias relativas ao Núcleo Rural de Aldoar (NRA) Antes das obras de requalificação30 Foto 1: Beco de Carreiras. Foto 2: Pequeno pátio de acesso a uma das casas (hoje ocupada pelo Centro de Educação Ambiental). Note-se o avançado estado de desgaste dos materiais de construção, os inúmeros vasos dispostos junto à casa e nos degraus da escada, as videiras e a antena de televisão. 30 As fotografias apresentadas são da autoria do Arq. João Rapagão e fazem parte do levantamento fotográfico ao NRA, desenvolvido antes da intervenção. 283 Anexo 2 - NRA Foto 3: Um dos caminhos de ligação entre as quintas, cujo empedrado se encontra fortemente coberto por vegetação invasiva, tal como os muros de pedra. Foto 4: Uma das casas do núcleo, num estado visivelmente degradado. Repare-se no alpendre de chapa, com aspecto precário, que alberga diversos caixotes e víveres. 284 Anexo 2 - NRA Foto 5: Outra perspectiva da mesma casa e da respectiva eira. Foto 6: Pátio entre os diversos estábulos e galinheiros, ocupado por várias aves e um vitelo, sombreado por inúmeros esteios metálicos e troncos de videira. 285 Anexo 2 - NRA Foto 7: Vista para o núcleo, desde os campos que hoje constituem o Parque da Cidade. Do lado esquerdo pode ver-se o celeiro, atrás do qual se encontra um espigueiro, enquanto que, do lado direito (por detrás dos muretes de pedra), estariam as casas de habitação e os estábulos. Note-se as pequenas hortas e cultivos, rodeados de sebes feitas de paus e de canas, no campo que rodeia o celeiro. Foto 8: O celeiro original, que ficou destruído num incêndio que ocorreu pouco antes das obras. 286 Anexo 2 - NRA Foto 9: Interior do celeiro. Foto 10: Vista para o sequeiro (à esquerda), para as traseiras do celeiro (do lado direito) e para a eira que os separa. Este espaço é actualmente ocupado pela esplanada da cafetaria (localizada no celeiro). 287 Anexo 2 - NRA Foto 11: Tanque de lavar roupa, telheiro metálico, bacias e outros objectos do quotidiano. Foto 12: Poço, rodeado de vasos, algumas vassouras e outros objectos. Repare-se no telheiro precário (entretanto desaparecido depois das obras) e nos paus que sustentam a sua estrutura. 288 Anexo 2 - NRA Foto 13: Pequenos estábulos ou galinheiros. Foto 14: Pátio onde se localizam as cortes e os galinheiros (portas do lado direito). 289 Anexo 2 - NRA Foto 15: Pormenor de uma das casas que, segundo o que foi apurado, funcionava como uma espécie de esgoto ou fossa a céu aberto. Foto 16: Coberto, eventualmente usado para albergar animais ou guardar o feno. 290 Anexo 2 - NRA Foto 17: Beco entre casas. 291 Anexo 2 - NRA 292 Anexo 2 - NRA b) Fotografias relativas ao Núcleo Rural de Aldoar (NRA) Recentemente (primeiros meses de 2010).31 Foto 1a: Beco de Carreiras. No canto inferior esquerdo da fotografia pode ver-se a placa da Câmara Municipal do Porto que assinala a entrada no “Núcleo Rural de Aldoar”. Foto 4a: Uma das entradas para o pátio do Centro de Educação Ambiental. Pequeno caminho coberto e ladeado de portas (de antigos estábulos e galinheiros). Aqui, tal como em todos os edifícios do NRA, as portas e madeiras estão pintadas de vermelho. 31 Fotografias tiradas durante o Trabalho de Campo, ou seja, nos quatro primeiros meses de 2010. 293 Anexo 2 - NRA Foto 5a: Recanto entre a Loja da NaturoCoop e o Centro de Educação ambiental. Ao centro podem ver-se as escadas e a porta que dá acesso ao campo das hortas pedagógicas e o espaço onde tem lugar a feira semanal de produtos biológicos. Foto 6a: Cozinha do Centro de Educação Ambiental, com forno de lenha original e decoração rústica. 294 Anexo 2 - NRA Foto 7a: Sala do Centro de Educação Ambiental com trabalhos feitos pelas crianças que participam nas actividades. Foto 8a: Casas “siamesas” (por estarem ligadas por um acrescento posterior, que foi mantido nas obras de recuperação) e respectiva eira. São actualmente ocupadas pela loja de produtos “gourmet” e pelo seu escritório. 295 Anexo 2 - NRA Foto 9a: Varanda que liga as duas casas “siamesas” e que funciona como alpendre de acesso à loja de produtos “gourmet”. Do lado esquerdo podem ver-se os telhados dos anexos e estábulos que estão em redor do edifício. Foto 10a: Interior da loja de produtos “gourmet”, com os produtos dispostos nas suas estantes de madeira pintada e em algumas cestas de vime ao pé das “namoradeiras” da janela. 296 Anexo 2 - NRA Foto 11a: Edifício das chamadas “Ecolojas”. A porta aberta do lado esquerdo corresponde à loja de “comércio justo”, enquanto a do lado direito diz respeito à loja de produtos biológicos (apenas aberta ao fim de semana). Foto 12a: Estantes no interior da loja de produtos biológicos. 297 Anexo 2 - NRA Foto 13a: Celeiro reconstruído. Funciona como uma cafetaria (ver Foto 8 relativa ao período anterior à transformação). Foto 14a: Interior do celeiro/cafetaria (ver Foto 9 relativa ao período anterior à intervenção). 298 Anexo 2 - NRA Foto 15a: Caminho ladeado de muros de pedra, espigueiro recuperado e (do lado direito, atrás deste) a esplanada da cafetaria (ver Foto 10 relativa ao período anterior à transformação). Foto 16a: Vista geral do NRA (para quem vê do Parque da Cidade), do lado esquerdo pode ver-se o celeiro/cafetaria, no centro o picadeiro para póneis (actualmente desactivado) e, do lado direito, o edifício do Centro de Educação Ambiental (ver Foto 7 relativa ao período anterior às obras de requalificação). 299 Anexo 2 - NRA Foto 17a: Feira semanal de produtos biológicos. Repare-se nos esteios metálicos, que mesmo sem vinhas, foram repostos depois das obras, na tentativa de manter o carácter rústico do lugar. Foto 18a: Um dos bancos cobertos da autoria dos Arquitectos João Rapagão e César Fernandes, inspirados nas ripas de madeira dos sequeiros do Norte de Portugal, pintados com o mesmo vermelho das portas e janelas dos edifícios do núcleo, que estão espalhados pelos terrenos circundantes ao conjunto (quase como pontos de observação para a paisagem do NRA). 300 Anexo 2 - NRA Foto 19a: Poço (bastante simplificado e “despido” se compararmos com a Foto12 do período anterior à intervenção). Foto 20a: Coberto recuperado (ver Foto 16 relativa ao período anterior à recuperação do núcleo). 301 Anexo 2 - NRA Foto 21a: Beco entre casas (ver Foto 17 relativa ao período anterior à recuperação do núcleo). 302