Do discurso ao projecto urbano de reinvenção
da ruralidade
Ana Côrte-Real de Matos Fernandes
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Universidade de Barcelona
Faculdade de Geografia e Historia
Departamento de Geografia
Programa Doutoral: Geografia, Planeamento do Território e Gestão Ambiental
Tese de Doutoramento
Do discurso ao projecto urbano
de reinvenção da ruralidade
Ana Côrte-Real de Matos Fernandes
Janeiro de 2011
Orientação:
Professora Doutora Nuria Benach Rovira (Universidade de Barcelona).
Professor Doutor Paulo Peixoto (Universidade de Coimbra).
Trabalho de investigação totalmente financiado pela Fundação para a Ciência e
a Tecnologia e pelo Programa Operacional Potencial Humano da União
Europeia
POPH/FSE
Índice
Agradecimentos................................................................................................................... 9
Resumo .............................................................................................................................. 11
Abstract .............................................................................................................................. 13
Resumen ............................................................................................................................ 15
Resum ................................................................................................................................ 17
I.
Introdução .......................................................................................................................... 19
II.
O discurso de reinvenção da ruralidade .......................................................................... 31
1. Os principais questionamentos e objectivos de investigação. (o que se quer
saber) .............................................................................................................................. 33
2. Premissas e caminhos teóricos e metodológicos para a pesquisa. (como quero
saber) .............................................................................................................................. 39
III.
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto ........................ 43
1. A Estratégia. O discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural ........................... 48
2. A Matéria-Prima. O Ideal Rural ou o discurso cultural de romantização da
ruralidade ........................................................................................................................ 60
3. O Rural enquanto produto e os produtos rurais. O discurso promocional e
comercial em torno do rural consumível. ......................................................................... 69
4. Ponto de Situação (Estratégia → Matéria-Prima → Produtos) ........................................ 81
5
Índice
IV.
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores que
sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural ................................... 83
1. O Património e os valores culturais - identidade, tradição, memória. (Preservar o
Passado) ......................................................................................................................... 87
2. A Sustentabilidade e os valores ambientais - natureza e ecologia. (Garantir o
Futuro) ............................................................................................................................ 98
3. Ponto de Situação (Eixos → Valores → Missões) ......................................................... 106
V.
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e
interesses ......................................................................................................................... 111
1. Uma estratégia urbana de reinvenção da ruralidade? A analogia com as
estratégias de requalificação dos centros históricos das cidades .................................. 113
2. Um campo para a cidade – a valorização e reinvenção da ruralidade à luz das
necessidades e expectativas urbanas ........................................................................... 123
3. O rural como um problema em que se quer pensar – os interesses culturais,
económicos e políticos que sustentam este projecto de ruralidade ............................... 132
VI.
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao
encontro da ruralidade recriada ..................................................................................... 139
1. Notas Metodológicas ..................................................................................................... 145
2. Dois Projectos de recriação da ruralidade idílica? ......................................................... 150
2.1
A Quinta do Mata-Sete............................................................................ 150
2.2
O Núcleo Rural de Aldoar (NRA) ............................................................ 166
3. Reflexões e cruzamentos finais ..................................................................................... 186
6
Índice
VII.
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada ................................ 199
1. Os contornos desta ruralidade reinventada. (o que se espera das áreas rurais) ........... 201
2. As possíveis consequências deste projecto de ruralidade. (o que podem as áreas
rurais esperar neste contexto) ....................................................................................... 207
3. Considerações finais e propostas para futuras pesquisas. ............................................ 213
Bibliografia ....................................................................................................................... 217
Anexos
Anexo 1 – Mata-Sete ........................................................................................................ 243
1.1 Mapas .......................................................................................................................... 243
1.2 Tabelas ........................................................................................................................ 247
1.3 Fotos............................................................................................................................ 257
Anexo 2 – NRA ................................................................................................................. 269
2.1 Mapas .......................................................................................................................... 269
2.2 Tabelas ........................................................................................................................ 273
2.3 Fotos............................................................................................................................ 283
7
Índice
8
Agradecimentos
O trabalho de escrita de uma tese de Doutoramento, apesar de se traduzir
num processo muito solitário que, pela exigência de dedicação exclusiva, tantas
vezes nos leva a um isolamento quase conventual, faz-nos dever sempre muito a
contribuições, apoios e motivações externas. Neste sentido, é importante agradecer
às pessoas ou entidades que, pelo incentivo ou suporte dado, facilitaram o seu
desenvolvimento e, sem as quais, tudo teria sido, certamente, mais difícil.
Em primeiro lugar agradeço aos meus pais por tudo, por me terem
convencido a concorrer a uma bolsa de doutoramento e, especialmente, pelo apoio
incondicional, mesmo nas horas mais desesperadas.
Deixo também um forte agradecimento à Fundação para a Ciência e
Tecnologia, que através do fundo POPH, patrocinou generosamente os meus
estudos doutorais e a elaboração deste trabalho.
Agradeço à Professora Doutora Nuria Benach Rovira e ao Professor Doutor
Paulo Peixoto, por terem aceitado o trabalho de orientação desta pesquisa e por
terem cumprido essa tarefa com toda a disponibilidade, simpatia e exigência crítica.
Obrigada pela paciência, por partilharem comigo estas páginas, mas sobretudo por
terem sido os meus únicos “cúmplices” neste longo caminho.
Não posso deixar também de prestar a minha gratidão a todos os autores
cujas obras foram consultadas e a todas as pessoas que possibilitaram o trabalho de
campo, que serve de base ao sexto capítulo desta dissertação. Pelos motivos
óbvios, sem a disponibilidade de todos os entrevistados, sem os contributos de
todos os que forneceram material documental sobre os objectos ou que prestaram
esclarecimentos,
visitas
guiadas,
informações,
etc.,
esta
pesquisa
estaria
certamente mais pobre. Agradeço em especial à Doutora Teresa Andresen, não só
pelas ajudas no trabalho de campo, mas principalmente pela sugestão valiosa em
incluir o caso do Mata-Sete na abordagem; bem como ao Arq. João Rapagão que se
mostrou sempre muito generoso, partilhando um grande número de fotografias e
muito material documental do seu arquivo pessoal.
Importante é também agradecer a Joana Martins, pela preciosa ajuda com os
mapas, a Teresa Fernandes, pelo auxílio com as transcrições de entrevistas, bem
9
Agradecimentos
como a Tiago Romeu e a Alexandra Côrte-Real pelo trabalho de tradução do resumo
desta dissertação.
Quero também louvar as sugestões e críticas de todas as pessoas que
debateram comigo este trabalho, nas conferências, seminários e congressos em que
participei nos últimos anos e, especialmente, na Summer School da Associação
Europeia de Sociologia Rural (realizada em Córdoba em Outubro de 2010), pelo
facto de terem sido essenciais para a sua evolução e questionamento crítico.
Agradeço calorosamente a todos os professores do Master em Planeamento
Territorial e Gestão Ambiental, da Faculdade de Geografia e História da
Universidade de Barcelona, que frequentei no âmbito da parte lectiva do programa
doutoral. Uma palavra especial vai para a Professora Doutora Rosa Tello, pelas
suas importantes sugestões durante o processo de formação da problemática que
serviu de mote a este trabalho, bem como para a Professora Doutora Dolores
Sanchez Aguilera, pelo apoio e pela simpatia com que me recebeu em Barcelona.
Não posso deixar de agradecer à minha grande amiga Berezi Elorrieta, que
tantas vezes me ajudou com papelada, secretaria e matriculas, bem como aos
restantes companheiros de Master: Rafa, Gartzen, Riccardo, Veronica, Pilar, Ana,
Carlos, Alexis, Joan, Paula… Obrigada pelos jantares, pelas viagens, pelos
trabalhos de grupo, pela companhia e por terem sido a minha “primeira” Turma!
(muxu bat/petons/besitos)!
Finalmente, agradeço à Professora Isabel Duarte (obrigada por me ter
ensinado porque é que “isto das cidades” é importante), a Ana Pires e Pedro Areias
(obrigada pelo apoio em Barcelona), Alexandre Pólvora e Susana Nascimento
(obrigada pelos conselhos importantes), a Jorge Vieira, Joana Botelho, Sandra
Costa, Pedro Quintela e Mariana Bessa (obrigada por termos sido uma família), a
Marta Bateira e todos os amigos do Rap (obrigada pelos essenciais momentos de
evasão) e a Pedro Geraldes (obrigada pela força, pela companhia e, sobretudo, pela
paciência!).
10
Resumo
A presente tese tem como núcleo temático o discurso de reinvenção da
ruralidade.
Partindo
da
premissa
de
que
vem
sendo
disseminada
e
institucionalizada, em diversas esferas da vida social, uma valorização discursiva da
ruralidade e do seu potencial de reinvenção (perante uma suposta crise demográfica
e funcional generalizada e igualmente forte nos discursos políticos, mediáticos e
sociais), pretendemos ir ao encontro do projecto de ruralidade que se precipita neste
contexto. Da assunção da crise do mundo rural parece brotar um discurso optimista
por relação às suas perspectivas de reinvenção, do qual deriva a proposta de uma
determinada versão de ruralidade. Ora, importa discutir este projecto e o seu
programa funcional para as áreas rurais, pelo seu poder e influência, já que é a partir
dos discursos e do seu trabalho de definição de significados para os lugares, que se
define o modo como vemos, valorizamos, gerimos e projectamos os territórios.
Discutimos o discurso em três dimensões fundamentais, ou seja, no seu
registo político e técnico (mais precisamente no âmbito das políticas de
desenvolvimento rural), na sua raiz cultural (a bateria de representações bucólicas
que compõe o chamado Ideal Rural) e, finalmente, no seu registo comercial (naquilo
que é a promoção dos produtos rurais e do rural enquanto produto). Posto isto,
verificamos que a estratégia política de desenvolvimento para as áreas rurais,
fortemente baseada no seu potencial natural e patrimonial, se alimenta do ideal
rural, para fazer vender um conjunto de produtos, num processo de transformação
destes territórios em espaços de consumo e não mais de produção.
Esta
perspectiva
de desenvolvimento
baseia-se
na
valorização dos
patrimónios naturais e culturais e sai legitimada pelo binómio axiológico que sustenta
o discurso de reinvenção da ruralidade. De facto, património e sustentabilidade
ambiental gozam, nas sociedades ocidentais, de uma sacralidade e de uma
centralidade discursiva, que facilita a legitimação da ruralidade idílica, no sentido em
que esta é apresentada como uma reserva dos valores culturais e ambientais que
estão em risco nas cidades e na civilização. Desta feita, os argumentos e os valores
por detrás do discurso, ao mesmo tempo que reforçam o seu poder e a sua
11
Resumo
aceitação social, precipitam as grandes missões do mundo rural – preservar o
passado e garantir o futuro.
Por fazer sentido enquanto alteridade a um modelo de cidade próspera,
dominante, mas muito demonizada discursivamente, por responder às expectativas
de recreação e consumo urbanas e às suas representações idílicas de ruralidade,
por favorecer o alargamento dos negócios e mercados urbanos e a reintegração dos
recursos rurais nas lógicas de rentabilização do capitalismo, por resultar em
estratégias de requalificação territorial muito próximas das aplicadas aos centros
históricos das cidades, entre outras razões, somos levados a pensar neste
discurso/projecto pela sua origem urbana. Assim sendo, para além de analisar o
conjunto de interesses culturais, económicos e políticos que sustentam este
discurso, sempre à luz das relações territoriais e tendo em conta a forte dominação
urbana, importava ir ao corpo da cidade para palpar as materializações deste
discurso.
Escolhemos estudar espaços de recriação da ruralidade idílica, para perceber
os contornos do projecto que se impõe aos territórios rurais, ou seja, conhecer as
paisagens desejadas (e, portanto, as expectativas que pairam sobre as paisagens
reais), a partir da sua materialização cenográfica em lugares temáticos, para
usufruto urbano. Assim, através de uma incursão etnográfica, conhecemos a quinta
do Mata-Sete e o Núcleo Rural de Aldoar, que constituem pequenos nichos de
ruralidade recriada, nos dois maiores parques urbanos da cidade do Porto, “capital”
do Norte de Portugal. Encontrámos uma ruralidade educativa, patrimonial, depurada
e cómoda, adaptada às exigências de conforto urbano e derivada do ideal rural.
12
Abstract
This thesis’ core theme is the rurality reinvention discourse. The starting point
is the assumption that the valuation of rurality and its reinvention potential is being
discursively disseminated (facing a supposedly generalized demographic and
functional crisis in rural territories, very centralized in political and social discourses
as well as in the media). This valuation of rurality is being institutionalized in several
layers of society. Our intention is to meet the rurality project emerging from this
context.
From the assumption of crisis in the rural world seems to grow an optimist
discourse related to its reinvention perspectives, from which the proposal of a
specific version of rurality comes out. So, considering its power and influence, it
becomes important to discuss this project and its functional programme for rural
areas. It is actually from discourse, and its job to define meanings for the places, that
we are able to define the way we see, value, manage and project territories.
We handled the discourse in three fundamental dimensions, that is, its political
and technical feature (more precisely in the scope of rural development policies), its
cultural root (the range of bucolic representations which build the so-called
Countryside Ideal) and finally, its commercial feature (the promotion of rural products
and of the rural as a product). That being said, we have noticed that the political
development strategy for rural areas, strongly based on their natural and patrimonial
potential, supports itself with the rural idyll, in order to sell a series of products, in a
process of transformation of these territories in consumption areas, and not of
production anymore.
This development perspective is based on the valuing of natural and cultural
patrimony and is legitimated by the axiological binomial which sustains the discourse
of rurality reinvention. In fact, patrimony and environmental sustainability enjoy, in
western societies, a holiness and a discursive centrality that facilitates the validation
of the idyllic rurality, in the sense that it is presented as a reserve for cultural and
environmental values at risk in cities and civilization. So, the arguments and the
values behind the discourse reinforce its power and social acceptance at the same
13
Abstract
time they hasten the big missions of the rural world – preserve the past and grant the
future.
Because it makes sense as an alternative to a model of prosperous city,
dominant, but very discursively demonized; because it responds to urban recreation
and consumption expectations and their idyllic representations of rurality; because it
encourages business and urban market growth; because it results from territorial
requalification strategies very close to the ones used in historical city centres, among
other reasons, it makes sense to think of this discourse/project as having an urban
origin. That being so, besides analysing the group of cultural, economical and
political interests that sustain this discourse, always in the light of the territorial
relationships and their remission to urban dominance, it was important to go deep
into to the city (as an empirical object) in order to grasp the discourse’s
materializations.
We have chosen to study spaces of idyllic rurality thematization in order to
understand the outlines of the reinvention project imposed to rural territories. That is,
getting to know the desired landscapes (and thus the expectations floating over the
real landscapes), from their scenographic materialization, in thematic places for
urban fruition. Thus, through an ethnographic incursion, we have gone to the Quinta
do Mata-Sete and to the Núcleo Rural de Aldoar, which are small niches of recreated
rurality in two of the biggest urban parks in the city of Porto, “capital” of Northern
Portugal. We have found an educational, patrimonial, purified and comfortable
rurality, adapted to the urban comfort demands and arisen from the rural idyll.
14
Resumen
Esta tesis tiene como núcleo temático el discurso de reinvención de la
ruralidad. Partiendo de la premisa de que, en diversas esferas de la vida social, se
viene diseminando una valoración discursiva de la ruralidad y de su potencial de
reinvención (delante de una supuesta crisis demográfica y funcional generalizada e
igualmente fuerte en los discursos políticos, mediáticos y sociales), queremos ir al
encuentro del proyecto de ruralidad que se nos depara en este contexto. De la
asunción de la crisis del mundo rural, parece brotar un discurso optimista
relacionado con sus perspectivas de reinvención, del cual deriva la propuesta de una
determinada visión de la ruralidad. Aquí nos interesa debatir este proyecto y su
programa funcional para las áreas rurales, por su poder e influencia, ya que es a
partir de su discurso y de su trabajo de definición de significados para los lugares
que se define el modo como vemos, valoramos, gestionamos y proyectamos los
territorios.
Discutimos el discurso en tres dimensiones fundamentales, es decir, en su
registro político y técnico (precisamente en el ámbito de las políticas de desarrollo
rural), en su raíz cultural (el conjunto de representaciones bucólicas que componen
el llamado Ideal Rural) y, finalmente, en su registro comercial (en lo que es la
promoción de los productos rurales y del rural en cuanto producto). Dicho esto,
verificamos que la estrategia política de desarrollo para las áreas rurales,
fuertemente basada en su potencial natural y patrimonial, se nutre del ideal rural
para hacer vender un conjunto de productos, en un proceso de transformación de
estos territorios en espacios de consumo y no más de producción.
Esta perspectiva de desarrollo se basa en la valoración de los patrimonios
naturales y culturales y sale legitimada por el binomio axiológico que sostiene el
discurso de reinvención de la ruralidad. De hecho, patrimonio y sostenibilidad
ambiental ganan, en las sociedades occidentales, una sacralidad y una centralidad
discursiva que facilita la legitimación de la ruralidad idílica, en el sentido en el que
esta se presenta como una reserva de valores culturales y ambientales que están en
riesgo en las ciudades y en la civilización. Los argumentos y valores por detrás del
15
Resumen
discurso, en cuanto refuerzan su poder y su aceptación social, precipitan las grandes
misiones del mundo rural - preservar el pasado y garantizar el futuro.
Por tener sentido en cuanto alteridad a un modelo de ciudad próspera,
dominante, aunque muy demonizada discursivamente; por responder a las
expectativas de recreación y consumo urbanas y a sus representaciones idílicas de
ruralidad; por favorecer la expansión de los negocios y mercados urbanos y la
reintegración de los recursos rurales en las lógicas de rentabilización del capitalismo;
por resultar en estrategias de recalificación territorial muy próximas de las aplicadas
a los centros históricos de las ciudades; entre otras razones, somos llevados a
plantear este discurso/proyecto por su urbanidad. Así, más allá de analizar el
conjunto de intereses culturales, económicos y políticos que sostienen este discurso,
siempre a la luz de las relaciones territoriales y teniendo en cuenta la dominación
urbana, nos importaba ir al cuerpo de la ciudad para palpar las materializaciones de
este discurso.
Elegimos estudiar espacios de recreación de la ruralidad idílica para entender
los contornos del proyecto que se impone a los territorios rurales, o sea, conocer los
paisajes deseados (y por lo tanto las expectativas que flotan sobre los paisajes
reales), a partir de su materialización escenográfica, en lugares temáticos para
usufructo urbano. Así, a través de una incursión etnográfica, conocemos la granja
del Mata-Sete y el Núcleo Rural de Aldoar, que constituyen pequeños nichos de
ruralidad recreada, en los dos más grandes parques urbanos de la ciudad de Oporto,
“capital” del Norte de Portugal. Encontramos una ruralidad educativa, patrimonial,
depurada y cómoda, adaptada a las exigencias de conforto urbano y derivada del
ideal rural.
16
Resum
La present tesi te com a nucli temàtic el discurs de reinvenció de la ruralitat.
Partint de la premissa de que s’està disseminant i institucionalitzant, en diverses
esferes de la vida social, una valoració discursiva de la ruralitat i del seu potencial de
reinvenció (davant d’una suposada crisi demogràfica i funcional generalitzada i
igualment forta en els discursos polítics, mediàtics i socials), volem arribar al projecte
de ruralitat que es precipita en aquest context. De l’assumpció de la crisi del mon
rural sembla brotar un discurs optimista en relació a les seves perspectives de
reinvenció, del qual deriva la proposta d’una determinada visió de ruralitat. Ara, ens
importa discutir aquest projecte i el seu programa funcional per a les àrees rurals, pel
seu poder i influència, ja que és a partir dels discursos i del seu treball de definició
de significats per els llocs que es defineix la forma mitjançant la qual veiem, valorem,
gestionem i projectem els territoris.
Discutim el discurs en tres dimensions fonamentals, és a dir, en el seu registre
polític i tècnic (més precisament en l’àmbit de les polítiques de desenvolupament
rural), en la seva arrel cultural (el conjunt de representacions bucòliques que
composen l’anomenat Ideal Rural) i, finalment, en el seu registre comercial (en allò
que consisteix en la promoció dels productes rurals i del rural com a producte).
Arribats aquí, verifiquem que l’estratègia política de desenvolupament per a les
àrees rurals, fortament basada en el seu potencial natural i patrimonial, es nodreix
de l’ideal rural, per fer vendre un conjunt de productes, en un procés de
transformació d’aquests territoris en espais de consum i no més de producció.
Aquesta perspectiva de desenvolupament es basa en la valoració dels
patrimonis naturals i culturals i surt legitimada pel binomi axiològic que sosté el
discurs de reinvenció de la ruralitat. De fet, patrimoni i sostenibilitat ambiental
gaudeixen, en les societats occidentals, d’una sacralitat i d’una centralitat discursiva
que facilita la legitimació de la ruralitat idíl·lica, en el sentit en que aquesta és
presentada com una reserva dels valors culturals i ambiental que estan en risc en les
ciutats i en la civilització. En aquest cas, els arguments i els valors darrera el discurs,
mentre reforcen el seu poder i la seva acceptació social, precipiten les gran missions
del mon rural – preservar el passat i assegurar el futur.
17
Resum
Per tenir sentit com a alteritat a un model de ciutat pròspera, dominant però
demonitzada discursivament, per respondre a les expectatives de recreació i consum
urbanes i a les seves representacions idíl·liques de ruralitat, per afavorir
l’allargament dels negocis i mercats urbans i la reintegració dels recursos rurals en
les lògiques de rendibilització del capitalisme, per resultar en estratègies de
requalificació territorial molt properes de les aplicades als centres històrics de les
ciutats, entre altres raons, som portats a pensar en aquest discurs/projecte per la
seva origen urbana. Així, més enllà d’analitzar el conjunt d’interessos culturals,
econòmics i polítics que sostenen aquest discurs, sempre sota la llum de les
relacions territorials i tenint en compte la forta dominació urbana, ens importava anar
al cos de la ciutat per palpar les materialitzacions d’aquest discurs.
Hem triat estudiar espais de recreació de ruralitat idíl·lica, per entendre els
contorns del projecte que s’imposa als territoris rurals, o sigui, conèixer els paisatges
desitjats (i, conseqüentment, les expectatives que pairen sobre els paisatges reals),
partint de la seva materialització escenogràfica en llocs temàtics, per gaudi urbà.
Així, mitjançant una incursió etnogràfica, coneixem la granja del Mata-Sete i el Nucli
Rural d’Aldoar, que constitueixen petits nínxols de ruralitat recreada, en els dos més
grans parcs urbans de la ciutat d’O Porto, “capital” del Nord de Portugal. Hem trobat
una ruralitat educativa, patrimonial, depurada i còmoda, adaptada a les exigències
del confort urbà i derivada de l’ideal rural.
18
I.
Introdução
Mas que paz se desdobra a toda a anchura
do horizonte a que o olhar se faz?
Esta página em branco (ou sem leitura)
não terá uma chave por detrás?
Eu sei ler a cidade, mas, aqui
sou um dedo parado em letra morta.
Uma guerra haverá, com o álibi
da paisagem que a outras me transporta.
1972, Alexandre O´Neill
1
Começamos por esclarecer que o argumento central a destacar da tese que
apresentamos é o de que o discurso de reinvenção da ruralidade parece ter, pelo
menos, tanto a ver com a crise do mundo rural, como com as necessidades do
mundo urbano. Assim sendo, sublinha-se que neste processo de reinvenção
satisfazem-se mais os interesses e as expectativas de consumo urbanos, do que se
encontram soluções para os problemas das áreas rurais. Por este motivo, tomamos
o discurso/projecto de reinvenção da ruralidade, no quadro de dramatização da crise
rural, pela sua urbanidade e ilustramos a pesquisa com o estudo de dois objectos
empíricos que remetem para o corpo da cidade.
O presente trabalho constitui um percurso reflexivo, progressivo e crítico, que
tem como ponto de partida a centralidade dos discursos de valorização da ruralidade
e do seu potencial de reinvenção, perante uma suposta crise funcional e
demográfica generalizada. Pela força que vem assumindo na actualidade, em
diversas esferas da vida social, esta perspectiva optimista e estimuladora do valor
estratégico e simbólico da ruralidade, deve ser tomada como objecto de interesse,
questionamento e desconstrução. Sobretudo se tivermos em conta os problemas
sociais, funcionais, demográficos e económicos associados ao mundo rural,
1
Excerto do poema “Pelo Alto Alentejo /2”, retirado de O’Neill, Alexandre (2005), Poesias Completas, Lisboa,
Assírio & Alvim.
Introdução
principalmente nos países do Sul da Europa, e o protagonismo que as cidades e os
recursos urbanos auferem, no seio da Globalização.
Importa perceber esta valorização discursiva e identificar a sua versão de
ruralidade, apresentada como a salvação do mundo rural, considerada essencial
para um mundo eminentemente urbano e condicionadora dos territórios, enquanto
arquétipo orientador do desenvolvimento. É essa a proposta deste trabalho de
investigação, que partirá do discurso, enquanto estrutura ideológica, suportada por
determinados valores e interesses e promotora de um determinado projecto de
território, para tentar perceber o que se espera e o que podem esperar as áreas
rurais neste contexto. Por outras palavras, pretendemos perceber e antecipar as
expectativas que configuram e precipitam os territórios, através do poder e da
influência dos discursos políticos, sociais, culturais e comerciais, que alimentam o
projecto dominante de ruralidade.
Neste sentido, assume-se a existência do discurso e de um projecto de
ruralidade derivado e inerente, como uma premissa que serve de base para todo o
caminho reflexivo. É precisamente sobre os contornos do núcleo temático deste
trabalho que se desenvolve o Capítulo II, já que, para além de explicar a origem do
questionamento que serve de mote à reflexão, as suas premissas e objectivos
fundamentais, enuncia os principais tópicos de discussão que estimulam e orientam
a sua progressão.
Para concretizar a desconstrução do discurso (já no Capítulo III), começamos
por definir teoricamente a sua identidade conceptual e aquilo que constitui e contém
enquanto noção genérica, para depois debater cuidadosamente as suas principais
dimensões, no que diz respeito, especificamente, à ruralidade. Ou seja, passamos à
análise dos seus diferentes registos e vozes (que afinal funcionam como camadas
em sobreposição), mais concretamente pela discussão da sua dimensão estratégica
(no que se constitui como o discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural),
cultural (a bateria de representações positivas em redor da ruralidade, enraizada nos
nossos imaginários colectivos, através da arte, da literatura, etc.) e comercial
(associada aos esforços de promoção dos produtos e territórios rurais).
Desta feita, este capítulo é dedicado à reflexão em torno das orientações
estratégicas das políticas de desenvolvimento rural e sua filosofia de intervenção, do
chamado Ideal Rural e do seu poder de influência nos olhares e nas expectativas
que se impõe aos territórios, bem como dos produtos rurais que são promovidos
20
Capítulo I
neste contexto. Sintetizando, discute-se uma estratégia de desenvolvimento, a sua
“matéria-prima” cultural e os produtos que pretende rentabilizar, naquilo que se
vislumbra como o processo de reinvenção da ruralidade, de espaço de produção (ou
em crise funcional) a espaço de consumo.
Destaca-se o pendor patrimonialista do discurso e a importância da
associação de ruralidade a cultura e a natureza, quase como uma elevação do
mundo rural a reserva do que está em risco nas cidades e no nosso tempo histórico.
Prosseguindo com esta desmontagem do discurso, no Capítulo IV remetemos o
debate para os valores que legitimam a valorização da ruralidade, dando-lhe sentido
e historicidade. De facto, pensada no quadro das grandes inquietações e
necessidades da civilização, esta ruralidade conservacionista que funciona como um
santuário ou um refúgio, é legitimada por dois valores/chavões essenciais na
estrutura
axiológica
das
sociedades
ocidentais
–
património
histórico
e
sustentabilidade ambiental.
Pelo consenso e sacralidade que aufere, no quadro da globalização e num
momento em que tanto cepticismo se concentra, em torno da viabilidade futura do
nosso modelo de desenvolvimento, este binómio é quase inquestionável e legitima,
por associação, o aparente consenso que paira sobre a importância do mundo rural,
enquanto repositório das identidades culturais e das relações harmoniosas entre o
Homem e a Natureza. Nesta lógica, importa reforçar que, com esta legitimação, são
precipitadas as grandes missões para as áreas rurais: preservar o passado e
garantir o futuro.
No Capítulo V, há lugar para justificar a afirmação da urbanidade deste
discurso, no sentido em que se explica a origem da valorização do rural, da sua
estratégia de reinvenção (em analogia com as manobras de requalificação dos
centros históricos das cidades), dos consumidores dos seus produtos e até do
aproveitamento que é feito do potencial de rentabilização do (reforçado) valor
simbólico associado à ruralidade. Por outras palavras, reitera-se a ideia de que
estamos perante um discurso urbano de reinvenção da ruralidade, da estratégia ao
consumo, das representações às expectativas, dos valores aos interesses, mas
principalmente porque esta existe como contraponto à cidade, como sua alteridade
essencial e como sua referência estável, num contexto de grandes e rápidas
transformações.
21
Introdução
Propõe-se, portanto, um ensaio de integração do discurso no quadro das
relações territoriais e um exercício de concretização da sua desconstrução, já que
importa identificar a sua origem, justificar o seu poder e resistência e discutir os
interesses culturais, económicos e políticos que o motivam e sustentam. Nesta
lógica, estando assumido que estamos perante um discurso urbano de valorização
do rural, decidimos procurar na anatomia da cidade, espaços que servem a
alimentação do projecto de ruralidade reinventada, por via da recriação e
materialização do bucolismo veiculado. Ora, no Capítulo VI, haverá espaço para
expor as reflexões que resultam de uma abordagem etnográfica a dois espaços de
suposta encenação de ambientes campestres, na cidade do Porto (no Norte de
Portugal).
Desenvolvemos uma incursão empírica à quinta do Mata-Sete, que faz parte
do Parque da Fundação se Serralves, bem como ao Núcleo Rural de Aldoar, dentro
do Parque da Cidade do Porto, no sentido de perceber as motivações por detrás
ambos os projectos paisagísticos, os seus contornos cenográficos, a sua
arquitectura, a cultura material característica, a iconografia associada, etc., com o
intuito de os questionar enquanto exemplos de recriação da ruralidade idílica,
veiculada no discurso dominante, e identificar as suas funções sociais, usos e
principais actividades.
Conhecendo e analisando a história e configuração paisagística dos dois
lugares, ensaia-se a sua desconstrução enquanto materializações do projecto
urbano de ruralidade dominante, enquanto exemplos de hiper-ruralidade, espaços
de tematização ou de concretização do sonho bucólico. Constituindo lugares criados
com uma certa liberdade criativa ou com uma selectividade consciente, e
acumulando o carácter de paisagens imaginadas com a condição de espaços reais e
quotidianos, podem traduzir-se em materializações do sonho rural e permitir, assim,
o reforço da discussão em torno dos contornos do projecto de ruralidade, que se
dissemina discursivamente como arquétipo.
Acrescentando, e após todo este caminho reflexivo, pretendemos sistematizar
as conclusões pontuais de cada capítulo, fazendo desembocar a discussão em torno
do discurso, na enunciação dos traços que definem o seu projecto de ruralidade.
Desta feita, no Capítulo VII, além de ensaiarmos uma concretização das principais
características da ruralidade discursiva proposta para os territórios reais,
pretendemos conjecturar algumas das possíveis consequências que podem derivar
22
Capítulo I
da sua aplicação. Resumindo, dissertaremos em torno do que é esperado dos
territórios rurais e do que podem estes esperar neste contexto. Haverá ainda
oportunidade para reforçar a pertinência da abordagem e para apresentar algumas
propostas de investigação complementar.
Posto isto, pode ser dito que começaremos por assumir a existência, a
relevância e a centralidade do discurso de reinvenção da ruralidade e por
desconstruí-lo nos seus diferentes registos e dimensões essenciais (estratégia,
matéria-prima e produtos). Analisaremos também os dois grandes axiomas que
servem de argumentos para a sua legitimação (cultura e natureza, através do
binómio património/sustentabilidade ambiental) e que precipitam a funcionalidade
social desta ruralidade reinventada: preservar o passado e garantir o futuro. Para,
posteriormente, reforçar a constatação da urbanidade do discurso, discutindo o
quadro de representações, expectativas, necessidades e interesses (culturais,
económicos e políticos) que o motivam e sustentam.
Finalmente, procuraremos no corpo da cidade materializações do projecto de
ruralidade dominante e ensaiaremos a identificação dos seus contornos, sem
esquecer a apresentação das suas eventuais consequências para os territórios
rurais. Cumprindo o trilho que parte do discurso para chegar ao seu projecto
territorial, somos animados pela convicção que é essencial conhecer as paisagens
sonhadas, desejadas, imaginadas, simbólicas e discursivas, para poder antecipar e
entender as paisagens reais. Neste sentido, reforça-se esta proposta reflexiva,
enquanto se sublinha a sua pertinência teórica e a sua utilidade, como ferramenta
para o debate em torno das questões territoriais e das estruturas ideológicas que
orientam as estratégias de desenvolvimento.
Deve ser dito que não se pretende circunscrever a abordagem à
circunstancialidade de um contexto definido, já que queremos debater o discurso
dando conta do seu carácter generalista, disseminado e aéreo. Dizendo respeito a
uma ruralidade genérica, apontando uma crise supostamente transversal às áreas
rurais, simplificando a complexidade e a diversidade territoriais e apresentando uma
estratégia de reinvenção a aplicar de forma indiferenciada, por via da valorização de
um potencial supostamente comum a todos os lugares que cabem no conceito
(também ele vago) de “mundo rural”, este discurso generaliza-se, precisamente por
ser generalista.
23
Introdução
Sendo a abrangência uma das suas características estruturais, ao
contextualizar a abordagem, enquadrando-a numa realidade concreta, estaríamos a
podar a margem reflexiva que se exige para tomar um objecto tão etéreo e
pulverizado. Ou seja, para dar atenção à circunstancialidade e aos particularismos
de um âmbito (social ou geográfico) circunscrito, reduziríamos demasiado o espectro
do debate. Portanto, não se pretende discutir o discurso dentro de uma realidade
territorial restrita, já que estamos sensíveis ao seu carácter generalista e assumimos
a estratégia de tomá-lo como objecto, numa abordagem que se pauta por uma
abrangência correspondente.
Queremos ainda salvaguardar que um dos objectivos de fundo que estimula
este trabalho, é o de construir uma reflexão ampla e um quadro teórico polivalente,
que articule variadas temáticas (muitas vezes tratadas de forma dispersa) que
derivam do discurso de reinvenção da ruralidade, mas sobretudo, que estimule a
interpretação de diversas realidades empíricas. Ora, a amplitude do espectro de
discussão facilita o seu cruzamento com realidades múltiplas e a sua aplicação a
vários âmbitos territoriais. Também por isso, ou seja, pela abrangência da reflexão
teórica a que nos propomos e pela infinitude do seu universo temático, poderíamos
ilustrar a pesquisa com incontáveis casos empíricos.
De facto, reforça-se a intenção de desenvolver um debate teórico que articule
diversos temas, dinâmicas, questões e fenómenos que, segundo cremos, orbitam
em torno da fonte maior, que constitui este discurso de reinvenção da ruralidade, no
sentido de criar um quadro teórico robusto e organizado, que estimule o estudo de
diversos objectos empíricos. Assim, sublinhamos que a incursão ao terreno proposta
não deve ser encarada como o núcleo central deste percurso reflexivo, mas antes
como mais um input de informação para animar o debate, como um ensaio de
aplicação destas proposições teóricas (entre as múltiplas hipóteses possíveis) e
como um exercício ilustrativo, sem qualquer pretensão de produzir dados que
alcancem a representatividade.
Acrescentando, o trabalho de campo que suscita o sexto capítulo desta tese
acaba por reforçar, enquanto escolha e selecção de enfoque, a intenção de
considerar a urbanidade do projecto de ruralidade reinventada e por fazer avançar a
discussão para o plano das materializações do discurso na paisagem. Nesta lógica,
precipita a identificação dos contornos desse projecto no seu contexto de produção
24
Capítulo I
e alimentação primordial – a cidade, naquilo que acaba por ser o adiantar do
percurso reflexivo proposto.
Salvaguarda-se ainda, que centraremos o enfoque etnográfico no lado da
produção dos lugares e não no seu consumo e interpretação. Em primeiro lugar,
porque se pretende animar a discussão em torno dos contornos do projecto que
alimenta expectativas urbanas de ruralidade idílica, fazendo sentido priorizar a
abordagem em torno da produção da paisagem (enquanto modelo ou lugar de
consagração do sonho), mas também porque a perspectiva do consumo e da
interpretação do quadro suscitaria todo um novo espectro de estudo e debate, que
seria demasiado exigente e ambicioso, para o âmbito desta pesquisa. De qualquer
forma, teremos oportunidade de justificar todas as escolhas e de explicar estas
questões com mais detalhe à medida que for oportuno.
Como outra salvaguarda importante, deve ser dito que estamos
conscientes da recorrência e da centralidade assumidas pelas categorias territoriais
ao longo deste texto, onde se apresentam tantas vezes em contraponto e
cruzamento. Longe de querer reiterar a sua rigidez e sabendo que as realidades
territoriais não se coadunam com a “pureza” e a compartimentação que estas
sugerem, enquanto estruturas conceptuais, não desmerecemos a sua utilidade
teórica nesta problemática e, principalmente, o seu poder de influência ao nível das
representações e dos discursos em torno dos lugares.
De facto, mesmo que as realidades territoriais sejam complexas, híbridas e
fluidas, não cabendo facilmente em categorias estanques (de rural ou urbano, por
exemplo) e tendo em consideração o quão difícil é definir os critérios que criam e
atribuem esses rótulos, a verdade é que, no plano das ideias, dos discursos e das
representações culturais, essa compartimentação dicotómica é dominante. As
categorias territoriais servem a organização e a formulação de significados em torno
dos lugares, fornecem ferramentas para os discursos (palavras, conceitos,
oposições, etc.), orientado a forma como consideramos as suas funções, valores,
utilidades, conotações, etc.
A importância da categorização dualista rural/urbano é patente, tendo em
conta que funciona como base para a formação do imaginário popular em torno dos
territórios, mas também para a construção do património conceptual científico,
técnico e político. As categorias territoriais culturalmente estabelecidas não são
apenas “molduras” que ajudam a entender o mundo, controlando a forma como
25
Introdução
agimos dentro dele. Ora, estando os territórios compartimentados e organizados,
política e institucionalmente, segundo critérios (de uso, valor, etc.) que derivam
directamente das categorias culturalmente estabelecidas e suas conotações, as
nossas vidas são fortemente influenciadas pelo seu poder e implementação
detalhada (Vandergeest & DuPuis, 1996).
Estando a problemática do discurso hegemónico de valorização e reinvenção
da ruralidade dependente da noção de “rural”, em contraponto com a noção de
“urbano” e partindo esta discussão, precisamente, da ideia de que as estruturas de
significados, imagens e representações, em torno dos territórios, precipitam
projectos e orientações para o seu desenvolvimento, a relevância destas categorias
é inquestionável, por ser intrínseca ao próprio objecto de debate. Podendo não
funcionar para definir e compartimentar os territórios, estas categorias servem
certamente para organizar os discursos que se organizam em seu redor, residindo
nesse poder e utilidade, o seu interesse teórico e a sua pertinência conceptual.
A propósito, deve ser igualmente esclarecido que faremos uso dos termos
“rural”,
“urbano”,
“ruralidade”,
“urbanidade”,
“áreas/espaços/territórios
rurais/urbanos”, “mundo rural”, “cidade”, “campo”, etc., sem precisar com rigor
definições ou limites conceptuais, com a consciência de que essa seria uma tarefa
demasiado exaustiva e já extensamente ensaiada na literatura, precisamente pelo
facto de os territórios serem realidades dinâmicas e complexas, que dificilmente
facilitam uma reificação teórica. O mesmo acontece em relação à distinção entre os
territórios apelidados de “urbanos” ou “rurais”, no sentido em que, como foi dito, a
dualidade simplificada das categorias discursivas não corresponde à realidade
híbrida e processual dos espaços concretos, o que torna inglória a tarefa de rotulálos cabalmente.
“A distinção entre meios rurais e meios urbanos não é um dos objectivos
deste texto. Aliás, a transformação acelerada que uns e outros enfrentam
caracteriza-se pela impossibilidade crescente em delimitá-los, distingui-los e,
inclusivamente, aceitá-los como categorias operativas. A delimitação dos dois
conceitos, sendo necessária para facilitar a análise, conduz a resultados que não
podem nunca ser desligados dos critérios que presidem a essa delimitação e que
fazem com que esta tenha que ser relativizada. A utilização do termo ‘meios rurais’
neste texto é, assim, um mero expediente operativo de construção de um discurso
26
Capítulo I
científico que não nos afasta da consciência do carácter difuso das fronteiras desses
espaços.” (Peixoto, 2002, pág.3).
Na mesma lógica, tomaremos a liberdade de utilizar “espaço”, “território” e
“lugar” como sinónimos, para facilitar a fluidez do texto, com a consciência de que
divergem conceptualmente, por dizerem respeito a realidades distintas. Com isto
não queremos, de modo nenhum, descurar a importância da sua definição e
distinção. No entanto, para além de esse não ser o âmbito deste trabalho, seria de
certa forma despropositado alongarmo-nos com este tipo de esclarecimento
semântico que, para além de não ser vão, nem sequer consensual (exigindo um
extremo rigor conceptual), acumula já um vasto rol de material científico e
epistemológico. Pedimos, portanto, ao leitor quer releve o uso indiferenciado dos
termos em causa e que compreenda que, neste caso, serve o favorecimento da
variedade de vocabulário empregue e a fluência da prosa.
Muito importante é esclarecer que, ao tomarmos este discurso como objecto
central para o debate e ao apresentá-lo como hegemónico na sua centralidade e
transversalidade, não queremos passar a ideia de que não existem contra-discursos,
ou que esta perspectiva de ruralidade é alvo de uma unanimidade esmagadora. Pelo
contrário,
estando
sensíveis
à
existência
de
outras
vozes
e
interesses,
nomeadamente do sector agrícola (para o qual interessa a manutenção dos apoios
ao rural produtivo, por exemplo), queremos questionar a predominância deste
projecto e a sua disseminação. Ou seja, pretende-se desconstruir a sua aparente
consensualidade, revelando as origens, interesses e factores que motivam e
sustentam a força deste discurso em concreto, questionando assim a retórica
altruísta que o legitima e promove.
Não queremos, de todo, ignorar a polifonia que rodeia a ruralidade e a
multiplicidade de perspectivas e interesses antagónicos, que animam a disputa pelo
controlo dos seus recursos e das suas estratégias de desenvolvimento, no entanto,
parece-nos importante destacar o projecto que institucionalmente se converte na
tónica dominante, através do discurso aglutinador e hegemónico, que condiciona as
agendas políticas a diversas escalas, dentro deste contexto de dramatização da
“crise” rural. O acentuar dos problemas funcionais, económicos e demográficos ao
nível local (ou pelo menos do seu protagonismo mediático), a consequente
fragilização dos patrimónios culturais e naturais nas áreas rurais, em paralelo com a
associação destes à (in)sustentabilidade do planeta e à suposta debilidade da
27
Introdução
memória e das identidades colectivas, levam à radicalização deste discurso e das
soluções que apresenta, no que se
converte na legitimação do projecto de
reinvenção da ruralidade.
A propósito, importa esclarecer que, apesar do registo generalista desta
abordagem, estamos sensíveis ao facto de este discurso não ter expressão em
todos os contextos e realidades e, portanto, de que este questionamento acaba por
perder sentido em muitos âmbitos geográficos. Não temos pretensões de fazê-lo
reportar a todos os territórios, lembrando que remetemos sempre o discurso para
contextos de dramatização da chamada “crise das áreas rurais”. Desta feita,
sublinha-se a ligação entre o discurso e a crise dos territórios rurais (em toda a sua
eminência e protagonismo mediático e político), no sentido em que é a partir da sua
elevação a problema, em que se quer pensar e que urge resolver, que se precipita,
tanto a valorização da ruralidade, como o projecto de reinvenção.
Por outras palavras, o discurso que tomamos como objecto diz respeito a
contextos onde a desertificação, a desadequação funcional, a estagnação
económica, a delapidação da actividade agrícola, a fragilização ecológica e
patrimonial e o conjunto de problemas associados, são assumidos como flagelos
que assolam as áreas rurais e cuja solução é apresentada como essencial. Ou seja,
âmbitos em que é dado protagonismo mediático e político e se dissemina a
consideração colectiva da crise ou da decadência do mundo rural agrícola, produtivo
e habitado. Neste ambiente de preocupação, e misturada com alguma retórica do
desenvolvimento local, brota a valorização do mundo rural como algo que está em
risco, estando criadas as condições para o reforço do discurso de reinvenção e para
a legitimação do seu projecto de ruralidade patrimonial e consumível.
Ora, esta situação é patente dos países do Sul da Europa, nomeadamente
em Portugal onde o declínio da agricultura e a parca industrialização do interior do
país, a sua desertificação galopante e estagnação económica, levam a que sejam
criadas, na ausência de modernidade (motivada por inúmeros factores históricos), as
condições ideais para a disseminação do projecto pós-moderno de ruralidade
(Figueiredo, 2003). Já não é agrícola este mundo rural e, nunca tendo chegado a ser
industrial, passa de (in)produtivo a potencialmente consumível, patrimonial,
recreativo. “Esta situação parece, assim, poder conduzir a ‘uma recodificação das
áreas rurais portuguesas de pré-modernas em pós-modernas’” (Figueiredo, 2003,
pág. 153).
28
Capítulo I
Posto isto, não sendo exclusivo, nem omnipresente, o discurso hegemónico
de reinvenção da ruralidade (em contextos de suposta decadência das áreas rurais)
que assumimos como objecto de discussão, autoriza (enquanto pretexto, trilho e
posicionamento teórico) a interpretação e a desconstrução destas questões, ao
mesmo tempo que não exclui outras realidades. A perspectiva do discurso estimula
a sensibilidade a diferentes registos, valores e interesses, permitindo diversas
leituras,
articulando
diferentes
dinâmicas,
temáticas
e
fenómenos,
num
enquadramento teórico maior e organizado. Do seu desdobramento estender-se-á
um caminho reflexivo intenso, rumo ao projecto de ruralidade que se propõe, pela
expectativa, aos territórios.
Registos,
suportes,
estratégias,
representações,
argumentos,
valores,
programas e funções, origens, interesses, expectativas, paisagens, orientações e
consequências. Discurso. Projecto. Cultura. Território. Muitas palavras (sugestivas e
poliédricas) para fazer jus à complexidade de interessantes dinâmicas culturais,
sociais e geográficas, cuja inteligibilidade se ambiciona explorar, ao longo de um
percurso que se avizinha estimulante, aberto e fértil, em múltiplas ramificações.
29
Introdução
30
II.
O discurso de reinvenção da ruralidade
Vejo as paisagens sonhadas com mais clareza com
que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos
é sobre qualquer cousa que me debruço. Se vejo a vida
passar, sonho qualquer cousa.
Sem data, Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
2
Num contexto em que as cidades parecem concentrar os recursos humanos,
económicos, tecnológicos e culturais, competitivamente valorizados para responder
às exigências estratégicas da globalização, faz sentido pensar no papel e nas
possibilidades
de
desenvolvimento
dos
territórios
mais
desprovidos
das
características valorizadas pelos critérios dominantes. Assim, quando pensamos nos
territórios rurais, apesar da sua definição estar longe de ser clara e alheada das
“fronteiras”
urbanas,
uma
aparente
contradição
discursiva
salta
à
vista,
principalmente num contraponto forçado por relação à cidade.
Este aparente paradoxo está relacionado com o facto de, nunca como agora,
a cidade concentrar tantos interesses e recursos estratégicos, mas ao mesmo tempo
se ter generalizado um discurso demonizador em torno da sua irreversível
insustentabilidade. Paralelamente, por correspondência, parece agigantar-se um
discurso nostálgico em relação às virtudes do mundo rural, que no entanto é
genericamente descrito como estando num estado de profunda crise funcional e
demográfica, principalmente nos países do Sul da Europa.
Desta feita, se existe uma generalização da crise dos territórios rurais, parece
existir simultaneamente uma valorização discursiva da ruralidade, quando, na
verdade, as áreas rurais, para além de não serem homogéneas, são realidades
muito complexas (até na própria definição). Estas crises anunciadas mediática,
política e sensocomunalmente, parecem brotar de discursos geminados. Assim,
sendo patente, por um lado, a disseminação do sentimento de crise que advém da
2
Excerto retirado do “Livro do Desassossego, por Bernardo Soares” (Vol. II.).
O discurso de reinvenção da ruralidade
prosperidade insustentável da cidade, precipita-se, por outro, a ideia de estagnação
económica do mundo rural.
Esta simetria alimenta conveniências mútuas, cujos limites são difíceis de
marcar e cuja sustentação prática e estratégica cabe a agências variadas e poucas
vezes identificáveis a um primeiro olhar. Se nem todas as cidades são “cidades da
globalização” e se nem todas as aldeias sofrem de crise económica, demográfica e
produtiva, deve ser questionada a aparente consensualidade e unanimidade nos
discursos e nas políticas territoriais. As mesmas que preparam para os territórios
urbanos e rurais, baterias de medidas voltadas para o estímulo da competitividade e
da reanimação, respectivamente.
É precisamente devido à centralidade e recorrência das questões associadas
à ruralidade, ao facto de o mundo rural concentrar atenções de vários quadrantes
(políticos, mediáticos, académicos, empresariais, sociais, etc.), de aparentemente
existir muito interesse em torno do turismo, do património e dos produtos rurais e de
estarmos num contexto de grande valorização do seu potencial estratégico (mesmo
perante tantos problemas), que somos levados a questionar estas tendências,
modas, vozes, perspectivas e interesses.
Para organizar este ensaio de desconstrução e este exercício de
questionamento crítico, consideramos a existência de um discurso optimista em
torno do potencial rural, que brota da assunção da crise e da necessidade de sua
reversão, como uma premissa para a investigação e tomamo-lo como objecto, com o
objectivo de perceber o que é esperado do mundo rural e o que podem esperar este
tipo de territórios.
Assumindo que o contraponto para com a cidade (próspera mas demonizada)
e a dramatização generalista da crise rural (principalmente nos países do Sul da
Europa) podem funcionar como um estímulo do potencial rural e de um projecto de
reinvenção, como contraste valorizador e pretexto para um reaproveitamento
estratégico, temos a intenção de desconstruir o discurso que atira o mundo rural
para a eminência de um processo de transformação, enquanto alteridade desejável
perante uma urbanidade estruturalmente insustentável.
Entendendo que o tom pesaroso em relação à situação demográfica e
económica dos espaços rurais, muito patente em Portugal, principalmente no que diz
respeito ao interior do país, vem a par do discurso complementar de valorização da
ruralidade e seu potencial cultural e ecológico, parece claro que o fatalismo serve de
32
Capítulo II
estímulo à reversão da crise, ou pelo menos de argumento a favor de uma
reinvenção, com base em valores patrimoniais.
Importa dizer que o carácter generalista do discurso, quer do lado do alerta de
crise, quer do lado da valorização do potencial rural, ao parecer desligado de
territórios concretos, desespacializa as questões, à medida que as generaliza. No
entanto, mesmo podendo parecer aéreo e disperso no seu registo generalista, o
discurso está transversalmente consolidado em diversas esferas sociais, políticas,
económicas e culturais e apresenta uma orientação estratégica clara, difundindo
aquilo que parece ser um projecto de ruralidade patrimonial e consumível.
Desta feita, a retórica da crise acaba por servir as políticas culturais e
territoriais associadas a este projecto, no sentido em que apela à intervenção,
precipita as questões rurais e legitima-as enquanto prioridades estratégicas.
Partindo assim da ideia de que a reinvenção da ruralidade nasce deste discurso
construído culturalmente, que se traduz num projecto definido de transformação
territorial, através da valorização e capitalização de determinados aspectos e
recursos rurais, importa expor com mais detalhe os principais questionamentos e
objectivos da pesquisa a que nos propomos.
1. Os principais questionamentos e objectivos de investigação.
(o que se quer saber)
Tendo como temática este discurso/projecto, a que poderíamos chamar de
“discurso de reinvenção da ruralidade”, a intenção que orienta a pesquisa seria a de
reflectir, desconstruir e discutir, por um lado, algumas das suas dimensões
essenciais e os principais argumentos que o sustentam e, por outro, as origens e
motivações que estão na génese da sua produção e difusão.
Assim, para facilitar e organizar a abordagem, dividimos o discurso em três
eixos, destacamos dois argumentos de suporte essenciais e focamos a abordagem
na sua origem e carácter urbanos.
O objectivo primário do caminho que nos propomos é o de contribuir para
uma reflexão abrangente e crítica do discurso por detrás do processo de reinvenção
da ruralidade, não especificamente num território, mas, tal como discursivamente,
num plano teórico e genérico. A preocupação não é a de seguir um processo
territorial específico de reinvenção, medir os seus impactos e consequências,
33
O discurso de reinvenção da ruralidade
entender a relação entre os agentes locais e seus interesses em todo o processo,
etc. Mas antes a de desconstruir o discurso, por detrás dos processos de reinvenção
das ruralidades e da ruralidade simbólica, no sentido de o entender como uma
política cultural e não apenas como um projecto de território em concreto.
Esta intenção justifica-se pela importância de evitar uma fragmentação da
análise do discurso, pois ao remeter o olhar para um lugar concreto, teríamos
necessariamente de centrar a abordagem nas características específicas e
circunstanciais de um projecto de reinvenção em particular, deixando escapar um
dos principais traços do discurso – o seu carácter generalista, bem como um dos
principais traços do projecto de reinvenção por ele promovido – existir como uma
espécie de solução universal para os territórios rurais em crise, simplificados
discursivamente como homogéneos.
A naturalização do discurso e a sua função de política cultural (mais do que
territorial) o seu carácter transversal e generalista e as suas consequências ao nível
da produção de significados simplificados e aglutinadores das especificidades locais,
fazem com que se deva apostar numa abordagem ela própria abrangente,
compreensiva e de certa forma desespacializada, no sentido de encarar o objecto na
sua complexidade cultural e não apenas enquanto um projecto de território definido
geograficamente. Discutiremos cultura, mais do que territórios concretos, mas, tendo
em conta que estes se configuram a partir das concepções culturais, ideológicas,
políticas e simbólicas que se projectam como dominantes, parece-nos que começar
pelo discurso é começar pelo “início”.
Como foi dito, pretendemos organizar a desconstrução do discurso em três
eixos fundamentais, no sentido de esclarecer a proposta reflexiva. As três
dimensões do discurso seriam a estratégica, a cultural e a comercial, ou mais
precisamente o discurso na sua vertente estratégica e técnica (as políticas de
desenvolvimento rural), o discurso no seu registo sensocomunal e cultural (o
chamado Ideal Rural) e, finalmente, o discurso na sua função promocional (dos
produtos rurais e do rural enquanto produto).
Para além de pensar o discurso nestas dimensões, relacionando-as no seu
encadeamento lógico – uma estratégia de desenvolvimento que se alimenta de uma
bateria cultural como matéria-prima, para promover a ruralidade e seus produtos – é
essencial desconstruir os valores e argumentos que o sustentam e que afinal
precipitam as "novas" funções dos territórios. Identificando dois grandes valores de
34
Capítulo II
suporte, património (memória colectiva, identidades, tradições) e sustentabilidade
ambiental, (natureza, ecologia) e duas grandes funções atribuídas, nesta lógica, às
áreas rurais - preservar o passado e garantir o futuro, pretendemos desconstruir o
seu poder e valor cultural e simbólico, em cruzamento com as dimensões acima
assinaladas.
Deste trabalho reflexivo, almeja-se o alcance do conteúdo ideológico e
axiológico de legitimação do discurso e do seu projecto de reinvenção da ruralidade,
ao mesmo tempo que nos aproximamos das motivações que o estimulam. O suporte
argumentativo do discurso remete, logicamente, para o quadro cultural, social,
político e histórico em que este é produzido e que hierarquiza a axiologia que se
precipita enquanto legítima, dominante e eminente, no nosso momento histórico.
Por relação às agências de promoção e motivações por detrás do discurso,
não se pretende uma inventariação sistemática das instituições e actores, causas e
interesses específicos, que estimulam o projecto de reinvenção da ruralidade num
determinado território. Interessa discutir, sobretudo e mais uma vez, a origem, as
motivações, interesses e necessidades culturais, territoriais, económicas e políticas,
que funcionam como transversais, marcando o nosso tempo histórico e o nosso
contexto social e que precipitam este discurso (com todas as consequências que
acarreta).
Neste sentido, deve ser apresentada outra ideia ou premissa importante para
o âmbito teórico deste trabalho, a de que este discurso deve ser olhado enquanto
um fenómeno sobretudo urbano. Pelas motivações e agências de produção do
discurso, pelo tipo de estratégia associada à concretização do projecto de
ruralidade, pelo contexto em que os seus argumentos se destacam e ganham
sentido, por questões comerciais e económicas, entre outros factores, somos
levados a remeter para a cidade, a construção e difusão da necessidade de
reinventar a ruralidade.
Os valores por detrás deste discurso representam algumas das preocupações
centrais das sociedades contemporâneas, divididas entre a necessidade de uma
ancoragem originária, de uma segurança ontológica e de uma estabilidade
axiológica e o sentimento de instabilidade e anomia social no mundo globalizado
(Bunce, 1994). Entre a busca da qualidade de vida e a insustentabilidade dos estilos
de vida. Entre um passado sonhado como mais familiar, particular, local e um futuro
que se prevê complexo, impessoal, global, etc. (Ferrão, 2000). E entre a cidade,
35
O discurso de reinvenção da ruralidade
modelo territorial dominante e o rural, modelo territorial valorizado cada vez mais no
plano onírico, ideológico e discursivo (Williams, 2002).
Acontece que, precisamente, por rural e urbano, assim como as suas funções
e fronteiras não constituírem categorias independentes e claramente separadas e,
acrescendo o facto de que estas dinâmicas de “contraposição” dicotómica se
caracterizarem por uma promiscuidade inerente, não podemos abordar a valorização
da ruralidade enquanto um fenómeno rural (Bagli, 2006). Não parecem nascer dos
territórios rurais ou mesmo das políticas locais, as estratégias e discursos de
valorização do potencial cultural e natural rural, mesmo que exista muitas vezes um
compromisso endógeno em concretizar os projectos que daí derivam ou tentativas
de rentabilização das oportunidades que daí possam surgir.
É igualmente claro que a bateria de representações e mitos que sustenta a
renovação dos olhares que elevam a ruralidade, não brota de uma auto-estima
ruralista ou de um eventual “patriotismo” rural, mas antes das grandes cidades, em
que de forma mais intensa se persegue uma alteridade apaziguadora das
ansiedades derivadas do sentimento de “insustentabilidade” urbana, global,
quotidiana, etc. (Bunce, 1994).
Por outro lado, também não são os habitantes das aldeias o público-alvo das
estratégias de promoção dos territórios rurais para destinos turísticos, muito menos
dos seus produtos gastronómicos, artesanais ou lúdicos. Ou seja, parece ser da
esfera urbana que nascem e são alimentadas as dinâmicas discursivas, que apelam
à reconfiguração do rural em espaço de consumo, com base nos valores que fazem
sentido no quadro do eterno reajustamento axiológico num mundo em rápida
evolução e para suprir necessidades urbanas. Necessidades de expansão de
negócio (imobiliário, turístico, comercial), de lazer e evasão, de sonho e
apaziguamento de consciências, de manutenção da memória, de consumo, etc.
(Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998).
Resumindo, estamos perante um discurso urbano de valorização da sua
própria alteridade, que sustenta estratégias de alargamento das possibilidades de
consumo e negócio, ao mesmo tempo que se apresenta como uma solução para os
problemas (revalorizados) dos territórios rurais, cujos sinais do que outrora se
chamava “atraso” constituem agora “potencialidades”.
Posto isto, apresenta-se como objectivo discutir o discurso dentro das
relações rural-urbano e nesse “espaço sem chão”, de limites, dependências e forças
36
Capítulo II
entre as categorias, procurando no urbano esta construção do rural, quer no plano
teórico, quer empiricamente, como explicaremos adiante.
Recapitulando e sistematizando, importa perceber o discurso e a estratégia
de reinvenção da ruralidade, as suas prioridades e filosofias de intervenção, bem
como dissertar sobre as consequências de uma estratégia baseada nestes valores e
promovida por este tipo de discurso, na forma como se olha a ruralidade e também,
na forma como se constrói e consome estes espaços.
Importa delinear o património imaginário que configura a ruralidade idílica, os
seus limites e poder simbólico. Relacionar esta bateria de representações enraizada
culturalmente com o discurso que dela se aproveita, enquanto a alimenta
simultaneamente, e perceber o seu impacto e presença dentro das lógicas de
promoção dos produtos da ruralidade.
Enunciar os produtos da ruralidade centralizados pela estratégia, questionar o
alcance da aposta na sua promoção e discutir os argumentos e valores que a
sustentam, é igualmente importante. Assim como a reflexão em torno dos mercados
a que se orientam, dos veículos e estratégias de sua promoção e consumo e,
também, dos elementos distintivos que os destacam no plano simbólico.
Importa igualmente e de forma quase transversal à dissertação, discutir as
relações rural/urbano e o seu carácter muitas vezes dicotómico (competitividade
urbana/marginalidade rural, insustentabilidade urbana/ideal rural), dentro do que se
configura como o discurso cultural em torno das categorias territoriais, funções,
valores e representações associadas.
Em suma poderíamos resumir as principais questões, cujas respostas
representam os objectivos teóricos da pesquisa, nos pontos seguidamente
apresentados:
Discutir e entender o discurso de valorização da ruralidade e as
estratégias de desenvolvimento rural baseadas no potencial patrimonial
rural.
Identificar e entender as linhas filosóficas, argumentativas, metodológicas,
organizativas, operativas, e prioritárias da estratégia.
Relacionar o património imaginário em torno da ruralidade, culturalmente
enraizado, com estes processos de valorização e reinvenção do rural.
Perceber a origem das imagens e narrativas difundidas.
37
O discurso de reinvenção da ruralidade
Identificar e entender a imagem de ruralidade idílica, os valores que lhe
estão associados, os seus limites e paisagens simbólicas.
Pensar o seu poder simbólico enquanto base de representações,
projectos e relações com o espaço, enquanto argumentos e elementos
distintivos associados a produtos, paisagens, actividades, manifestações
culturais, estilos de vida, etc.
Apresentar o conjunto de produtos, centralizados pelo discurso e portanto
derivados da estratégia e perceber as lógicas de sua promoção.
Identificar os mercados a que se destinam.
Enunciar as características e elementos simbólicos que supostamente
distinguem a sua ruralidade.
Pensar em que medida a sua promoção se alimenta dos valores do ideal
rural.
Discutir
as
possibilidades
de
concretização
de
desenvolvimento
económico através da aposta na sua promoção e consumo.
Discutir os valores que sustentam o discurso e as funções que precipitam
para os territórios rurais.
Reflectir em torno da urbanidade do discurso.
Relacionar a estratégia de reinvenção dos espaços rurais com as
estratégias de reabilitação dos centros históricos das cidades.
Contextualizar a valorização das características idílicas da ruralidade e as
expectativas de reinvenção dos territórios rurais no quadro das
inquietações, ansiedades e necessidades culturais e de consumo
urbanas.
Discutir os interesses, expectativas e motivações por detrás do projecto
de ruralidade apresentado pelo discurso.
Procurar no corpo da cidade espaços de materialização deste
projecto/sonho de ruralidade.
Conhecer
os
contornos
do
projecto
de
ruralidade
veiculado
discursivamente.
Pensar nas possíveis consequências deste projecto para os territórios.
38
Capítulo II
2. Premissas e caminhos teóricos e metodológicos para a pesquisa.
(como quero saber)
Por entendermos esta reflexão como um caminho, começaremos por discutir
o discurso nas suas dimensões fundamentais, seguindo os questionamentos
apresentados, sem descurar o seu cruzamento com os argumentos e valores de sua
legitimação e suporte, ao mesmo tempo que desenvolveremos a sua desconstrução.
Após a concretização da reflexão em torno da ideia de que estamos perante um
discurso de reinvenção, que precipita um projecto estratégico, alimentado
culturalmente e catalisador de uma ruralidade consumível, passaremos ao
desenvolvimento crítico da segunda premissa associada, a de que estamos perante
um projecto urbano de ruralidade. Neste sentido e após um debate teórico, faremos
uma incursão ao terreno, para procurar na cidade espaços de encenação e consumo
da ruralidade idílica, com a intenção de perceber os contornos do projecto de
ruralidade difundido discursivamente e alimentado nos quotidianos urbanos.
O trabalho de reflexão teórica pretende ser uma combinação crítica de
contributos literários de diversas origens disciplinares, no sentido de cruzar
perspectivas e ensaiar uma cobertura competente e abrangente, das diversas
nuances e dimensões desta temática. Por falarmos de um discurso transversal e
naturalizado, devemos suportar a nossa reflexão num património teórico e científico
alargado, dentro do que são os estudos culturais e territoriais e recorrendo a material
bibliográfico sobre temáticas variadas como cultura, economia, territórios, consumo,
design, ecologia, comunicação, publicidade, arte, políticas de desenvolvimento,
turismo, etc.
Esta abordagem acaba por estar inserida em algumas das linhas de
investigação fundamentais da chamada Geografia Cultural, nomeadamente a
análise das paisagens pelas suas características simbólicas e de representação,
bem como a discussão em torno das categorias territoriais, enquanto construções
discursivas e culturais e do efeito da sua influência na forma de percepcionar os
espaços (Benach Rovira, 2005). De facto, podemos dizer que este tipo de caminho
de pesquisa e de questionamento, cumpre o reforço da análise da dimensão cultural
das transformações territoriais que, pela sua complexidade, não se esgotam em
explicações
morfológicas
e
materialistas.
Neste
sentido,
combinam-se
39
O discurso de reinvenção da ruralidade
estrategicamente as aproximações da Sociologia ao espaço e, por outro lado, da
Geografia à cultura (Benach Rovira, 2005).
É portanto uma análise, dos valores e significados da ruralidade e uma
desconstrução do discurso que os define e precipita, que pretendemos desenvolver,
por via de uma reflexão teórica progressiva, com o objectivo de contribuir para a
construção de uma grelha crítica de interpretação dessas construções simbólicas e
das relações de poder que as configuram. Pretende-se articular variadas temáticas,
habitualmente tratadas de forma divorciada, que remetem para o mesmo quadro
discursivo e ideológico matriz e que, portanto, interessa integrar. Com isto, esperase contribuir com a construção de um quadro teórico coeso que permita e estimule a
interpretação de uma infinidade de realidades empíricas que estão associadas à
ideia de ruralidade que deriva deste discurso dominante, bem como às suas
manifestações no território, às suas raízes culturais e políticas, à sua vertente
comercial e turística, etc.
Após discutidas teoricamente estas questões e perante a premissa que o
discurso pela reinvenção da ruralidade se apresenta sobretudo enquanto um
fenómeno urbano, cabe verificar de que forma os seus ecos são encontrados no
espaço da cidade. Sendo esse o intuito da etapa empírica do nosso percurso
reflexivo, pretendemos concretizar uma incursão ao terreno, a fim de percorrer os
trilhos da mitificação da ruralidade em espaço urbano e, especificamente, em alguns
dos lugares onde esta parece ser alimentada e consumida.
Assim, é nossa intenção buscar na cidade lugares em que estejam
intensamente presentes a sedução do ruralismo, o apelo ao seu consumo, ao seu
sonho idílico e em que de alguma maneira sejam reproduzidos os signos que
reforçam o encantamento pelo rural. Os lugares que de certa forma introduzem no
quotidiano urbano a tal ruralidade imaginada, ao que parece muito presente nas
representações, podem permitir vislumbrar e identificar os traços e elementos que
pautam a projecção do rural na cidade e aquilo que é esperado encontrar quando,
de facto, os urbanitas vão em busca das aldeias, das paisagens, da “natureza”
associada ao sonho pastoral. Por outras palavras, procuraremos analisar na cidade
lugares associados à ruralidade na sua dimensão idílica, concretizada na paisagem
através da reprodução arquitectónica e cenográfica da iconografia pastoral.
É necessário contudo reforçar que não é objectivo encontrar na cidade rasgos
de ruralidade “espontâneos”, ou seja, marcas ou vestígios de um passado rural,
40
Capítulo II
nichos ou enclaves culturais de ruralidade, ou mesmo traços da influência das áreas
rurais circundantes à cidade. O objectivo é analisar lugares em que seja alimentada
uma ruralidade construída, “destilada” e purificada, introduzida no espaço urbano
através de elementos da iconografia idílica da ruralidade mitificada, dentro desta
tendência contemporânea de estetizar alguns lugares ou territórios para recriar
ambientes cujas características parecem ser culturalmente valorizadas (como
acontece muitas vezes no caso dos centros históricos das cidades).
Os lugares seleccionados para objecto de estudo e estímulo à incursão
etnográfica foram eleitos segundo os critérios que se prendem com as concepções
anteriores e estão situados na cidade do Porto. A escolha desta cidade justifica-se
com o facto de ser a “capital” da região do Norte de Portugal, de tradição fortemente
rural, mas muito influenciada pelo seu poderio económico, cultural e histórico. Assim,
importa enunciar os objectos empíricos desta pesquisa:
1) O Núcleo Rural de Aldoar, dentro do Parque da cidade do Porto.
2) A quinta do Mata-Sete, dentro do Parque da Fundação de Serralves.
A estratégia de trabalho de campo prevista baseia-se no método etnográfico,
ou seja, na visita e observação recorrentes destes lugares, a fim de os analisar,
através dos filtros da reflexão teórica que precederá o trabalho de campo. Da
recolha de material (documental, literário, fotográfico, informativo, promocional, etc.),
da experiência e observação dos lugares, das conversas e entrevistas com os
principais agentes envolvidos e testemunhas privilegiadas, pretendemos perceber se
é possível encontrar nos objectos, elementos de concretização e difusão do
projecto/discurso
de
reinvenção
da
ruralidade.
Pretendemos
encontrar
as
ruralidades veiculadas na cidade, os seus contornos e as suas formas de sedução
do olhar, consumo e valorização. Partindo da premissa que sustenta a linha reflexiva
deste trabalho, ou seja, da ideia de que ao identificar e perceber as manifestações
do discurso, podemos de facto agarrar, entender e descrevê-lo, pretendemos
percorrer a cidade ao encontro das concretizações das projecções e representações
em torno da ruralidade, criadas e alimentadas como dominantes, no espaço urbano.
Da observação, da conversa, da recolha de materiais, do percurso, da
experiência e de todas actividades e estímulos possíveis de serem propostos ou
induzidos
na
cidade
(mais
especificamente
nos
lugares
seleccionados),
pretendemos ser alimentados conscientemente das narrativas e valores, dos
quadros e histórias que nela constroem a ruralidade idealizada. Neste percurso,
41
O discurso de reinvenção da ruralidade
pretendemos
desenhar
o
perfil
dessa
influência,
dessa
sedução,
desse
condicionamento, desses discursos. Este caminho é também um ensaio de
estratégia metodológica, que se pretende inovadora e flexível, para trazer novos
recursos para a discussão e enriquecer a análise dos contornos do discurso que
temos como objecto central de pesquisa.
Centralizar a análise empírica na encenação da ruralidade sonhada em
espaço urbano e na sua linguagem simbólica e estética, parece-nos uma escolha
pertinente, se pensarmos na centralidade que a dimensão visual e iconográfica da
cultura tem nas nossas sociedades. Nesta linha, é comum encontrarmos na
literatura científica os termos “visual culture”, “scopic regime” e “ocularcentrism” para
reforçar a saturação imagética nos quotidianos do nosso tempo histórico (Rose,
2007).
Assim, estando a vida social impregnada de estímulos visuais e saturada de
imagens construídas ideologicamente, principalmente quando nos referimos aos
quotidianos urbanos, parece-nos que dar atenção à iconografia produzida dentro dos
valores do discurso, neste caso num registo cenográfico e paisagístico (porque
falamos de imagens, para chegar aos territórios) não só é um caminho de
investigação interessante, como pode permitir ilustrar de forma consistente a
discussão teórica a que nos propomos.
42
III.
O discurso nos seus diferentes registos – poder,
ideologia e projecto
Os homens desertaram destas terras.
Só um bacoco, a rufiar com a sombra,
só um bacoco, bolsado das tabernas,
em sete palmos, só, se reencontra.
Turistas fotografam cal e pedras:
o cubismo de casas e ruelas.
Nas soleiras sobraram umas velhas.
Escorre-lhes o preto pelas canelas.
1972, Alexandre O´Neill.
3
Antes de mais, é importante dizer que aqui se entende “discurso” como
construção ideológica e bateria de significados, que condiciona o olhar sobre a
ruralidade (neste caso) e se apresenta, não apenas como retórica, mas sobretudo
como uma forma de prática social, como um projecto, acção (Hall, 1997). Um
discurso, entendido nesta perspectiva, condiciona a forma como se olha para a
realidade, no sentido em que contribui para a formação das representações
(Fairclough, 1992).
Os discursos são construídos com base em narrativas, ideologias e práticas
significantes e funcionam como filtros com os quais olhamos a realidade. São
objectos de negociação e longe de serem consensuais, precipitam disputas,
desafios e transformações (Barnes & Duncan, 1992).
A linguagem e os discursos contribuem para a produção, transformação e
reprodução dos objectos, sujeitos e categorias da vida social, estando numa relação
activa com a realidade, na medida em que existe uma dialéctica permanente de
influências mútuas. Da relação entre instituições, processos económicos e sociais,
padrões de comportamento, sistemas de normas e classificações e formas de
3
Excerto do poema “Pelo Alto Alentejo /1”, retirado de O’Neill, Alexandre (2005), Poesias Completas, Lisboa,
Assírio & Alvim.
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
caracterização, produzem-se discursos que moldam a forma como vemos e
interagimos com a realidade social e territorial (Foucault, 1972).
Os discursos consolidam e difundem baterias de significados para objectos e
paisagens, que se vão recriando continuamente através das interacções sociais
entre os agentes e os territórios. Diferentes grupos e agências dão ênfase a
significados específicos, levando a uma evolução destes ao longo do tempo e da
história, num processo permanente de reinvenção do valor simbólico das paisagens
(Williams, 2002). Por esse motivo os discursos são quase sempre polifónicos,
permitindo variadas leituras, interpretações, aproveitamentos e adaptações,
consoante os poderes, os momentos, os contextos, os agentes que os
instrumentalizam, difundem e reproduzem, etc.
Um aspecto importante é que os discursos permitem que assumamos a
existência de cenários que podem não ser concretos materialmente, mas que por
serem familiares discursivamente se consolidam nas nossas representações e
passam a fazer parte da esfera das coisas “reais”.
“A strong form of argument would be that discourses allow us to see things
that are not “really” there, and that once an object has been elaborated in a
discourse, it is difficult not to refer to it as if it was real” (Boyle & Rogerson, 2001).
Os discursos têm um cariz ideológico, enquanto forma de perspectivar a
realidade, enquanto projecção e atribuição de valor e carga simbólica, sendo mais
poderosos quando naturalizados e elevados ao estatuto de “senso comum”. Esta
naturalização dos discursos permite a sua estabilidade e abrangência, no sentido em
que passam a estar instalados na realidade social, nas práticas e representações,
contribuindo para a formação do status quo (Fairclough, 1992).
A força dos discursos na influência das realidades sociais e territoriais, reside
não apenas na forma como condiciona as representações e os significados, mas
também, através deles, na sua capacidade de definir agendas políticas, prioridades
e necessidades, soluções e estratégias (Boyle & Rogerson, 2001). Os discursos
identificam crises e problemas, causas e soluções, tal como acontece no caso do
discurso de reinvenção da ruralidade, em que se anuncia a possibilidade de reverter
um quadro de decadência funcional e demográfica, por via da capitalização dos
recursos culturais e naturais dos territórios rurais, no sentido de criar novos produtos
para o consumo urbano.
44
Capítulo III
“Discourses create, inter alia, a cast list of political and economic agents which
government must consider, objects of concern, agendas for action, preferred
narratives for making sense of the origins of current situations, conceptual and
geographical spaces within which problems of government are made recognisable.”
(Stenson & Watt, 1999, pág. 192).
É muitas vezes difícil identificar os agentes por detrás da produção e
reprodução dos discursos e seus interesses, no sentido em que a sua propaganda,
para se ir impregnando na prática social e ascender ao estatuto de senso comum,
deve passar por um processo de naturalização, que de certa forma vai apagando as
pistas que levam à respectiva “autoria”. Por outro lado, esta “política cultural”, por
recorrer a valores e signos enraizados culturalmente, convenções, categorias, etc.,
dentro da dialéctica entre discurso e estruturas sociais, ganha poder precisamente
por permitir um trabalho de produção progressiva de significado, dentro do que são
as lógicas culturais “familiares” (Boyle & Rogerson, 2001).
O poder do discurso depende do poder das agências que o promovem,
alimentando e provindo do chamado “conhecimento instalado”, ancorado nas
estruturas sociais e políticas dominantes e legitimado científica e mediaticamente
(Boyle & Rogerson, 2001). Assim, as construções sociais de significados constituemse por via das relações de poder, sendo os significados dos lugares um produto das
negociações entre diferentes interesses e agências. A construção de discursos em
torno de territórios e lugares acaba por ser um acto político, em que técnicos,
empresas, cientistas, actores locais, autarquias e outras entidades, negoceiam,
contestam, criam, reproduzem ou transformam os significados (Williams, 2002).
“The creation and contestation of meaning involves social interactions
structured within and by interest group formation and action, regulatory agencies,
administrative procedures, law, local government, planning processes, and so forth.
These processes are most obvious in the formal political arena, but they also occur
through everyday practices (…)” (Williams, 2002, pág.130).
Desta feita, quando falamos do discurso de reinvenção da ruralidade
podemos identificar, quer nas agendas políticas, (do poder local e central e nas
políticas europeias), quer na esfera do mercado de consumo (turístico,
gastronómico, imobiliário), um interesse em construir uma bateria de significados e
representações renovadas para os espaços rurais e em precipitar um conjunto de
necessidades e problemas, bem como das respectivas soluções e recursos, no
45
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
sentido de concretizar um projecto de ruralidade mais próximo da idealização
bucólica promovida culturalmente.
O projecto de ruralidade desejada, baseia-se num património simbólico e
mitológico idílico enraizado culturalmente, que eleva a natureza e a cultura rurais a
sinónimos de qualidade de vida, vida familiar, segurança, saúde, paz, tranquilidade,
etc. Posto isto, dentro da dialéctica entre as estruturas sociais e culturais e os
discursos, a construção da ruralidade reinventada ganha força por recorrer a valores
e significados convencionais e estáveis nas nossas sociedades, trabalhando na sua
reanimação e renovação e tendo a naturalização do discurso facilitada.
Este processo de reinvenção é em si mesmo uma reinvenção de velhas
ordens de discurso, mas em função de novos objectivos e de novas lógicas, tal
como acontece frequentemente na formação de estratégias de marketing, em que se
instrumentalizam determinados significados convencionais e estáveis, dentro de
novos tipos de discurso, no que acaba por ser uma espécie de actualização
simbólica dos mesmos (Fairclough, 1992).
A tal bateria de representações idílicas em torno de rural, as tendências e
lógicas de planificação e gestão territorial instaladas, a influência da globalização
nas dinâmicas territoriais, entre outros fenómenos culturais, económicos e políticos,
contribuem para a construção do discurso de reinvenção da ruralidade, que por sua
vez transforma o modo como vemos, interagimos, intervimos, pensamos e
imaginamos os espaços rurais e suas dimensões sociais, económicas, culturais,
naturais, etc., num processo dialéctico interessante e complexo.
Os discursos e a reinvenção de significados contribuem, portanto, para a
mudança social, no sentido em que produzem e transformam a caracterização e
classificação dos lugares, influenciando a forma como as politicas, os agentes, o
interesse público, as empresas e outros interesses intervêm nos territórios. As
imagens, a retórica, os símbolos, integrados num discurso, não funcionam apenas
enquanto elementos descritivos dos lugares, mas reforçam publicamente o seu
potencial para a mudança.
“Prevailing images, rhetoric, and symbols culturally define the parameters of
the desirable and undesirable, the feasible and impossible, and the legitimate and
illegitimate as they pertain to a locale’s present circumstances and future
possibilities.” (Mele, 2000, pág. 631).
46
Capítulo III
A dramatização por relação à eventual crise de um bairro, de uma zona, de
uma cidade, de um território, ou mesmo de um modelo territorial, serve muitas vezes
para precipitar a necessidade de mudança, pacificando possíveis resistências,
ocultando
outros
interesses
menos
“nobres”,
como
manobras
imobiliárias
especulativas, por exemplo, angariando o apoio da opinião pública para o projecto
de reinvenção em causa. Justificar escolhas políticas, investimentos, decisões
delicadas que suscitam conflitos e resistências, constitui-se como uma das funções
estratégicas da difusão dos discursos em torno do potencial de transformação dos
lugares, sendo a atracção de novos consumidores, para os lugares, seus projectos,
produtos e significados, essencial para a concretização da reinvenção (Mele, 2000).
A própria ideia de renascimento, renovação e reinvenção de um lugar serve
de argumento ao consumo e estímulo para um novo interesse e atractividade,
contribuindo enquanto discurso para a sua própria concretização enquanto projecto.
Os discursos enquanto investimento contribuem para valorizar os lugares em dois
sentidos fundamentais – atribuindo valor e acrescentando valor (Avrami & Mason,
2000).
No que toca ao discurso da reinvenção da ruralidade podemos questionar, por
exemplo, se o projecto de mudança, justificado com a aparente transversalidade da
crise funcional e demográfica rural, não servirá a função de “compensar” e apaziguar
o vazio deixado pelas políticas comunitárias de delapidação progressiva das
actividades agrícolas, ao mesmo tempo que se concretiza e continua a mesma
lógica política e estratégica. Na linha de colmatar um vazio funcional de territórios
outrora produtivos, estimula-se o seu potencial “consumível”, abrindo novas
possibilidades de negócio, novos mercados e produtos, ao mesmo tempo em que se
servem motivações e necessidades culturais de garantia de uma alteridade sonhada
a uma urbanidade também em suposta “crise”, mas sobre esta e outras questões
associadas reflectiremos mais adiante neste trabalho.
Estando esclarecida a noção de discurso e a sua importância enquanto
premissa para o trabalho que se propõe, cabe dizer que, a escolha de discutir a
reinvenção da ruralidade enquanto discurso e não apenas enquanto uma estratégia
política, permite um maior entendimento das construções culturais, naturalizadas na
prática e acção política e técnica, que constituem o marco de referência mais
abrangente e ao qual remetem todos os posicionamentos e intervenções que
influenciam os territórios concretos.
47
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
Mesmo perante a dificuldade de “agarrá-lo” e tomá-lo como objecto, dada a
abrangência das unidades de análise possíveis e tendo em conta o seu carácter
disperso e naturalizado, a noção de “discurso” é muito útil para esta reflexão teórica,
no sentido em que contempla e reforça a dimensão política e técnica destes
processos de construção de significados e perspectivas em redor da ruralidade.
Centrando a abordagem no discurso, não nos ficamos apenas pelo debate das
representações dominantes e das práticas correspondentes, sendo claro que
tomamos o poder e a historicidade como questões essenciais, fazendo remeter toda
a discussão para um quadro cultural, político e histórico maior (Hall, 1997).
Tendo em conta estes factores e para facilitar a abordagem do discurso,
dividimo-lo em três eixos ou registos, que funcionando como camadas em
sobreposição, mais não são do que fragmentos teóricos de um mesmo objecto.
Enunciando, discutiremos o discurso político e técnico em torno das estratégias de
desenvolvimento rural, o discurso cultural de romantização da ruralidade e o
discurso promocional dos produtos rurais e do rural enquanto produto. A sua
desconstrução ocupará as próximas páginas desta dissertação, rumo ao
aprofundamento
das
múltiplas
facetas,
que
reforçam
a
omnipresença
e
transversalidade do discurso de reinvenção da ruralidade, em diversas esferas da
vida social.
1. A Estratégia. O discurso político e técnico pelo desenvolvimento rural
A centralidade que as questões rurais auferem, nas agendas políticas
técnicas, académicas e mediáticas na actualidade exige que comecemos por
discutir, em primeiro lugar, a face mais institucionalizada do discurso de reinvenção
da ruralidade – as estratégias de desenvolvimento rural. Estas, que podemos
considerar como os processos de aplicação do projecto de ruralidade associado ao
discurso, na sua eminência e protagonismo, reiteram a assunção da “crise” do
mundo rural e a urgência das soluções. Desta feita, sublinhados que estão
discursivamente os problemas (desadequação e vazio funcional, desertificação,
estagnação económica, etc.), precipita-se um conjunto de orientações estratégicas,
desde a escala Europeia até aos poderes locais.
Neste contexto, importa discutir as linhas estratégicas que definem os
processos
48
de
reinvenção
da
ruralidade,
concretizadas
nas
políticas
de
Capítulo III
desenvolvimento para as áreas rurais. Estas caracterizam-se por um pendor
fortemente patrimonial, após a rejeição progressiva da abordagem sectorial, que
durante décadas fez confundir agricultura com ruralidade. De facto, a busca por
soluções, que possam reverter o tal quadro de marginalidade funcional e
competitiva, de crise demográfica e até de falta de auto-estima local, nos meios
rurais, conta com vários anos e parece ainda não ter tido resultados com eficácia
estrutural, encontrando-se na actualidade, numa fase de acentuado protagonismo e
de fôlego e azimute renovados.
Após vários anos de aplicação da Política Agrícola Comum (PAC), numa
abordagem sectorial aos problemas de desenvolvimento rural, o paradigma parece
ter mudado e passa a ser fortemente desencorajada a dependência das áreas rurais
unicamente no primeiro sector. De facto, desde a década de 80 (séc. XX) está em
curso uma estratégia territorial de desenvolvimento rural, que pretende estimular o
potencial endógeno e capitalizar os recursos culturais e naturais rurais, almejando
uma diversificação funcional que reanime e diversifique os tecidos económicos e
produtivos dos territórios mais marginalizados. Esta orientação política e técnica vem
acompanhada de um discurso de valorização do potencial dos recursos culturais e
naturais do mundo rural.
Ainda assim, com todas as políticas, planos, programas de desenvolvimento e
reinvenções em curso, pelo menos ao nível das representações que sobre o mundo
rural se tecem, a crise de muitos espaços rurais parece longe de uma resolução
cabal (Carpio Martín, 2000). Esta, sendo fortemente dramatizada no âmbito
mediático, tende a despertar uma espécie de escalada de preocupações que
justifica, muitas vezes, uma radicalização de soluções ao nível local, de que são
exemplo algumas medidas de incentivo à fixação de população através de subsídios
(por casamento, por filho, etc.) ou mesmo alguns casos de angariação (a que
podíamos chamar “importação”) de cidadãos brasileiros para viver em aldeias do
interior de Portugal.
São intensos os apelos à criatividade governativa e ao empreendedorismo
local, ensaiam-se novas centralidades com o fomento da mobilização cultural e
económica das chamadas cidades intermédias, no sentido de estimular o
desenvolvimento das regiões rurais circundantes. Promove-se o turismo rural de
forma intensa, a produção de produtos regionais de qualidade, os ofícios e as artes
49
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
tradicionais, numa linha de capitalização dos patrimónios naturais e culturais, como
recursos importantes para o relançamento das economias pós-agrárias em crise.
“Así, se postula cada vez más, que la cultura es una palanca importante para
luchar contra las limitaciones estruturales que mediatizan las posibilidades de
progreso en el campo, y que la intervención de los factores culturales (actitudes,
formas de proyección, parámetros de autocomprensión, hábitos de comportamiento)
pasa a ser un elemento fundamental del desarrollo de los medios rurales (...)”
(Carpio Martín, 2000, pág. 88).
De facto de pegarmos nos exemplos dos programas da Europa comunitária
pós PAC, como o LEADER (Ligação Entre Acções de Desenvolvimento da
Economia Rural) e o PRODER (Programa de Desenvolvimento Rural), facilmente
constatamos que a dependência de rendimentos agrícolas tem sido fortemente
desencorajada e que o incentivo ao desenvolvimento de iniciativas privadas ligadas,
por exemplo, ao turismo rural, aparecem como a desejada “salvação” para as
economias locais (Santos Solla, 1999; Francés i Tudel, 2003).
Não cabe aqui analisar em profundidade o conteúdo destes programas, mas a
suas linhas filosóficas e operativas têm como objectivo básico impulsionar o
desenvolvimento endógeno das zonas rurais, precisamente através da diversificação
económica, para travar a regressão demográfica e aumentar os rendimentos e os
níveis de qualidade de vida dos seus habitantes (Esparcia Perez et al., 2000;
Francés i Tudel, 2003). Este novo paradigma, prevê uma abordagem territorial e não
mais sectorial dos problemas rurais, rompendo assim com a lógica da PAC (Gray,
2000; Veiga, 2004).
Pretende-se, sobretudo, que através da diversificação funcional nas áreas
rurais e com o estímulo às iniciativas privadas de negócio, se criem as condições
para reduzir a dependência subsidiária resultante da PAC e que seja possível
reanimar as economias locais, apostando nos recursos e no empreendedorismo
autóctones.
A estratégia passa pela recuperação e valorização dos valores patrimoniais,
pelo fomento do sector turístico, pelo apoio às PME’s (Pequenas e Médias
Empresas), ao artesanato e a outros serviços, numa linha que eleva o
aproveitamento dos recursos locais e a implicação dos actores locais, a elemento de
aplicação iminente (Francés i Tudel, 2003). A reanimação do tecido empresarial,
através de apoios e subsídios, o fomento de redes de cooperação entre os actores
50
Capítulo III
locais e externos e o acentuar de um discurso de valorização do potencial local,
concretizam
uma
perspectiva
operativa
centrada
no
estímulo
público
ao
desenvolvimento endógeno, que apesar de ser incentivado e apoiado externamente,
é apresentado como tendo pretensões de ser orientado e concretizado “desde baixo”
(Esparcia Perez et al., 2000; Francés i Tudel, 2003).
Dentro desta lógica, os eixos apresentados como prioritários para o
desenvolvimento rural, nomeadamente por instituições como a OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), passam por várias dimensões
que apresentamos em seguida. No que toca à esfera política e institucional,
expressa-se a necessidade de tornar o desenvolvimento rural numa prioridade ao
nível dos programas, projectos e planos de actuação territoriais, assim como do
envolvimento das diversas agências relevantes, numa cooperação e acção
integrada,
por
via
do
estímulo
à
participação,
ao
associativismo,
ao
empreendedorismo e à conjugação de interesses e contributos distintos. O aumento
da proximidade das políticas aos territórios, a garantia de enfoques globais e
integrados das políticas rurais, a dotação de maior flexibilidade às instituições
administrativas e suas linhas operativas, aparecem igualmente como uma frente
importante de transformação.
Por relação às inovações e novas possibilidades económicas, diz-se que são
indissociáveis enquanto elementos estratégicos, sendo que a busca de novas
oportunidades de mercado, ou actividades produtivas, passa por potenciar os
recursos rurais segundo novos esquemas, de forma inovadora, quer na aplicação de
tecnologias ao nível agrário, quer na promoção dos lugares e seus produtos numa
linha criativa e atenta às oportunidades em ascensão (Ivars Baidal, 2000).
Novas estratégias para “velhos” produtos ou talvez “velhas” roupagens para
novos produtos, parece ser a filosofia mais defendida nos discursos sobre o
desenvolvimento rural, no sentido em que se faz a apologia permanente da
valorização dos bens patrimoniais locais e de um passado ou herança identitários a
capitalizar, sempre enquanto recurso na promoção do que são as novas actividades
rurais, as novas linhas de gestão, as novas oportunidades de mercado e a nova
esperança do mundo rural (Kneafsey, 2000). Novas relações sociais, económicas e
territoriais são fomentadas, tal como novas actividades, novos fôlegos e lógicas de
gestão e promoção, no recurso ao que tradicionalmente caracteriza o mundo rural,
51
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
agora reinventado e promovido em novas linhas e através de novos produtos e
práticas de consumo.
Fazer dos territórios rurais espaços multifuncionais implica a conjugação de
diferentes dimensões em que se apresentam diferentes interesses e necessidades.
Uma clara dimensão natural e ecológica sai destacada, neste contexto de optimismo
perante as potencialidades rurais, no sentido em que, mesmo tendo sido sempre
importante, hoje funciona como um factor ao redor do qual se legitima a valorização
da ruralidade, por contraponto aos contextos urbanos, muitas vezes descritos como
contaminados, desconfortáveis e insustentáveis. A sustentabilidade, a par do
património, constitui um dos traços discursivamente mais vincados do projecto de
ruralidade reinventada.
“La assimilación de lo natural a «aquello que no há sido modificado por el
hombre» y de ahí la identificación de los espacios naturales con las áreas rurales a
causa de una pretendida menor antropización del paisaje, otorga un valor particular
a estos espacios, que se han convertido en depositarios de un valioso patrimonio
natural cuya conservación constituye un objectivo social de primer orden que
transciende el ámbito de lo rural para convertirse en una aspiración de carácter
principalmente urbano (...)” (Kneafsey, 2000, pág. 69).
Mesmo que esta temática da valorização do património natural e da função
rural de sua preservação seja um assunto a que voltaremos mais adiante pela sua
relevância, cabe aqui dizer que neste ponto se sublinha a importância das relações
rural/urbano, na configuração das linhas funcionais, estratégicas e valorativas que se
vão “impondo” aos territórios. Assim, pode dizer-se que estas “missões” e “desafios”,
que se apresentam ao rural na actualidade, parecem brotar mais das interacções
com outros territórios e das várias escalas a que actuam as relações económicas,
políticas e culturais, do que propriamente do âmago da “ruralidade”. Mesmo que os
espaços rurais assumam de forma mais ou menos intensa estes objectivos e
funções, é clara a influência e o condicionamento, que do exterior é feito, ao nível da
sua configuração e na hierarquização das prioridades e vantagens competitivas
rurais, nomeadamente desde os centros urbanos.
Continuando
com
os
eixos
apresentados
como
prioritários
para
o
desenvolvimento rural, deve ser dito que a combinação dos interesses inerentes à
sua dimensão natural e ecológica, com as suas funções nas esferas residencial,
económica/produtiva e recreativa/turística, não só é apontada como essencial no
52
Capítulo III
lograr da tal multifuncionalidade, como deve ser aspirada sob o jugo da
sustentabilidade (Ivars Baidal, 2000). Ora, existem interesses contraditórios
dificilmente colmatados na combinação destas funções, sendo o desafio de
compatibilização essencial para concretizar a multifuncionalidade. Num exemplo
básico, a aplicação de tecnologias nas actividades agrárias, para aumentar a
produtividade e inovar os métodos de produção, muitas vezes estimulada nos
discursos sobre desenvolvimento, é um elemento que transforma a paisagem e
retira ao cenário rural a ilusão de perenidade das técnicas artesanais, muito
veiculada na promoção do turismo rural.
Apelar à tradição e à manutenção das práticas e das paisagens para
desenvolver o poder de atracção dos consumidores de turismo rural pode ser e é
muitas vezes incompatível com o paralelo apelo à inovação e à evolução económica
e técnica. Outros conflitos são claros, por exemplo na combinação dos interesses
das populações locais e dos proprietários de segundas residências, pelas diferenças
de expectativas e opiniões em relação às políticas autárquicas, ou entre os
interesses do mercado imobiliário que aposta na urbanização crescente e os
interesses patrimoniais, que defendem a preservação dos núcleos rurais
tradicionais, com edificações típicas, sem antenas parabólicas, sem espaços para
estacionamento, sem semáforos, sem “modernidade”
Em suma, destacam-se algumas dinâmicas e funções complexas que
confluem nos espaços rurais na actualidade. A dinâmica natural e ambiental, em que
se combina a valorização do património natural e a necessidade de sua
preservação, com algumas ameaças à sua integridade, derivadas dos processos de
modernização e da falta de eficiência dos instrumentos de planificação e protecção.
A dinâmica económica e produtiva, em que entram muitas vezes em choque os
ritmos sociais e culturais rurais e a progressiva influência dos mercados e dos
processos de transformação funcional, cuja adaptação e aceitação não é sempre
fácil nem bem sucedida. A dinâmica residencial, em que se assiste à necessidade
de combinar distintos usos, tipos de mobilidade e apropriação, ritmos de
urbanização, variações demográficas, etc. E finalmente a dimensão recreativa e
turística, que participa simultaneamente nas dimensões anteriores, por tomar a
natureza como um recurso fundamental, por constituir uma actividade económica e
por jogar com os processos residenciais
53
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
A resposta efectiva para o equilíbrio entre as diferentes dinâmicas, numa linha
de desenvolvimento e sustentabilidade, passa pela formulação de políticas
coerentes e integradoras de todos os interesses. A dimensão ambiental funciona
como a base de todas as outras, sendo a sua preservação iminente e, assim, parece
claro que apenas através de uma linha de actuação estratégica se pode lograr a
coordenação do desenvolvimento de todos os sectores com o mesmo enfoque
dinâmico e antecipador da mudança (Ivars Baidal, 2000).
O desenho de políticas locais integradas e pensadas desde o território, é
considerado fundamental num contexto em que se exigem exemplos de
dinamização produtiva e inovação nos espaços rurais. Cooperação e flexibilidade
administrativa e produtiva, abertura ao “mundo globalizado” com simultânea
preservação da cultura local, são elementos importantes na gestão do que têm sido,
por um lado, o aproveitamento de possibilidades de desenvolvimento e, por outro, o
equilíbrio entre os desejos de “progresso” e expansão de contactos com o exterior e
a valorização dos recursos endógenos e das particularidades locais.
No entanto, para além das contradições assinaladas e apesar dos apelos ao
empreendedorismo privado e à coordenação de iniciativas, os agentes da
administração pública continuam a ter um protagonismo dominante no que são os
esforços de promover o desenvolvimento dos espaços rurais. Um exemplo desta
tendência é a falta de organização dos promotores privados de turismo rural, que
num sector muito fragmentado, não parecem alcançar níveis de associativismo e
coordenação suficientes, para concretizar estratégias integradas e potentes de
desenvolvimento. Para além disso, é notória a dependência deste mercado para
com o financiamento e coordenação das administrações públicas, que trabalham no
sentido de dotá-lo de maior eficiência e robustez, na esperança de que este se torne
um elemento dinamizador de desenvolvimento económico local.
Uma aposta na diversificação produtiva, no empreendedorismo local de
PME’s, no aproveitamento e valorização dos recursos locais, na formação de
plataformas de cooperação regionais de várias agências, etc., reflecte precisamente,
enquanto estímulo, a intenção de impulsionar a reanimação económica dos
territórios marginalizados de tradição agrária, num contexto em que a se destaca a
importância e o apoio dados ao turismo rural, pelo seu alegado potencial estratégico.
Assim, mesmo que se preveja a substituição das tradicionais economias de escala,
por economias de gama, dentro das lógicas de diversificação funcional e de
54
Capítulo III
adaptação às lógicas produtivas e comerciais actuais com enfoque ascendente e
centradas no potencial endógeno, os Estados nacionais, as autarquias, e instituições
como a União Europeia (UE), continuam a ser os principais actores que orientam e
sustentam estas políticas, existindo um défice de consistência na participação de
outras agências (Francés i Tudel, 2003).
Para além da diversificação funcional e económica e da combinação
sustentável dos distintos usos e desafios, que se propõem para os espaços rurais, a
renovação da sua imagem e a concretização de uma estratégia eficaz de marketing
territorial, apresentam-se como pontos essenciais nas políticas de desenvolvimento
local. O objectivo é apresentar uma imagem renovada de ruralidade que escape aos
estigmas e às representações associadas a um mundo rural arcaico e atrasado
(Carpio Martín, 2000). Exige-se uma estratégia de comunicação que concretize a
afirmação de uma modernidade rural através da promoção da paisagem, do
património e da identidade, enquanto ferramentas para o estímulo à mobilização de
um projecto de renovação partilhado pelos habitantes rurais, criado desde dentro,
mas voltado para o exterior.
Nas sociedades de hoje, com o peso estratégico que a comunicação social
tem na influência das representações sociais e na formação de opinião pública, a
estratégia de transformação da imagem rural deve passar por utilizar os media como
um veículo de promoção dos seus recursos (Ferrão, 2000; Beeton, 2004).
“Esta é talvez a última fronteira capaz de travar a multiplicação de mundos
rurais marginais e agonizantes” (Ferrão, 2000, pág. 53).
A criação de uma nova bateria de representações, integrada num projecto
maior de desenvolvimento, que estimule a atracção de benefícios e consumidores
para as actividades económicas, serviços e produtos locais, parece ser a linha
essencial nas políticas territoriais.
Mesmo que muitas vezes centrada na promoção do turismo rural ou dos
produtos regionais, já é clara a preocupação, nomeadamente das instituições
públicas (veja-se o caso da promoção turística assumida pelos governos das regiões
autónomas espanholas) para com a necessidade de criar e difundir uma imagem de
marca para as regiões e territórios rurais. Á imagem do que acontece nas cidades, o
marketing territorial ganha uma relevância inquestionável nos dias de hoje nos
espaços rurais, sendo elevado em diversas ocasiões a factor chave para a reversão
da marginalidade competitiva de muitos lugares e regiões.
55
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
O marketing rural ao potenciar o capital local acaba por ser seu componente
indirecto, no sentido em que a capacidade de mobilização e promoção endógena é
também um traço da capacidade de iniciativa e do empreendedorismo do tecido
social e económico dos lugares (Garrod et al., 2006). A coordenação é novamente
uma necessidade importante, já que na gestão e promoção das imagens dos
territórios a contradição é prejudicial, devendo existir um trabalho integrado de
construção de uma imagem visível e unificada. A “chamada imagem de marca” deve
ser encontrada e difundida, devendo também conter a bateria de significados e
valores a acentuar, do conjunto de recursos locais mais vantajosos estrategicamente
(Ward, 1998).
Este aspecto torna-se sobretudo importante na promoção do rural enquanto
destino turístico, sendo ao redor desta questão que mais se reflecte em torno do
marketing de territórios rurais. Na promoção do rural como destino, a unificação das
imagens rurais e a sua simplificação parece ganhar força, sendo até demasiado
simplista e uniformizadora (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Falaremos
adiante dos significados e valores que compõe a imagem do rural idílico que
costuma ser veiculada na promoção turística, mas podemos desde já adiantar que
pela intensidade da sua projecção nos últimos anos, tende a contribuir enquanto
elemento dominante para as representações de ruralidade com maior impacto e
abrangência.
Esta imagem do rural, enquanto paisagem sonhada e propícia à fruição
turística, uniformiza contextos rurais muito distintos sob uma mesma representação
e contribui para o novo estereótipo de ruralidade dominante, por vezes perigoso pela
sua rigidez e simplismo (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998).
“(…) el espacio sobre el cual se efectúa el enfoque principal podría llegar a
parecer inauténtico, velado por una capa de homogeneización o estereotipación de
sus elementos que asimila todo el paisaje a una postal comercial. Las voces
resuenan con un término que reiteramos y al que se adhiere un temor común:
banalización.” (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998, pág. 60).
Por outro lado, esta exaltação das paisagens e tradições rurais, ao
representar as identidades locais, pode servir de resposta e reacção à
homogeneização e uniformização que a globalização tende a alimentar ao nível
cultural e das representações, dentro de uma lógica de acentuação dos localismos e
sentimentos de pertença territoriais, que servem de ancoragem identitária num
56
Capítulo III
mundo em transformação (Ferrão, 2000). A questão da autenticidade é muito
importante quando se discute a promoção dos patrimónios locais, no sentido em que
por vezes acaba por ser um “falso” valor que “naturaliza” as tradições e as
identidades. Estas como construções sociais, não podem ser encaradas e
interpretadas segundo valores e lógicas simplistas, que muitas vezes recorrem à
noção de “verdade” e “pureza” de forma demagógica.
Sendo claro que as imagens dos territórios são construções sociais, como o
são a valorização patrimonial, a percepção dos espaços, as identidades e as
representações, o seu interesse reside precisamente nas dinâmicas ideológicas,
sociais, históricas e políticas que as formatam e influenciam e não no seu
“fundamento” ou correspondência com uma eventual “realidade verdadeira”. Essas
imagens e projecções antecedem a gestão e configuração das paisagens e dos
territórios, tendo uma importância inquestionável no que são as linhas ideológicas e
filosóficas que sustentam os projectos de intervenção e percepção dos espaços.
Assim, o entendimento do que, em cada contexto geográfico e temporal, rege as
valorizações e concepções em torno do que deve ou não conter, do que é e deve
ser, um território, permite a inteligibilidade das dinâmicas de gestão dos espaços,
sua configuração e valor (Bunce, 1994; Entrena Durán, 1998).
As paisagens sonhadas são, de facto, tão reais como as materiais, no sentido
em que o seu efeito e consequência enquanto projecção a concretizar, pelo menos o
mais possível, acaba por ser palpável, nem que seja nos discursos e narrativas ou
na hierarquização do que em cada momento deve ser protegido ou promovido
(Bunce, 1994). O caso dos produtos da terra, que iremos abordar em diante, acaba
por ser paradigmático neste contexto, no sentido em que a sua valorização e
comercialização crescentes, acompanham o incrementar de representações
bucólicas, em torno do rural saudável e tradicional, que vai ganhando voz nas
nossas consciências e preferências de consumo.
A classificação de lugares e produtos como bens patrimoniais ou locais é um
exemplo da “materialização” das dinâmicas de valorização que, desde as
representações, enchem os discursos. Essas dinâmicas são alimentadas como mais
um eixo das políticas de desenvolvimento local, ao que parece dirigidas pelos
poderes públicos, mas neste caso concreto, inquestionavelmente alimentadas e
acarinhadas também pelo mercado de consumo, que hoje, como veremos, aproveita
57
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
a ruralidade para fazer vender qualquer tipo de bem, num aproveitamento do poder
que os seus significados têm na contemporaneidade.
A publicidade e o marketing territorial têm como objectivo, não só a atracção
de atenções externas, mas também a mobilização e estímulo dos habitantes locais,
para o projecto de renovação e aproximação à imagem projectada (Barrado Tímon &
Castiñera Exquerra, 1998). Como é muitas vezes apontado na literatura, esta é uma
estratégia essencial para a implicação dos actores locais, sem a qual está
impossibilitado o percurso rumo ao desenvolvimento e à “concretização das imagens
sonhadas”. O aumento da auto-estima local é sem dúvida um dos efeitos mais
positivos da promoção das paisagens e elementos rurais e sua valorização
patrimonial (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998; Santos Solla, 1999).
Isto acontece porque se nas percepções dos urbanitas as tradições, práticas,
paisagens e estilos de vida são fortemente valorizados, aquilo que durante décadas
era visto como sinal de atraso, por oposição ao modelo de progresso industrial
urbano, é elevado a motivo de orgulho e a objecto de preservação.
“(…) hasta relativamente poco tiempo dominaba mayoritariamente en Europa
una convención positivo hacia la ciudad y negativo hacia lo rural. Por el contrario, la
idealización del campo ha supuesto el cambio de consideración de elementos antes
percibidos como negativos.” (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998, pág. 55).
Sobre estas questões iremos tecer desenvolvimentos nas próximas secções,
mas importa referir, desde já (e uma vez mais), o facto de esta valorização partir dos
territórios urbanos e funcionar como uma substituição das antigas lógicas de
dependência territorial e das funções rurais tradicionais, pelo seu usufruto enquanto
cenário de consumo e recreação (Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998). Por
outro lado, é clara também a relação que existe entre essa valorização rural e uma
correspondente “desvalorização” da vida nas cidades, no sentido em que mesmo
não se assumindo que na ruralidade a vida seja perfeita, sublinha-se que é melhor
que
nos
centros
urbanos.
Esta
comparação
subliminar
presente
nestas
representações e lógicas de valorização, acaba por sublinhar a importância que têm
as categorias e as relações territoriais, na configuração das hierarquias de valores
que centralizam ou marginalizam os espaços, nem que seja ao nível dos discursos.
Posto isto e para sistematizar a reflexão em torno da dimensão estratégica do
discurso de reinvenção da ruralidade, importa sublinhar que o reforço da
necessidade de encontrar soluções para os problemas das áreas rurais, que
58
Capítulo III
auferem grande protagonismo nas agendas políticas e mediáticas na actualidade,
não só precipita uma bateria de medidas e estímulos, como nos leva a afirmar que o
rural é um problema em que se quer pensar.
Outro aspecto relevante, é que as políticas de desenvolvimento rural
associadas ao discurso tendem a estimular a reconfiguração funcional e a aposta
em actividades alternativas à agricultura, numa abertura do mundo rural a novos
usos, mercados e aproveitamentos. Mais concretamente, assiste-se a uma
terciarização das áreas rurais (sob o apelo genérico à multifuncionalidade),
acompanhada de uma sua transformação em espaços de consumo e não mais de
produção.
Com isto, transformam-se as relações territoriais e as antigas lógicas de
dependência entre a cidade e o campo, ao mesmo tempo que, no processo, acaba
por sair facilitada a rentabilização do potencial rural que, no quadro de vazio
funcional de e estagnação produtiva, estava desaproveitado (dentro do que são as
lógicas do sistema capitalista). No entanto e contrariamente ao que é apresentado
como desejável pelas políticas de desenvolvimento rural, as iniciativas de
investimento, gestão e valorização do potencial rural, assim como o controlo e a
retirada de dividendos dos esforços de reinvenção, continuam a ser maioritariamente
públicos ou externos, sendo rara a endogeneidade apregoada.
De referir é também a valorização da dimensão patrimonial e ecológica da
ruralidade, patente na apologia da aposta em recursos culturais e naturais, no
quadro das estratégias de promoção e reanimação económica dos territórios rurais.
Cultura e natureza, património e sustentabilidade são, desta feita, apresentados
como sendo factores centrais e estratégicos, no projecto de ruralidade reinventada,
constituindo os recursos essenciais e distintivos do mundo rural, cuja preservação
funciona como a sua missão fundamental.
A renovação das imagens associadas aos lugares e à ruralidade em geral
aparece como um vector estratégico fundamental, apostando-se no marketing
territorial e recorrendo-se ao poder cultural do Ideal Rural (de que falaremos em
seguida), para estimular a valorização das localidades e do potencial rural e para a
reforçar a viabilidade do projecto de ruralidade reinventada. O discurso que o
veicula, nesta dimensão estratégica e política que ensaia a sua concretização, é
forte e disseminado, mas deve ser dito que a sua aplicação é ainda bastante
(es)forçada, não só pela fraca endogeneidade das iniciativas de desenvolvimento e
59
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
pela tímida reversão dos problemas rurais que logrou até aqui, mas porque as
realidades territoriais são muito complexas e poucas vezes “idílicas”.
Estando claro que estas estratégias de desenvolvimento rural passam por
uma diversificação funcional, muito dependente do fomento de actividades de
consumo e recreação, alimentadas pelas representações de uma ruralidade idílica e
que a sua promoção é eixo fundamental das políticas públicas, devem ser
esclarecidos os contornos dessa imagem sonhada e instrumentalizada. Havendo
uma estratégia política e técnica definida, que tem como objectivo a concretização
de um projecto de reinvenção da ruralidade, por via dos esforços de
desenvolvimento e de reversão da crise rural, importa conhecer a “matéria-prima”
que alimenta esta assunção de potencial de reinvenção e a promoção dos territórios
e seus produtos, tão fortemente implicada nos eixos estratégicos e operativos
concretos que apresentámos.
Importa conhecer o rural idílico, já que o espacial, social e económico, parece
ser-lhe dependente. Importa conhecer o sonho a que se aspira e em relação ao qual
se tentam aproximar os territórios, quando concretizadas as políticas e estratégias
de desenvolvimento. Se o rural é muitas vezes mais tangível enquanto construção
social ou como bateria de representações, do que enquanto território geográfico
concreto, faz falta tentar traçar os seus contornos e “puxá-lo” para a mesa, tratá-lo
como uma “coisa”, chegar perto…e é isso que se segue nas próximas páginas.
2. A Matéria-Prima. O Ideal Rural ou o discurso cultural de romantização da
ruralidade
A construção e difusão de um ideal rural é temática recorrente na literatura
anglo-saxónica, principalmente porque historicamente foi fenómeno central nas
políticas de estímulo à coesão social e à identidade nacional na Inglaterra da
Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras Mundiais. Aqui importa perceber
as origens e os contornos desse ideal e a sua aparente reascensão estratégica,
neste quadro de reinvenção dos espaços pós-rurais em crise. Sendo claro que pode
ter distintos aproveitamentos e objectivos, a construção e difusão de uma ruralidade
idílica não deixa de ser um fenómeno enraizado culturalmente nas sociedades
ocidentais, com vários séculos de sedimentação e oscilações, mas quase sempre
presente na arte e na literatura.
60
Capítulo III
De facto é longa a história de “romantização” da natureza e da vida rural nas
sociedades ocidentais, podendo ser identificados, pelo menos dois momentos, até
aos dias de hoje, em que o ideal natural e rural foi de forma mais intensa alimentado
e veiculado. Por um lado, no Renascimento, principalmente durante o século XVIII,
em que os motivos naturais eram elementos centrais na pintura e em outras formas
de arte e em que o apreço pela natureza, transformada e controlada pelo Homem,
elevava a construção de jardins a prática recorrente, sobretudo por parte das elites.
Por outro, na época Romântica do século XIX, com o avançar do capitalismo e da
industrialização, em que a natureza virgem e selvagem passa a ser alvo de grande
valorização, principalmente enquanto símbolo do que vai sendo progressivamente
“perdido” com o avançar da técnica e como possibilidade viva de um eventual
regresso às “origens” (Bertoncello, Castro & Zusman, 2003).
Acontece que hoje, existe uma elevação sem precedentes da ruralidade
enquanto espaço de uso e não apenas de contemplação, concretizando-se a
promoção e “venda” do rural enquanto produto, bem de consumo e contexto de
fruição, mas paralelamente também enquanto protagonista de uma renovação,
enquanto agente da mudança do seu próprio rumo: “The countryside itself became
the protagonist, a living being to conquered by living in it, not passively enjoyed in the
Romantic and even Modernist styles.” (Beeton, 2004, pág. 127).
O ideal rural aparece como uma alternativa à insustentabilidade urbana e a
sua valorização é fruto, tal como ciclicamente o foi no passado, das transformações
sociais e do seu “rasto” de instabilidade e insegurança (Bunce, 1994). Isto não quer
dizer necessariamente que, nos discursos, o mundo rural seja apresentado como
uma alternativa real à cidade, nem que o ideal rural promova um êxodo urbano
concreto e expressivo, mesmo se em alguns países europeus sejam palpáveis
alguns fenómenos de contraurbanização e grupos de “novos rurais” ganhem alguma
visibilidade mediática e científica. De facto, mais do que uma alternativa, o rural
idílico representa uma alteridade para a cidade, como um contraponto que permite
questioná-la, um escape para as ansiedades que a rodeiam e uma ideia de
qualidade de vida que remete para uma outra possibilidade de vida e de território.
Mais uma vez, como no passado, são as elites ou as instituições públicas
quem promove os movimentos de valorização do rural e a difusão das suas imagens
“romantizadas”, ora a partir de suas práticas ou políticas, ora pelas representações
61
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
que da ruralidade são veiculadas na arte e na literatura (e, actualmente, nos media)
(Bunce, 1994).
O ideal rural vem sendo forjado pelas sociedades urbanas e tem tendência a
intensificar-se em épocas de maior transformação e força do urbanismo e, neste
caso, do capitalismo de mercado. Assim sendo, actualmente estamos a assistir ao
auge da sua difusão, cada vez mais elevada à medida que as ansiedades,
correspondentes às mudanças e às “crises” da cidade, vão crescendo. A aparente
necessidade humana de contacto com a natureza alimenta e é, ao mesmo tempo,
aproveitada para sustentar a valorização do ideal rural nos dias de hoje, contendo a
carga simbólica e mitológica que está enraizada na cultura ocidental.
“The countryside thus becomes a symbolic landscape because it conveys
meanings which speak of the very associations which urbanism and modernism have
broken, and which our nostalgia drives us to restore.” (Bunce, 1994, pág. 208).
A carga simbólica inerente ao ideal rural difundido tem o poder de condicionar
os territórios, como foi dito, e isto revela-se de diversas maneiras em dinâmicas
múltiplas, quer nos espaços rurais, quer nos urbanos, qualquer que seja o grupo
social, muito embora nas elites o poder de concretização do “sonho” seja maior.
Como exemplos do poder do ideal rural, podemos adiantar a proliferação crescente
de segundas residências adquiridas pelos urbanistas nos espaços rurais, ou o estilo
arquitectónico rústico que muitas vezes inspira a construção das vivendas
suburbanas. Estas reapropriações do ideal rural, as “bricolages” estilísticas, os
anacronismos estéticos e os recursos a heranças imaginadas, parecem ser cada vez
mais comuns no contexto da globalização, com a exaltação de localismos e
tradições, como resposta à força uniformizadora da cultura de massas.
Sendo claro que a dominação das dinâmicas de construção destas
representações e dos veículos de sua promoção está nas mãos das elites urbanas,
não será estranho que a fruição dos “tesouros” da vida bucólica seja comercializada
nos seus circuitos, naquilo que se constitui como a reprodução das hierarquias
sociais e de consumo, ao nível das actividades de recreação e formatação dos
territórios rurais. É o olhar urbano que centraliza o ideal rural, é o urbanita quem
desfruta da ruralidade enquanto cenário de ócio, estando reforçado o carácter
externo da valorização e aproveitamento dos recursos rurais, apenas idealmente
rentabilizados e geridos endogenamente.
62
Capítulo III
”Por tanto, el asunto puede entenderse dentro de una continuación de la
tradición de dominación urbana en clave de relaciones centro-periferia, que ahora
demanda no productos sino servicios, justificandolo a travérs de conceptos como
conservación del património, desarrollo, etc. Ya no se necesitan las materias primas
ni los alimentos, pero se está dispuesto a comprar, y desgraciadamente para los
rurales, en gran medida, controlar, un nuevo recurso que hasta ahora no había sido
internalizado por la economía: el paisaje rural.” (Barrado Tímon & Castiñera
Exquerra, 1998, pág. 55).
De extremo interesse é o facto de na actualidade a manipulação da paisagem
ser essencial para o cumprimento das estratégias de “commodification” do rural,
exigindo-se a aproximação dos espaços aos mitos e imaginários bucólicos de
ruralidade. Já não se trata apenas de aplicar manobras fachadistas de “decoração”
rústica dos povoamentos ou dos edifícios, senão que se manipula a paisagem, se
“retrocede artificialmente” nas práticas para voltar às actividades económicas
tradicionais, esconde-se a maquinaria e tudo o que possa ser conotado com o
esforço e com a crueza do trabalho agrícola, aposta-se na ostentação da
gastronomia tradicional, moldando-se os estilos de vida, a natureza, as relações
sociais e os artefactos para caber nos “sonhos” dos consumidores (Bunce, 1994;
Barrado Tímon & Castiñera Exquerra, 1998).
Mantêm-se as práticas agrícolas, por exemplo, mas não enquanto fonte
principal de rendimento ou actividade produtiva por si, senão, muitas vezes como
parte do cenário bucólico rural, ocultando os elementos associados que não
correspondem aos parâmetros idílicos. O isolamento geográfico, por exemplo, é
visto muitas vezes como uma vantagem, pelos consumidores urbanos do ideal rural,
no sentido em que está mais fortemente garantida a “pureza” da paisagem e dos
estilos de vida, em territórios menos “contaminados” com as “desvirtuantes”
influências modernas. Neste ponto é clara a divergência de interesses em que
distintos eixos de desenvolvimento podem colidir, já que se é importante a
acessibilidade para muitas actividades produtivas e para o logro do desenvolvimento
e da qualidade de vida da população, no caso do turismo rural, a ideia de
inacessibilidade pode ser vista como atraente e como factor de garantia da
autenticidade do “quadro”.
Estas mudanças nas lógicas de gestão e promoção do rural, tendem a, por
um lado, esconder os factores de mudança ou forjar um ambiente de perenidade
63
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
secular de paisagens e práticas e, por outro, a ensaiar práticas criativas e
inovadoras de diversificação económica e cultural. São claros os conflitos de
interesse, divergências e contradições estratégicas que pulverizam as manobras de
reanimação dos espaços rurais, estando assim, mais uma vez, reforçada a
necessidade de desenvolver políticas integradas e direccionadas a este nível.
O território deve transformar-se ou preservar-se intacto conforme os
interesses
económicos
associados
às
actividades
culturais
e
recreativas,
apresentadas como a “salvação” para a crise funcional do mundo rural. Noções
como “qualidade”, “autenticidade” e “tradição” são utilizadas para reforçar a
necessidade de preservação dos espaços e patrimónios rurais, cristalizados, assim,
em cenários de ócio polivalentes, capazes de proporcionar segurança e aventura,
consoante os desejos dos seus consumidores (Barrado Tímon & Castiñera
Exquerra, 1998). Estas dinâmicas são construídas politicamente, sempre com o
aproveitamento da bagagem cultural e artística, que nos nossos imaginários sociais,
há muito tinha desenhado e inculcado a imagem de ruralidade bucólica.
A ideia de que se pode construir paisagem apaga a barreira secular entre
cultura e natureza, no sentido que o que é tido como natural, tem no rural, cada vez
mais origem nas práticas culturais de “renaturalização” que forjam um património
supostamente selvagem (DuPuis, 2006).
“In the study of landscape, nature becomes entangled in the dreams of
modernity, a repository of everything civilization is not: pure, inhabited, unconscious,
non-rational, free of inhibitions and intent. In romantic thought, nature becomes the
good to civilization’s bad (…)” (DuPuis, 2006, pág. 125).
A modernidade traz consigo duas narrativas importantes e paralelas, já que,
por um lado, reforça o mito do controlo humano sobre a natureza e, por outro,
promove a nostalgia pela pureza natural perdida. Estes sentimentos aparentemente
contraditórios parecem coexistir, neste contexto, de forma irónica, na medida em que
é da manipulação humana da paisagem que se cria a ilusão de refúgios selvagens
intactos.
O ideal de ruralidade consiste num espaço socialmente homogéneo e seguro,
em que homem e natureza convivem de forma harmoniosa, em que a vida é serena
e familiar, em que as práticas agrárias e artesanais seculares ainda se mantêm
intactas e tradicionais (não sendo extenuantes), em que a gastronomia é uma
herança de saúde e de bem-estar, as construções estão integradas na paisagem e
64
Capítulo III
não cederam às “modas urbanas”, o tempo é vivido lentamente e a exuberância da
fauna e da flora promovem momentos de fruição, quer para os espíritos mais
aventureiros, quer para os que preferem o relaxamento e a contemplação. Esta
visão fortemente formatada debaixo dos valores elitistas dominantes, dificilmente
prevê a coexistência de diferentes grupos étnicos ou sociais, a não ser que seja
segundo as lógicas, também seculares, de hierarquização rígida da divisão do
trabalho, em que os momentos de contemplação e ócio estão reservados para uma
minoria privilegiada de gosto refinado (Dupuis, 2006).
Nem sob o actual interesse numa promoção intensa do turismo rural é
vantajosa uma total democratização do rural enquanto destino, no sentido em que
uma massificação não seria sustentável e os serviços estão direccionados para um
público informado e com um poder de compra mais elevado, por comparação aos
consumidores do turismo de litoral. A elite que cria, difunde e usufrui dos
aproveitamentos económicos do ideal rural, quer enquanto consumidor, quer
enquanto promotor, sendo urbana e tendo, desta feita, um controlo sob as lógicas de
gestão destes territórios, constitui uma resistência às possibilidades redistributivas
que se esperam viáveis, a bem da concretização de um projecto de desenvolvimento
real em favor das populações rurais. Os jogos de poder por detrás destas questões,
os conflitos de interesse e as dificuldades operativas de concretizar um
desenvolvimento pensado e orientado endogenamente, contribuem para que
permaneçam as dúvidas quanto à capacidade reguladora das instituições públicas
nesta matéria, mas reforçam inquestionavelmente a sua importância (DuPuis, 2006;
Short, 2006).
O
ideal
rural
apesar
de
muitas
vezes
uniformizar
e
formatar
estereotipadamente as paisagens e práticas sociais, apesar de ser alimentado por
interesses muitas vezes elitistas e apesar de não ter sempre repercussões imediatas
nas dinâmicas de desenvolvimento locais, tem contudo a vantagem de reverter as
ideias negativas e os estigmas que, durante décadas, contribuíram para o
esvaziamento, decadência e paralisia dos territórios rurais em crise (Short, 2006).
Mesmo que muitos dos seus elementos continuem a ser vistos como sinais de
atraso pelos seus habitantes, maior valorização começa a ser dada pelos mesmos
aos seus patrimónios culturais e naturais e às suas práticas quotidianas.
A idealização do rural é um sintoma da urbanização, sendo na cidade que
mais facilmente se encontra as manifestações e os ecos dessa bateria de
65
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
representações positivas da ruralidade. A sociedade de consumo utiliza o ideal rural
para vender quase todo o tipo de produtos, através de associações e conotações,
que remetem para os valores e elementos rurais e tradicionais mais prestigiados.
Dentro desta dinâmica de comercialização do rural, é vendido o ideal ao mesmo
tempo que se ajuda à venda de vários produtos.
“Adverts for a whole host of products and services trade on the positive
connotations of the rural. It is visible in trends in interior décor, home furnishings,
garden design and clothing ranges.” (Bell, 2006, pág. 150).
Num resumo dos ideais-tipo abrangidos pela ruralidade idílica recorrente,
teríamos o natural/selvagem, o desportivo e de aventura, e o agrícola, mas
artesanal, como os cenários mais marcados nos imaginários. Acontece que a
projecção do ideal rural condensa as suas diferentes vertentes, numa combinação
de um conjunto de elementos que por “osmose” se unem sob o signo de “rural” nas
nossas representações. Esses elementos são a natureza, o romantismo, a
autenticidade e a nostalgia, no que parece ser uma bateria de “gatilhos” emocionais
e imaginários que disparam todo o tipo de conotações idílicas a este nível, quando
se pensa em ruralidade e rapidamente se tece um quadro de moldura rústica
alimentado de visões oníricas (Bell, 2006).
“It is first and foremost a symbolic landscape into which is condensed and onto
which are projected a whole host of things: identifications, imaginings, ideologies.”
(Bell, 2006, pág. 151).
A combinação e uniformização de muitas ruralidades sob um mesmo ideal por
vezes redutor, apesar de ser simplista pode, de facto, facilitar o alcance das
representações, no sentido em que torna uma realidade complexa mais facilmente
apropriada. A inteligibilidade de cada lugar, enquanto espaço social específico e
complexo, é preterida em função de uma adopção emocional da imagem
culturalmente “familiar” e digerida pela sua recorrência na arte, na literatura, nas
narrativas, na publicidade etc., mesmo que seja demasiado limitada para
corresponder aos lugares reais e suas especificidades.
O ideal rural pode ser veiculado em diferentes suportes, adaptando-se aos
registos distintos, mas mantendo os seus contornos. Na globalização, o ideal rural
transpõe fronteiras e exalta os localismos que ancoram as identidades num
processo de adaptação e resistência aos avanços da cultura de massas; nos media
alimenta a publicidade e é exaltado em diversos tipos de programas, filmes e
66
Capítulo III
imagens; à mesa abre todo um novo rol de “velhos” paladares para degustar, está
associado à saúde, a ingredientes orgânicos e a sabores tradicionais; no turismo
apresenta-se como uma nova atracção, um novo mercado em ascensão; e nos
quotidianos, por estar presente em todas estas esferas, ganha uma centralidade
sem precedentes (Bell, 2006).
O facto de o ideal rural ser uma construção social que culturalmente está
enraizada nos nossos imaginários colectivos facilita o seu aproveitamento político.
Esse aproveitamento pode ter distintas finalidades, tendo servido, no caso da
Inglaterra da Revolução Industrial e das duas Grandes Guerras, como um reforço da
coesão social e nacional. Hoje, no contexto da globalização, contribui para dar
sentido ontológico num tempo de instabilidade e de suposta homogeneização
cultural à escala mundial. Ao passo que, integrado no discurso de reinvenção da
ruralidade e nas suas estratégias de desenvolvimento, está ao serviço da reversão
do quadro de marginalidade funcional do mundo rural, nomeadamente como um
poderoso recurso para o marketing territorial.
Aproveitar as oportunidades de mercado, que a centralidade do ideal rural vai
abrindo, de forma a lograr desenvolvimento, numa linha de mobilização endógena
de recursos e projectos, implicaria que a dominação urbana da sua construção,
alimentação e consumo, não estivesse tão estabelecida em circuitos elitistas de
poder. De facto, em muitas esferas o usufruto das virtualidades da ruralidade
turística, gastronómica, paisagística e artesanal, está monopolizada, tanto no
consumo, como na promoção e nos lucros, por uma minoria privilegiada de urbanitas
ou proprietários, que mesmo podendo ser de origem rural, assumem muitas vezes
estilos de vida urbanos e estão envolvidos em redes sociais exteriores às
comunidades locais.
Deve ser pensada uma solução para estas limitações ao nível da
redistribuição dos dividendos retirados dos “negócios” alimentados pelo ideal rural, já
que discursivamente é apresentado como objectivo, que estes revertam em favor
das comunidades. Por outro lado, sendo uma construção social urbana, que faz
sentido enquanto alteridade ao seu modelo de organização territorial, e que vive
sobretudo (promocional e oniricamente) no espaço da cidade, torna-se difícil
deslocar o domínio da produção destas representações e seu controlo para o mundo
rural, até porque este não tem o mesmo poder competitivo a nível económico e a
mesma força de influência cultural no seio da globalização. De qualquer forma, por
67
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
todas estas razões, o papel dos poderes públicos sai reforçado, naquilo que diz
respeito à regulação, orientação e gestão destes problemas e potencialidades, bem
como na coordenação das estratégias de promoção e desenvolvimento territoriais.
Deve ser igualmente reforçado que o turismo rural aparece como a actividade
sobre a qual são depositadas mais esperanças, enquanto fonte de rendimento e
estímulo ao desenvolvimento do mundo rural, e que é em torno desta actividade que
mais se reforça e utiliza o poder de atracção e promoção do ideal rural. Para além
do turismo, a gastronomia, o artesanato e os chamados “produtos da terra”, parecem
compor o conjunto dos produtos rurais mais promovidos e conectados ao ideal rural.
Percorridas as estratégias e eixos de desenvolvimento e reanimação do mundo
rural, discutida a sua “matéria-prima” cultural, pela descrição das dinâmicas que
rodeiam a produção, aproveitamento e promoção do ideal rural, importa então
pensar nos produtos, apregoados como estratégicos neste processo de reinvenção.
As actividades e produtos “vendidos” sob o signo da ruralidade podem ajudar
a percorrer o caminho que vai desde as intenções políticas que regem as estratégias
de desenvolvimento, baseadas em grande parte na imagem idílica de ruralidade
(cultura, tradição, património, paisagem, artes e ofícios), até aos serviços e bens de
consumo que na realidade concreta e económica, são apresentados como
potenciais alavancas para as crises funcionais e produtivas do mundo rural.
Esperamos analisar as linhas em torno das quais se tecem as potencialidades e os
valores estratégicos destes produtos e entender até que ponto alimentam e são
alimentados da imagem de rural idílica, ao que parece cada vez mais difundida e
dominante nas negociações simbólicas que de forma competitiva se constroem ao
redor dos territórios.
Posto isto, e porque o turismo rural assume uma centralidade ímpar nos
discursos sobre as possibilidades de desenvolvimento rural, tomá-lo-emos de forma
mais aprofundada, para depois ir tocar na gastronomia, nos “produtos da terra” e no
artesanato, e desenhar assim o quadro de produtos mais recorrentes nos discursos
em torno desta ruralidade consumível.
68
Capítulo III
3. O Rural enquanto produto e os produtos rurais. O discurso promocional e
comercial em torno do rural consumível.
Três grandes factores contribuem para que na actualidade o turismo rural
assuma tanta visibilidade, pelo menos discursivamente. Por um lado, o papel
incentivador do sector público, que no quadro das políticas de desenvolvimento rural
tem promovido e apoiado iniciativas de implantação de serviços turísticos como uma
das principais medidas de concretização da diversificação funcional do mundo rural
e muitas vezes como a possível “salvação” para decadência económica destes
territórios. Por outro, as transformações nas pautas de comportamento dos
consumidores turísticos nos últimos anos, que faz ascender destinos alternativos, ao
turismo massivo de litoral, numa linha de valorização dos patrimónios natural e
cultural, como elementos essenciais para a qualidade e consistência dos espaços
turísticos. Finalmente, a importância do crescimento dos discursos e práticas
ecológicas na contemporaneidade, que impõe progressivamente preocupações de
sustentabilidade às práticas turísticas e que, no rural, parecem encontrar
possibilidades de sua concretização, aliadas ao usufruto do contacto com a natureza
(Mediano, 2004).
A
primeira
dinâmica
prende-se
com
as
estratégias
políticas
de
desenvolvimento rural que anteriormente já foram exploradas e com o importante
papel das administrações públicas no incentivo e apoio financeiro à implantação de
actividades turísticas no mundo rural. A segunda, por seu turno, cabe desenvolver
brevemente neste ponto e diz respeito a um novo tipo de consumo turístico que
ganha cada vez maior peso, enquanto influência da oferta de destinos e serviços. As
características do chamado “turista pós-fordista” prendem-se com a sua preferência
por destinos pouco procurados ou sem os desconfortos de uma concentração
massiva de turistas, com o carácter eclético das suas escolhas, podendo ser muito
distintas ao longo do tempo, com o seu elevado poder de compra e capital cultural e
com o facto de terem preocupações com a qualidade, autenticidade e
sustentabilidade dos elementos patrimoniais de cada lugar visitado (Mediano, 2004).
Uma maior segmentação do mercado turístico, um crescimento em termos de
importância do segmento de maiores de 55 anos, uma maior exigência de qualidade,
tanto do destino como dos serviços prestados, uma preferência por experiências
turísticas mais participativas, um aumento do número de viagens independentes e
69
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
de
viagens
de
longos
percursos
e
um
binómio
recorrente
–
falta
de
tempo/disponibilidade de dinheiro, são as tendências que actualmente marcam a
procura turística. Estas, aliadas à referida eminência das preocupações com o meio
ambiente, justificam a preferência crescente que o turismo rural tem angariado nos
últimos anos (García Henche, 2006).
Este último ponto prende-se com a importância da consciência ecológica que
deve acompanhar tanto a promoção como o consumo turísticos nos contextos rurais
na actualidade, a bem da sustentabilidade dos patrimónios naturais que compõe os
destinos e da manutenção da aura de “turismo inofensivo”, que dita as preferências
dentro destas novas lógicas de consumo. Assim, no rural, este elemento deve
assumir cada vez mais centralidade, tanto enquanto argumento de sua promoção
como destino, como enquanto preocupação a contemplar nas políticas públicas de
seu incentivo e nas medidas reguladoras dos diversos níveis de administração
(Mediano, 2004). Estes apelos à sustentabilidade, bem como os que se prendem
com os elevados níveis de exigência dos “novos consumidores turísticos”,
heterogéneos nas escolhas e com alto nível de informação, aumentam, de facto, a
necessidade de cumprir uma elevada fasquia no turismo rural, que deve contemplar
diversos tipos de demandas e oferecer serviços à altura de um público multifacetado
(Ivars Baidal, 2000).
Definir “turismo rural” ou “turismo em espaço rural” pode ser uma tarefa
complexa, atendendo, como vimos à própria noção de ruralidade, que tampouco
parece ser simples de traçar. No entanto, remetendo para a definição de turismo da
Organização Mundial de Turismo (1993) podemos assumir que turismo rural é o
conjunto de actividades realizadas pelos indivíduos durante as suas viagens e
estâncias em lugares diferentes ao seu contexto habitual, por um período de tempo
consecutivo inferior a um ano e superior a uma noite, com fins de desfrutar dos
atractivos do “rural”, em territórios de tradição agrária recente ou em curso, com
paisagens naturais abundantes, baixa densidade de povoamentos e edificações e
em que esteja garantida a sustentabilidade dos patrimónios naturais e culturais.
Dentro do que são os “derivados” do turismo rural, apontamos consoante a
procura (motivação, tipo de práticas a desenvolver e serviços exigidos), um conjunto
de ofertas ou tipologias relacionadas, mas distintas em determinados elementos.
Pode identificar-se o agro-turismo, cuja procura está motivada pelo contacto e
fruição das actividades agrícolas ou pecuárias; o ecoturismo, motivado pela vontade
70
Capítulo III
de participar em trabalhos de preservação ambiental, ou pela intenção de visitar e
conhecer reservas, parques naturais ou todo o tipo de espaços de preservação dos
ecossistemas, o turismo desportivo ou de aventura; o turismo cultural rural; o turismo
de interior, definido pela demanda com critérios geográficos de selecção excludentes
das franjas litorais; o turismo alternativo, entre outros (Ivars Baidal, 2000).
A filosofia por detrás do turismo rural assume, como dissemos, a
sustentabilidade como valor inalienável, sendo vasto o conjunto de factores que
suportam a sua garantia. Entre eles podemos apontar, de forma sintética, a
integração dos empreendimentos de acordo com a paisagem, a escala da
comunidade local, a autenticidade dos elementos “vendidos”, o contacto pessoal
entre turistas e autóctones, a predominância de empresas familiares, o
favorecimento do desenvolvimento local, a preservação do meio ambiente, o
incrementar do conhecimento e qualidade do património cultural, o apoio aos meios
de vida rurais, a implicação da população na gestão e controlo do desenvolvimento
turístico, e uma visão integrada e a longo prazo, voltada para o desenvolvimento
territorial.
Assim, quando nos discursos políticos e técnicos se fala de turismo rural, é
patente a omnipresença do argumento que este é de grande utilidade para
desenvolvimento local, dentro da filosofia de valorização do empreendedorismo
local, associado sempre às questões de sustentabilidade ambiental e de
preservação dos patrimónios culturais.
“Los fundamentos de los paradigmas del desarrollo mencionados parten de
una sensibilidad sociopolítica que se plasma en un proceso de desarrollo, con
objectivos preferentemente cualitativos, instrumentado a través de una organización
institucional adecuada y de un necesário apoyo técnico.” (Ivars Baidal, 2000, pág.
79).
Objectivos como a satisfação das necessidades da população, a sua
manutenção e o seu favorecimento primordial, segundo lógicas institucionais e
organizativas em que os distintos poderes agem de forma concertada e em
coordenação e existe a participação dos contributos privados, em articulação com
actores públicos, numa estratégia planificada a longo prazo, que antecipe as
mudanças, faça a gestão de recursos escassos e proceda a uma monitorização
permanente
dos
resultados,
são
apresentados
como
preocupações
de
sustentabilidade na implementação do turismo rural. A estas linhas soma-se a
71
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
existência de uma ampla e sólida base social, uma sensibilidade para com a escala
local, seus recursos, necessidades, dinâmicas específicas, etc., a preservação dos
ecossistemas e o logro da tão referida diversificação funcional (Ivars Baidal, 2000).
Como foi referido aquando da reflexão sobre o ideal rural, os consumidores
de turismo rural procuram uma mudança de ambiente, uma ruptura com o contexto
urbano do dia-a-dia, num lugar tranquilo, que permita o contacto com a natureza, o
convívio humano, uma alimentação saudável ou com sabores alternativos aos do
quotidiano, uma sensação de “familiaridade” com um eventual passado perdido e
uma espécie de regresso à tradição.
“Los turistas que deciden realizar turismo rural tienen en mente romper con la
formalidad de su comportamiento en la ciudad. Buscan el campo y una oportunidad
para restituir sus energías y el equilibrio. Un turista que valora su calidad de vida
busca un pueblo pequeño, tranquilo, con naturaleza viva y cultura local atrayente.”
(García Henche, 2006, pág. 137).
A procura turística tem como intenção encontrar os traços que do ideal rural
se pretendem transpor para os territórios, a saber, povoações pequenas e pouco
densas, uma estrutura produtiva agrícola e artesanal, uma paisagem natural aberta
e que favoreça a contemplação, contactos interpessoais facilitados, maior ligação
entre os espaços privados e públicos, gastronomia típica, arquitectura tradicional,
etc. (Millán Escriche, 2002). O rural, enquanto produto turístico, tem, de facto, as
suas especificidades e entre elas está o facto de não estar implantado nos grandes
circuitos de comercialização, nem conter grandes empreendimentos, tal como em
outros tipos de turismo.
A falta de presença do turismo rural nos grandes circuitos de promoção e
comercialização turística, aliada à necessidade de criar uma estratégia de marketing
e gestão apropriada, que possibilite o aumento da procura e mantenham ao mesmo
tempo os níveis de qualidade exigidos pelo público deste tipo de produto, destaca a
necessidade de revisão das estruturas organizativas existentes. O associativismo é
extremamente aconselhado, já que, os agentes privados e empresas familiares, que
normalmente constituem os promotores do turismo rural, parecem não ter um grau
de coordenação e uma estratégia comum, suficientemente capazes de reverter as
dificuldades, que a pulverização dos empreendimentos, a fragmentação de
propriedades e agências, a juventude do mercado em causa e a falta de instituições
de alçada, vão criando ao desenvolvimento deste sector.
72
Capítulo III
De facto, a criação de estruturas organizativas comuns a todos os
intervenientes da cadeia turística rural, com a inclusão da população, a definição
institucional de uma estrutura de liderança, que sirva de rosto e orientação para o
sector, o desenho de uma estratégia concertada, com metas e linhas operativas
claras, constituída participativamente, e a garantia de uma efectiva monitorização
desta, para o logro do sucesso dos objectivos, são algumas das condições
essenciais para que o turismo rural evolua positivamente e se cumpra enquanto
factor de reanimação económica do mundo rural.
Falta igualmente que os instrumentos de ordenação e protecção dos espaços
rurais se orientem para a preparação de estruturas de oferta turística de qualidade,
sustentáveis e benéficas ao desenvolvimento. Falta uma apresentação eficaz com
denominação clara do produto turístico rural, dentro de estratégias de comunicação
concisas mas capazes de informar com rigor os possíveis consumidores. Falta atrair
mais público sem ceder, contudo, à massificação. Falta constituir um amplo rol de
actividades complementares, para dar resposta às exigências ecléticas da procura,
mas também para estimular actividades económicas várias (Millán Escriche, 2002).
A qualificação e a profissionalização da mão-de-obra seriam desejáveis a
bem da qualidade dos serviços, mas também como forma de dotar o tecido social
local de maiores possibilidades de emprego e maiores níveis de escolaridade
(García Henche, 2006). Uma aposta na qualidade dos destinos e serviços pode
igualmente ajudar à diferenciação e prestígio do rural como produto turístico, bem
como para fidelizar um público muitas vezes disperso e errante. Outro elemento
essencial à consolidação do sector do turismo rural é um incremento do número de
publicações, folhetos, itinerários, guias e todo o tipo de suportes e veículos de
promoção e informação (García Henche, 2006).
Como consequências positivas possíveis do turismo no desenvolvimento
rural, podemos apontar o facto de este sector poder contribuir para a diversificação
funcional e para o incremento das rendas de algumas famílias rurais, para a fixação
da população, para a preservação patrimonial e cultural local, para o aumento do
emprego e principalmente do emprego feminino, para a melhoria dos acessos,
meios de comunicação e infra-estruturas das localidades e para uma valorização do
potencial rural (Mediano, 2004).
Ainda assim, com tantas possibilidades e potencialidades auspiciosas, deve
ser assinalada a ilusão que, muitas vezes, rodeia o turismo rural, mais
73
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
concretamente, a sua recorrente sobrevalorização enquanto panaceia para a
resolução de todos os problemas do mundo rural. Mesmo havendo casos de
sucesso, existem diversos sinais de que muitas contradições existem ainda, para
que seja inquestionável o papel mobilizador do turismo rural no desenvolvimento das
localidades (Santos Solla, 1999; Ivars Baidal, 2000; Ribeiro & Marques, 2002; Silva,
2009).
A falta de coordenação entre os diferentes serviços locais (pousadas,
restaurantes, artesãos, etc.) e o isolamento de grande parte dos serviços turísticos
não permite, muitas vezes, a desejável disseminação dos consumidores pelos
diversos negócios da localidade visitada, o que limita o efeito estimulador das
economias locais, discursivamente atribuído ao turismo em espaço rural (Silva,
2009).
O facto da actividade turística ser caracterizada ainda por uma sazonalidade
marcada e por épocas de grande estagnação, pode ser um motivo para que não
possa ser considerada uma alternativa consistente ao progressivo abandono do
sector primário (Ivars Baidal, 2000).
O facto de que um eventual desenvolvimento do turismo rural possa contribuir
para o abandono total das actividades agrícolas e para um desenvolvimento
excessivo do sector terciário, deve ser, de facto, motivo de algumas preocupações,
no sentido em que a perda das práticas agrárias significa o desaparecimento de um
elemento central na cultura rural e na identidade colectiva das comunidades.
“En defenitiva, vemos o turismo como a gran salvación do mundo rural en
declive dende hai bastantes décadas, malia as contínuas matizacións do seu papel e
a cautela á hora de lle atribuir excesiva importância.” (Santos Solla, 1999, pág. 151).
Dúvidas existem, por exemplo, quanto ao real favorecimento comunitário com
estas actividades, já que são recorrentes os exemplos em que apenas uma minoria
de proprietários privilegiados é directamente beneficiada. O facto de serem
preferidas as construções de maior qualidade e dimensão, em melhor estado de
conservação, para o estabelecimento de serviços de alojamento, implica, em muitos
casos, a exclusão das pequenas casas camponesas e a preferência estratégica por
solares de famílias de classes sociais favorecidas (Santos Solla, 1999; Ribeiro &
Marques, 2002).
Outro aspecto importante é a tendência para que sejam os proprietários, com
maior capital cultural e social, aqueles que tomam a iniciativa de solicitar apoios e
74
Capítulo III
subsídios para investir em serviços de turismo rural. A escassez de informação,
escolaridade, disponibilidade económica, capacidade de iniciativa e de redes de
conhecimentos, impede que os agricultores ou habitantes rurais consigam mobilizarse para o trabalhoso e burocrático percurso de solicitar apoios públicos e começar
um projecto turístico (Santos Solla, 1999;).
Obstáculos deste tipo, apresentam-se igualmente após a implantação dos
empreendimentos, aparentemente pelas mesmas razões, no sentido em que o trato
com os turistas, o domínio de outros idiomas, a capacidade de gestão do negócio, a
falta de fluidez financeira para sua manutenção, carências ao nível da
profissionalização e qualificação, para a flexibilidade exigida neste tipo de trabalho,
entre outros factores, podem contribuir para que apenas uma minoria de
privilegiados possa ter sucesso no sector (Santos Solla, 1999).
Outro aspecto contraditório é o baixo nível de criação de outros postos de
trabalho, fora do círculo familiar dos empresários que, mesmo que recorram a mãode-obra local, fazem-no sazonalmente, sem exigências de qualificações e sob
grande precariedade laboral. Isto porque, para além de serem escassos os
trabalhadores rurais qualificados para serviços de hotelaria e turismo, a contratação
de um trabalhador especializado é custosa e vista muitas vezes com desconfiança,
principalmente porque os proprietários não estando profissionalizados, preferem não
ver a sua autoridade ameaçada por pessoal mais preparado (Francés i Tudel, 2003).
Por outro lado, o trabalho feminino, que tendencialmente é mais requisitado
pelo sector turístico em espaços rurais, mesmo que pouco qualificado, tem permitido
que as mulheres rurais ganhem independência progressiva, maior contacto com
pessoas externas à comunidade, mais auto-estima, um incremento do seu
rendimento e, consequentemente, do peso deste nos orçamentos familiares (Santos
Solla, 1999).
No entanto, para além deste exemplo, não é líquido que se tenha sentido um
grande aumento do número de postos de trabalho nas comunidades já integradas
nos circuitos de turismo rural (Santos Solla, 1999). Ora, na realidade, os
rendimentos do sector têm crescido significativamente, estando a aparente
75
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
sobrevalorização do turismo rural bastante afastada, a este nível, dos dados
estatísticos disponíveis em vários países da Europa4.
Como última crítica a assinalar, volta a ser necessário apontar a carência de
coordenação das políticas de promoção turística e desenvolvimento nos espaços
rurais, já que podem ser encontrados muitos exemplos de medidas infrutíferas ou
contraditórias (Santos Solla, 1999). A integração e coordenação de políticas é
essencial para a implementação do sector turístico no mundo rural, sob pena de
estas contradições e obstáculos perpetuarem os desequilíbrios sociais, económicos,
funcionais e ambientais existentes.
Para que o turismo favoreça as comunidades locais e o desenvolvimento, há
que reverter as lógicas de exclusão e manutenção das hierarquias seculares no
mundo rural e ensaiar novas formas de mobilização colectiva, para que de facto a
evolução seja endógena e democrática. Também aqui, há que sublinhar a
exterioridade
do
controlo
dos
recursos
e
actividades
locais,
fortemente
condicionadas pelo poder de dominação das elites urbanas.
“Isto leva-nos cara a outra consideración non menos importante que é que o
turismo non é tanto (ou non debería ser) o motor do desenvolvemento local, como
unha consequencia deste último. É decir, unha vez que unha comunidade rural
acadou un elevado greo de equilibrio, no relativo a dinamismo económico e respecto
polo seu patrimonio, é cando debería entrar o turismo. De suceder o contrario, ou
sexa, o turismo como impulsor do desenvolvemento, moi probabelmente as
cosecuencias serían perniciosas.” (Santos Solla, 1999, pág. 160).
*
Importa agora centrar a reflexão nos chamados “produtos da terra”, na
gastronomia, no artesanato e em alguns outros elementos que, em conjunto com o
turismo, constituem o quadro de produtos em suposta ascensão, dentro das
estratégias de reinvenção e desenvolvimento para as áreas rurais.
Sobre o artesanato, a gastronomia, a arquitectura tradicional rural, a
paisagem e alguns elementos específicos, como o cavalo, por exemplo, deve ser
dito que parecem estar sob uma valorização ascendente, enquanto actividades,
experiências, elementos ou produtos, incluídos nas ofertas do turismo rural. A
arquitectura rural serve de motivo de atracção para os serviços de alojamento
4
Sobre o caso Português aconselha-se a consulta de Silva, Luís (2009), Casas no Campo – Etnografia do
Turismo Rural em Portugal, Lisboa, ICS.
76
Capítulo III
turístico, os produtos artesanais funcionam como os souvenirs da estância turística e
a gastronomia típica compõe a experiência idílica de regresso à tradição (Barrado
Tímon & Castiñera Ezquerra, 1998).
O cavalo, se no passado tinha uma função essencialmente produtiva, hoje é
um elemento central nas actividades desportivas e recreativas (e até terapêuticas)
do turismo rural, bem como mais um pormenor iconográfico que completa a
paisagem sonhada. Aliás, em Portugal o burro aparece também como um animal
muito associado às actividades recreativas em contexto rural, sendo até elevado, em
algumas regiões, a património ecológico autóctone, justificando a criação de
pequenos centros de preservação da espécie, transformando-se em pretexto de
visita turística e em souvenir regional, como em Miranda do Douro, por exemplo.
Estes elementos, que durante décadas constituíam sinais do atraso rural, por
não acompanharem os avanços industriais da produção em massa, os
desenvolvimentos tecnológicos, as mudanças nos estilos de vida e nos quotidianos,
passam hoje a ser, como nunca antes tinham sido, motivos de curiosidade, bens de
consumo e objectos de prestígio (Barrado Tímon & Castiñera Ezquerra, 1998). O
artesanato, por exemplo, destaca-se por rejeitar os métodos de produção em série,
sendo os seus produtos valorizados, por serem sempre únicos, por remeterem aos
ofícios tradicionais, por estarem invariavelmente ligados a um território e porque, por
todas estas razões, se diferenciam dos produtos industriais.
O vínculo de todos estes elementos (arquitectura, paisagem, artesanato,
gastronomia) a um lugar, a uma cultura e a uma suposta tradição, destaca-os dos
bens de consumo industriais do mundo globalizado, tidos como homogéneos e
desvinculados dos territórios de origem. Aqui importa referir que os “produtos da
terra” sobressaem nesta lógica, no sentido em que, tal como os vinhos, estão cada
vez mais integrados em sistemas de classificação e garantia de qualidade, baseadas
na denominação de origem. Esta revalorização passa, sobretudo, por estarem
associados a uma paisagem, a um património cultural e a um modo de vida, o que
os dota de uma aura de confiança e qualidade, que aumenta o seu prestígio e o seu
valor (real e simbólico) nos mercados de produtos alimentares (Barrado Tímon &
Castiñera Ezquerra, 1998).
Os produtos alimentares artesanais, além de uma origem determinada,
destacam-se por serem fruto de modelos de produção não industrial, sendo que,
mesmo quando não se tratam de bens transformados, derivam de formas de cultivo
77
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
menos intensivas e pouco modernizadas (Espeitx Bernat, 1996). Não são apenas
produtos “feitos à mão”, mas são sobretudo produtos associados à natureza, à
tradição, à não contaminação e à ruralidade, em oposição à indústria que é
conotada com o meio urbano.
“Esta oposición está en la base de uno de los discursos más ampliamente
interiorizados en relación a estos produtos.” (Espeitx Bernat, 1996, pág. 87).
O seu carácter tradicional e a aura de perenidade de que gozam, são motivo
de grande valorização, no sentido que a ideia de que sempre se produziram da
mesma maneira, que sempre existiram, que mantêm as mesmas características,
sendo fruto de uma sabedoria que passou de geração em geração, tende a
incrementar o seu valor simbólico e a facilitar a sua preferência. No entanto, com as
novas exigências sanitárias e mesmo com o aumento da procura, os métodos de
produção têm sofrido alterações, sendo claro que estes “velhos” produtos não
deixam também de se renovar ao longo do tempo, técnica e, como dissemos,
simbolicamente (Espeitx Bernat, 1996).
Os consumidores não querem apenas um produto, mas sobretudo o que por
ele é sugerido e evocado, sendo interessante perceber que os conteúdos simbólicos
associados a bens de consumo tendencialmente mais valorizados na actualidade
estão precisamente relacionados com os valores do ideal rural – natureza, ecologia,
saúde, tradição, etc. Para além deste aspecto, a associação de alimentação e
tecnologia tende a ser vista socialmente como algo perigoso ou negativo, pelo que,
em contraposição, os produtos rurais se apresentam como objectos de confiança. A
noção de que a natureza é imutável e que, pelo contrário, a técnica é falível e
incerta, reforça esta tendência para preferir os produtos ditos naturais, aos
industriais e de origem tida como urbana (Espeitx Bernat, 1996).
O
binómio
de
valorização
destes
produtos
mais
estabelecido
-
qualidade/origem - tem vindo a ser legitimado pelas políticas públicas de
classificação e normalização, no sentido de proteger e promover estes patrimónios
alimentares e fomentar o desenvolvimento das actividades económicas com eles
relacionadas. Aproveitando uma tendência crescente do mercado, os produtores
apoiados pelas instituições públicas, têm vindo a desenvolver uma estratégia de
aumento da sua rentabilidade, quer através de um incremento na produção, quer
através de mecanismos de garantia de qualidade e denominação de origem.
78
Capítulo III
Dentro da linha política que advoga a reanimação económica dos meios
rurais, através de uma diversificação funcional que rentabilize os recursos locais,
esta estratégia de promoção e protecção dos produtos da terra faz todo o sentido,
levando a que, desde as mais diversas escalas de poder, fosse iniciado um
processo de sua classificação. Esta estratégia visa a reinvenção imagética dos
produtos e alia o rigor técnico do controlo de qualidade, a uma visão de mercado
adaptada às novas exigências de competitividade.
“La autenticidad, la tradición, las raíces son objeto de una intensa
manipulación en una época en que la comunicación lo domina todo. Son muchas las
partes implicadas en esta apropiación de la imagen. Muchas entidades locales
buscan una identidad. Las entidades administrativas que representan a las regiones
adquieren un protagonismo cada vez mayor en Europa.” (Bérard & Marchenay,
1996, pág. 35).
De facto, desde 1992, que no contexto da União Europeia, existem pelo
menos dois instrumentos de classificação deste tipo de produtos, a DOP –
Denominação de Origem Protegida e a IGP – Indicação Geográfica Protegida, que
certificam, respectivamente, produtos cujas características se devem exclusivamente
ao lugar de origem e produtos que por algum aspecto remetem para um contexto
geográfico preciso (Bérard & Marchenay, 1996). Estes selos de qualidade ou de
origem determinada implicam uma fiscalização exigente, uma selecção cuidada das
candidaturas e a avaliação técnica necessária, para determinar as delimitações
geográficas e as especificidades de cada bem de consumo.
Por outro lado, também é certo que nem sempre é fácil ou justa esta
selecção, no sentido em que muitos produtos são excluídos por falta de
documentação histórica que comprove a sua proveniência específica, ou por outros
critérios semelhantes, o que mais uma vez facilita a classificação de produtos de
países, regiões, localidades e produtores com maiores rendimentos, capacidade de
iniciativa, capital social e cultural, etc. Em qualquer caso, a origem geográfica parece
ser mais valorizada do que as questões temporais, como a antiguidade do produto,
do método de produção, etc., já que esta estratégia política tem uma tónica
profundamente territorial, isto porque é uma medida proteccionista que visa
desenvolver os tecidos económicos das áreas rurais e, paralelamente, fazer frente à
tendência crescente de deslocalização das empresas de produção agro-alimentar
(Bérard & Marchenay, 1996).
79
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
A avaliação, das candidaturas de classificação e protecção destes produtos,
tende a ser mais técnica que cultural, definindo sobretudo a especificidade da
origem de cada elemento. Paralelamente, as denominações deste tipo de produto
tendem a remeter para os nomes das suas localidades ou regiões, reforçando-se,
uma vez mais, a importância dos vínculos territoriais. De facto, a questão da tradição
é mais difícil de definir, se comparada com a origem geográfica, não deixando,
apesar disso, de ser socialmente assumida como uma garantia importante da
qualidade do produto, num plano menos técnico e mais simbólico de valorização do
bem de consumo.
“A pesar de las situaciones de desigualdad entre denominaciones, de los
casos de inadecuación al procedimiento, incluso de abuso, hay que destacar la
originalidad del funcionamiento de esta protección, cuyo cometido es definir, para
protegerlo, productos que pertenencen colectivamente a quienes han sabido
ponerlos de manifesto y son sus depositarios.” (Bérard & Marchenay, 1996, pág. 48).
É óbvio que a valorização destes produtos parte dos espaços de consumo
urbano e que estes bens estão integrados na bateria de representações idílicas, em
torno do rural, que se vêm centralizando. Pratos que no passado eram comida dos
trabalhadores do campo, pouco variada e feita com os ingredientes menos nobres,
hoje são petiscos inigualáveis nos restaurantes para urbanitas, em busca da
diversificação dos paladares. A autenticidade e a tradição são, também aqui, valores
aclamados de forma recorrente e remetem, uma vez mais, para as construções
sociais que, em torno das valorizações culturais do rural e do passado, vão sendo
tecidas (Espeitx Bernat, 1996).
Se a iconografia rural, estilizada o mais das vezes, vai sendo, como
dissemos, cada vez mais utilizada na venda de todo o tipo de bens de consumo, no
caso dos produtos da terra permite uma valorização simbólica acrescida, que muitas
vezes justifica um preço bastante superior ao dos produtos industriais equivalentes.
Os produtos nacionais, os produtos locais e regionais, os produtos “gourmet”, os
produtos familiares, e todos os bens que remetem para um imaginário do prazer e
da qualidade da vida rural, ganham prestígio, ainda que a sua comercialização
continue bastante inferior numericamente à dos produtos comuns.
Na verdade estes produtos sempre foram comercializados, acontece que hoje
ganham prestígio e deixam de ser restritos ao contexto de produção, cruzando
fronteiras e conquistando as “mesas” dos urbanitas, que no paladar parecem
80
Capítulo III
encontrar uma porta para um passado imaginado seu, uma herança, uma tradição,
que hoje todos partilham, por fazer parte da bagagem de representações e
valorizações territoriais mais recorrentes. Os mitos da natureza, da vida rural, da
tradição, parecem condensados na carga simbólica destes produtos, cujo consumo
é sentido como uma pequena ruptura, também ela simbólica, com a vida urbana e
com o consumo de massas.
Claro que diferentes imaginários remetem para diferentes produtos, estando o
consumo e a produção bastante diversificados e fragmentados, mesmo que debaixo
do mesmo “chavão” – “produtos da terra”. Certamente, que a sua produção e
comercialização não é suficiente para reanimar economicamente os espaços rurais,
como o seu consumo não o é, na concretização de experiências de vida rural e
natural para os consumidores urbanos. No entanto, não deixam de ser muito
importantes no seio das relações rural/urbano que, dentro das novas pautas de
valorização rural para consumo urbano se apresentam e para o entendimento da
influência do ideal rural em produtos concretos ou bens de consumo quotidiano. Em
resumo, os produtos rurais concretizam, alimentam e são alimentados pela imagem
de ruralidade promovida politicamente e fortemente valorizada discursiva e
comercialmente, dentro das estratégias de desenvolvimento e reanimação do mundo
rural, hoje muito baseadas nos patrimónios naturais e culturais das localidades.
4. Ponto de Situação
(Estratégia → Matéria-Prima → Produtos)
Em jeito de recapitulação, pode dizer-se que estamos perante uma estratégia
de desenvolvimento, que desencoraja a dependência funcional para com a
agricultura e estimula a aposta nos recursos patrimoniais rurais, alimentada por um
conjunto de representações e mitos que romantizam e legitimam esse potencial de
reanimação e fazem vender os chamados produtos rurais. Por outras palavras,
assistimos ao desenvolvimento de uma estratégia de reinvenção da ruralidade,
sustentada por um património estável e disseminado de representações positivas,
que facilitam a promoção das áreas rurais enquanto espaço de consumo.
Desta feita, as diferentes dimensões do discurso, aqui “artificialmente”
apartadas, constituem um corpo de dependências, remissões e sobreposições. O
registo político e técnico ganha força e legitimidade por via da sustentação oferecida
81
O discurso nos seus diferentes registos – poder, ideologia e projecto
pelas concepções romantizadas da ruralidade culturalmente disseminadas, ao
mesmo tempo que estas são continuamente reforçadas pela institucionalização
deste clima de consenso em torno da valorização do mundo rural. Nesta relação
dialéctica promovem-se os produtos rurais e o rural enquanto produto, já que o
registo promocional do discurso é permanentemente amplificado, estando cada vez
mais próxima a concretização do projecto de ruralidade reinventada (ou, se
quisermos, consumível).
Para avançar na discussão, deve ser referido que este projecto de ruralidade
é legitimado pelos valores patrimonialistas que sacralizam os patrimónios culturais e
naturais, atribuindo-se aos espaços rurais a missão de preservar tudo o que está em
risco na cidade e nas sociedades ocidentais em geral. A ruralidade romantizada
preserva o passado, as identidades, as tradições, ao mesmo tempo que garante o
futuro, a natureza, a sustentabilidade e os patrimónios ecológicos. Posto isto e dado
o interesse e a importância social e histórica destas questões, importa desenvolvêlas com mais detalhe no próximo capítulo, sendo em torno deste campo temático
que seguiremos desde já.
82
IV.
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e
valores que sustentam o discurso e precipitam
as missões do mundo rural
He who controls the present, controls the past.
He who controls the past, controls the future.
1949, George Orwell.
5
Quando pensamos nos valores que legitimam o discurso de valorização desta
ruralidade patrimonial e simultaneamente projectada para o futuro e para a
renovação, somos levados a seleccionar um binómio de argumentos, centralizados
nos apelos à construção de uma ruralidade conservacionista - Cultura e Natureza,
ou mais concretamente Património e Sustentabilidade Ambiental.
De facto, o exercício de desconstrução do discurso de reinvenção da
ruralidade passa, necessariamente, pela reflexão em torno dos valores que
sustentam e legitimam a sua aparente consensualidade e os critérios de definição do
projecto veiculado. É nossa intenção, portanto, dedicar alguma atenção aos valores
por detrás do seu pendor patrimonialista e conservacionista, integrando-os nas
dinâmicas culturais maiores, que servem de contexto a esta valorização e que
orientam o apuramento desta ruralidade reinventada.
Assim, tomaremos as preocupações com a preservação patrimonial e
ambiental como temática central das próximas páginas, no sentido de perceber os
valores que, enquanto argumentos para o discurso, reforçam o seu poder e facilitam
a sua disseminação e aceitação cultural. Por serem valores que gozam de uma
considerável consensualidade no nosso contexto histórico, pela sacralização que
rodeia a memória e a natureza, principalmente no contexto urbano (em que se sente
mais a fragilidade e volatilidade do mundo tal como o conhecemos), acabam por
conferir, por associação, algum desse consenso e sacralidade a este projecto de
ruralidade.
5
Frase retirada do famoso livro “1984”.
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
A ruralidade é sentida como estando em risco, tal como a natureza, as
tradições, as identidades e tudo o que está associado com a nossa memória
colectiva. Ao mesmo tempo, valoriza-se a ruralidade precisamente por conter, nos
contornos deste projecto de reinvenção, a memória e a natureza e por funcionar
como uma reserva do que, supostamente, nos arriscamos a perder com a
urbanidade e com o avanço da civilização. De facto, é através destas associações
mútuas que, nos discursos, se tece a legitimação axiológica deste projecto de
ruralidade patrimonial, próximo da ruralidade-refúgio, que funciona como uma
reserva para os valores em risco.
Nesta linha, sublinham-se discursivamente as funções culturais desta
ruralidade em reinvenção, também por correspondência para com os valores que
acumula, protege, representa e alimenta. Ou seja, atribui-se ao mundo rural a
missão de preservar esses valores, conservando património e natureza, no sentido
de garantir a perenidade de um passado construído como melhor e a
sustentabilidade, perante um futuro incerto e desesperadamente frágil.
Desta feita, encontramos nesta valorização da ruralidade uma associação
com a necessidade de preservação dos patrimónios culturais, das memórias e das
tradições – conservar o Passado. Estes elementos recordatórios, muito embora
remetam aos lugares, acabam por agigantar-se e representar o "património de
todos", a matéria-prima de uma identidade comum, que distingue os povos até à
escala nacional e que reitera uma origem unificada. A importância dada à
preservação deste vínculo, que supostamente a cidade vai delapidando, acaba por
funcionar como um aglutinador de consensos, em torno da importância da ruralidade
e enquanto seu repositório.
Por outro lado, encontramos a sacralização do património natural e ecológico,
que praticamente remete para os espaços rurais a missão de conservação (para as
gerações vindouras), não apenas dos ecossistemas, mas sobretudo do "segredo"
por detrás da manutenção de relações harmoniosas entre o Homem e a natureza –
garantir o Futuro. Mais uma vez como contraponto, por relação à suposta
incapacidade de garantir, na cidade, uma sustentabilidade a esse nível e,
novamente, como um ponto de consenso – a indiscutível importância da ruralidade
para o bem geral e não apenas das comunidades locais.
Resumindo, pode ser dito que é atribuída aos territórios rurais a missão de
preservar o passado (imaginado e não histórico) e garantir o futuro, ou por outras
84
Capítulo IV
palavras, conservar o património cultural, as tradições, a memória colectiva, etc. e,
ao mesmo tempo, proteger os patrimónios naturais para as gerações futuras.
Património e sustentabilidade ambiental acabam assim por remeter genericamente
para o espaço (o rural como paisagem simbólica ou como categoria territorial) e para
o tempo (percepcionado colectivamente como herança e projecto) em forma de
passado e de futuro. Estes, são construídos no presente, quer enquanto matériaprima para as identidades, quer enquanto argumentos e valores que precipitam a
nova ruralidade e, ainda, enquanto emblemas de um tempo histórico de grandes
ansiedades estruturais.
Se
cultura
sustentabilidade
e
natureza
funcionam
são
como
os
as
valores
bandeiras
a
preservar,
que
património e
estimulam
a
acção,
precisamente por remeterem para os projectos de passado e de futuro colectivos,
enquanto arquétipos que condicionam ideologicamente o nossa concretização de
presente. A transversalidade desta lógica axiológica legitima os discursos que
patrimonializam a ruralidade, mas sobretudo revela as ansiedades estruturais do
nosso tempo histórico.
Parece claro que em diversas esferas da vida social existe um interesse
crescente pela natureza e pela cultura e pelas diversas actividades e elementos
patrimoniais que lhes estão associados. No turismo, por exemplo, é nítida esta
centralidade, havendo mais procura orientada por motivações culturais e ecológicas
(Padró Werner, 2002). Esta valorização da herança e o progressivo alargamento dos
critérios de sua selecção têm vindo a intensificar-se desde a Segunda Guerra
Mundial, mas sobretudo desde os anos 80, tal como acontece com as preocupações
ambientais, dentro das chamadas culturas ocidentais.
A destruição causada pela Segunda Grande Guerra Mundial, as primeiras
crises energéticas, a globalização, com a progressiva homogeneização cultural, a
expansão das preocupações ecológicas, entre outros factores históricos e sociais,
levaram a que os governos nacionais e organizações mundiais como a UNESCO
(United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), por exemplo,
começassem a mostrar interesse e vontade política em proteger o meio ambiente e
o património cultural dos povos (Santana Talavera, 2003).
Na actualidade, as preocupações ambientais e a valorização dos patrimónios
culturais fazem parte da vida quotidiana, da vida política e da vida económica dos
países ocidentais, sendo discursivamente inquestionáveis, mesmo que na prática
85
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
não se revertam em acções efectivas de preservação. A esta valorização dos
patrimónios naturais e culturais está profundamente associada a sustentabilidade,
enquanto preocupação com o futuro e com o legado a ser deixado para as próximas
gerações (Santana Talavera, 2003).
É
precisamente
sobre
a
"indiscutível"
centralidade
dos
argumentos
patrimoniais (culturais e ecológicos) e sobre a emblemática omnipresença das
preocupações com a sustentabilidade ambiental que nos debruçaremos nesta etapa
da reflexão. Não apenas pela sua importância no discurso de reinvenção da
ruralidade e na sua própria (re)definição, mas também pela sua centralidade
conjuntural e histórica, que obviamente faz, deste processo discursivo e cultural,
uma manifestação das grandes lógicas, tendências e valores que caracterizam os
nosso tempo histórico.
Estas são aqui discutidas com remissão aos territórios, precisamente, porque,
ao nível dos discursos, a necessidade de preservação patrimonial resulta na
atribuição de uma missão conservacionista aos territórios rurais, cujo património
natural e cultural é elevado a bem comum. Este é assim "expropriado" ao mesmo
tempo que circunscrito a uma territorialidade estratégica, que facilita a sua leitura,
gestão, apropriação e sobretudo a sua comercialização.
Chegados a este ponto, deve ser dito que, no mesmo discurso, é
precisamente no potencial de rentabilização desses patrimónios que reside a
contrapartida para a sua preservação, no sentido em que natureza e cultura são
apresentadas como as grandes oportunidades de negócio e renascimento
económico
dos
territórios
rurais.
Nesta
dinâmica,
as
cidades
parecem
desresponsabilizadas da função de preservação destes patrimónios, que afinal
ganham importância precisamente pelo suposto fracasso urbano a este nível. Ao
mesmo tempo que assim se redefinem as relações rural-urbano, nesta nova
perspectiva da funcionalidade rural. Ainda nesta linha, as cidades passam a ocupar
a posição de consumidoras e beneficiárias do recém identificado potencial
estratégico rural, que tem, nesta lógica, o retorno da tarefa de preservação e
manutenção dos valores comuns.
O discurso de reinvenção da ruralidade pende, de facto, para um forte cariz
patrimonialista (tanto no sentido cultural como ecológico), tendo uma perspectiva
estratégica baseada no potencial patrimonial, estando baseado num conjunto de
representações da ruralidade que romantizam os elementos tradicionais e naturais e
86
Capítulo IV
apresentando possibilidades de negócio que assentam principalmente na sua
rentabilização. Ora, não sendo linear nem de fácil abordagem, importa desconstruir
o discurso também por aquilo que parecem ser os argumentos indiscutíveis que o
legitimam, enquanto estratégia e projecto de ruralidade.
Esses argumentos, paradigmas ou valores patrimoniais, destacam os
patrimónios e a sustentabilidade ambiental como bens de importância transversal e
necessidade inalienável, sendo sobre si que se constrói o próprio discurso e que
assenta toda a lógica de reinvenção da ruralidade e quase a sua própria definição
renovada. De facto, deixando de ser definida pela sua funcionalidade agrícola, a
ruralidade
passa
a
definir-se
pela
sua
nova
funcionalidade
patrimonial
(conservacionista e consumível) e por aquilo que encerra e constitui.
Indo mais longe, sendo a sua principal função a preservação das suas
características patrimoniais e ecológicas, que afinal a definem enquanto objecto e
enquanto agente, pode dizer-se que a própria ruralidade passa a definir-se também
como patrimonial. A crescente promiscuidade entre os conceitos de território e de
património e o paralelo alargamento da definição do último, contribuem para que
mais do que histórico ou temporal o património seja territorial, no sentido em que se
associa aos lugares. Estes passam a constituir eles próprios os objectos
patrimoniais,
enquanto
elementos
e
paisagens
simbólicas
com
funções
emblemáticas (Peixoto, 2002).
"No limite, a elasticidade da noção de património revela que estamos perante
um processo de patrimonialização de um território." (Peixoto, 2002, pág. 8).
Importa, portanto, reflectir em torno do poder do património enquanto valor
aglutinador de consensos e enquanto argumento de legitimação do discurso de
reinvenção da ruralidade. Importa discuti-lo na sua versatilidade e abrangência, em
toda a sua flexibilidade e remetendo para o rural, para a cultura, para a natureza,
antes de prosseguirmos para o segundo grande argumento - a Sustentabilidade.
1. O Património e os valores culturais - identidade, tradição, memória.
(Preservar o Passado)
Vivemos num momento histórico em que a noção de património se alarga
permanentemente para abarcar um conjunto cada vez mais vasto de objectos.
Quase tudo é património e uma espécie de obsessão pelo passado parece
87
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
concretizar-se numa progressiva colecção, classificação, conservação e promoção
de objectos, que pretendem ser representativos de uma vasta herança colectiva
(arquitectónica, natural, cultural, musical, urbana, rural, genética, ecológica, etc.)
(Guillaume, 2003).
Celebra-se o passado através de reciclagens e reinvenções de antigas
tradições, renegociando-se os significados dos velhos rituais e recriando-se os
particularismos culturais, no sentido de reconstruir o sentido de localidade
(Hobsbawm, 2002; Featherstone, 1997; Fortuna e Silva, 2001). Por esta via as
colagens de estilos e tradições, bem como de pastiche de símbolos e
representações, vão fazendo renascer o sentimento de pertença territorial e cultural,
num contexto em que a instabilidade axiológica e referencial vai fazendo crescer a
necessidade de segurança ontológica e de uma ancoragem originária (Featherstone,
1997).
Entre esta tendência para o revivalismo exclusivista e a abertura à
diversidade global, associados à intenção competitiva dos lugares, existe todo um
posicionamento estratégico e consciente, em relação ao contexto mundial e às
relações
territoriais,
orientado
por
políticas
culturais,
que
promovem
as
especificidades locais, os particularismos históricos e geográficos, etc.
Assim, o tema do património parece conseguir um consenso cada vez mais
alargado, ainda que muitas vezes bastante superficial. Expande-se o conjunto de
elementos
que
podem
constituir
património,
acelera-se
o
processo
de
patrimonialização e sobretudo emerge uma lógica de gestão patrimonial que ganha
terreno em relação a uma mera preocupação com a sua preservação (Peixoto,
2002). O património, não sendo algo espontâneo ou eterno, constitui-se como uma
construção social moderna, que funciona como uma espécie de religião laica,
sacralizando discursos e os objectos que neles são exaltados, segundo uma
sustentação científica e política (Prats, 2006).
"It is a secular version of the consolations of religion, addressed to the
adherents of contemporary 'habitus'." (Brett, 1996, pág. 158).
Um conjunto de relíquias patrimoniais contribui para a consolidação das
identidades, nacionais, regionais e locais, por relação a um conjunto de referências
padrão que estabelecem as imagens culturais percebidas, no que diz respeito a um
passado imaginado e à construção de uma memória colectiva, à natureza em estado
88
Capítulo IV
puro ou intocada e à excepcionalidade ou genialidade como transgressão dos limites
humanos (Prats, 2006).
Existe portanto um estabelecimento dogmático (técnico, científico e político e
não mais religioso) das referências em relação às quais nos definimos enquanto
humanidade no nosso tempo histórico (e noutras escalas enquanto nação, cidade,
lugar, etc.). Estas são dominantemente patrimoniais e configuram as representações
que ditam o que é (ou deve ser) a cultura, a memória, a natureza... (Prats, 2006).
"At its best, heritage fabrication is both creative and an act of faith. By means
of it we tell ourselves who we are, where we came from, and to what we belong.
(Lowenthal, 1997, pág. xviii).
Os governos nacionais e locais alimentam a propaganda e a política do
património, numa postura proteccionista por relação aos objectos que eles próprios
definem como sendo dignos e representativos do passado construído e assumido
como dominante. Após a generalização de um sentimento colectivo de perda
patrimonial, a figura do Estado protector fortalece a ideia de recuperação e
preservação dos objectos destacados primeiro como vulneráveis e depois como
preciosos (Guillaume, 2003).
Esta dinâmica política não se concretiza apenas no plano discursivo ou
ideológico, sendo que as instituições públicas mobilizam grupos e agentes sociais e
desenvolvem um conjunto de dispositivos legais e normativos para fortalecer a
preservação patrimonial. Este reforço proteccionista do Estado fortalece o controlo
territorial, no sentido em que este acréscimo normativo e institucional acaba por criar
novas dinâmicas e novos dispositivos de segregação e organização espacial
(Guillaume, 2003).
Enquanto negócio, o património expande o seu espectro de possibilidades e
nele são depositadas vastas expectativas de criação de emprego, riqueza,
desenvolvimento e oportunidades. A chamada "indústria do património" é alimentada
pelo sector público e por grandes organizações internacionais como a UNESCO, por
exemplo, através de financiamento de projectos, criação de infra-estruturas,
mecanismos de promoção e classificação, etc. Este tipo de medidas é encarado e
apresentado como um investimento num sector em franco crescimento, sendo
divulgado como um passo estratégico para o desenvolvimento local (Brett, 1996).
Os seus recursos são inesgotáveis, na medida em que múltiplos passados
são resgatados e exaltados pela recriação, desde a pré-história à última década,
89
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
proliferando memoriais e monumentos, restauros e classificações e mesmo os
objectos mais corriqueiros do quotidiano ascendem a elementos de valorização
(Lowenthal, 1997).
"To reiterate, heritage is that part of the past which we select in the present for
contemporary purposes, be they economic, cultural, political or social. (...) Clearly, it
is an economic resource, one exploited everywhere as a primary component of
strategies to promote tourism, economic development and rural and urban
regeneration. But heritage also helps define the meanings of culture and power and
is a political resource; and it thus possesses a crucial socio-political function."
(Graham et al., 2000, pág. 17).
O aparecimento da expressão "indústria do património" demonstra bem o
reforço da noção de que as apostas na conservação patrimonial são cada vez mais
encaradas como investimentos estratégicos. Isto porque, em todos os níveis de
governação e tanto no sector público como no privado, são esperados retornos e
mais-valias e abertas, progressivamente, novas oportunidades de negócio, no que
parece ser um campo inesgotável de recursos patrimoniais a explorar e rentabilizar
(Graham et al., 2000). Desta dinâmica de permanente aglutinação de novos
recursos e de grande abrangência de consideração, é exemplo a oficialização da
categoria de Património Imaterial (convencionada em 2003 pela UNESCO) e serve a
protecção dos elementos culturais intangíveis dignos de valorização.6
Para além da utilidade estratégica e económica do património enquanto
recurso, a sua crescente centralidade justifica-se por um conjunto de dinâmicas
históricas e sociais, que acabam por ser transversais ao mundo globalizado. As
transformações ao nível da família, cada vez mais nuclear e desenraizada, o
aumento das migrações, a atomização social, grandes destruições com causas
naturais e humanas, o desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia, com a
proliferação exponencial dos bens de consumo cada vez mais descartáveis, ou a
chamada "sociedade do desperdício", o acentuar dos problemas ambientais e da
consciência colectiva destes, os efeitos da globalização ao nível da homogeneização
cultural, etc., têm contribuído para o fortalecimento desta tendência de valorização
patrimonial (Lowenthal, 1997).
6
Deve ser dito que uma importante parte da "indústria do património" se concretiza no âmbito das políticas
locais, no sentido em que são as localidades que disseminam as práticas de preservação e promoção territorial
e, na insinuação dos seus "pequenos tesouros", rasgam os limites e a abrangência do termo.
90
Capítulo IV
Esta valorização do passado, da herança, das tradições, vem assim colmatar
o vazio e a insegurança que estas dinâmicas e transformações vêm provocando,
constituindo um processo regenerativo de luto que facilita a restauração cultural da
confiança no futuro. A constância das referências patrimoniais serve de contraponto
à contingência e instabilidade material e cultural que caracteriza o nosso tempo
histórico.
"Jogando com uma certa sensibilidade ecológica, ele surge em todo o caso
como um contraponto razoável às ameaças e incertezas do futuro." (Guillaume,
2003, pág. 39).
Numa sociedade em que a efemeridade das coisas é permanentemente
relembrada pelo ritmo das mudanças, existe assim a necessidade de algo duradouro
e estável (Lowenthal, 1997). Esta reacção contra o desaparecimento ou contra a
"morte" das coisas é uma forma de regenerar a confiança no futuro (seja do mundo,
do nosso modelo de desenvolvimento, do nosso estilo de vida, do nosso bairro, da
nossa família, etc.), mas é igualmente um recurso para o futuro, se pensarmos na
sua dimensão estratégica (política e económica) (Peixoto, 2002).
"Para aqueles que já não possuem nem território nem identidade social
própria, a única possibilidade que continua aberta é a da reconstrução de "raízes",
de um espaço compensatório fictício no passado, uma pseudo-topia, numa tentativa
de aí recriarem artificialmente as diferenças que o presente já não tolera. O
passado, como a ecologia, torna-se um valor refúgio." (Guillaume, 2003, pág. 41).
Desta feita, o património funciona como um conversor de resíduos históricos
em "comprovativos" das nossas virtudes ancestrais enquanto povos, para que não
se acumulem despojos e ruínas que atestem a nossa efemeridade colectiva e a
fragilidade do nosso mundo (Lowenthal, 1997).
O passado através do património é apresentado como uma narrativa
simplificada e enaltecedora dos aspectos que permitem sustentar o presente e
projectar a possibilidade de um futuro desejado, naquilo que pode ser considerado
uma espécie de encenação e até uma configuração performativa do pretérito. Esta
tendência, sendo tão característica do nosso tempo histórico, justifica que
apelidemos o património de “invenção moderna” (Faria, 2006).
O património não é apenas um conjunto de relíquias do passado pois,
enquanto invenção cultural, funciona como representação de tudo o que nos
arriscamos a perder e, enquanto repositório de tudo o que nos define, daquilo que
91
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
compõe a nossa identidade colectiva (Peixoto, 2006 b). Esta "magnificação do
defunto" permite que se proceda ao luto que facilita a assimilação colectiva da
mudança (Peixoto, 2006 b).
"O momento de concessão de um estatuto patrimonial corresponde ao
reconhecimento que algo desapareceu ou deixou de estar integrado nas práticas
quotidianas. A consagração patrimonial é um acto de luto. Mas é um acto de luto
exacerbado, magnificado, porque corresponde a um momento de depuração."
(Peixoto, 2006 b, pág. 73).
A perda ou morte de que é feita a história, o vazio ou amputação, são assim
reinventados e redefinidos, destilados em património, para compor uma imagem de
passado e consequentemente de presente (uma identidade), que melhor sirva os
propósitos culturais, políticos, económicos e territoriais que nos projectam para o
futuro. Os objectos excluídos do quotidiano são assim devolvidos com uma
roupagem e uma encenação que reforça o seu poder de indução identitária e que os
torna, pelo exagero, mais reais do que nunca.
A valorização do património constitui-se como um produto da modernização,
precisamente pela sua importância cultural, perante a necessidade de "segurança
trans-histórica" num tempo de profundas e rápidas transformações sociais (Brett,
1996). Do património pretende-se que confira esta ancoragem cultural e identitária,
pelo que deve ser permanentemente reforçado o seu carácter selectivo e purificado.
Ora, deste processo constante de selecção, depuração e reinvenção dos vestígios
do passado, que se quer o espelho da nossa cultura, resulta uma identidade cultural
genérica para auto-contemplação passiva (Choay, 1982).
Desta feita, o património parece ser processual e dinâmico, dada a sua
permanente construção e actualização, ao mesmo tempo que é defensivo e
cristalizado, no que diz respeito ao dogmatismo selectivo com que faz representar o
passado desejado ou dominante (Choay, 1982). Sobretudo, constitui-se como uma
figura narcísica que tem nessa solidez (temporal e ideológica) e sacralidade
(científica e política) o seu poder tranquilizador (Choay, 1982).
"The appeal of heritage is based more than anything else upon this freedom
from real, concrete time because to be held within heritage is, like the fly in amber, to
be preserved from real time and from what Eliade describes as 'the terror of history' the fear that human actions have no meaning, that wickedness is not punished, that
92
Capítulo IV
there is no redemption and that we stand continually at the point of maximum
responsibility and utter helplessness." (Brett, 1996, pág. 158).
Num período histórico em que o tempo e o espaço são redefinidos
permanentemente, nas práticas, nos imaginários e também ao nível identitário dos
sujeitos, o confronto dinâmico e transversal do velho e do novo constitui um traço
importante das reinvenções que neste campo se vão tecendo (Fortuna, 1999). Os
vestígios dum passado colectivo estimulam a definição das identidades no presente,
na medida em que, ao reconstituir o primeiro, segundo os cânones actuais, dota-se
de sentido o segundo, encontrando o rasto dos caminhos que o construíram
(Fortuna, 1999).
As interpretações subjectivas do passado, trazidas e digeridas para e num
presente em assimilação e redefinição, substituem a ausência da materialidade dos
quotidianos perdidos, mas acentuam a irrealidade do sentimento comum de uma
identidade, de um imaginário, de uma ancoragem originária, que fazem falta no
agora (Fortuna, 1999). Assim, os exemplares do património de uma história comum
assumem a condição de espaços ritualísticos, onde é mais fácil imaginar sentidos
para o passar do tempo e para o desenrolar dos acontecimentos e, portanto, mais
acessível suportar as transformações identitárias colectivamente, como se de um rito
de passagem partilhado se tratasse (Fortuna, 1999).
“Só um rito colectivo de passagem, que inclua o luto e a magnificação do
defunto, permite aos indivíduos suportar ou admitir a mudança, dando início à
regeneração.” (Peixoto, 2003, pág. 214).
A assimilação colectiva do presente e do futuro é facilitada, no sentido em que
a consciência patrimonial ajuda a responder às necessidades no porvir de uma
comunidade. A invenção cultural do património parece constituir um mecanismo
reactivo em relação ao desenraizamento e atomização social que caracterizam a
acelerada vivência contemporânea, já que faz renascer, na partilha de um passado
colectivo, um sentimento comunitário, modos de vida tradicionais, ofícios, sabores e
paisagens perdidas e nessa recuperação reforça a consciência retórica de uma
possível sustentabilidade cultural urbana, tendo um efeito “calmante” nas
preocupações relativas ao futuro deste modelo de cidade (Peixoto, 2003).
As estratégias e os objectivos políticos e económicos funcionam como os
condutores destas valorizações e destas buscas por uma autenticidade identitária
definida e estanque, artificialmente localista e pura. Desta feita, não são critérios
93
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
objectivos, nem a sensatez científica e despojada de poder, que estabelecem os
limites da patrimonialização. Também por isso acaba por prevalecer a incessante
necessidade de conquistar e garantir (a tal) autenticidade e a tendência para a
inventariação infindável de bens a valorizar, numa voragem que sobrepõe, muitas
vezes, quantidade a qualidade (Bourdin, 1996).
Fazer da autenticidade uma bandeira é, de facto, entrar em contradição com o
inerente dinamismo social e territorial, na medida em que habitualmente esta atitude
faz-se acompanhar por uma cristalização purificante dos elementos patrimoniais,
que perdem assim a sua historicidade e se transformam, ao invés de se vitalizarem,
em testemunhas embalsamadas de uma origem artificialmente estabelecida
(Bourdin, 1996; Ferreira, 2004).
Quer se emblematizem os elementos patrimoniais, como relíquias em vitrinas
que se preservam cuidadosamente, quer se especializem demasiado os seus usos,
profissionalizando-os rigidamente num jogo de mise en scène, estaremos a restringir
os seus significados, a negar-lhes uma evolução “espontânea” e abrangente,
retirando-lhes a sua participação no processo imprevisível de “lugar” (Bourdin, 1996;
Ferreira, 2004).
Como referimos, a necessidade de ancorar a passagem do tempo através da
cristalização e conservação de objectos patrimoniais deriva do "pânico" social
provocado pela consciência da efemeridade e contingência da nossa existência
colectiva. As relíquias funcionam assim como "objectos de sutura" que vêm colmatar
as carências e fechar as feridas simbólicas e os vazios mnemónicos das sociedades
ocidentais. Estas, estando tão vulneráveis às ansiedades, que a aceleração do
tempo e da história parece ter tornado crónicas, acabam por definir-se nesta
carência e instabilidade, como traços da sua personalidade colectiva (Guillaume,
2003).
"A efemeridade do presente e o individualismo têm o seu contraponto na
conservação colectiva, que acentua compensatoriamente os valores da duração e
do passado." (Guillaume, 2003).
"Com efeito, esta necessidade imperiosa de uma imagem de si forte e
consistente pode ser interpretada como um refúgio das sociedades contemporâneas
face a transformações de que não dominam nem a profundidade, nem a aceleração
e que parecem pôr em causa a sua própria identidade. A adição de cada novo
fragmento de um passado distante, ou próximo e dificilmente moderado, concede a
94
Capítulo IV
esta figura narcísica mais solidez, precisão e autoridade. Num certo sentido, torna-a
mais tranquilizadora e mais capaz de conjurar a angústia e as incertezas presentes."
(Choay, 1982, pág. 253).
A nossa imagem de passado e, consequentemente, as representações que
tecemos em relação a nós enquanto colectividade, são construídas através das
camadas de valores patrimoniais que seleccionamos para colecção e cristalização.
Talvez não seja uma realidade reflexiva ou uma verdade histórica e científica, mas é
certamente a poderosa versão de uma identidade que adoptamos como emblema,
uma narrativa que funciona como "retrato de família" e que preservamos e
difundimos como a melhor e mais estável imagem de nós próprios (Hall, 2000; Prats,
2006).
A consagração dos elementos a cristalizar e a adoptar como próprios e
emblemáticos passa, não só por uma selecção, como também pelo reconhecimento,
que deve ser intergeracional e legitima a bagagem cultural vinculada ao sentimento
de grupo (Santana Talavera, 2003). Esta eleição sociocultural da história, que
processada, resultará em património e portanto em identidade, compõe-se de muitas
nuances e trabalha com a mitologia, com as ideologias, com os nacionalismos, o
patriotismo e os orgulhos locais, com o marketing, a arte e a literatura, etc. (Santana
Talavera, 2003).
"Se trata de discursos coherentes y bien fundados en las academias, que
explican las afinidades de los vivos presentes con los muertos de ayer. Se trata de
idearios que, sin concretar, indican las pautas posibles para mirar los bienes y la
naturaleza cultural." (Santana Talavera, 2003, pág. 9).
A utilização dos recursos da história e do passado na construção das
identidades, neste contexto de intenso e quase obsessivo retorno às raízes, resulta
mais naquilo em que nos tornamos e em que nos queremos tornar, do que
simplesmente na assunção daquilo que fomos ou somos neste momento, ou seja,
nesta dinâmica de negociação das rotas mais do que das raízes, ainda que estas
constituam o ponto de partida (Hall, 2000).
É importante ter em mente que as identidades são construídas dentro e pelos
discursos, discursos esses que remetem sempre para um conjunto de circunstâncias
definidas e para um poder dominante (Hall, 2000). O mesmo poder que define a
história e portanto o património de onde se reconhece e consagra a matéria-prima
dessas mesmas identidades. É esse o discurso que interessa discutir, mais
95
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
precisamente no que diz respeito ao seu papel na construção da ruralidade que, a
partir do que é o património rural (por ele seleccionado, valorizado, consagrado e
promovido) parece estar em processo de reinvenção.
De facto, esta aparente histeria patrimonial encontra nos meios rurais uma
ampla e nutritiva possibilidade de alargamento do seu espectro de colecção e
valorização. O património e os argumentos patrimoniais, sendo destacados,
enquanto recurso dos territórios rurais, pela necessidade de resolução de problemas
funcionais e económicos, saem reforçados pelos discursos em torno do
desenvolvimento rural, como aliás já foi referido anteriormente (Peixoto, 2002).
"Évoquer ensemble campagne et patrimoine revient presque à comettre un
pléonasme (...)"(Ratenberg et al., 2000, pág. 1).
A elasticidade da noção de património permite que várias dimensões e
múltiplos aspectos da ruralidade sejam incluídos no rol de bens a preservar e
promover, tanto no que diz respeito à cultura e às tradições como no que se refere à
natureza e à paisagem. Tudo parece ser património rural, desde os produtos
agrícolas e gastronómicos, como os saberes, as construções, os ecossistemas, os
costumes, o folclore, as danças e os cantares, as celebrações, os trajes, os
instrumentos agrícolas tradicionais, etc. Assim, ao património construído junta-se
tudo o que sobreviveu à passagem do tempo e que compõe o património imaterial, a
memória colectiva, as manifestações culturais e a vida quotidiana (Alves, 2004).
O rural é desta feita um poderoso campo patrimonial, no sentido em que, ao
acumular potencial cultural/histórico e natural/ecológico, concretiza na plenitude a
polivalência e a elasticidade que a noção de património tem ganho neste processo
de crescente valorização (Peixoto, 2002). De facto, se pensarmos que "Rural",
"natureza" e "ecologia" têm vindo a transformar-se em palavras de culto (Uzzell,
1989), ao mesmo tempo que os apelos à valorização patrimonial têm crescido,
facilmente constatamos que estamos perante uma conjuntura cultural em que a
ruralidade ganha em valorização, precisamente por combinar ambos os recursos.
Em paralelo, deve ser dito que esta valorização se deve igualmente à ideia de
que a ruralidade está em risco ou que muitos dos seus elementos já se perderam ou
caíram em desuso, mas que ainda podem ser salvos do esquecimento (Lowenthal,
1997). Assim, para além de concretizar a elasticidade da noção de património, o
rural acumula uma segunda condição importante para auferir o estatuto patrimonial,
a sua fragilidade ou um desaparecimento iminente. Verifica-se, portanto, que a
96
Capítulo IV
elevação da ruralidade a vasto campo patrimonial, coincide com o anúncio da sua
"morte" (Peixoto, 2002).
Ora, desta constatação de eventual desaparecimento e do correspondente
luto nascem novas possibilidades de renascimento para a ruralidade ou assim
anunciam os discursos políticos e técnicos que incitam à conversão desta "glória"
patrimonial em recurso para o futuro. Se pensarmos que em poucas décadas os
símbolos da vida rural passaram de sinais de atraso a conteúdo de cartões postais,
ou que as refeições camponesas figuram hoje nos menus dos melhores restaurantes
urbanos, constatamos que este processo de reinvenção dos significados associados
à vida rural acompanha, de facto, o ritmo veloz dos processos de patrimonialização.
"Qualquer artefacto patrimonial necessita, para substituir e perdurar, de ser
alvo de uma reinvenção ou de uma reactivação por indivíduos que o introduzem no
seu quotidiano. Por isso, numa época de grande transformação, a descoberta do
património pelos meios rurais traduz-se na constatação que é necessário repensar
certos espaços e objectos em função de novos usos, atribuindo-lhes outras
finalidades e integrá-los, mesmo que tenham sido marginalizados durante muito
tempo, nas dinâmicas do novo desenvolvimento local." (Peixoto, 2002, págs. 13 e
14).
Esta patrimonialização serve assim de reacção à ideia disseminada que o
rural está em crise (uma crise genérica e desespacializada), ao mesmo tempo que
cria uma imagem renovada e um conjunto de "novos" recursos e possibilidades de
negócio para, em alguns territórios, fazer efectivamente frente aos problemas
funcionais e económicos. Por outro lado, constitui também uma reacção à
atomização social e a algumas inquietações da vida moderna, no sentido em que
corresponde à valorização de uma alteridade à vida urbana e de tudo o que pode
servir de contraponto e compensação para os problemas ambientais, para o
sentimento de desenraizamento e para outras inquietações culturais que
caracterizam o nosso tempo histórico (Peixoto, 2002).
A patrimonialização do rural pode promover a efectiva descoberta e a
recuperação de legados materiais e culturais, mas suscita igualmente a invenção de
supostas tradições ou a encenação de quadros bucólicos que nunca existiram,
forçando muitas vezes os territórios rurais a corresponder a um conjunto de
expectativas e exigências, precipitadas pela voragem patrimonial na sua vertente
mais economicista e tecnocrática. Deve ser dito igualmente, que o aproveitamento
97
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
do potencial patrimonial oscila entre alguns projectos concretos de recuperação e
capitalização dos recursos patrimoniais em espaço rural, que servem efectivamente
o desenvolvimento local, e uma retórica inconsequente de exaltação folclórica
(Peixoto, 2002).
A "descoberta" do património rural reveste-se de uma dupla importância para
os territórios. Por um lado, encontramos a renovação dos significados associados à
ruralidade, naquilo que se constitui como uma valorização cultural e simbólica do
património rural e por sua via, dos territórios em si. E, por outro, podemos apontar a
sua utilidade económica e política, quando pensamos no património como recurso
estratégico para a reinvenção funcional dos meios rurais. Desta feita, parece claro
que existe uma consciencialização social crescente da importância memorial e
simbólica, mas também económica e política do património rural (Alves, 2004).
De facto, existe um amplo consenso social em torno da importância e do
potencial do património rural, alimentado pelas instituições públicas, através da
disponibilização de meios para incentivar o seu estudo, preservação, promoção e
divulgação. Inúmeros movimentos cívicos apelam à sua preservação, os media dão
centralidade e recorrência ao tema, nos meios científicos e académicos é objecto de
um vasto interesse e literatura, configurando-se portanto um discurso disseminado e
coeso em torno do património rural (Alves, 2004), que pretendemos aqui
desconstruir.
2. A Sustentabilidade e os valores ambientais - natureza e ecologia.
(Garantir o Futuro)
As
preocupações
com
a
natureza
e
o
meio
ambiente
crescem
progressivamente à medida que crescem também as ameaças à vida no planeta.
Nas últimas décadas os temas ambientais foram ganhando espaço nos discursos
sociais, nos quotidianos, nas agendas políticas, nos programas escolares, nos
media etc., ao mesmo tempo que o jargão que lhes está associado se torna familiar
e disseminado (Adam, 1998). O termo "sustentabilidade" é um bom exemplo por ter
vindo a ganhar uma recorrência e uma centralidade que o destacam como conceito,
98
Capítulo IV
mas sobretudo como valor ou argumento, mesmo se muitas vezes a sua
omnipresença nos discursos sirva a sua banalização.7
"Efectivamente, se hoje "tudo é ambiente", o risco é que amanhã "nada seja
ambiente"! Com a noção de sustentabilidade passa-se algo de semelhante: hoje, a
maior parte dos comportamentos sociais e das práticas políticas devem ser
"sustentáveis" - o que, só por si, não deixa de ser uma afirmação banal, se não
mesmo redundante." (Ferreira, 2004, pág. 96).
Existem múltiplas definições de sustentabilidade, mas para simplificar e
porque não se pretende esmiuçar todas as suas nuances etimológicas, diríamos que
tem como ideia fundamental a continuidade intergeracional da saúde dos
ecossistemas (porque falamos de sustentabilidade ambiental). Por outras palavras, a
garantia do futuro da biosfera ou a responsabilidade da sua manutenção em
condições óptimas para as próximas gerações (Heywood, 1992).
Os valores relacionados com a noção de sustentabilidade têm portanto uma
grande correspondência com a lógica de defesa do património, no sentido em que
estão relacionados com o esforço de garantir a continuidade de uma herança, de
preservar um legado que está em risco e cuja centralidade se deve, precisamente, à
consciência da possibilidade de sua perda iminente. Ou seja, tal como no caso do
património, na proximidade da perda sacraliza-se o objecto a preservar e acentua-se
nos discursos a recorrência das preocupações com a sustentabilidade ambiental.
Este conceito que aparece na segunda metade do século XX nos círculos
internacionais de discussão dos problemas ambientais, começa por ganhar
recorrência em relatórios, recomendações e planos das instituições públicas, mas
depressa passa para outros registos e suportes discursivos, à medida em que
cresce também em abrangência.
De facto, tal como no caso do património, crescem os apelos à
sustentabilidade de um conjunto muito vasto de coisas e a sua polivalência e largura
7
O termo "sustentabilidade" deriva da noção de "desenvolvimento sustentável", que surge pela primeira vez em
1987 no Relatório Bruntland, preparado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Foi
sendo instituído e reforçado nos anos seguintes, através de iniciativas como a chamada “Agenda 21” (oficializada
em 1992 na Conferência Eco-92 da ONU – Organização das Nações Unidas) e consequentes revisões, de onde
se assinala a criação dos chamados Objectivos para o Milénio (2000). Outro instrumento importante para a
reafirmação e a institucionalização da noção de “sustentabilidade ambiental” é a Campanha Europeia das
Cidades e Vilas Sustentáveis (CECVS), lançada numa Conferência Europeia realizada em 1994, da qual resultou
na chamada “Carta de Aalborg”. Estas iniciativas visaram incentivar a reflexão em torno da sustentabilidade do
ambiente urbano, o intercâmbio de experiências entre países, a difusão das melhores práticas ao nível local e o
desenvolvimento de recomendações para influenciar positivamente as políticas ao nível Mundial, Europeu e
local.
99
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
conceptual são incrementadas. De sustentabilidade ambiental e desenvolvimento
sustentável, passamos para sustentabilidade económica, social, cultural, etc.,
naquilo que se concretiza como um valor a aplicar em todas os aspectos da vida
humana em que é desejável uma continuidade.
No entanto, no âmbito desta reflexão, centrar-nos-emos naquilo que diz
respeito à sustentabilidade ambiental, não só porque remete para a génese
ideológica e histórica do termo, mas sobretudo porque é precisamente no quadro
das preocupações ambientais que a sua recorrência marca os discursos de
valorização da ruralidade.
De facto, existe uma estreita conotação da ideia de sustentabilidade com a
vida rural e seus elementos, por oposição à cidade, tantas vezes definida como
insustentável nos discursos e portanto nas representações, mas também pela
associação de perenidade aos estilos de vida campestres. O valor da continuidade,
patente na aparente secularidade dos hábitos e dos espaços rurais, é assim
contraposto com a volatilidade urbana, aparentemente incompatível com a
manutenção da vida natural.
No reforço desta ideia, deve ser dito igualmente que nos discursos sociais,
ecologistas inclusive, as comunidades rurais tidas como tradicionais e os estilos de
vida que lhes estão associados, nomeadamente no que diz respeito às relações
entre Homem e Natureza, são frequentemente apresentados como inofensivos para
o ambiente e até exemplos de boas práticas (Szerszynski, 1996). Ora isso não
acontece com a agricultura industrializada, que para além de não estar conotada nas
representações, nem com a ruralidade tradicional, nem com esta ruralidade “em
crise” centralizada nos discursos de reinvenção, acumula grande criticismo em torno
das suas consequências ambientais.
"In contemporary environmentalism, it manifests in the conviction that
vernacular communities, living through traditional forms of knowledge, are by their
nature ecologically benign." (Szerszynski, 1996, pág. 120).
Nos nossos dias, a valorização da natureza e as preocupações ambientais
deixaram de estar circunscritas à sensibilidade artística ou a facções políticas
radicais, respectivamente e como acontecia no passado. De facto, assistimos à
disseminação dos discursos ecologistas e das manifestações de romantismo
bucólico, naquilo que parece ser uma maior consciencialização para os problemas
ambientais, mas ao mesmo tempo uma suavização ideológica do debate e da
100
Capítulo IV
ecologia (dominante), que resulta da adopção da causa por parte do mainstream
(Szerszynski, 1996).
Voltando às preocupações patrimoniais, podemos dizer que se agora tudo é
património, também somos todos ecologistas, o que inevitavelmente transforma a
natureza dos discursos ambientalistas (Szerszynski, 1996). Se a valorização
patrimonial e rural, em particular, é reforçada pela necessidade cultural de pertença
identitária e de segurança ontológica, remetendo para a construção de uma
ruralidade refúgio, ao estilo reserva ambiental e cultural, ao que parece, hoje a
natureza é também discursivamente apresentada, não só como mãe, nascente, raiz
ou génese, mas precisamente também, como refúgio, santuário e enclave a
preservar.
Tal como o passado ou o mundo rural - "Nature is the home you can go back
to." (Smith, 1996, pág. 43).
Ainda na mesma linha de raciocínio, tal como a valorização patrimonial,
também as preocupações ambientais e as consequentes práticas de preservação da
natureza (selecção de prioridades, hábitos de consumo "verde", capacidade de
interpretação e reprodução dos discursos e argumentos ecologistas, entre outros
exemplos) acabam por ser profundamente elitistas, ainda que em vias de
democratização e massificação (Smith, 1996).
No entanto, deve ser acrescentado que apesar de tantas correspondências
entre a centralidade das questões patrimoniais e ambientais, a sustentabilidade e a
natureza constituem valores de poder acrescentado, enquanto argumento, mas
sobretudo enquanto necessidade, precisamente por serem biologicamente vitais. A
ideia de que a vida do planeta e, consequentemente, da humanidade depende da
preservação da natureza vai-se disseminando e com ela saem logicamente
reforçados os discursos ambientalistas e a inquestionável importância de garantia da
sustentabilidade.
A romantização da natureza e a ecologia como corrente ideológica constituem
reacções à industrialização e à urbanização. Por um lado, com o Romantismo do
século XIX, que dissemina imagens purificadas da vida rural e sacraliza a natureza
no contexto da revolução industrial e de um crescimento urbano sem precedentes,
sai reforçada a tendência cultural para alimentar o ideal rural e um certo misticismo
naturalista transversal às culturas ocidentais (Heywood, 1992; Bunce, 1994).
101
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
Por outro, a partir da segunda metade do século XX, intensificam-se os
discursos ecologistas num período de grande aceleração do capitalismo, ao nível da
produção e do consumo e perante as consequentes dúvidas em relação à
sustentabilidade deste modelo de desenvolvimento económico, dos estilos de vida,
das cidades, dos recursos, etc. (Heywood, 1992). Assim, ao que parece, é em
alturas de maior ansiedade por relação às transformações sociais e económicas, de
maior incremento das ameaças à sustentabilidade dos recursos e da saúde do
planeta e de maior distanciamento para com o "estilo de vida rural", tal como está
estabelecido culturalmente nos nossos imaginários colectivos, que se acentuam os
discursos de preservação e louvor à natureza.
De facto, nos discursos dominantes, natureza e ruralidade confundem-se,
sendo nos imaginários urbanos que começa esta promiscuidade. Neles a natureza é
uma paisagem pastoral que existe "por aí" e que está sempre acessível para
promover a fruição, o relaxamento, o consumo ascético e a nossa redenção
colectiva (Adam, 1998).
No entanto, se a natureza e a ruralidade recolhem um conjunto de conotações
positivas, o ambiente, pelo contrário está associado à poluição e às preocupações
ecologistas, ainda dentro das representações moldadas pelos discursos dominantes
(Adam, 1998). Desta feita, a natureza corresponde nos imaginários colectivos a uma
entidade ou mundo alheio e exterior à produção humana, à técnica, aos artefactos e
à cultura, ao mesmo tempo que o ambiente, por seu turno, (enquanto meio natural
em que nos encontramos e, portanto, que não nos é estranho ou apartado) está
esvaziado de qualquer conotação idílica e é fortemente associado à intervenção
nefasta da humanidade (Adam, 1998).
A ideia de natureza intocada e pura, por pertencer a um tempo ido, condensa
a ideia de primitivismo e transmite nostalgia. Passamos a considerar o mundo
primitivo e selvagem como o mundo máximo, o verdadeiro mundo, depois de
abandonado o antropocentrismo e a sua visão utilitária da natureza, característico da
modernidade (Oelschlaeger, 1991). Ou seja, depois de rejeitarmos colectivamente a
ideia de que a dominação da natureza pelo Homem é natural, no verdadeiro sentido
do termo, depois de termos construído uma consciência colectiva que não só
externaliza como universaliza a natureza e depois de louvarmos o nosso
saudosismo culpado perante a sua destruição (Oelschlaeger, 1991).
102
Capítulo IV
Este eco-centrismo contemporâneo rodeia a natureza de misticismo, na
medida em que reitera a indiscutibilidade da sua beleza e perfeição ascéticas e
reforça a sua independência por relação aos homens e as mulheres (Oelschlaeger,
1991).
"Nature is an established, trenchant and powerful weapon in 'western'
discourse; its power trades precisely on the slippage from externality to the
universality of nature. The authority of 'nature' as a source of social givenness and
unalterability of natural events and processes that are not susceptible to social
manipulation." (Smith, 1996, pág. 41).
A consciência dos problemas ambientais e a disseminação das preocupações
com a preservação da natureza contribui para a construção de uma "cidadania
ambiental global" e para um sentido de comunidade global unificada pela
abrangência das ameaças. Perante um risco global ergue-se, portanto, um
sentimento global de pertença, de responsabilidade e de missão que tem sido
aproveitado e capitalizado pela, também global, economia de mercado e pelas
grandes corporações (Smith, 1996).
Neste domínio, deve ser dito que tal como a valorização patrimonial, também
esta atenção reforçada para com as questões ambientais parece abrir um vasto rol
de novas perspectivas de negócio, ao invés de podar o crescimento económico e o
capitalismo de mercado tal como o conhecemos.
"Likewise, as the enthusiastic bureaucratic appropriation of 'sustainable
development' makes clear, environmental policy actually provides a new, clean, and
socially acceptable cover for imperialism at a global scale - that is, business as
usual." (Smith, 1996, pág. 41).
Paradoxalmente, a valorização da natureza é argumento para estimular o
consumo de um vasto conjunto de produtos, não parecendo existir uma retracção no
consumo ou um sério apelo à sua contenção que se compare à intensidade do
marketing dos produtos "verdes". Esta lógica de promoção reforça a ideia de que é
um dever ecológico comprar certo tipo de produtos, já que protegem o ambiente,
acentuando a sua rentabilidade através do poder comercial, simbólico e
argumentativo de tudo o que está associado com a ecologia (Urry, 1998).
Nesta linha, para além do negócio dos produtos "verdes", da rentabilidade das
novas fontes de energia renovável, do mercado internacional de compra e venda de
quotas de emissão de CO2, entre outros exemplos, temos na capitalização dos
103
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
patrimónios naturais para promoção turística e dentro das disputas competitivas
territoriais, uma forte manifestação da lógica de rentabilização das preocupações
sociais para com a natureza e o ambiente. É patente a aposta nos patrimónios
naturais (enquanto recurso para o desenvolvimento económico e territorial), numa
clara tendência para a chamada "ecologia de restauro", traduzida num investimento
na renaturalização das paisagens, na reabilitação e promoção dos patrimónios
naturais e rurais, em busca de uma rentabilização do seu valor simbólico
acrescentado (Smith, 1996).
É importante olhar para as preocupações ecológicas como um discurso, no
sentido em que os problemas ambientais são tidos como indiscutíveis e é na sua
interpretação que se focam as atenções (Hajer, 1995). Como dissemos, a ecologia
deixa de pertencer às margens e perde o radicalismo ideológico, à medida que se
torna inclusiva, pela construção da tal comunidade de risco global, disseminando-se
como discurso nestes valores, interesses e responsabilidades comuns. A unificação
do problema, do património planetário, da missão de salvamento, da culpa e das
responsabilidades, reitera a axiologia e o imaginário que legitimam o discurso, ao
mesmo tempo que o dota de poder, precisamente por via da força sustentadora da
cultura. Resumindo, perde-se em radicalismo ideológico mas acentua-se a
radicalização patrimonial (da natureza, da cultura, da ruralidade, etc.)
"Hence, sustainable development should also be analysed as a story-line that
has made it possible to create the first global discourse-coalition in environmental
politics. (Hajer, 1995, pág. 14).
Existem certamente conflitos na interpretação do discurso, que não deixa de
ser fragmentado, contraditório e volátil consoante os interesses, a conjuntura, as
conveniências, as lutas de poder, as práticas, as agências, etc. De qualquer forma, é
o discurso dominante, baseado nas representações colectivas em torno da natureza
e das ameaças e problemas ambientais, que molda e legitima as políticas
ambientais, segundo um conjunto de valores e argumentos ancorados culturalmente
(Hajer, 1995). Qualquer estratégia discursiva deve ser, portanto, vista em
perspectiva, dentro do contexto social em que se enquadra. Pelo facto de ser o
discurso dominante que hierarquiza os problemas ambientais, as prioridades ao
nível da acção e as agendas políticas, atribuindo significado aos fenómenos,
identificando culpados, etc., esta é certamente uma questão de poder (Hajer, 1995).
104
Capítulo IV
Uma determinada calamidade natural só existe para as consciências
colectivas se for devidamente constituída como tal política e discursivamente, se for
criado
em
seu
redor
um
significado,
se
for
disseminada
e
promovida
mediaticamente, por parte de agências com poder de influência e segundo uma
estratégia
insistente
de
enumeração,
descrição,
inventariação
das
suas
características, preferencialmente através do jargão científico. Por outras palavras, é
o discurso que faz com que determinados fenómenos sejam considerados
calamidades e é o discurso que as torna reais nas consciências colectivas (Hajer,
1996). Esse é o poder do discurso. O discurso é poder.
"Environmental discourse is essentially political, shaped by vested interests
struggling to control the future and shrouded, therefore, in a great deal of 'expressive
propaganda'." (Milton, 1996, pág. 226).
A ciência aufere neste âmbito uma centralidade sem precedentes ao nível dos
processos de decisão política, principalmente porque é através dela que se
identificam os problemas, se comprova a sua gravidade e se encontram estratégias
de solução. A ciência legitima o discurso para o qual contribui, enquanto saber e
agência de poder dominante (Hajer, 1996). Nas questões ambientais, a ciência têm
de facto um poder de influência reforçado ao nível do discurso, atingindo um nível de
autoridade muito elevado, no que toca à definição das estratégias de conservação
dos patrimónios naturais (Ashworth & Howard, 1999).
"Natural heritage experts are very loath to surrender their scientific status. Of
course they are very aware that the difficult decisions of what to conserve and when
and where are political and social decisions, but they have used their scientific
authority very successfully in the past." (Ashworth & Howard, 1999, pág. 28).
Importa dizer, sobretudo, que a disseminação das preocupações ecológicas,
em paralelo com o reforço do ideal rural, tem contribuído para a legitimação do
discurso de valorização da ruralidade. Não apenas no plano da valorização do
chamado património natural rural, mas principalmente por via da atribuição de uma
função central aos territórios rurais, a conservação da natureza. Aparentemente,
espera-se que a agricultura seja progressivamente substituída por actividades de
preservação da natureza, mais precisamente a manutenção e protecção das
florestas, a renaturalização progressiva das paisagens, a conservação da fauna
autóctone, etc.
105
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
Assim, para além da preservação das tradições, das identidades, da memória
colectiva e dos valores familiares, os territórios rurais têm como missão a protecção
da natureza e a garantia da sustentabilidade ambiental. O mundo rural vem sendo
centralizado pelos argumentos patrimonialistas e ecologistas, que tendem a valorizar
o seu potencial conservacionista. O poder que estes argumentos e valores atingem
culturalmente nos nossos dias e a sua disseminação nos discursos dominantes
reforça o poder da ruralidade enquanto paisagem simbólica e legitima o optimismo
que cresce em torno das suas possibilidades de reinvenção funcional.
O valor simbólico e o potencial funcional da ruralidade, legitimados pelos
valores patrimonialistas e ecologistas, fazem parecer viável a transformação dos
territórios rurais, mas sobretudo tornam-na essencial às nossas consciências. Por
outras palavras, os argumentos patrimonialistas e ecologistas transformam o mundo
rural no passado que não podemos deixar para trás e, ao mesmo tempo, na nossa
garantia de um futuro e de uma continuidade. Em suma, reiteram a estratégia da
reinvenção dos espaços rurais, reforçam a sua matéria-prima cultural e os
argumentos de sua promoção e consumo, ajudando, no processo, a definir a sua
funcionalidade reinventada.
3. Ponto de Situação
(Eixos → Valores → Missões)
Valores
Património
Sustentabilidade Ambiental
Estímulo à substituição da
agricultura por actividades
ligadas aos recursos
patrimoniais locais.
Conservação e promoção do
património rural.
Reanimação das tradições
locais.
Aposta nas artes e nos ofícios.
Investimento no Turismo Rural.
Conservação da natureza.
"Renaturalização" das paisagens.
Aposta em actividades ecológicas e
de preservação da natureza.
Promoção da sustentabilidade na
agricultura (agricultura biológica) e
no turismo (ecoturismo).
Exaltação do passado.
Pertença vs. Instabilidade.
Rural conotado com tradições,
valores familiares, coesão
social, estabilidade, etc.
Sacralização da natureza.
Biológico vs. Tecnológico.
Rural conotado com saúde
ambiental, paz, pureza, equilíbrio
nas relações entre o Homem e a
natureza, etc.
Eixos
Estratégia
(acções legitimadas pelos
valores)
Matéria-prima
(representações positivas
legitimadas e reforçadas pelo
poder dos valores)
106
Capítulo IV
Produtos
(centralidade de valores e
argumentos na promoção de
produtos e territórios)
↓
Missões
Autenticidade, tradição, retorno
às raízes, cultura, identidade,
continuidade, passado...
(gastronomia, artes e ofícios,
arquitectura rural, trajes e
musica tradicional, etc.)
↓
Preservar o Passado
Qualidade de vida, relaxamento,
saúde, fauna e flora selvagens ou
autóctones, ecologia, futuro...
(paisagens naturais, fauna e flora,
agricultura, etc.)
↓
Garantir o Futuro
(funções discursivamente
atribuídas à ru\alidade
reinventada)
Para facilitar o entendimento de como se cruzam, na prática, os eixos do
discurso e os valores de suporte que assinalámos, apresentamos o quadro síntese,
que concretiza essa relação com alguns exemplos. Deve ser dito que o quadro não
pretende ser exaustivo, mas antes ilustrativo de como os alicerces axiológicos do
discurso legitimam e reforçam o mesmo, nos seus diferentes registos. Pretende-se
que seja sintético e claro, porque a sua função é precisamente permitir que neste
ponto da reflexão se consolide a relação dos pontos essenciais expostos
anteriormente.
Assim, cruzamos a estratégia, ou o discurso técnico e político pelo
desenvolvimento rural, com os valores patrimonialistas e ecologistas, para ilustrar de
que forma as acções, levadas a cabo no âmbito dos projectos de intervenção que
dele brotam, são legitimadas por estas tendências de valorização. Neste âmbito,
percebemos que os apelos à diversificação funcional das economias rurais, com
aposta em actividades de rentabilização dos recursos patrimoniais (naturais e
culturais) endógenos, saem fortemente reforçados, por esta aparente unanimidade
cultural que rodeia a valorização desse potencial.
Integrados nesta tendência cultural, os discursos e estratégias que pretendem
estimular o desenvolvimento local incentivam, de facto, a que os espaços rurais
assumam funções de conservação e promoção dos patrimónios identitários e
ecológicos e que não só cumpram com a preservação das tradições e dos vestígios
do passado (construído e imaginado como colectivo), mas também com o garante
da sustentabilidade ambiental das nossas sociedades. Neste sentido, a estratégia
não só é legitimada e reforçada por esta lógica de valorização cultural do património
e da sustentabilidade ambiental como valores e, neste caso, como argumentos,
como não faria sentido sem esta remissão.
107
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
Quanto ao cruzamento do segundo eixo com ambos os valores, é nítido que a
bateria de representações idílicas em torno do rural brota da mesma matriz cultural,
que enaltece o passado purificado e sacraliza a natureza. As representações
positivas em torno da ruralidade saem reforçadas pela valorização patrimonial no
que diz respeito à perspectiva de que o rural é uma espécie de enclave tradicional
em que ainda se mantêm os valores, laços e elementos que, supostamente, se
foram perdendo com o tempo e com o avançar da civilização.
Por outro lado, reforça-se ainda mais com esta tendência cultural para a
defesa do meio ambiente, já que na génese, o ideal rural e a sacralização da
natureza se confundem e saem reforçados (simultaneamente) nos mesmos períodos
históricos (no Renascimento, durante o Romantismo e na actualidade). Resumindo,
podemos dizer que o ideal rural (a matéria-prima do discurso) condensa e atribui um
conjunto de características à ruralidade, que correspondem precisamente àquelas
que são mais valorizadas e centralizadas por estas tendências culturais de
valorização do património e do ambiente.
Para enunciar algumas delas, podemos apontar a manutenção das tradições,
dos localismos, da herança identitária, da memória colectiva, dos saberes e ofícios,
da arquitectura secular, do vernáculo, das paisagens, da fauna e da flora
autóctones, de um estilo de vida sustentável, da relação harmoniosa entre o Homem
e a natureza, etc. O ideal rural está associado aos valores patrimonialistas e aos
valores ecologistas precisamente por sair reforçado enquanto resposta às
inquietações transversais da civilização.
A instabilidade de um tempo em aceleração e as inquietações de um mundo
globalizado levam à necessidade de uma ancoragem cultural reforçada e à
construção sôfrega de pertenças em torno das quais gerar um sentimento. A
insustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento e a disseminação da
consciência de que o planeta está em risco, acrescentam valor ascético à natureza e
ao que lhe é amigável. A estabilidade rural é exaltada por comparação à
instabilidade que supostamente a vida urbana representa, ao mesmo tempo que o
biológico é glorificado por relação a um mundo tecnológico (em demonização).
Em suma, a matéria-prima do discurso, dizendo respeito à sua dimensão
cultural, acaba por constituir uma condensação destas lógicas de valorização, para o
que ao rural diz respeito. O poder dos valores legitima os elementos que no rural se
108
Capítulo IV
concentram e que ao nível do mito, do imaginário e do projecto, parecem
corresponder exactamente ao que é socialmente enaltecido.
Por último, cruzando a dimensão comercial do discurso com os valores que
destacámos, percebemos facilmente que estes funcionam como a estrutura
axiológica, simbólica e representativa em que assenta toda a lógica promocional do
rural enquanto produto. Os produtos rurais e a própria ruralidade são promovidos
pelo seu potencial patrimonial, ou pelo menos tradicional, através de fortes apelos
ao saudosismo urbano, e também pela sua dimensão natural.
Ora, estas características não seriam alvo de destaque promocional, nem
objectos de interesse comercial, caso não fossem valorizadas culturalmente.
Perante estas tendências de valorização patrimonial e ambiental é lógico que se
exaltem este tipo de virtualidades da vida rural, sendo o seu poder simbólico
indissociável deste contexto cultural.
Sintetizando, a valorização patrimonial e ambiental legitima a orientação
estratégica para o desenvolvimento das áreas rurais, integrada no discurso de
reinvenção da ruralidade, reforça o ideal rural e com isso oferece os argumentos
para a promoção da ruralidade e dos seus produtos. Neste processo, precipitam-se
as funções conservacionistas da ruralidade reinventada, enquanto reserva para a
memória colectiva (tradições e identidades) e enquanto santuário ambiental, onde a
harmonia das relações entre Homem e natureza é preservada e reproduzida, como
uma sabedoria transmitida de geração em geração.
109
Preservar o passado e garantir o futuro – os argumentos e valores
que sustentam o discurso e precipitam as missões do mundo rural
110
V.
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia,
representações e interesses
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou e ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
1944, Sophia de Mello Breyner Andresen.
8
Não podemos discutir o discurso de reinvenção da ruralidade, suas
dimensões e suporte axiológico e cultural, sem pensar na sua origem e nas
expectativas e interesses que o alimentam. Tendo já tocado esta temática ao longo
deste percurso reflexivo, importa aprofundá-la, reforçando por um lado o carácter
urbano do discurso e debatendo, por outro, as relações territoriais, dentro desta
lógica de reinvenção da funcionalidade das áreas rurais.
Por outras palavras, pretendemos justificar e explicar a afirmação da
urbanidade deste projecto de ruralidade, enquanto o integramos nas lógicas que
regem as relações territoriais, neste contexto. Olhar para o discurso de reinvenção
da ruralidade como um fenómeno urbano, parece-nos ser a melhor forma de explicar
a sua centralidade e contextualizar os contornos do projecto veiculado. Parece-nos a
melhor forma de o situar e integrar numa matriz cultural e ideológica e de o
relacionar com as grandes lógicas conjunturais que dominam os territórios e a vida
quotidiana na actualidade.
“(…) jamais o ponto de vista do habitante rural esteve tão longe das decisões
sobre o destino dos seus espaços de vida.” (Figueiredo, 2003 b, pág. 165). “Existe
8
Poema “Cidade”, retirado de Andresen, Sophia de Mello Breyner (1995), Obra Poética I, Porto, Caminho.
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
um outro olhar sobre a natureza, o ambiente e a vida rural que se tem,
inclusivamente, revelado mais importante que o das populações rurais: o olhar dos
urbanos e o olhar do Estado.” (Figueiredo, 2003 b, pág. 170).
Importa então esclarecer a origem urbana deste discurso e reforçar a
exterioridade das expectativas que conduzem esta reinvenção no mundo rural. A
dominação dos estímulos e da influência urbana na reconfiguração funcional,
paisagística, demográfica, cultural e imagética da ruralidade, não só é clara, como é
patente em todas as dimensões do discurso e nos valores que o sustentam e
projectam. Senão vejamos...
A estratégia de requalificação funcional e simbólica das aldeias, com base no
seu potencial patrimonial, com vista a uma rentabilização turística e residencial, vai
beber muito ao que foi ensaiado nos centros históricos das cidades. Baseando-se
numa lógica muito semelhante, para satisfazer propósitos muito próximos e com
base nos mesmos recursos, a estratégia de desenvolvimento que projecta o rural
patrimonial, não só é pensada e estimulada externamente, como respeita uma
tendência urbana de gestão e promoção territorial.
A matéria-prima deste discurso e projecto de reinvenção, o chamado ideal
rural, bem como os valores ambientalistas e patrimonialistas que o reforçam e
precipitam, fazem sentido no quadro das grandes inquietações urbanas e, afinal, da
civilização. A valorização das virtualidades rurais não brota do orgulho interno, mas
é, antes, uma consequência da urbanização, principalmente em períodos históricos
em que esta se acentua e ensombra, pela dominação, outras formas de território.
A ruralidade idílica é um enclave simbólico ou um refúgio imaginário que se
afirma nas consciências e nos discursos, sempre como um contraponto à cidade
demonizada. Tendo poder enquanto alteridade, esta ruralidade projecta-se como
nunca, num contexto em que muito criticismo se acumula, em torno do nosso
modelo de desenvolvimento, e em que muito cepticismo vai afastando a esperança
na sustentabilidade das cidades e do estilo de vida urbano.
As "missões" de preservação dos patrimónios ecológicos e culturais,
delegadas discursivamente ao mundo rural e que, afinal, desresponsabilizam as
cidades, em jeito de compensação por um eventual fracasso a este nível, parecem
ser concedidas dentro de uma lógica urbana de "divisão territorial do trabalho".
Quanto aos produtos rurais e ao rural enquanto produto, deve ser dito que
estão igualmente orientados para os consumidores urbanos e que são as suas
112
Capítulo V
necessidades de consumo, entretenimento, habitação, etc. que moldam a
reinvenção funcional do mundo rural, adaptado para corresponder às expectativas
dominantes. Indo mais longe, não é líquido que os dividendos a retirar destes novos
negócios se convertam em desenvolvimento local, nem que sejam autóctones os
seus grandes promotores, existindo fortes possibilidades de que, muitas vezes, um
grande aproveitamento do potencial comercial rural seja feito, por parte de
empresários externos.
Assim, estando perante uma lógica urbana de gestão e promoção de um
potencial territorial, valorizado segundo um conjunto de valores e representações,
que fazem sentido no contexto das necessidades e inquietações urbanas e que
promove um conjunto de produtos para consumo urbano, eventualmente também
para servir interesses externos ao mundo rural, reforça-se a pertinência de
discutirmos este projecto de ruralidade pelo seu vínculo à cidade.
Será este o âmbito das próximas páginas, seguindo a sequência apresentada.
Começaremos por discutir a estratégia de reinvenção dos territórios rurais, em
analogia com o caso de requalificação dos centros históricos das cidades, para
posteriormente continuar a reflexão em torno do contexto do qual derivam as
representações e de onde saem reforçados os valores que alimentam a ruralidade,
enquanto alternativa idílica à cidade demonizada. Espaço haverá, ainda, para
debater os interesses e expectativas por detrás destas transformações, bem como
para perceber a quem poderá favorecer a aplicação deste projecto de ruralidade
consumível.
1. Uma estratégia urbana de reinvenção da ruralidade?
A analogia com as estratégias de requalificação
dos centros históricos das cidades
Tal como no caso do desenvolvimento rural, nas últimas décadas, muita
centralidade tem sido dada aos centros históricos das cidades, aos seus problemas,
potencialidades, possibilidades de futuro, etc.
Após um período em que as cidades perderam gradualmente os seus
habitantes para as periferias, em que viram a sua prosperidade económica posta em
risco pela mudança das lógicas produtivas e foram sendo vítimas de inúmeras
mortes anunciadas, com a sobreposição dos problemas às suas vantagens, ensaia-
113
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
se um “renascimento” urbano em que o potencial patrimonial é recurso estratégico
(Ferreira, 2004). Durante esse processo, os antigos centros que encarnavam todos
os sinais de decadência e se confundiam até com estes nos imaginários colectivos,
passam a estar associados aos melhores traços de urbanidade e a importantes
trunfos para o futuro.
Os impactos dos novos desafios desta fase do capitalismo parecem exigir o
incremento da capacidade de redescobrir as potencialidades económicas, culturais e
sociais dos aglomerados urbanos e também dos seus antigos centros. Nesta
dinâmica, estes passam de obsoletos e desertos a “históricos”, nos discursos de
quem tomou consciência de que alguns problemas, se reinventados, podem passar
a mais-valias, no processo de construção de um protagonismo territorial (Ferreira,
2004).
Aposta-se assim no património, na sua reabilitação, preservação e promoção,
como mais um factor de desenvolvimento e como riqueza e benefício para a
comunidade local. Desse potencial espera-se que seja capaz de estimular a
reanimação económica, atraindo turismo, investimentos, melhorando a imagem do
lugar e reforçando a identidade deste, para que sejam alcançadas simultaneamente
singularidade e visibilidade à escala global.
“La cultura, el patrimonio cultural, ya no sólo es importante por su valor
histórico y por ser el soporte de la identidad de los pueblos, sino que se ha revelado
como un recurso de desarrollo fundamental“(Bernal Santa Olalla, 2000, pág. 32).
Óbvio parece ser, portanto, que os mesmos princípios que, como vimos, se
aplicam às actuais estratégias de desenvolvimento rural, estão patentes nesta lógica
de promover a cidade e requalificar a sua imagem e o seu tecido económico, com
base nos seus patrimónios culturais e históricos. Da crise ensaia-se a rentabilização
patrimonial, o vazio funcional dá lugar a usos recreativos, turísticos, emblemáticos e
mnemónicos, em manobras de reinvenção muito semelhantes, orientadas sob os
mesmos cânones.
A gestão das cidades segundo moldes quase empresariais e a sua promoção
através da utilização dos métodos do marketing urbano, recorre, muitas vezes, às
relíquias e elementos emblemáticos da paisagem construída da cidade, na
elaboração de uma imagem de marca forte e vendável. O património histórico das
cidades encerra um valor concorrencial e comunicacional inquestionável, sendo isto
claro se pensarmos que “As cidades históricas representam, aliás, um dos modelos
114
Capítulo V
identitários de desenvolvimento urbano que mais se tem multiplicado, embora, com
alguma frequência, essas cidades não sejam eminentemente históricas.” (Peixoto,
2003).
A dinamização cultural, a “reciclagem” das paisagens urbanas e a nutrição do
“espírito de lugar”, são etapas importantes do processo de, no âmbito local, agir para
acompanhar os desafios impostos pela economia global, que exigem uma reacção e
adaptação territorial a diferentes escalas. Isto acontece principalmente em contextos
em que a reconversão das capacidades competitivas tem na sua base o património,
que funciona como a “tábua de salvação” habitual para as localidades que não
possuem outros motivos de mediatização, singularidade identitária e prestígio, ou
outros recursos a capitalizar (Peixoto, 2001).
Ora, mais uma vez, esta não parece ser uma tendência exclusivamente
urbana, aplicando-se, como vimos, aos espaços rurais. A capitalização dos recursos
patrimoniais, a reversão de estigmas e reputações pejorativas e a promoção dos
territórios, com base nos seus elementos mais distintivos (produtos locais, estâncias
termais, reservas florestais, fenómenos naturais específicos, artesanato típico,
gastronomia, etc.) ensaiam-se,
assim,
para
fazer frente
a
situações
de
marginalidade competitiva no quadro da globalização.
Neste contexto e tal como acontece com a ruralidade, os centros históricos
convertem-se numa representação do que, supostamente, está em risco de
desaparecer
nas
cidades,
remetendo
para
valores
ou
arquétipos
que,
eventualmente, podem nunca ter sido concretizados, mesmo no passado, tais como:
espaço público, qualidade de vida, o modelo tradicional de família, a cidade à escala
humana, segurança, ausência de tráfego automóvel e poluição, entre outros. E se a
cidade histórica é a cidade "melhor" que nos arriscamos a deixar para trás, o mundo
rural é o enclave natural e tradicional que desaparece com ela e que importa
preservar.
Podendo ser reconfortantes, por confirmarem a possibilidade de uma
continuidade e de um renascimento, os vestígios do passado podem igualmente ser
angustiantes, caso estejam deixados ao abandono. Isto porque no seu carácter
ultrapassado e por vezes decrépito, está patente a transitoriedade e contingência
dos tempos e dos espaços e ilustrado o imediatismo dum presente que pode não
conhecer um futuro, mesmo que das ruínas se construam os alicerces de um futuro
mais próspero (Fortuna, 1999). Reabilitando as ruínas da história e do passado,
115
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
apaziguam-se as consciências, no sentido em que os sinais de descuido, abandono,
destruição e degradação da cidade construída estão associados à noção de uma
cultura arruinada, a um presente hipotecado e a um futuro pouco provável (Fortuna,
1999; Ashworth, 2000).
Os lugares históricos são, assim, decisivos na construção da ideia que temos
da cidade, bem como da possibilidade do seu futuro e continuidade. Desta feita, a
forma como são tratados acaba por ser um barómetro identitário para os urbanitas,
cujas consciências parecem descansar perante a sua saúde e preservação. Estes
elementos espacializam a utopia urbana, fixam os sujeitos aos seus significados, ao
mesmo tempo que alimentam os seus imaginário e confundem plasticamente
tempos e espaços contraditórios, em combinações singulares dispostas à
apropriação (Fortuna, 1999, Ashworth, 2000). Identitariamente, então, os vestígios
do passado jogam um papel muito importante, principalmente no sentido em que
dotam os lugares de singularidade num contexto de grande homogeneização das
referências culturais dominantes (Choay, 1982).
Assim, as cidades e as aldeias patrimoniais têm a sua valorização, em boa
parte, associada à função de dotar o tempo de sentido histórico e sequencial e de
materializar os testemunhos de um passado imaginado, representando territórios
idealizados, que servem de compensação e contraponto para os desconfortos dos
territórios reais. Nesta lógica e quando pensados e desconstruídos, os centros
históricos permitem analisar o hiato entre a cidade vivida e a cidade imaginada
(Peixoto, 2003).
Como referimos, o centro histórico das cidades representa os valores da
cidade perdida, no curso de uma urbanização desequilibrada, estando na sua
degradação o sentimento de um presente inviável e na sua recuperação um novo
fôlego e esperança identitária. Enquanto testemunho de um passado comum,
enquanto ancoragem originária de uma comunidade em busca de um sentido e de
um lugar no curso da globalização, ou enquanto recurso para atrair os fluxos
turísticos, é pretexto para todas as atenções, preocupações e intervenções.
Neste sentido, não podemos deixar de estender estas funções a outros
territórios patrimoniais e, nomeadamente, aos rurais, no sentido que acabam por
constituir igualmente referentes identitários, pontos de ancoragem cultural, projectos
de território mais próximos da sustentabilidade e dos valores tradicionais, novos
campos de negócio e pretextos para o consumo, mas sobretudo bálsamos para as
116
Capítulo V
inquietações urbanas, enquanto enclaves livres dos problemas associados às
cidades.
"Cette sensibilité a pris forme lorsque est née une critique de l'urbanisme
moderne s'appuyant sur un double mouvement: la redécouverte du centre historique
et attrait pour l'écologie." (Remy, 2004, pág. 258).
Sendo assim e porque esta noção (de centro histórico) é recente, a
proeminência que ganha só é possibilitada pelo que existe de novo e crescente na
cidade. Por outras palavras, o protagonismo da cidade histórica reside na alteridade
que revela em relação ao resto da urbe e em relação ao que é construído no rasto
do processo de urbanização, alvo do habitual criticismo. Neste quadro, os centros
históricos das cidades e o mundo rural acabam por ser problemas em que se quer
pensar, pois nas soluções para a sua decadência, para além de recursos
importantes, pode encontrar-se a ilusão de uma sustentabilidade urbana, há muito
desacreditada.
Se pensarmos que na busca de um futuro para esse passado, garantimos a
ilusão de sustentabilidade do presente, que muitas vezes é sentido como despojado
de esperanças e projectos, e provamos, mesmo que ilusoriamente, que o nosso
modelo de desenvolvimento pode não ser assim tão contingente e volátil, ganhamos
em segurança neste cenário de instabilidade.
É frequente designar por "centro histórico" áreas que não são nem centrais
nem históricas, já que na intenção de reforçar o potencial competitivo das cidades e
dos seus recursos, cria-se muitas vezes uma imagem de autenticidade e de tradição
que não tem qualquer fundamento técnico ou científico. O sucesso da cada projecto
de reinvenção e promoção territorial depende mais das suas repercussões políticas
e mediáticas, do que de uma eventual “verdade” histórica ou geográfica (Peixoto,
2003).
É no centro histórico que a reposição simbólica das identidades é efectuada,
passando este a conter o poder de representação da cidade em geral, mesmo que
dela não seja de forma nenhuma representativo, correspondente ou fiel, quer na
realidade construída, como nos modos de vida, no ambiente ou na vivência
concreta. Nestes processos, transformam-se as zonas históricas em lugares
restringidos funcionalmente, que se destinam a actividades festivas e cénicas,
invocadoras do passado e da identidade urbana, em que muitas vezes é olvidada a
117
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
riqueza e diversidade que decorre da passagem de diferentes usos e tempos,
gentes e imaginários (Martínez, 2001).
Da reinvenção e promoção destes territórios resulta, frequentemente, uma
simplificação destas justaposições e a construção de uma imagem agregadora e de
fácil apropriação, numa tendência mercantilista e normalizadora que pretende
facilitar a sua gestão e aproveitamento. Tal como sucede nos centros históricos das
cidades, nos territórios rurais sob o mesmo tipo de processos de reinvenção, é
comum existir uma redução do espectro de imagens que correspondem a tão
estruturadas e poderosas expectativas. Por outras palavras, o que se espera das
paisagens rurais é um conjunto bastante reduzido de imagens e significados, que
pelo seu romantismo e perfeição, dificilmente são compatíveis com a diversidade e
complexidade das realidades sociais e territoriais.
Simplifica-se a projecção dos lugares, estruturam-se expectativas e como
consequência exige-se que os territórios se moldem para caber na "reputação
construída" que os precede. Ora o peso dessas exigências pode, muitas vezes, ditar
uma homogeneização de territórios que tinham a distintividade como principal trunfo.
O trabalho de renaturalização de paisagens, de criação de cenas agrícolas
inspiradas em técnicas arcaicas, a ocultação dos sinais do tempo e do progresso
(como antenas, maquinaria, estufas, etc.), a redução do rural ao património, ao
passado e à natureza, etc., podem de facto, ser factores opressores e
condicionadores das vidas autóctones e das possibilidades de desenvolvimento
destes lugares.
Sendo claro que nenhum renascimento pode ser concretizado sem uma crise
ou decadência prévia, encontramos em ambas as estratégias de desenvolvimento,
um difundido consenso por relação à existência de quadros de marginalidade e
entorpecimento anteriores ou ainda presentes. Nos discursos populares, políticos e
mediáticos, a crise rural e a crise dos centros históricos passa (ou pelo menos
passou muitas vezes, num passado não muito distante) pelos mesmos consensos:
abandono, desfuncionalidade, degradação, ruína, falta de oportunidades de futuro,
nostalgia por um eventual passado de prosperidade, etc. Mesmo sendo territórios
diferentes, encontramos de forma recorrente os mesmos valores e narrativas,
naquilo que são os argumentos para a necessidade de uma intervenção pública
capaz de transformar e fazer renascer estes espaços.
118
Capítulo V
Enquanto pretexto para uma intervenção urgente e pela centralidade que a
zona histórica tem hoje na nossa ideia de cidade, a concentração dos esforços
autárquicos na reabilitação do centro patrimonial urbano faz, muitas vezes, desviar
as atenções de outras áreas ou problemas urbanos, segundo os interesses do poder
político e de outras agências influentes. É comum a dramatização da condição dos
centros históricos, a fim de difundir uma imagem calamitosa da cidade, para atrair
investimentos e agilizar os esforços de recuperação ou mesmo para legitimar
decisões políticas e despesas públicas.
Assim, não deixa de ser preocupante a sobreposição da centralidade dos
espaços patrimoniais em relação às áreas de mais recente urbanização, que são
muitas vezes mais problemáticas social e ecologicamente e que ficam, assim,
relegadas para uma posição, que pela carência comparativa de mediatismo e
“representatividade”, impede que cheguem ao estatuto de prioridade política
(Peixoto, 2003).
Extrapolando, podemos questionar também as causas da centralidade
crescente das questões rurais e dos possíveis interesses por detrás de tamanha
"consensualidade" discursiva, em torno da urgência das soluções e do potencial dos
seus recursos. Como foi dito, estes são problemas em que se quer pensar e para os
quais se exige todos os esforços possíveis, não só porque se encara a reinvenção
como uma solução, mas principalmente também (a nível discursivo) como uma
oportunidade de desenvolvimento e atracção de mais-valias. Desta feita e
institucionalizada esta perspectiva, os poderes públicos encabeçam as estratégias
de desenvolvimento e promoção destes territórios, no sentido de criar as condições,
para que os interesses privados aproveitem estes recursos locais e os mobilizem
económica e culturalmente, de maneira a reproduzir os estímulos à sua
requalificação funcional.
No turismo este ponto é claro, no sentido em que o poder público reabilita o
património, apoia financeiramente o estabelecimento de iniciativas e promove o
potencial local mediaticamente, esperando das empresas que aproveitem o estímulo
fertilizador de economias em ascensão, materializadas nestes novos investimentos,
iniciativas, exemplos, interesses, etc.
Esta lógica, mesmo que em escalas e estruturas diferentes, é aplicada tanto
nos mercados turísticos, patrimoniais e simbólicos dos centros históricos das
cidades, como nas localidades apresentadas como rurais, que aspiram à sua
119
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
diversificação funcional, com base nas estratégias que apresentamos anteriormente.
Assumindo que os recursos simbólicos e materiais capitalizados, embora diferentes
e até alternativos, se baseiam nos mesmos critérios de valorização, no mesmo tipo
de lógicas culturais e discursivas de exaltação e nos mesmos argumentos
legitimadores (de atenção e investimento), podemos apresentar ambas as dinâmicas
como integradas numa mesma matriz de gestão territorial e de estímulo ao
desenvolvimento.
Esta estratégia procura rentabilizar os recursos patrimoniais e a aura
romantizada dos espaços, tendo como argumento a urgência de uma intervenção
pública
que
resolva
uma
aparente
crise
generalizada
e
assume,
na
contemporaneidade, uma transversalidade tendencial. Não sendo uma coincidência,
deve ser dito que as diferentes políticas territoriais têm uma origem comum,
derivando de estados nacionais, governos locais, técnicos de planeamento,
empresas e promotores, que estão inevitavelmente integrados num sistema
económico e cultural dominante, cujos interesses devem ser servidos (Williams,
1990).
As políticas territoriais são uma forma de remediar os impactos e jogar com as
oportunidades de um modelo de desenvolvimento esmagador, que dificilmente pode
ser contrariado. As decisões políticas devem, portanto, favorecer os interesses
económicos dominantes, remetendo para a uma orientação estratégica maior
(Williams, 1990). Neste sentido, devem ser interpretadas enquanto manifestações
ideológicas dessas vontades e conveniências e relacionadas pela sua coerência e
complementaridade, no sentido em que, enquanto discursos científicos e técnicos,
contribuem para o status quo e estão integradas nos processos hegemónicos de
produção de significados (Foucault, 1972).
No que toca ao conteúdo dos valores, trabalhados enquanto recursos, que
preenchem os discursos e determinam as potencialidades a promover, podem
igualmente ser encontradas muitas semelhanças em ambos os casos. O património
histórico e cultural, em conjunto com a paisagem e os elementos naturais (no caso
dos espaços rurais), funciona como a base dos argumentos proteccionistas, dentro
de uma mesma lógica de valorização das tradições, traços identitários, mitos,
lendas, estilos de vida do passado, ícones e outros aspectos relacionados. Estes
valores são centrais nos discursos de valorização e promoção, legitimando a
valorização e indicando os recursos essenciais para o renascimento territorial.
120
Capítulo V
O trabalho de reforço dos laços identitários e do espírito do lugar, construído
com base nos elementos patrimoniais, bem como o trabalho de transformação e
promoção de uma imagem potente e atractiva destes espaços, também feito a partir
destes, são processos semelhantes e com objectivos comuns – o desenvolvimento e
o fomento das capacidades competitivas de territórios em crise ou desadequados
funcionalmente perante as exigências contemporâneas. De um quadro de abandono
demográfico, marginalidade funcional e competitiva e de inadaptação às lógicas
produtivas, económicas e territoriais em configuração há várias décadas, ensaia-se
uma centralização, por via de um passado reinventado e posto sobre a mesa, como
recurso e valor de futuro.
Por outro lado, se a cidade histórica refeita e requalificada apresenta a ilusão
de um passado urbano sustentável, em que os valores e os estilos de vida não
“contaminados” pela globalização, representam singularidade, identidade e tradição,
o mesmo acontece no rural idílico, onde se publicita o resgate da vida pastoral e
campestre, em que as famílias urbanas podem desfrutar do contacto com a natureza
e da tranquilidade perdida nas teias da modernidade. O regresso aos elementos
sonhados do passado, constitui em ambos os casos, uma esperança para um futuro
sustentável, em que a qualidade de vida, a cultura, a tradição e a família podem
sempre viver e ser encontradas por perto ou em lugares mais isolados, num enclave
de autenticidade e paz, que promova alguma segurança ontológica e ancoragem
originária, neste mundo rápido e globalizado.
A teatralização e a estetização dos lugares patrimoniais, rurais ou não,
funcionam em lógicas igualmente simétricas, no sentido em que a transformação de
espaços multifuncionais em espaços lúdicos ou turísticos, mesmo que numa
situação de entorpecimento ou marginalidade, implica a sua simplificação e
adaptação a leituras simbólicas de apreensão comercial, em que as paisagens são
manipuladas para corresponder a um sonho, a um imaginário, a uma narrativa.
Exige-se um trabalho de construção de uma autenticidade tecida a partir de um
projecto onírico de território e identidade, exige-se a concretização de toda a
iconografia natural ou histórica que materialize as narrativas e faça corresponder o
espaço vivido ao espaço sonhado.
Museifica-se e cristaliza-se o espaço para preservar a pureza que atrai os
olhares, como se parasse o tempo e tudo tivesse ficado ali, tal como havia deixado a
nossa memória colectiva, alimentada e construída, pelos discursos políticos e
121
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
mediáticos que, dos patrimónios culturais, pretendem fazer ascender novas
oportunidades, de desenvolvimento (para os territórios) e de fruição (para os eternos
turistas que, ao que parece, devemos ser todos). Numa dupla dinâmica desenhamse estratégias políticas de desenvolvimento, aproveitando aquilo que culturalmente
“sempre” foi valorizado, como a natureza e o património e, promovendo esses
elementos como produtos culturais, que em osmose, constituem óptimos recursos
para vender e fazer viver os territórios mais frágeis nas engrenagens da
globalização.
Problemas como a sustentabilidade, tendo em conta a utilidade lúdica e
turística, ou como a possível descaracterização e esvaziamento simbólico, podem
ser encontrados tanto no rural idílico, como nos centros históricos das cidades,
dados os processos frequentes de gentrificação, museificação e aproveitamento
comercial excessivo, os desequilíbrios relacionados com os limites da estetização,
as contradições vindas da necessidade de combinar diferentes interesses e usos,
entre outras debilidades. A falta de rigor na denominação de “centro” e de “histórico”
e até de “rural”, a falta de garantia de que as populações locais possam de facto ser
os maiores beneficiados nestes processos de valorização e renascimento, a falta de
regulação pública dos aproveitamentos privados ou externos excessivos, a falta de
conteúdo de muitos processos de patrimonialização, que são reproduzidos
mimeticamente de casos de sucesso anteriores, etc., devem ser motivo de
preocupação em qualquer tipo de lugar, a bem da sustentabilidade deste tipo de
políticas.
Dúvidas existem ainda que estes processos de reinvenção e requalificação
sejam sempre bem sucedidos ou que constituam uma “tábua de salvação” para
todos os territórios. Mesmo que em muitas cidades europeias a reabilitação e
promoção dos centros históricos tenha resultado num novo fôlego e prosperidade,
muito através do turismo cultural urbano e da atracção de grandes eventos e seus
investimentos, não pode ser dito cabalmente que isso tenha sido, em tudo,
vantajoso. A cidade histórica pode ter passado a representar a cidade como um
todo, mas fez esquecer as áreas menos nobres e mais problemáticas, em que não
se quer ainda pensar e que não têm nenhum valor patrimonial; pode ter passado a
ser uma fonte de rendimento, mas perdeu em muitos casos os seus habitantes e
com eles a sua aura de espaço vivido, a sua dinâmica própria, a sua graça e
identidade.
122
Capítulo V
Na mesma lógica, podem existir já pequenas povoações rurais que vivam do
turismo, do artesanato, dos produtos regionais, mas deve ser sempre questionado
se são as suas gentes que estão por detrás dos negócios, das políticas, das
campanhas e não apenas atrás dos balcões e das vassouras. Deve ser questionado
se por causa da teatralização do rural se desligaram as máquinas agrícolas ou os
sistemas de rega, conseguidos com os subsídios comunitários anteriores, para não
estragar o quadro e não incomodar os visitantes. Deve ser questionado se os
habitantes não passaram a figurantes, se os rurais não preferiam ter passado a
urbanos e se não temem que a moda passe e volte o esquecimento e a
invisibilidade. Deve ser questionada a tradição dos produtos, a reprodução dos
monopólios e privilégios dos senhores rurais, que ainda vêm da cidade para vender
a outros urbanitas o seu pedaço de vida bucólica. Entre outras coisas, entre outras
dúvidas.
Sobretudo, deve ser questionada esta estratégia enquanto receita, para todos
os espaços e as intenções que a promovem, já que os espaços, os seus recursos e
populações não são todos iguais e não deixa de ser recorrente que, do poder
privado, venha mais o aproveitamento dos dinheiros públicos e o monopólio dos
benefícios, do que a continuidade dos investimentos e dos estímulos a novas
oportunidades para as comunidades locais. Importa reforçar assim que, por muito
que se simplifiquem discursivamente as realidades territoriais e as respectivas
abordagens políticas, estas não deixam de ser complexas demais para que a
aplicação deste tipo de soluções estandardizadas conduza, de facto, ao
desenvolvimento e à real e sustentável resolução de problemas tão diversos e
difíceis.
2. Um campo para a cidade – a valorização e reinvenção da ruralidade à luz
das necessidades e expectativas urbanas
Vivemos num mundo em permanente transformação, em que o ritmo da
mudança se acelera e em que a par do alongamento espácio-temporal, quase todas
as esferas da vida social e económica parecem desespacializar-se (Giddens, 2000).
A vida urbana concentra o trabalho e os sintomas da globalização, acabando assim
por representá-la, enquanto modelo de desenvolvimento territorial e económico, mas
sobretudo enquanto civilização.
123
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
Neste quadro, a natureza e as tradições ganham uma importância reforçada,
por representarem a continuidade com o passado e darem sentido às
transformações. Elas dão a noção de eternidade e organização temporal,
respectivamente, dando uma ancoragem à vida descontextualizada e volátil das
cidades da globalização (Giddens, 2000).
Com a erosão da família alargada e das redes de solidariedade tradicionais,
com a aceleração temporal e a descontextualização espacial de diversas esferas da
vida social, com tantas dúvidas em relação à sustentabilidade ambiental do nosso
modelo de desenvolvimento, com o crescimento dos sentimentos de insegurança,
com as crises económicas e a vulnerabilidade do emprego, com a escassez de
recursos energéticos, com os problemas associados ao terrorismo internacional,
entre outras questões transversais ao nosso mundo globalizado, a vida nas cidades
está imbuída de um vasto conjunto de inquietações e problemas.
"Em resumo: as cidades converteram-se no depósito de lixo de problemas de
origem mundial. Os seus habitantes e aqueles que os representam confrontam-se
habitualmente com uma tarefa impossível, seja para onde for que viremos os olhos:
a de encontrar soluções locais para contradições globais." (Bauman, 2005, pág. 28).
A incerteza por relação ao futuro e o sentimento de insegurança, tornam-se
assim omnipresentes no mundo globalizado, à medida que cresce a noção de que
as nossas vidas dependem de factores, forças e decisões que escapam ao nosso
controlo individual e que se apresentam como longínquas e deslocalizadas
(Bauman, 2005).
Neste sentido, a aparente imutabilidade do mundo rural é promovida e
valorizada como um contraponto à volatilidade da vida moderna e como um
elemento estabilizador num mundo em constante e acelerada mutação (Lengkeek et
al., 1997). A própria figura do camponês sai reforçada enquanto referência para o
Homem urbano, estável e segura, como modelo e representação da ruralidade que
dele depende (Chamboredon, 1980).
As grandes dinâmicas associadas à globalização têm influenciado de forma
complexa os territórios rurais, já que, por um lado, têm contribuído para a sua
marginalização competitiva, numa lógica económica que centraliza fortemente as
cidades, pelos seus recursos e capacidade de consumo, trabalho e comunicação e,
por outro, têm elevado e promovido as suas virtualidades ambientais e culturais
(Veiga, 2006).
124
Capítulo V
"As we shall see, the significance of the rural as a cultural "reservoir" is usually
in complete contrast to its importance as an economic space." (Lowe et al.,1995,
pág. 65).
De facto, o rural profundo e remoto, onde tudo permanece intocado pelo
tempo e que, sem a respectiva valorização, poderia ser considerado estagnado ou
obsoleto, representa precisamente a estabilidade e eternidade que sai valorizada,
nos contextos em que a grande efervescência económica parece vir acompanhada
de grandes inquietações e ansiedades (Veiga, 2006). Assim, o mundo rural acaba
por constituir um locus de resistência aos efeitos da globalização, mais precisamente
às consequências dos processos de desespacialização, aceleração temporal,
homogeneização cultural e insustentabilidade ambiental (Wanderley, 2000).
Assumindo este potencial de valorização e principalmente devido à sua
associação com a preservação do meio ambiente, o rural passa a ser encarado
como um valor indispensável ao futuro, reconfigurando-se, assim, as relações e o
diálogo entre o mundo rural e a sociedade (Wanderley, 2000). Esta, por ser
eminentemente urbana e dominada pela influência de uma globalização construída
nas e pelas cidades, confunde-se com a urbanidade. As crises da civilização são a
crise da cidade, que representa o capitalismo, a modernidade, o poder e, portanto,
os problemas que lhes estão associados (Williams, 1990).
Desta feita, a dicotomia rural/urbano continua a ser central na definição e no
entendimento que fazemos de nós próprios, enquanto civilização e continua a servir
de forte referente identitário (Lowe et al. 1995). O rural parece manter o que a cidade
perdeu, precisamente porque não possui os recursos que tornaram a cidade no
motor da civilização. Sendo assim, se a urbe é essencial à motricidade da
globalização e da economia capitalista, o mundo rural insinua-se como essencial à
sua saúde ambiental e "mental", por manter a esperança na sustentabilidade e no
futuro e por preservar uma estabilidade cultural, identitária e ontológica.
A centralidade desta dicotomia reforça a importância dos conflitos ou
distâncias, entre ambas as categorias e entre aquilo que lhes está associado. Essa
tensão está contida na dificuldade de combinar progresso económico e tecnológico
com sustentabilidade ambiental, futuro com tradição, diversidade e mudança com
estabilidade e segurança, prosperidade e justiça social, territórios desejados e
territórios reais, resumindo, está contida nos dilemas da civilização.
125
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
"A ideia de campo tende à tradição, aos costumes humanos e naturais. A
ideia de cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento. Assim,
num presente vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entre campo e
cidade para ratificar uma divisão e um conflito de impulsos ainda não resolvidos, que
talvez fosse melhor encarar em seus próprios termos." (Williams, 1990, pág. 397).
A manutenção desta dicotomia facilita o encontro de um sentido no caos
social, permitindo um posicionamento mais claro dentro de um conflito complexo
que, mesmo não se reduzindo aos territórios, utiliza-os como contentores ou
referentes que autorizam a sua interpretação e a sua "digestão" social e individual
(Williams, 1990).
Aproveitando as associações positivas que em torno da ruralidade se tecem,
as estratégias de reinvenção da ruralidade pretendem dar resposta ao interesse
urbano no rural (preservado enquanto alteridade). Procura-se restaurar a aura de
tradição e sustentabilidade nos espaços rurais, projectando as suas características
não-urbanas, não só para reforçar a possibilidade de sua preservação no mundo
actual, inocentando assim a ordem capitalista, mas também para as rentabilizar e
integrar no jogo económico urbano/global (Sampaio, 2002).
Como aliás já aconteceu no passado, assiste-se a uma reconfiguração
funcional e produtiva dos territórios rurais, para melhor servirem as lógicas do
mercado. O capitalismo reage às crises buscando novas formas de acumulação e
rentabilização dos recursos, sendo que, no caso do rural, assiste-se à tentativa de
colmatação do vazio funcional, de reversão da marginalidade competitiva e da
aparente desadequação às exigências destas novas lógicas territoriais e
económicas, através da substituição do anterior modelo. Desta feita, transforma-se o
rural agrícola, ou o rural em crise, numa ruralidade reinventada (patrimonial ou
consumível) (Perkins, 2006).
Uma nova lógica de rentabilização do rural enquanto recurso é posta em
prática, à medida que recua a dominação do sector agrícola e crescem estas novas
formas de produção e consumo. Por outras palavras, nascem novos tipos de
negócio, ligados a recursos que ultrapassam o sector primário e terciarizam o mundo
rural. Assim, para além da agricultura muito especializada e de ponta, de actividades
ligadas à floresta e das emergentes actividades "verdes" (como a produção de
energias renováveis, por exemplo), que podem estar ainda associados ao sector
primário, embora numa versão "up-to-date", insinuam-se principalmente o turismo, o
126
Capítulo V
comércio de produtos artesanais e gastronómicos e os negócios imobiliários (para
segunda residências, por exemplo) (Perkins, 2006).
Estimula-se, portanto, com este projecto de reinvenção, uma combinação
aparentemente paradoxal entre uma ruralidade intencionalmente tradicional e
pastoral (na apresentação) e uma ruralidade rentável e integrada nas lógicas de um
mercado urbano feroz e exigente. Para manter a aura pastoral e depurada dos
territórios rurais, exige-se um trabalho de renaturalização das paisagens e
camuflagem das marcas de modernidade, esperando-se alcançar, com este
"regresso às origens", o reforço do potencial de consumo dos espaços e, portanto,
um novo fôlego para enfrentar os desafios do futuro. Acontece que os processos de
pastoralização da ruralidade, estão habitualmente próximos de uma exacerbação
cenográfica, que “hiper-ruraliza” os lugares para que estes correspondam às
expectativas dos consumidores urbanos.
"Recognizing the potential for profit, in recent times entrepreneurs in
conjunction with local governments have attempted to satisfy consumers desire for
this imagined countryside." (Perkins, 2006, pág. 253).
Os novos negócios podem ter um impacto económico mais modesto, se
comparados com a agricultura intensiva, mas a aposta na qualidade e em sectores
de mercado com consumidores de elevado poder de compra, como é o caso do
turismo rural, por exemplo, faz com que as expectativas de relançamento económico
se mantenham elevadas, nem que seja ao nível dos discursos políticos, já para não
falar da apregoada garantia da sustentabilidade ambiental, que obviamente aparece
como outra vantagem compensatória. Espera-se assim algum retorno económico,
até porque, se espera destes sectores de actividade que reproduzam exigências e
oportunidades de negócio, ao nível dos transportes, por exemplo, para fazer face às
necessidades de mobilidade quer de turistas, quer de produtos perecíveis (Perkins,
2006).
O facto de exigirem uma forte aposta na promoção territorial, no sentido em
que os produtos valem pelo vínculo à localidade, faz com que se defendam estes
novos negócios, pelo seu potencial de requalificação da imagem dos lugares e,
consequentemente, de relançamento económico. Neste quadro, diversos interesses
se erguem na tentativa de retirar um maior aproveitamento destas novas
oportunidades. Sendo o sector público responsável por grande parte dos
investimentos, necessários ao estímulo desta tentativa de reanimação económica,
127
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
muito espaço fica para que o aproveitamento privado possa seguir o isco, com vista
a tirar partido das tais oportunidades de negócio.
Os territórios bafejados pelos estímulos públicos ao turismo ou associados a
um produto de prestígio, promovido com apoios institucionais, e cuja imagem se
encontra em requalificação, passam frequentemente também a ser rentáveis como
mercado de segundas residências e a recolher conotações positivas. A promoção
destes lugares, estando já em curso e com o apoio das instituições públicas, tem um
poder acrescido, sendo aproveitado esse trabalho de reinvenção do valor simbólico
dos territórios, para potenciar o negócio de compra e venda de terrenos, construção
de vivendas, etc.
Com o aumento da procura de casas de campo, por parte de habitantes
urbanos, aumentam também as manobras especulativas, o preço dos terrenos, dos
víveres no comércio local e de alguns serviços, exacerbando-se um conjunto de
dinâmicas muitas vezes prejudiciais e excludentes para os rurais, o que acaba por
criar complexos conflitos de interesses (Perkins, 2006). Por outro lado, também
sucede que pequenas empresas de material agrícola ou mesmo antigos
trabalhadores do sector, prejudicados pela crise na agricultura e em situações de
grande dificuldade, passem a servir os novos proprietários de terrenos, normalmente
adeptos da jardinagem e da horticultura, criando-se novas perspectivas de negócio e
de pequeno emprego (Perkins, 2006).
Os solos passam progressivamente para o controlo externo, à medida que
são adquiridos ou geridos por promotores turísticos, proprietários de casas de férias,
instituições públicas de gestão de reservas naturais e extensões florestais, etc.
Neste processo, acentua-se a influência das leis do mercado em boa parte dos
terrenos rurais e, por outro lado, reitera-se progressivamente o espaço rural como
paisagem, na medida em que o seu valor deixa de ser considerado produtivo,
passando
a
funcionar
mais
como
cenário
de
actividades
recreativas
e
contemplativas (Chamboredon, 1980).
A progressiva apropriação dos solos rurais por parte de entidades externas
tem acentuado a demarcação de propriedades, a normativização e burocratização
da gestão desses terrenos e, portanto, o controlo desses territórios. Este poder
crescente é facilitado pela desestruturação das comunidades camponesas, muito
fragilizadas pelo êxodo, pelo envelhecimento demográfico, pela consequente
delapidação das redes familiares, pelo enfraquecimento dos sistemas de agricultura
128
Capítulo V
comunitária, pela miséria, pela dependência subsidiária, pela distância que as afasta
das agências decisoras, entre muitos outros factores (Chamboredon, 1980). Desta
feita, a utilização urbana dos espaços rurais passa não só pela reinvenção dos
territórios segundo os imaginários colectivos e expectativas correspondentes, mas
também pelo aproveitamento das fraquezas deixadas pela desestruturação das
sociedades camponesas (Chamboredon, 1980).
O reinventado projecto de ruralidade combina, assim, interesses económicos
e culturais, naquilo que se constitui como um ensaio de território em que se cruza a
“ocidentalidade” (consumo, potencial de negócio, conforto material, etc.) com todas
as premissas que compõe a retórica do desenvolvimento sustentável, numa espécie
de reencontro com a natureza e o passado, sem renunciar às comodidades da vida
moderna (Favareto, 2006).
Rentabilizar o poder simbólico e argumentativo da natureza e dos valores
patrimoniais passa, não apenas pelo aproveitamento do seu magnetismo comercial
e reanimador, mas também por uma utilização retórica da sua sacralidade, para
legitimar e inocentar os interesses por detrás das manobras de transformação dos
territórios.
"Os "materiais antigos" são usados para fins modernos – mais particularmente
para criarem legitimidade para os sistemas de poder emergentes." (Giddens, 2000,
pág. 90).
As ideias e valores associados aos territórios exprimem interesses e os
territórios são então levados a corporificar esses projectos e representações, naquilo
que é uma produção estratégica e ideológica dos lugares para finalidades previstas
(Williams, 1990).
"The attachment of value to a particular environment or landscape feature
reflects the wider power relations and social divisions. Science, scientists, politicians,
policies continue to pay attention to certain representations against others. Through
their 'scientific' power and policy power they provide legitimacy and authority to these
representations. The final result is a complex politics of representation of the
environment and of rurality, a constructed imagination." (Hadjimichalis, 2003, pág.
111).
Desta feita, o valor impresso nos espaços rurais para diferentes finalidades,
quer seja para o turismo, para uso residencial, para protecção ambiental ou para fins
agrícolas, depende das estratégias de gestão e regulação das agências políticas e
129
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
económicas envolvidas e das suas dinâmicas de poder. Ora, estas acabam por criar
novas e diversas geografias de valor, o que complexifica as realidades territoriais, a
sua hierarquização e relações mútuas (Marsden, 1999).
Indo mais longe, a existência de conflitos de interesse vem acrescentar ainda
maior complexidade a estes processos, já que disputas existem quer no plano da
definição de usos para os espaços e consequente valor simbólico e material, quer ao
nível do aproveitamento das possíveis vantagens a retirar e mesmo no âmbito da
competição entre as diferentes agências e grupos envolvidos (Lengkeek et al.,
1997). Existe a luta pelo uso do espaço e pelo controlo do curso dos
acontecimentos, sendo esta competição acentuada com o integrar dos territórios
rurais nos circuitos de consumo urbano (Lengkeek et al., 1997).
As disputas pelo controlo dos territórios rurais acabam por abranger diversos
tipos de regiões e contextos, pois nas zonas com proximidade às cidades sobem os
preços dos solos devido à pressão da expansão urbana e cresce o interesse no
loteamento, ao mesmo tempo que nas aldeias mais remotas aumenta o interesse no
potencial idílico, florescendo o negócio imobiliário de segundas residências ou de
promoção turística (Lengkeek et al., 1997).
"Rural space begins to play a key role in the political economy of the modern
consumerist state. By becoming variable repositories of consumption relations, rural
areas become more attractive to the outsider, in legitimating inequality in markets
and in social relationships." (Marsden, 1999, pág. 207).
Vende-se o mundo rural aos habitantes urbanos como o seu "quintal", numa
estratégia de promoção turística que, apesar de ser apresentada como a "tábua de
salvação" para estes territórios, acarreta dinâmicas especulativas que inflacionam os
custos de vida nas localidades e colide com eventuais intenções de estimular a
fixação dos seus habitantes. Isto acontece precisamente por se sobreporem as
expectativas de consumo dos tais visitantes ou consumidores, às expectativas de
desenvolvimento das populações locais (Hoggart, 2001; Silva, 2009).
"Significantly, the fiercest struggles in this redefinition of rural space were not
with ordinary country people, who remained idealised but neglected, but between the
conflicting recreational tastes and means of different urban strata and landed
interests, such as the hunting and shooting of the gentry, plutocrats and nouveaux
riches, the botanising, rambling and golfing of the genteel middle class, and the
hiking and coursing of the working class. The battles between these groups over
130
Capítulo V
rural space were microcosms of their struggles for control over the urban social
order." (Lowe et al., 1995, pág. 70/71).
A complexidade destes processos de reinvenção acarreta, portanto, diversos
conflitos e disputas de interesses, nomeadamente pela multiplicidade de agentes
envolvidos e dado o facto que é extremamente difícil hierarquizar pacificamente os
aspectos ambientais, económicos, culturais e políticos, em territórios que
tradicionalmente se organizavam apenas sob a égide dominadora do sector agrícola
(Favareto, 2006). De qualquer forma, fica clara a influência externa nestes
processos de reinvenção e a crescente complexificação das dinâmicas territoriais
neste novo mundo rural.
É, sem dúvida, na procura urbana que se deposita o futuro das áreas rurais,
tal como têm evoluído (Ferrão, 2000). Depois da delapidação da agricultura e da
indústria, em muitos casos, resta esta rentabilização dos recursos patrimoniais e
naturais, naquilo que se traduz na transformação dos territórios rurais em espaços
de consumo, orientados para as exigências e expectativas urbanas (Chamboredon,
1980). O rural não produtivo e terciarizado, ao integrar-se nas lógicas de consumo
urbano e ao transformar assim as suas dinâmicas relacionais e económicas, acaba
por urbanizar-se cultural, territorial e laboralmente (Wanderley, 2000).
"Les territorires/patrimoines ruraux ne se construisent ni seuls, ni dans un
face-a-face
avec
les
pouvoirs
publics:
les
mondes
extérieurs,
assimilés
grossièrement à l'urbain, représentés par les figures du touriste, du consommateur,
du néo-rural ou du fonctionnaire, disent chacun leur mot, en manifestant avec leurs
pieds lor des fêtes de transhumance, en restaurant le patrimoine bâti, en étant à la
pointe de ce qu'on pourrait nommer les «traditions innovantes» que sont les
productions dites de terroir. Par leur action, leur présence, ils vont signifier aux
habitants l'intérêt de leurs «patrimoines» paysager, agricole, culturel. Ils vont
favoriser la relance d'anciennes pratiques ou productions, ils seront à la fois des
aiguillons, des médiateurs et les principaux agents de promotion de cette campagne
«reinventée»." (Rauntenberg et al., 2000, pág. 9).
Fica claro que as expectativas, interesses e a procura urbana estimula,
configura e orienta a concretização deste projecto de ruralidade reinventada, mas há
igualmente que reforçar que a dominação urbana é conjuntural e soberana às
relações territoriais a várias escalas (Hadjimichalis, 2003). As cidades como motores
do desenvolvimento económico, como centros de comunicação e informação e como
131
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
referências culturais, dentro de um jogo competitivo feroz à escala global, que as
hierarquiza e legitima em termos de soberania, têm uma influência inabalável na
forma como se orientam as dinâmicas territoriais e, consequentemente, na forma
como se configuram os próprios territórios e suas possibilidades de desenvolvimento
(Hadjimichalis, 2003).
Nesta linha, deve ser dito que este projecto de ruralidade nasce das
necessidades
urbanas,
configura-se
segundo
as
suas
representações
e
expectativas, favorece a expansão do consumo e dos negócios urbanos e
apresenta-se como cultural e ambientalmente benéfico para a sociedade como um
todo (Hadjimichalis, 2003). No entanto, é interessante notar que nos discursos em
torno do desenvolvimento rural, os quais, afinal, ensaiam a aplicação deste projecto
de ruralidade, a tónica é sempre posta nos interesses locais e na urgência em
solucionar a afamada e supostamente generalizada crise do mundo rural. Neste
discurso é, assim, notório e transversal um certo paternalismo que, pensando bem,
acaba por condizer com a soberania urbana nestas matérias (Marsden, 1999).
3. O rural como um problema em que se quer pensar – os interesses culturais,
económicos e políticos que sustentam este projecto de ruralidade
Depois de vários anos, muitos esforços e elevados investimentos nas políticas
de desenvolvimento rural, os resultados continuam a ser modestos e ainda não se
encontram muitos exemplos de territórios que, efectivamente, tenham logrado
alcançar um renascimento económico consistente, sob esta estratégia de
rentabilização patrimonial. Ainda assim, nem o discurso de reinvenção e respectivo
projecto de ruralidade patrimonial e consumível, nem as políticas que ensaiam a sua
aplicação, parecem estar a esmorecer, o que nos faz indagar qual o quadro de
motivações por detrás desta persistência e convicção política (Silva, 2009).
A título ilustrativo, entre 1985 e 2007 movimentaram-se em Portugal 306
milhões de euros de dinheiros públicos, maioritariamente provenientes dos fundos
europeus, apenas para a promoção do turismo rural, não havendo ainda sinais
irrefutáveis que os impactos positivos deste sector, no desenvolvimento local, se
aproximem sequer, das altas expectativas tantas vezes apregoadas (Silva, 2009).
Apesar disso e tal como dissemos, não temos assistido a um abrandamento da
apologia dos seus benefícios nos discursos políticos e, muito menos, a um
132
Capítulo V
enfraquecimento do projecto maior, em que se integra a actividade turística e que
prevê a transformação do mundo rural num cenário de consumo e contemplação.
A justificação para a resistência deste discurso pode estar pulverizada no
vasto conjunto de interesses culturais, económicos e políticos que parecem
estimular o seu projecto de ruralidade.
O poder de apaziguamento das consciências, que está contido na ruralidade
"verde", está, para as preocupações ambientais e para as dúvidas em relação às
possibilidades de sustentabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, como a
suposta estabilidade da dimensão tradicional e cultural do mundo rural parece estar,
para a complexidade das dinâmicas espácio-temporais da globalização. A ruralidade
serve de referente identitário, permite uma ancoragem cultural e providencia
espaços de materialização do sentido histórico da nossa existência colectiva. Assim,
concede alguma segurança a uma civilização ensombrada por inquietações, cujas
causas parecem estar demasiado longe do nosso alcance, para deixarem de ter
consequências pouco inteligíveis.
Com o reforço da ruralidade como referência apaziguadora, como alternativa
retórica e refúgio permanentemente disponível, atenua-se o espanto colectivo
perante a aparente falta de futuro dos nossos estilos de vida, das nossas cidades,
dos nossos recursos, dos nossos desejos de consumo e conforto, etc. Desta feita,
prolonga-se a esperança, estendem-se as possibilidades de futuro do mundo, tal
como o conhecemos, aliviando-se o cepticismo ou o pessimismo realista e,
sobretudo, inocentando-se em boa medida a ordem capitalista.
Resumindo, esta função atenuante, contida na ruralidade idealizada, alivia a
preocupação colectiva com o futuro, dá um sentido ao caos identitário e temporal,
que a globalização faz pairar sob a civilização e subtrai alguma da culpa capitalista.
Isto porque, dando a ilusão de um novo futuro, desresponsabilizado as cidades da
preservação ambiental e aliviando algum do desconforto estrutural ao nosso modelo
de desenvolvimento (em si insustentável e fracturante), esta ruralidade "disponível"
vem, enquanto suposta compensação, renovar os votos de confiança no sistema
capitalista, permitindo a manutenção e a legitimação dos mesmos estilos de vida.
Culturalmente, estas parecem ser as funções e as causas que justificam a
força e a transversalidade do discurso, mesmo perante a sua aparente
inconsequência ao nível do desenvolvimento local. Mas indo mais longe,
arriscaríamos questionar se este discurso não funcionará igualmente, em
133
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
antecipação, como uma forma de domesticar e integrar, nas tendências do
mainstream, eventuais ímpetos rebeldes de ruptura com a cidade/civilização,
perante tão poucos sinais de esperança, de sustentabilidade e de futuro. Por outras
palavras, como uma forma de rentabilizar esse potencial desviante ou alternativo,
por via da sua integração nos circuitos de consumo e, consequentemente, pelo seu
esvaziamento ideológico e eventualmente revolucionário.
Nesta lógica, perguntamos se a manutenção deste sonho de ruralidade
disponível e desta alteridade que "trabalha" a favor da cidade, não contraria ou
atrasa um eventual êxodo urbano progressivo ou possivelmente iminente, ou pelo
menos, se não rentabiliza esse potencial de ruptura. De qualquer forma, parece
claro que estamos perante uma tentativa de reintegração do rural enquanto recurso
desaproveitado,
nos
circuitos
económicos
urbanos,
naquilo
que
é
uma
reorganização das relações territoriais, com o reforço da dominação urbana.
Desta feita, se pensarmos nas motivações económicas que podem ajudar a
justificar a consistência deste projecto de reinvenção da ruralidade, facilmente
relacionamos a expansão dos negócios e do consumo urbanos, com os estímulos à
disseminação desta versão trendy do mundo rural. Neste sentido, se não são
palpáveis os resultados positivos das políticas e investimentos, para concretizar este
projecto patrimonial de ruralidade ao nível local (entenda-se nas áreas rurais), não
será de todo complicado, por outro lado, enunciar algumas das suas vantagens para
os mercados e habitantes urbanos.
De facto, o turismo rural pode não ter tido ainda grandes impactos no
desenvolvimento rural, mas já se consolidou como uma franja importante do
mercado turístico e tem vindo a ganhar prestígio e valorização, enquanto actividade
económica. Indo mais longe, se a requalificação das imagens associadas à
ruralidade não fez ainda desaparecer alguns dos estigmas que assombram as
localidades marcadas pela marginalização, nem fez, por exemplo, recuar a sua
desertificação progressiva, no contexto urbano, por seu turno, alimenta um circuito
comercial crescente de lojas de produtos rurais, que ascendem ao estatuto de
gourmet (e isto só para dar um exemplo dos inúmeros aproveitamentos que se têm
feito do poder comercial do chamado ideal rural).
Ora, com isto pretende ilustrar-se que, mesmo que não sirva o
desenvolvimento rural, apresentado como prioridade estratégica e legitimadora de
esforços e investimentos, a disseminação desta ruralidade reinventada é certamente
134
Capítulo V
favorável à vitalidade dos circuitos de comércio e consumo urbanos. Neste processo
de abertura do espaço rural ao exterior e através do seu usufruto turístico e
residencial, consolida-se a sua apropriação pelas classes médias, naquilo que se
apresenta como uma espécie de democratização do ideário pastoral, outrora apenas
reservado a uma elite de gosto requintado e de elevado poder de compra (Silva,
2009).
Se a propriedade de uma casa de campo deixa de ser um luxo reservado a
grandes herdeiros e se banalizam progressivamente actividades como a ornitologia,
a caça, o turismo termal, a contemplação da paisagem, o montanhismo, etc.,
podemos encontrar nesta integração do rural e dos seus produtos, nos circuitos
comerciais urbanos, uma espécie de vitória da classe média, ainda que se
mantenham diferenças de oferta, para distintas franjas de públicos, segundo o poder
de compra (Lengkeek et al., 1997).
Importa ainda acrescentar às motivações culturais e económicas enunciadas,
os interesses políticos que reforçam a sustentação e a robustez deste projecto de
reinvenção da ruralidade.
Ora, as questões rurais constituem temas centrais das políticas da União
Europeia, aliás como é notório, se pensarmos que as políticas agrícolas e de
desenvolvimento rural constituem a maior fatia de despesa da instituição até aos
nossos dias (Favareto, 2006).
Há, de facto, que reforçar "(...) a centralidade que a questão dos espaços
rurais - seu surgimento, sua dinamização - vem assumindo no debate sobre a
própria construção da União Europeia e em torno da qual se expressa uma grande
diversidade de interesses, de grupos sociais e de regiões particulares. Neste caso, o
"rural" se constitui como um locus de onde emergem questões, conflitos e rupturas."
(Wanderley, 2000, pág. 27).
Tendo este peso na conjuntura política à escala Europeia, importa
desconstruir as motivações estratégicas e ideológicas por detrás das orientações
políticas que rodeiam as questões rurais, até porque estas acabam por influenciar de
forma intensa não apenas e, obviamente, as políticas nacionais e locais, mas
principalmente a forma como, a estas escalas, se constroem os discursos e se
perspectiva a situação do mundo rural e dos seus problemas (Billaud et al., 1997).
De facto, a substituição de uma abordagem sectorial por uma perspectiva
territorial das questões rurais, operada com a reformulação da PAC (Política Agrícola
135
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
Comum) na década de 80, veio a desencadear a consolidação de um novo
paradigma de desenvolvimento rural, não só no âmbito dos programas europeus,
mas em geral nos discursos sociais sobre estas matérias (Veiga, 2004).
O
aperfeiçoamento
deste
pacote
de
medidas,
um
dos
primeiros
compromissos políticos à escala comunitária, culmina com o programa LEADER (já
na década de 90), cuja filosofia de intervenção tem resistido até à actualidade,
enquanto orientação estratégica e posicionamento ideológico a manter, perante os
desafios que se apresentam às áreas rurais. Falamos de uma estratégia de
desenvolvimento baseada na diversificação funcional e na rentabilização dos
recursos culturais e naturais locais, que pretende estimular o empreendedorismo
endógeno e, assim, fazer recuar progressivamente a dependência subsidiária, que
ficou como consequência dos apoios à actividade agrícola da PAC (Gray, 2000).
Reforça-se discursivamente a importância do potencial local e da capacidade
de endogenamente serem tomadas as rédeas da reanimação económica, bem como
de diminuir a aposta na agricultura, naquilo que parece ser uma forma de reduzir a
despesa pública com o sector. Por um lado porque o sector de maior exigência
subsidiária (o primário) é estimulado a perder peso relativo e, por outro, porque se
consolida a substituição de uma lógica de grande intervencionismo público, para
uma modalidade em que a UE dá maior espaço às supostas iniciativas privadas de
negócio. Ainda que se mantenha o apoio a estes projectos, não estamos mais
perante a sustentação financeira de um sector produtivo, mas antes de uma
estratégia de estímulo ao pequeno empreendedorismo, acompanhado caso a caso,
negócio a negócio.
A redução da dependência subsidiária ou o "desmame" da PAC e em geral da
despesa pública com as áreas rurais, que como dissemos anteriormente, constituía
a maior fatia do orçamento da UE, pode constituir, de facto, pela sua importância
económica, uma das grandes motivações políticas para a disseminação deste
discurso e projecto de desenvolvimento para o mundo rural (Ray, 2000). Mas
podemos ir mais longe, se pensarmos que esta pode ser uma forma de recuperar a
confiança nas instituições europeias, após anos de grande conflituosidade social,
resultante da implementação da PAC, devido ao grande prejuízo que esta
representou para muitas das áreas rurais (principalmente nos países do Sul da
Europa), subitamente desprotegidas e marginalizadas num quadro competitivo,
assimétrico e feroz (Ray, 2000).
136
Capítulo V
Esta estratégia política pós PAC para as áreas rurais, faz transparecer uma
sensibilidade e um interesse reforçado nos patrimónios locais, na participação
popular, na iniciativa privada, nas especificidades de cada contexto, etc. Ora, a
estratégia de estimular a rentabilização destes elementos pode, de facto,
apresentar-se como um interesse quase humanitário de dar voz à participação
popular na gestão dos seus valores e territórios, o que não deixa de ser muito
favorável à imagem da União Europeia, à escala regional e local (Ray, 2000).
Estreitar as distâncias entre as localidades e as instituições europeias, cicatrizar
algumas das feridas deixadas pela conflitualidade e pelas polémicas em torno da
PAC, criar ou recuperar a confiança na autoridade política europeia e reforçar assim
a sua legitimidade, bem como, melhorar a sua imagem institucional, constituem, sem
dúvida, boas razões para que se mantenha o interesse na continuidade desta
estratégia.
Podemos
ainda
acrescentar
que
este
novo
paradigma
político
de
desenvolvimento, ao apelar ao envolvimento privado e endógeno, ensaia o reforço
da legitimação da sua agenda estratégica, na medida em que ao integrar a
participação local na sua aplicação, acaba por consolidar uma espécie de conivência
para com as orientações políticas que estão a montante (Ray, 2000). Em suma, com
esta estratégia de reinvenção dos territórios rurais, legitimam-se as escolhas
políticas da UE, que melhora a sua imagem junto das comunidades locais, diminuise a despesa pública com a agricultura e com os territórios rurais e recupera-se,
assim, de algumas das mazelas deixadas pela PAC. Desta feita, este parece
constituir um conjunto de interesses políticos suficientemente fortes, para manter a
convicção no projecto de ruralidade que discutimos e para angariar esforços e
consensos, em torno da sua aplicação.
A nova ruralidade começa a ser consolidada nos documentos e políticas da
UE e é principalmente através destes que se dissemina o discurso de valorização do
potencial consumível do rural e dos seus produtos (Hadjimichalis, 2003). São as
políticas europeias que ensaiam a aplicação da visão urbano-cêntrica da ruralidade
e é o discurso europeu que, permanentemente, reforça a importância que a
preservação, do rural ambiental e patrimonial, tem para o bem da sociedade como
um todo (Gray, 2000). No entanto, deve ser dito que os interesses políticos, latentes
às políticas europeias de desenvolvimento rural, estão associados por seu turno a
137
A urbanidade deste projecto de ruralidade – estratégia, representações e interesses
interesses
culturais,
económicos
e
territoriais,
como
os
que
discutimos
anteriormente.
Neste sentido, a mudança de abordagem estratégica às questões rurais, com
a revisão da PAC e a posterior criação do programa LEADER, corresponde ao fim
de um longo período, em que o lobby do sector agrícola representava um grupo de
pressão poderoso, às escalas nacional e europeia. Este parece ter sido suplantado,
pela influência dos interesses das classes médias urbanas, cujas práticas de
consumo ultrapassam os limites da cidade e se estendem progressivamente sob os
territórios rurais, onde vivem, onde passam férias, onde depositam os seus planos
para a idade da reforma, onde ancoraram as suas identidades culturais, onde
recuperam a esperança no futuro, onde encontram um sentido para a existência,
onde compensam os desconfortos urbanos, etc. (Hadjimichalis, 2003).
Desta feita, as políticas e perspectivas em torno da ruralidade, através dos
discursos que lhes estão associados, acabam por revelar muito do que são os
grupos, as influências, os interesses e a forma como, em cada contexto, estes se
agigantam, para controlar os territórios e o rumo do seu desenvolvimento.
"For example, the imaginative shift in rural space, from production to
consumption/leisure, is a crucial cultural factor of enormous political, economic and
social significance as the assumptions, pre-images and stereotypes on which is
based predetermine decisions and strategies. Without grasping the significance of
geographical imagination it is impossible to identify the broad direction of changes in
Europe and on global scale." (Hadjimichalis, 2003, pág.104).
Concluindo, é interessante discutir estes discursos para que, ao traçar o
projecto de ruralidade que estes precipitam, consigamos vislumbrar o que se espera
dos territórios e o que se prevê que estes concretizem num futuro próximo. Por
outras palavras, ao agarrarmos o discurso para conhecer o projecto de ruralidade,
que se tenta politicamente materializar, estamos a conhecer as "mãos" que moldam
os territórios e as forças que as animam, bem como os contornos do modelo de
ruralidade que se estabelece como desejado. Posto isto e perante a urbanidade
destas dinâmicas, torna-se mais do que pertinente descer à cidade em busca da
anatomia dessas expectativas, sendo precisamente esta a linha que seguirá a
presente investigação.
138
VI.
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia
urbana ao encontro da ruralidade recriada
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem não anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...
1925, Alberto Caeiro (Fernando Pessoa).
9
Feito este caminho reflexivo e após ter sido discutido o discurso de
reinvenção da ruralidade nas suas diferentes dimensões, os argumentos que o
sustentam e legitimam, os interesses que o estimulam, e chegados à assunção do
seu carácter urbano, cumpre-se de certa forma um dos objectivos deste trabalho.
Isto porque uma das suas ambições centrais era a de conseguir articular
teoricamente, numa mesma reflexão, muitas das temáticas que rodeiam as
discussões em torno do mundo rural na actualidade, tratadas frequentemente de
forma dispersa e divorciada.
Pretendia-se contribuir para estes debates, fornecendo um quadro teórico e
reflexivo coerente e íntegro, que servisse de mote para múltiplas possibilidades de
trabalho de campo. Ou seja, proporcionar uma problematização base que, ao
suscitar diversas questões interessantes, articuladas, mesmo que diferentes,
pudesse sugerir e apoiar variados caminhos de investigação.
Apesar das questões ligadas ao desenvolvimento rural e ao potencial
patrimonial rural estarem bastante em voga na actualidade, quer no que toca às
suas políticas e programas, quer no que diz respeito ao turismo e aos produtos da
terra, às preocupações ecológicas, etc., não tem sido alcançada a articulação destes
debates, por via da sua relação e interdependência "na fonte". Achamos, de facto,
que o que aqui se ensaia é o colmatar dessa dispersão reflexiva, por via da
consolidação da indissociabilidade destas questões, e o destaque desconstrutivo da
9
Excerto do poema “Cesário Verde”, in “O Guardador de Rebanhos – Poema III”.
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
sua ascendência original, ou seja, do discurso hegemónico de valorização
estratégica de uma determinada versão consumível da ruralidade.
Integrando estes debates numa mesma reflexão e centrando-a no discurso
dominante (que agrega nas suas versões, argumentos, interesses, origem e
consequências, aquilo que são as principais expectativas e influências para os
territórios rurais na actualidade), compõe-se, como foi dito, um estímulo poderoso e
versátil para múltiplas possibilidades de pesquisa empírica. Não se pretendia,
portanto, direccionar demasiado a reflexão teórica central deste trabalho, para servir
o estudo de um objecto muito específico e circunscrito.
Pelo contrário, foi assumida a ambição clara de discutir o discurso
hegemónico de reinvenção da ruralidade, de forma suficientemente genérica e
abrangente, para lhe ser condizente (já que este é, em si, generalista e agregador
das diferenças, dirigindo-se aos territórios rurais como se estes fossem de definição
una, tivessem os mesmos problemas, recursos e soluções), mas sobretudo para se
adaptar à infinidade de realidades empíricas, que podem ser estudadas, sob o
prisma da hegemonia deste discurso de reinvenção, quer na sua dimensão política,
quer cultural, comercial, axiológica ou estratégica.
Para dar alguns exemplos ou sugestões, poderíamos partir deste quadro
teórico para estudar a ruralidade veiculada na literatura portuguesa de tradição
pastoralista, de Júlio Dinis ou Eça de Queiroz, por exemplo, pela influência cultural
que tem tido desde a modernidade em Portugal, ou até fazer a análise da
publicidade a serviços de turismo em espaço rural, para perceber quais os valores
simbólicos instrumentalizados nas estratégias de atracção de turistas urbanos. Seria
também interessante estudar a evolução do comércio de produtos rurais em espaço
urbano, ou a evolução do mercado das residências de férias em espaço rural,
identificar os públicos para estes circuitos comerciais, conhecer as suas motivações,
etc.
Assim, partindo desta reflexão teórica e com a noção da infinidade de
possibilidades de objectos de estudo, decidiu-se seleccionar um caminho de
investigação empírica que centrasse o olhar fora do mundo rural. Em primeiro lugar,
no reforço da ideia de que não estamos a discutir territórios determinados, mas
antes paisagens imaginadas ou projectos de território; segundo, porque nos parece
importante reforçar a urbanidade do discurso e ir à sua origem (a cidade); e por
último, porque as manifestações e influências do discurso em meio rural acabam por
140
Capítulo VI
estar
mais
estudadas,
nomeadamente
com
os
estudos
de
caso
sobre
patrimonialização e promoção turística de aldeias, parques naturais, tradições locais,
etc.
Desta feita, se este é um discurso urbano, importa ir procurá-lo no corpo da
cidade, encontrar os espaços em que este se materializa antes de "sair" da urbe e ir
moldar, pela expectativa, os territórios rurais. Importa conhecer os lugares onde se
alimenta a imaginação colectiva, em que se materializam os contornos das
paisagens rurais sonhadas e onde se "abre o apetite" urbano para os produtos rurais
e o rural enquanto produto.
Escolhemos, portanto, procurar na cidade espaços de recriação da ruralidade
idílica veiculada pelo discurso. Da sua análise, pretende ensaiar-se a desconstrução
dos projectos de bucolismo, que se adiantam sobre os territórios "reais", bem como
das paisagens desejadas dominantes, para assim reforçar a noção do que se espera
dos territórios rurais, dentro desta lógica de correspondência às expectativas do
mercado de consumo urbano.
Se, como vimos, os discursos precipitam projectos para os territórios,
configurando as paisagens reais através da influência das paisagens imaginadas,
em disseminação cultural, política, comercial, etc., nos espaços de recriação
combinam-se dois aspectos interessantes: o facto de serem a sua materialização,
mas simultaneamente, de manterem o carácter onírico e fantasioso, que só uma
encenação permite. Quase como um ensaio de lugar, conseguem ser, portanto,
paisagem real e paisagem imaginada, condensando num só espaço a materialidade
e a fantasia, as pedras e os sonhos.
Conhecer estes cenários acaba por ser um meio para conhecer os projectos
de lugar que, através dos discursos, exercem pressões sobre os territórios, forjando
os espaços que se aproximam, imprimindo o poder das expectativas, concretizando,
em suma, a hegemonia urbana sobre o mundo rural.
Obviamente que esta pesquisa não tem a pretensão de, ao analisar exemplos
de recriação da ruralidade em espaço urbano, alcançar resultados que possam ser
extrapolados ou tidos como representativos, daquilo que são esses projectos ou
expectativas. Pretende-se antes que esta incursão ao terreno sirva para incrementar
a reflexão que até aqui se tem desenvolvido, testá-la enquanto filtro para a análise
da realidade territorial e cultural e demonstrar o seu interesse, enquanto quadro
teórico de base para novas pistas de investigação.
141
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
Recapitulando, após a ponderação de diversas possibilidades de trabalho
empírico para ilustrar esta pesquisa, tornou-se claro que o objectivo seria o de
encontrar e desconstruir possíveis casos de recriação da ruralidade idílica no corpo
da cidade. Desta feita, através de algum trabalho de prospecção e selecção, tomamse dois casos de suposta recriação da ruralidade e desce-se ao terreno para
perceber se, de facto, podemos afirmá-lo e, mais ainda, se estamos perante a
recriação de uma ruralidade depurada e bucólica, como a que é veiculada pelos
discursos dominantes, que servem de tema ao presente trabalho de investigação.
O objectivo desta investigação empírica é alcançar um entendimento profundo
dos dois casos seleccionados e perceber se podemos considerá-los exemplos de
recriação da ruralidade idílica, tradicional e natural que temos vindo a discutir. O foco
de análise centrar-se-á assim nas motivações, projectos e estratégias que
concretizam a suposta recriação da ruralidade nos casos estudados, bem como na
sua utilidade pública e funções sociais. Ensaia-se, portanto, uma avaliação do seu
carácter ou potencial bucólico e cenográfico, em articulação com a discussão dos
contornos da ruralidade desejada, que é alimentada pelo discurso urbano.
Não se espera representatividade dos dois casos analisados, nem que a partir
da sua análise possamos extrapolar ilações para outras cidades, outros casos de
recriação, outras paisagens, ou outras ruralidades. Pretende-se sim alimentar o
debate e a reflexão em torno destas questões e, sobretudo tentar contribuir para a
identificação das linhas que desenham a ruralidade desejada em espaço urbano,
linhas essas que servem de molde para forjar os territórios reais, por via da pressão
de desenvolvimento que é imposta ao mundo rural, naquilo que é a sua reintegração
nos mercados de consumo capitalistas e urbano-cêntricos.
Dos espaços de recriação, dos lugares encenados e "acondicionados",
acabam por ser (re)alimentadas as paisagens rurais imaginadas (que inspiraram em
primeiro lugar a sua criação), ao mesmo tempo que se precipitam modelos para
forjar os territórios reais, engolidos na voragem das expectativas e dos interesses
urbanos de consumo e recreação, bem como dos estímulos políticos e económicos
ao seu desenvolvimento patrimonial e turístico.
Posto isto e perante o objectivo de ir à cidade procurar pelos lugares em que
se alimenta essa ruralidade desejada, restava decidir qual a cidade que serviria de
meandro para essa busca e, dentro dela, dos casos, em redor dos quais, se
centraria a pesquisa e a partida para a reflexão. Escolhe-se então a cidade do Porto
142
Capítulo VI
(41,5 Km2 e cerca de 265 mil habitantes10), por ter uma dimensão considerável,
principalmente tendo em conta a sua área metropolitana, mas ao mesmo tempo
estar muito ligada, pela localização, concentração de serviços, equipamentos e infraestruturas, bem como pela influência cultural, económica e política, a todo o Norte
de Portugal.
“Toda a actividade da Região Norte se desenvolve à volta deste centro
urbano, em forma de círculos concêntricos, cuja importância se vai esbatendo à
medida que o raio aumenta e portanto a distância ao Porto se vai tornando maior.”
(Ayres, 1981, pág. 204).
Funcionando como a "capital" do Norte de Portugal, o Porto acaba por
representar, na sua urbanidade indiscutível, uma região de grande tradição rural e
palco de uma ampla aplicação das estratégias de desenvolvimento rural, mais
centradas no potencial estratégico dos patrimónios culturais e naturais. A região
(que combina Minho, Douro Litoral e Trás-os-Montes) é a zona do país com a maior
concentração de Parques Naturais, o maior número de produtos de origem
classificada, entre os quais se destaca o Vinho do Porto, que foi o primeiro produto
no mundo de origem protegida (por via dos esforços de protecção do Marquês de
Pombal) e, finalmente, de maior concentração e crescimento de equipamentos de
turismo rural e de natureza. De facto, no que diz respeito ao turismo em espaço
rural, a região norte acumula 44% da oferta (dados de 2008) (Silva, 2009).
“Tal situação estará associada ao facto de ser no Norte que encontramos o
maior número de estruturas físicas susceptíveis de adaptação ao turismo e um
espírito mais empreendedor por parte dos proprietários. É nesta área do país que
existe o maior número de solares e casas apalaçadas, muitos deles afectos ao
turismo de habitação, especialmente no Minho, que é justamente considerado o
berço desta forma de alojamento turístico.” (Silva, 2009, págs. 67/68).
Sendo uma cidade com um passado rural muito recente, devido a uma
expansão urbana tardia e exponencial, na segunda metade do séc. XX, o Porto
caracteriza-se por ter um tecido social fortemente ligado ao mundo rural, identitária,
histórica e demograficamente. A sua recente expansão e consolidação urbana e
metropolitana e o forte êxodo rural que sempre serviu para aumentar a população da
10
Dados do Instituto Nacional de Estatística, Sensos de 2001.
143
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
cidade, explica a estreita ligação de uma grande parte da sua população à vida rural
e, em grande medida, a uma origem regional.
Assim, reforça-se o interesse de escolher o Porto como ponto de partida,
muito pela eventualidade desse apelo cultural e histórico das origens rurais, mas
também pela proximidade com uma região que se projecta económica e
identitariamente por via do seu potencial patrimonial e natural dominantemente rural.
A cidade do Porto, funcionando quase como a “ponta urbana de um iceberg
regional”, que ensaia o seu desenvolvimento dentro do que destacamos como o
conjunto de estratégias de valorização do potencial patrimonial rural, acaba por ser,
por um lado, o seu consumidor mais imediato e, por outro, a “montra” daquilo que
mais se insinua no mercado de consumo.
Por outras palavras, acaba por ser na cidade que mais se alimentam as
representações, que projectam a ruralidade nos circuitos de consumo urbano e
onde, de forma mais intensa, são geridas estas economias simbólicas. É na cidade
que se define a ruralidade desejada e as linhas com que esta se desenha nas
imaginações e, posteriormente, nos territórios. Portanto, tendo o Porto esta
importância e influência estratégica no contexto da região Norte e tendo esta, tanta
importância e poder de influência, no que são as dinâmicas económicas e culturais
rurais, à escala nacional, pelo facto de ser a zona do país de mais extensa e
profunda implementação das estratégias patrimonialistas de desenvolvimento rural,
tomá-lo como ponto de partida para esta fase da pesquisa acabou por ser uma
decisão lógica e até estratégica.
Dentro da cidade, era necessário encontrar os tais espaços de recriação da
ruralidade e assim tentar conhecer os seus contornos. No Porto destacam-se dois
aparentes exemplos de recriação da ruralidade que importava explorar, pelo seu
interesse e protagonismo, já que estão ambos integrados nos dois maiores parques
urbanos públicos da cidade e representam origens e épocas diferentes de
valorização da ruralidade idílica11.
Um, integrado no Parque de Serralves, criado na primeira metade do séc. XX,
dentro do que era a influência da tradição romântica do séc. XIX, e de origem
privada, fruto do poder económico de um aristocrata ligado à indústria têxtil, de
educação refinada, com grande influência cultural europeia. E um outro, de iniciativa
11
Ver mapas em anexo para localização precisa da cidade do Porto no território nacional, dos dois parques
urbanos referidos no espaço da cidade e, dentro destes, de ambos os objectos de estudo.
144
Capítulo VI
pública (CMP – Câmara Municipal do Porto), bastante recente, inaugurado na última
década, resultante da recuperação de uma zona de pequenas quintas e integrado no
Parque da Cidade do Porto.
Ao primeiro exemplo chamaremos Mata-Sete, nome original do lugar onde foi
construída a quinta que tomaremos por objecto e, ao segundo caso, daremos o
nome de Núcleo Rural de Aldoar (NRA), que é aliás a sua denominação oficial e
pública. Mas antes de avançarmos com a apresentação dos casos tomados como
objecto nesta parte da pesquisa, devem ser esclarecidas as opções metodológicas
que pautaram o trabalho de campo.
1. Notas Metodológicas
A parte empírica da presente investigação tem por base o trabalho de campo
realizado ao logo dos primeiros quatro meses de 2010. Este serviu-se de uma
metodologia qualitativa para concretizar uma abordagem compreensiva dos dois
objectos seleccionados. Uma combinação de diferentes técnicas, permitiu uma
recolha de material rica e extensa, cuja análise autorizou uma problematização dos
objectos, pautada pela destreza e pela segurança que se exige numa pesquisa
desta natureza.
Especificando, desenvolveram-se diversas visitas, a ambos os espaços, para
conhecê-los e perceber os seus quotidianos e foram tiradas cerca de 250 fotografias
para análise posterior. A propósito, assinala-se que uma selecção destas fotografias,
devidamente legendada, está disponível para consulta em anexo, para ilustrar o
corrente capítulo, facilitar o seu entendimento e permitir ao leitor interpretar e
verificar por si próprio, algumas das ilações apresentadas.
Salvaguarda-se igualmente, que não faremos remissões foto a foto, no corpo
do capítulo, para não criar demasiadas interferências à leitura e para evitar que o
mesmo caia num registo demasiado descritivo. Também por isso, optámos por uma
legendagem mais detalhada (das fotos presentes em anexo), pontuada por algumas
remissões comparativas, no caso do NRA, já que (para este objecto) apresentamos
fotografias relativas a dois momentos diferentes.
Pelo facto de termos tido acesso ao levantamento fotográfico feito ao NRA,
antes das obras de requalificação, pudemos apresentar uma selecção de fotos
desse período, para ilustrar e demonstrar o alcance da sua transformação,
145
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
nomeadamente por comparação com as imagens tiradas recentemente (durante o
trabalho de campo). Desta feita e para esclarecer qualquer tipo de dúvida a este
respeito, basta consultar a selecção fotográfica em anexo.
Foram igualmente desenvolvidas várias conversas informais, circunstanciais
ou com marcação prévia e seis entrevistas semi-directivas com marcação prévia e
gravação em formato áudio com pessoas que, pela sua vida profissional, estiveram
ou ainda estão envolvidas com os objectos em estudo e, portanto, em posição de
prestar esclarecimentos e contribuir com informações interessantes para a pesquisa.
Distinguimos as entrevistas das conversas informais, pela existência ou inexistência
de guião orientador preparado, senão com perguntas, pelo menos com tópicos de
conversação a abordar.
Sobre aspectos relacionados com o Núcleo Rural de Aldoar tivemos a
oportunidade de falar com:
Arq. João Rapagão (autor do projecto de recuperação do espaço);
Dr.ª Maria João Vasconcelos (historiadora, autora do estudo de
levantamento patrimonial do NRA, quando ainda se cogitava a hipótese
de transformá-lo no Pólo Rural do Museu da Cidade do Porto e uma das
primeiras pessoas a valorizar e alertar para o seu potencial patrimonial);
Dr.ª Maria do Céu Moreira (responsável pelo Centro de Educação
Ambiental do NRA) - conversa informal, não transcrita;
Eng. Orlando Gaspar (Vereador do Ambiente da CMP na altura do
projecto de recuperação do NRA, mentor do projecto de recuperação e
autor da iniciativa de preservação do conjunto).
Sobre o Mata-Sete, sua história, evolução e função educativa realizámos
entrevistas com:
Dr.ª. Teresa Andresen (actual directora do Parque de Serralves e membro
da comissão instaladora de Serralves, uma das primeiras pessoas a
entrar e intervir no Mata-Sete depois de ter passado para o domínio
público);
Arq. André Tavares (autor do livro "Os Fantasmas de Serralves" que
resulta de uma profunda investigação sobre o processo de construção do
projecto de casa/jardim/quinta do Conde de Vizela);
146
Capítulo VI
Eng. Elisabete Alves (coordenadora do serviço educativo do Parque de
Serralves na actualidade);
Dona Teresinha (antiga caseira do segundo proprietário da quinta, Delfim
Ferreira, moradora do espaço por cerca de cinquenta anos) – conversa
telefónica informal, não transcrita;
Arq. Nuno Tasso de Sousa (especialista na obra do Arq. Marques da
Silva, autor do conjunto) – conversa informal, não transcrita.
Durante as visitas, as entrevistas e algumas incursões a bibliotecas, centros
de documentação, livrarias, lojas, páginas Web, entre outros locais de interesse, foi
recolhido um considerável número de material documental, literário e alguns outros
elementos relevantes (fotografias, livros, artigos científicos, estudos, mapas,
merchandising, folhetos, etc.) que vieram incrementar o conjunto de pistas e
objectos a aprofundar e analisar.
Deve ser dito que o encadeamento das conversas, das entrevistas, das visitas
e dos momentos de recolha de materiais foi pouco programado e foi sendo
precipitado pelas pistas e sugestões que iam surgindo, segundo o ritmo do próprio
trabalho de campo. Ou porque um entrevistado sugeria uma conversa com outra
testemunha, ou porque fornecia um documento que levava à busca de um novo
elemento ou material, ou até porque na pesquisa e posterior leitura de um artigo, se
abriam novas dúvidas que suscitavam o contacto com outras testemunhas
estratégicas, outros textos, documentos, olhares, perspectivas, etc.
Mesmo no caso das entrevistas com marcação prévia, semi-directivas, em
que se contactava a pessoa em causa com antecedência, explicando o motivo do
interesse na entrevista e todo o trabalho de investigação por detrás da incursão ao
terreno, não foi uma preocupação preparar os guiões muito estruturados,
precisamente porque se pretendia que a cadência do raciocínio do entrevistado e os
conteúdos por ele abordados, não fossem podados por eventuais ideias prévias do
que era esperado ouvir.
No entanto, alguma orientação foi dada, por via de perguntas ou pelo
lançamento de tópicos ou temas de conversa, para que fossem esclarecidas as
principais dúvidas da pesquisa. Nomeadamente, se estamos, de facto, perante dois
casos de recriação da ruralidade, se esta é a ruralidade idílica e depurada, que é
veiculada pelos discursos políticos, culturais e comerciais dominantes e qual a
147
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
história, as motivações, os contornos e as estratégias de concretização desses dois
projectos.
Importante é também relembrar que, logicamente, o convite para a entrevista
e a explicação da temática do trabalho, bem como, da motivação por detrás da
mesma, podem ter tido, por si só, uma influência na forma como as pessoas
contactadas conduziram os seus discursos sobre o objecto em causa. De qualquer
forma, foi sempre uma intenção e orientação clara, tentar dar às entrevistas
realizadas a aura de conversas informais, em que o interlocutor tivesse o máximo de
liberdade para conduzir o encadeamento dos conteúdos e das suas opiniões, com o
mínimo possível de perguntas estruturadas, precisamente para não influenciar a
relevância dada a cada item, ou a forma como se expunham os pontos de vista.
Comparativamente, pode ser dito que o volume de informação recolhido em
torno dos dois objectos é equivalente, não havendo grandes desequilíbrios, mesmo
perante algumas diferenças. Isto porque, se pensarmos por exemplo que, no caso
do Mata-Sete, a literatura científica é mais abundante, mesmo que não
especificamente sobre a quinta, mas em torno de Serralves, no caso do NRA,
apesar da escassez de estudos científicos relacionados, o material documental
original, sobre o projecto de recuperação do espaço e sua abertura ao público, foi
bastante acessível, acabando por ser compensada a diferença.
Desta feita, mesmo estando um dos objectos integrado numa Fundação, com
centro de documentação e biblioteca próprios, e o outro, eventualmente por ser
municipal e estar integrado num parque público, não ter uma estrutura de
preservação de memória tão visível ou organizada, não foi sentida uma grande
discrepância no volume de informação disponível.
Talvez pelo facto de o projecto de recriação do NRA ser mais recente e pelo
contacto com o Arquitecto João Rapagão (um dos autores do projecto) e com o
antigo Vereador da CMP Orlando Gaspar (de quem foi a iniciativa de aproveitamento
do conjunto) se terem verificado muito frutíferos, no que diz respeito à cedência de
material documental sobre o caso. Ou até mesmo porque ainda existem algumas
dúvidas e lacunas na documentação sobre o processo de construção do complexo
casa/jardim/quinta de Serralves e em torno da sua história. O que é facto é que foi
logrado um volume de material recolhido bastante equilibrado para os dois objectos
e com bastante interesse para ilustrar a pesquisa.
148
Capítulo VI
Para facilitar a análise, organizando e sintetizando a informação recolhida,
foram realizadas diversas tabelas resumo, disponíveis em anexo para consulta
integral, cuja leitura oferece uma noção clara dos conteúdos das entrevistas, da
documentação, das fotografias e de todo o restante material. Estes quadros resumo
estão divididos e organizados para que o primeiro ofereça uma síntese da
caracterização genérica do objecto, o segundo enuncie todo o material recolhido e
os restantes três sistematizem os seus conteúdos, segundo o tipo de suporte.
Por outras palavras, na primeira tabela (Tabela síntese de caracterização e
análise – 1.1 e 2.1) resume-se toda a caracterização do objecto, segundo diversos
critérios de análise, a saber, a sua história e localização, as construções e
equipamentos que contém, a sua fauna e flora, estilo arquitectónico e decorativo e
actividades que nele têm lugar, em dois momentos diferentes (um primeiro
destacado no passado e o segundo nos meses correspondentes à realização do
trabalho de campo).
É também incluída na tabela a informação respeitante aos equipamentos
comerciais, apenas existentes no caso do NRA. Esta caracterização específica é
organizada e concretizada pelas seguintes categorias: tipo de actividade comercial,
produtos vendidos, espaço ocupado, estilo decorativo da loja. Finalmente há ainda
espaço no quadro para acrescentar outras observações suplementares, que
eventualmente não tenham tido lugar em nenhuma das outras entradas da tabela.
O segundo quadro (Tabela resumo do material recolhido – 1.2 e 2.2) tem
lugar para o registo de todo o material angariado durante o trabalho de campo,
dividido por várias categorias, listando-se separadamente as entrevistas e conversas
realizadas, o material documental conseguido, a literatura consultada, o número de
fotografias cedidas ou tiradas e outros elementos suplementares, que possam ter
sido considerados.
Finalmente, foram criadas mais três tabelas para resumir os conteúdos das
entrevistas (1.3 e 2.3), do material documental recolhido (1.4 e 2.4) e das fotografias
(1.5 e 2.5), separadamente, sendo que, no caso do Mata-Sete, a síntese foi
adaptada para incluir outros materiais de interesse, que não necessariamente
documentais.
Com este exercício de síntese e organização das informações e materiais
recolhidos ou, em suma, dos elementos de caracterização de ambos os objectos,
era pretendido lograr uma visão geral e, ao mesmo tempo, detalhada e rigorosa, de
149
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
toda a matéria-prima de análise extraída. Neste tipo de incursão ao terreno, em que
se combinam diversas técnicas de investigação, materiais e conteúdos, sob um
intenso trabalho de observação e recolha, nem sempre é fácil sistematizar e
organizar com rigor todos os resultados e elementos, pelo que se exige um esforço
acrescido de síntese e arrumação das informações.
Ora, tratando-se da análise de dois objectos distintos e, portanto, de
diferentes fontes, materiais, suportes, testemunhas, etc., mais importante se tornava
sistematizar a informação através de critérios de organização e síntese
semelhantes, para que fosse possível lograr uma análise equilibrada e coerente de
ambos os casos em estudo.12
São precisamente os resultados deste trabalho de recolha e análise que
iremos apresentar, enquadrados na reflexão e problematização maior que tem lugar
nas próximas páginas e que pretende partir dos dois casos de suposta recriação da
ruralidade, para tentar agarrá-la, enquanto o projecto de paisagem que é precipitado
discursivamente, em tantas esferas da vida social.
Começaremos pelo Mata-Sete.
2. Dois Projectos de recriação da ruralidade idílica?
2.1
A Quinta do Mata-Sete
A Quinta do Mata-Sete está integrada naquilo que é vulgarmente chamado de
Parque de Serralves e a sua história passa invariavelmente pela referência a Carlos
Alberto Cabral (Segundo Conde de Vizela). Isto porque os 18 hectares que compõe
a propriedade de Serralves foram por ele agrupados, por via de aquisições de
terrenos e permutas, para alargar as terras que herdara de sua família e concretizar
um projecto para a sua residência na cidade do Porto. O talhão do Mata-Sete resulta
precisamente de uma troca efectuada com o seu irmão, em mais uma diligência
esforçada para cumprir com um plano ambicioso de expansão da sua propriedade
(Andrade, 2009).
12
Sublinha-se que os mapas de localização dos objectos no espaço da cidade, as tabelas resumo referidas e
algumas fotografias seleccionadas e legendadas estão disponíveis para consulta em anexo.
150
Capítulo VI
A história deste processo, estando relativamente estudada e documentada 13,
não responde, contudo, de forma cabal e inequívoca às questões, que se prendem
com as motivações por detrás de tão ambicioso projecto, cujos limites se imaginam,
mas não se podem confirmar com toda a certeza. Especula-se, por exemplo, que o
Conde quisesse alargar a sua propriedade até ao Douro e que quisesse fazer da
Avenida da Boavista a sua mais visível frente, mas sobre estas e muitas outras
questões existem ainda algumas deficiências de documentação.
De qualquer forma, é possível traçar no essencial a história deste projecto,
que remonta ao princípio do século XX e marcou sem dúvida a história da cidade do
Porto. Fá-lo-emos em seguida, embora de forma breve, por já existir bastante
literatura que, de forma detalhada, tenta contar a história de Serralves, mas
sobretudo para nos podermos alongar mais, no que diz respeito especificamente ao
Mata-Sete.
Carlos Alberto Cabral (1895-1968), filho do Conde de Vizela, empresário da
Indústria Têxtil, herda em 1923, para além das fábricas, da fortuna e dos negócios
da família, uma propriedade na Rua de Serralves, composta por uma casa com
capela, jardim e alguns terrenos agrícolas. Esta funcionava com a casa de veraneio
da família que, como era costume no seio da classe mais abastada da cidade, saía
do centro para ir passar os meses quentes do ano à Foz ou a outras zonas
periféricas da cidade e que hoje fazem parte integrante do seu denso tecido urbano
(Tavares, 2007; Andrade, 2009).
Nos terrenos herdados já existiam jardins requintados, que serviam de
cenário para “chás dançantes” e outros eventos, um lago, algumas hortas e alguns
terrenos lavrados, aos quais foram acrescentadas, como foi dito, parcelas e quintas
vizinhas, para compor o actual Parque de Serralves.
Em 1925, Carlos Alberto Cabral vai a Paris para visitar a Exposição
Internacional das Artes Decorativas e Industriais, acompanhado pelo Arquitecto
Marques da Silva, mestre de arquitectura da cidade do Porto e responsável por
muitos dos seus edifícios emblemáticos (Andresen & Marques, 2001; Andrade,
2009). Ao que parece, esta experiência tem uma influência preponderante na
transformação, do que era a intenção inicial de remodelação da casa da família
13
Sobre a história detalhada do projecto de construção da Casa de Serralves consultar Andrade, Sérgio C.
(2009), Serralves - 20 anos e outras histórias, Porto, Fundação de Serralves e Tavares, André (2007), Os
fantasmas de Serralves, Porto, Dafne Editora.
151
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
Cabral, numa nova ambição de construir de raiz uma casa com jardim, segundo os
cânones arquitectónicos, decorativos e paisagísticos mais modernos.
Desta feita, auxiliado por Marques da Silva, contacta com os mais afamados
arquitectos e decoradores franceses (como Charles Siclis e Jacques-Émile
Ruhlmann) e inicia o projecto colectivo que resultou na casa de Serralves (Tavares,
2007). Esta fica pronta no ano de 1944 (após alguns atrasos provocados pela
Guerra Civil Espanhola e pela Segunda Guerra Mundial) e é considerada a obra de
Art Déco mais notável em Portugal, mesmo tendo sido construída numa fase
posterior ao período áureo deste estilo arquitectónico.
A casa caracteriza-se pela opulência e pela sua dimensão exagerada, sendo
quase desmesurada, aliás como toda a propriedade circundante. O seu requinte é
visível na qualidade dos materiais (mármores e madeiras exóticas) e a sua
importância é patente na avultada fortuna gasta na construção, bem como no tempo
e nos esforços empregues em todo o processo de junção dos diversos terrenos do
parque. De assinalar é também a preocupação em escolher os melhores artistas e o
cuidado com o detalhe, até ao mais ínfimo pormenor, naquilo que foi um projecto
hercúleo, principalmente se pensarmos que foi feito por um privado e não por uma
grande empresa ou instituição pública.
O jardim é encomendado ao paisagista Jacques Gréber, cujo projecto data de
1932 e é um exemplo único, na cidade, do cruzamento hábil e harmonioso, entre os
ideais românticos e modernos, na arte de fazer jardins. Este jardim, integra
elementos anteriores, como o lago, por exemplo, combina ambientes de traçado
organicista, numa estrutura geral bastante geometrizada, e alcança uma
modernização das suas influências clássicas, quase como uma reinvenção Déco
dos jardins franceses dos séculos XVI e XVII (Andresen & Marques, 2001).
A educação primorosa do Conde, com uma forte influência da cultura
francesa, as suas permanentes viagens à Europa, as suas estadias prolongadas na
sua casa em Biarritz, bem como os seus contactos pessoais com a “fina flor”
cosmopolita da cidade do Porto, tiveram uma influência determinante em todo o
projecto de Serralves. Mais do que um homem da indústria, Carlos Alberto Cabral
era um homem do mundo, um homem moderno e de grande sensibilidade, mas
sobretudo um homem determinado em transformar todas as suas influências num
projecto, que apesar de ter sido sempre colectivo, foi acima de tudo pessoal
(Andrade, 2009).
152
Capítulo VI
Apesar dos esforços e investimentos, Carlos Alberto Cabral e a sua esposa
Blanche Daubin tiveram poucos anos para desfrutar do complexo casa/jardim/quinta
em Serralves (apenas habitaram lá de 1944 até 1957), já que, devido a problemas
financeiros na sua fábrica de fiação, se viram obrigados a vender a propriedade. O
comprador foi outro industrial da cidade, Delfim Ferreira, que prometeu não
transformar a obra e preservá-la cuidadosamente na sua integridade. Foram
precisamente os seus herdeiros que, em 1986, venderam ao Estado toda a
propriedade para albergar um Museu de Arte Moderna.
Uma comissão instaladora prepara a abertura ao público da casa e do parque
de Serralves, que abre as portas à cidade em 1987, deixando de ser a misteriosa
“casa do Conde”, para passar a albergar actividades educativas e exposições de
arte. Com a institucionalização da Fundação de Serralves solidifica-se e materializase (em 1996) o projecto de criação de um Museu de Arte Contemporânea, reforçamse os trabalhos de preservação do património arquitectónico e natural deixado pelo
Conde de Vizela e consolidam-se as actividades de educação para a arte e para o
ambiente (Millan, 2000). Actualmente, o Museu e o Parque de Serralves são
visitados por cerca de 350 mil pessoas por ano e a sua projecção, prestígio e
utilidade pública chegam a ser incontestáveis.
Como um intrigante contraponto à casa e como remate de um jardim
desmesurado, aparece a quinta do Mata-Sete, situada na extremidade sul do
parque. Trata-se de um conjunto de edifícios rodeados de terrenos de cultivo,
aparentemente destinados a actividades relacionadas com a agricultura, projectados
pelo Arquitecto Marques da Silva em 1934. Os terrenos do Mata-Sete,
acrescentados à propriedade do Conde em 1918, por via de uma permuta, eram
previamente agricultados, constituindo já uma quinta com casa, jardim, horta,
palheiro, eira, pomar, etc., que foi demolida e transformada para criar a paisagem
que existe até à actualidade (Cardoso, 1992).
O conjunto é constituído por duas casas e cavalariça, uma delas de habitação
e a outra (desde sempre) chamada de pavilhão/salão de caça, ambas com fachadas
praticamente idênticas, unidas por um telheiro. Nas traseiras, existe também uma
construção que alberga uma adega e um celeiro, que completam o fechamento das
casas sobre um pátio interior, emparedado pelos próprios edifícios e por alguns
muretes complementares. Em redor deste “núcleo” existe ainda um estábulo
(aumentado posteriormente pela Fundação), um pequeno anexo que armazena
153
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
carros e alfaias agrícolas e uma eira acompanhada de um pequeno edifício de
apoio.
“As construções seguem uma disposição ortogonal e são construídas com
paramentos de granito em blocos contrafiados com asnas de madeira para a
cobertura em telha Marselha. Os lintéis de portas e janelas são em betão armado
aparente, com acabamento bojardado de modo a não contrastarem excessivamente
com as paredes de granito de que fazem parte. Nos cunhais, o depósito de água, as
chaminés das lareiras e os telheiros de protecção das entradas são desenhados de
modo a dissolver a racionalidade das formas e a conferir um toque pitoresco ao
conjunto.” (Tavares, 2007, pág. 277).
As suas funções originais, sugeridas pelos próprios edifícios e pelos nomes
que (perdurando no tempo) ainda hoje lhes estão associados, levam-nos a pensar
que, para além da casa de habitação e do salão de caça, as restantes construções
estariam directa ou indirectamente ligadas a actividades agrícolas. No entanto, pela
dimensão dos terrenos da quinta e pelo facto de o Conde ter outras propriedades
agrícolas, nomeadamente em Vizela, onde se localizava o Solar da família e detinha
uma grande propriedade vinhateira e agrícola, as dimensões e qualidade dos
equipamentos do Mata-Sete não deixam de ser despropositadas.
De facto, o Mata-Sete, desde a concretização do projecto de Marques da
Silva para o Conde de Vizela, não pode ser considerado propriamente uma quinta
de produção agrícola, no sentido em que o volume da sua produção parece ter sido
sempre irrisório e insuficiente para justificar a dimensão do seu celeiro ou da sua
adega. Assim, dúvidas se levantam em torno das motivações que estimularam a
criação do conjunto e das razões que terão levado a tamanho investimento e
cuidado na construção, orientada inclusivamente por Marques da Silva.
“Ele era o mestre da arquitectura do Porto, e o facto de ter sido chamado a
trabalhar para a família Cabral demonstra bem o grau de exigência desta.” (Andrade,
2009, pág. 20).
Nesta pequena quinta viviam, segundo o que foi apurado, alguns empregados
do Conde, substituídos após a venda a Delfim Ferreira, por um casal de “caseiros”,
que arrendava a casa e os terrenos agrícolas e que permaneceu até à última
década. O casal chegou a participar inclusive em algumas actividades desenvolvidas
no Mata-Sete, já enquanto equipamento público, transmitiu informações importantes
154
Capítulo VI
sobre a memória do lugar à comissão instaladora e colaborou com a administração
do Parque na manutenção do espaço, até à sua saída em 2008.
Actualmente e praticamente desde que a propriedade passou para as mãos
do Estado, a quinta serve para albergar a administração do Parque e grande parte
das actividades do Serviço Educativo da Fundação. As construções mantêm-se
exteriormente intactas, mas os interiores foram, em grande medida, transformados
para acolher as novas funcionalidades. Foi construído mais um estábulo, o pavilhão
de caça transformado em escritórios, o celeiro, o lagar e o armazém da eira em
espaços
para
actividades
educativas,
entre
outras
pequenas
alterações
arquitectónicas.
Apesar das significativas alterações de funcionalidade, o aspecto exterior do
edificado foi preservado intacto. Em redor das construções existem, por outro lado,
algumas alterações ou acrescentos, nomeadamente uma cabana de palha com chão
de madeira, recheada de mesas e cadeiras, bem como um bebedouro para
pássaros, ladeado de uma mesa em xisto, no meio de um concentrado de ciprestes,
que compõem a obra paisagística da artista Maria Nordman, uma pequena estufa e
possivelmente muitos outros detalhes que serão impossíveis de conferir.
Os caminhos de terra batida circundam os campos que estão delimitados por
sebes de madeira. Existe um prado que serve de pasto para os animais da quinta
(vacas, ovelhas e um burro) e vários tanques, uma represa, um antigo poço e uma
levada, quase todos originais. Podem ser vistos tractores em circulação e muitas
crianças a participar em actividades educativas. As chamadas “hortas pedagógicas”
(desenvolvidas nas oficinas que envolvem a comunidade escolar) têm localização
central, mesmo em frente à casa, rodeadas pela cabana de palha, antes do prado,
entre a instalação de Maria Nordman e os estábulos que abrigam os animais.
Não é possível saber se as vinhas e os animais que existem na actualidade
são em maior ou menor número do que nos primeiros anos do Mata-Sete, nem que
tipo de produtos agrícolas eram cultivados. O facto de existir um celeiro e um lagar
pressupõe que houvessem cereais e vinhas, em todo o caso, a extensão da
propriedade reservada para o cultivo, mesmo que este fosse muito produtivo, não
parece ser suficiente para “encher” tamanhos equipamentos.
De facto, somos levados a pensar que, tal como hoje, a quinta não fosse
primordialmente produtiva, mesmo que tivesse um trabalho de lavoura permanente,
155
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
coisa que não acontece na actualidade, tirando as pequenas hortas tratadas pelos
grupos escolares.
De qualquer forma, mais do que comparar o “antes” e o “depois”,
estabelecendo as principais diferenças entre a quinta do Conde e a quinta da
Fundação de Serralves, interessa aqui discutir, por um lado, se esta foi construída
enquanto recriação de uma qualquer ruralidade fantasiada e quais as motivações
por detrás disso e, por outro, qual a função social e o aproveitamento que é feito
deste espaço desde que foi aberto à comunidade e se este passa, de alguma forma,
pela exaltação de um eventual carácter bucólico.
Por outras palavras, interessa discutir o Mata-Sete enquanto eventual projecto
de recriação de uma ruralidade, discutir se essa ruralidade cabe no chamado Ideal
Rural veiculado pelos discursos culturais dominantes de valorização do mundo rural
e que tipo de aproveitamento tem sido feito desse eventual bucolismo, no quadro
das suas novas funcionalidades, enquanto equipamento público.
Em primeiro lugar, há que destacar novamente o facto de os equipamentos da
quinta serem desmesurados para as reais necessidades produtivas da propriedade
que, apesar de grande, não dispôs nunca de muitos terrenos de lavoura. De reforçar
é, também, o facto de o seu criador e proprietário inicial ter outras quintas realmente
produtivas, não fazendo grande sentido investir de forma tão intensa e cuidada nos
equipamentos de uma quinta de produção agrícola residual como o Mata-Sete.
“Desde sempre fiquei muito impressionada com a qualidade arquitectónica e muito
surpreendida pela dimensão dos celeiros e dos lagares, porque aquilo que havia à roda dos muros da
quinta eram umas ramadas de vinho americano, até já postas pela Teresinha e pelo Sr. Júlio e,
portanto, tudo aquilo era um bocadinho non sense, era seguramente uma estrutura “afuncional”, sem
uma função propriamente pré-definida, a não ser para resolver o problema da extremidade da quinta
14
(…)”. (Teresa Andresen ).
“O Conde Vizela manifestamente não precisava daquilo, daquele projecto para a sua quinta,
porque ele nunca viu a sua quinta como um espaço de produção, mas sim uma quinta da lazer, de
passeio e de percurso.” (Teresa Andresen).
“Porque esta é a segunda casa, ele vinha lá de Vizela, onde tinha as fábricas de têxtil, tinha lá
um casarão. (…) É uma casa enorme, que tem uma zona de vinhas que impressiona bastante
14
Arquitecta Paisagista. Actual Directora do Parque de Serralves e membro da Comissão Instaladora que
preparou a abertura da propriedade ao público. Uma das primeiras pessoas a entrar e intervir na quinta do MataSete, já enquanto equipamento cultural.
156
Capítulo VI
quando se vem da estrada. (…) Ou seja, ele tem esse espaço de produção agrícola nesse contexto,
15
portanto isto no Porto é só para fazer de conta.” (André Tavares ).
Nesta linha, faz sentido indagar qual a função e a motivação por detrás da
construção de uma pequena quinta, munida de todos os equipamentos comuns de
uma quinta de produção agrícola, numa propriedade cujo projecto de transformação
se pauta por uma orientação vanguardista e por uma ambição quase desmedida em
seguir as novas tendências da arquitectura, do design e do paisagismo europeu.
Se, por um lado, podemos interpretar este elemento como um apontamento
saudosista numa obra voltada para o futuro e, sendo assim, como um aparente
paradoxo, por outro, faz sentido olhar para a quinta precisamente como uma
manifestação das influências do mais requintado paisagismo europeu e como uma
provável aproximação à chamada Arquitectura Regional Francesa, em toda a sua
modernidade.
“O Conde é um homem de grande modernidade, das modas que vão no mundo e é um
homem que conhece muito bem a cultura francesa. Estes espaços eram comuns nos jardins…
Versailles era um dos casos típicos e não estou a comparar Serralves a Versailles, mas há memória
que se pretende reproduzir, de uma coisa para a outra… tem um grande palácio e depois tem o
chamado “l´Hameau de la Reine”, feito pelo Luís XV para a sua cortesã, um sítio idílico…portanto
Versailles tem também a sua versão rural erudita… Depois vemos isso nos grandes parques alemães
também…Há um parque na Alemanha, em Weimar, que é no rio Ilm, em que a certa altura temos a
cabana do Goethe. Hoje chegamos lá e é um parque urbano e depois há lá uma casinha rural onde o
Goethe fazia colecção de plantas, lia e escrevia…mas é um sítio perfeitamente romântico do século
XIX.” (Teresa Andresen).
“Nos anos 30, em 1937, quando se faz a quinta do Mata-Sete, na exposição de Paris, estava
uma espécie de Portugal dos Pequeninos, uma França mas à escala 1/1, com as várias regiões
francesas, como já se tinha feito em Turim e na Suíça, no final do séc. XIX, mas com essas lógicas
construtivas de grande racionalidade. O conde foi à exposição, porque o Porteneuve, que é um dos
arquitectos da casa, diz-lhe que tinha o trabalho atrasado porque ia apresentar na exposição e o
Gréber, que fez os jardins, também era o arquitecto chefe da exposição, portanto o conde foi à
exposição e deve ter achado graça àquilo para o seu jardim. Mas acho que a coisa não foi com a
intenção de fazer igual, mas mais pela noção de cultura que está ali subjacente e de relação da
construção e das formas com determinadas ideias… com essa ideia de que é possível construir
racionalmente coisas que tivessem essa expressão mais campestre e rústica.” (André Tavares).
De facto, ao olhar para o estilo arquitectónico e construtivo do Mata-Sete é
notório um grande racionalismo, apesar dos apontamentos rústicos e pitorescos que
15
Arquitecto. Autor do livro “Os Fantasmas de Serralves” (2007), Porto, Dafne Editora, resultante de uma
profunda investigação sobre o projecto da Casa de Serralves e respectivo processo de construção.
157
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
dão a aura “campestre” aos seus edifícios. Os materiais (pedra e betão) estão
expostos, assim como a transição entre eles, assiste-se a uma grande simplicidade
nos adornos, prevalecem as linhas direitas e a lógica ortogonal na organização do
espaço,
sendo
o
quadro
desenhado
sob
um
racionalismo
pragmático,
aparentemente paradoxal num espaço “inútil”.
“A quinta do Mata-Sete não revela nenhuma procura identitária baseada na
redescoberta de elementos formais do passado e sua reinvenção numa síntese
original, mas exprime uma grande racionalidade na organização dos processos
construtivos, que são expostos sem pudor e que, com essa exposição, revelam uma
imagem sugestiva e equiparável à construção popular. O carácter agrícola da função
e a necessidade de criar espaços ligados à tradição vernácula (espigueiro, eira,
adega, galinheiros, etc.) complementam essa proximidade da expressão do
construído com o imaginário rural propagandeado para a cultura portuguesa à
construção do conjunto.” (Tavares, 2007, pág. 279).
Assim, apesar da racionalidade do projecto e da construção, o ruralismo do
conjunto garante-se pela presença dos equipamentos agrícolas que são recorrentes
nas quintas do norte de Portugal (adega, eira, tanques, etc.), bem como pelos
apontamentos arquitectónicos pitorescos que dão detalhe aos seus edifícios
simples, como é o caso das grandes chaminés, dos alpendres, da cozinha com
mobiliário popular e forno de lenha, dos tectos com grandes vigas de madeira, etc.
Estas opções de estilo e nomeadamente a combinação entre a simplicidade estética
e construtiva com o detalhe pitoresco e popular, parecem estar, de facto, associadas
a uma forte influência da Arquitectura Regionalista Francesa16 (Tavares, 2007).
Esta corrente estilística e as políticas culturais na sua retaguarda, advogam,
de facto, o recurso e a preservação de elementos tradicionais e folclóricos, na
construção de um mundo moderno “melhor”. Incentiva-se a modernização e o
progresso que conservem activamente os patrimónios tradicionais, ao mesmo tempo
que
estes
se
tornam
mais
atractivos
pelo
aperfeiçoamento
que
só
o
desenvolvimento da técnica pode lograr (Whalen, 2007).
16
A chamada Arquitectura Regionalista Francesa nasce, ou pelo menos intensifica-se com a necessidade de
reconstrução rápida e massiva em França, após a Primeira Guerra Mundial, bem como da intenção política em
reforçar a identidade nacional, numa Europa em conflito e num tempo histórico pautado por grandes e rápidas
mudanças. Consistiu no estudo dos estilos arquitectónicos populares de cada região francesa, para a criação de
modelos construtivos de habitação familiar que, apesar de simples, económicos, equipados com as comodidades
modernas e de fácil reprodução, mantinham detalhes e características tradicionais, no sentido de perpetuar e até
reforçar os patrimónios identitários locais e trabalhar na criação de paisagens “tipicamente” francesas. Resulta
numa espécie de moderno pitoresco (Vigato, 1994).
158
Capítulo VI
Da mesma forma, ao nível da arquitectura e no que respeita o Mata-Sete, os
elementos rústicos são reinterpretados e combinados com o conforto e a qualidade
dos materiais e da construção. Assim, projecta-se uma quinta com belíssimos
equipamentos, materiais nobres, uma casa confortável, casas de banho modernas e
amplas, uma cozinha de decoração rústica mas com todos os apetrechos comuns
nas cozinhas urbanas da época, etc.
Esta clara combinação de referências à arquitectura popular, com o
modernismo das construções apresenta-se, de facto, como uma forte intenção de
louvar o ruralismo, mantendo lógicas construtivas racionais, métricas e tipicamente
urbanas (normalmente antitéticas da circunstancialidade desordenada e orgânica da
habitação rural). E se, num primeiro olhar, parece estranha esta combinação do
bucolismo ruralista com o racional e o moderno, tanto no estilo construtivo
regionalista, como no projecto de Serralves, de tanta audácia e luxo, devemos
pensar que a valorização das tradições, do passado, da natureza e (na sua
combinação) da ruralidade, acaba por ser um dos maiores sinais de modernidade e
até de contemporaneidade (Peer, 1989).
Na exposição Internacional de Paris de 1937, que o Conde Vizela visita, no
mesmo ano em que se constrói o Mata-Sete, existe um grande destaque da França
rural e do seu folclore, por via da mostra das casas regionais francesas, mas
também pela venda de produtos “da terra”, demonstrações de ofícios e artesanato,
desfiles de trajes tradicionais, etc. É patente uma forte intenção política de reforçar a
identidade francesa, por via do louvor e do reforço da ruralidade tida como
tradicional e das suas manifestações culturais, num tempo de grandes conflitos,
incertezas, anomia social e de rápida industrialização e urbanização (Peer, 1989).
As especificidades locais, as particularidades identitárias, a vida campestre,
os produtos artesanais e orgânicos são, na altura, tomados como objecto de
valorização, precisamente enquanto contraponto e quase como um antídoto para a
estandardização cultural, a “americanização” da sociedade e a produção
mecanizada e em massa, tidas como as manifestações ruins da industrialização, da
urbanização, mas principalmente da modernidade (Peer, 1989).
“In sum, then, the positive representations of folklore in the 1937 Exposition
did not constitute a disinterested tribute to rural and provincial folk. Instead, they
provided a nostalgic refuge from industrial capitalism in crisis.” (Peer, 1989, pág. 72).
159
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
Um mundo rural imaginado e colectivo era estrategicamente centralizado
como referência útil à modernidade, pelo seu poder de animar os valores sociais em
crise, acalmar as ansiedades culturais, mobilizar interesses políticos e promover
produtos regionais (Whalen, 2007). Este reencontro com as origens rurais do povo
francês garantia também uma ponte para o auto-entendimento e para o reforço da
identidade colectiva, sobretudo porque definia um património nacional e uma
unidade cultural, a partir dos patrimónios regionais e locais e suas particularidades
(Whalen, 2007).
De facto, se a consideração do património colectivo das nações, por via do
estímulo à valorização quase emocional das paisagens, no caminho para a
formação das identidades, é fruto do século XIX e da tendência neo-romântica, não
podemos, por outro lado, ler os últimos parágrafos sem associar estas estratégias
políticas e culturais, de instrumentalização do louvor à ruralidade, àquilo que é o
discurso actual correspondente e que se constitui como tema central desta pesquisa.
Sendo esta valorização dos patrimónios rurais uma resposta às crises e
ansiedades dos tempos e da civilização, sendo a ruralidade e os modos de vida que
lhes estão associados, apresentados como uma fonte de boas práticas e quase de
lições para a cidade e para a sociedade como um todo, tratando-se de uma
instrumentalização de referentes culturais, reforçados como tradicionais, para
satisfazer interesses políticos e promover bens de consumo, é impossível não tecer
paralelismos entre o chamado Regionalismo Francês do princípio do século XX, com
a tendência equivalente que se tem acentuado nas últimas décadas nas sociedades
ocidentais.
No passado, tal como hoje, a fantasia pastoral é vendida aos “parisienses”,
habitantes de grandes cidades e primeiras vítimas das suas ansiedades, de forma
mais sugestiva do que autêntica e, sobretudo, sob uma estratégia comercial
fortíssima, movida pelos interesses em alargar os mercados de consumo urbano e
animar os mercados locais no mundo rural, cuja rentabilização é exigida pelo
capitalismo, que não aprova o seu atraso e desaproveitamento, dentro dos exigentes
cânones do progresso.
“This strategy succeeded politically because it linked existing cultural interests
to emerging business practices.” (Whalen, 2007, pág. 55).
160
Capítulo VI
“Indeed, the commercialization of tradition potentially extended even to
lifestyles and landscapes which could also be packaged as objects of consumption.”
(Peer, 1989, pág. 73).
No passado, tal como na actualidade, promovem-se as referências culturais
rurais e seus patrimónios vernáculos no sentido de estimular o turismo, o comércio
de produtos rurais e a rentabilização capitalista do mundo rural, ao mesmo tempo
que se visa legitimar escolhas e tendências políticas e apaziguar as consciências,
em tempos de grande incerteza em relação ao futuro.
No passado, tal como nos dias de hoje, a imagem de ruralidade que é
veiculada e alimentada nos imaginários colectivos está longe da dureza do trabalho
agrícola, da modéstia das habitações, da imprevisibilidade das colheitas e de todos
os desconfortos e dificuldades que estão ligadas à vida no campo. Pelo contrário,
disseminam-se imagens que exploram a vertente tradicional, familiar, pastoral,
gastronómica e paisagística da ruralidade, por uma perspectiva eminentemente
positiva e quase que purificada. Desta feita, passa-se a ideia de que o mundo rural
funciona como uma reserva de perenidade cultural, harmonia com a natureza, saúde
e qualidade alimentar, serenidade e paz, valores familiares, seculares e tradicionais,
etc.
Neste sentido, se pensarmos nesta influência dos princípios do chamado
Regionalismo Francês no projecto do Mata-Sete e o interpretarmos como uma
leitura desta valorização da ruralidade tradicional, adaptada às exigências de
conforto e funcionalidade da vida moderna, é lógico pensar nele como uma recriação
da ruralidade idílica, segundo uma perspectiva urbana e contemporânea. E, sendo
esta uma parte importante do “projecto de representação” do Conde, não só
estamos perante uma recriação requintada da arquitectura popular portuguesa sob
uma perspectiva urbana, racional e de grande qualidade construtiva, como estamos
perante a elevação desta a elemento de ostentação e sinal de status. Ora, isto não é
mais do que uma valorização da ruralidade reinterpretada e destilada pelo filtro das
exigências urbanas, ao ponto de a considerar dimensão importante de um projecto
de tanta exigência, qualidade e investimento e, sobretudo, pautado por uma
modernidade sem precedentes, no contexto da cidade do Porto.
Assim sendo, a quinta, para além de funcionar como uma “solução” para o
final do jardim, resolvendo a sua transição com a área circundante (quase que
completamente rural e agricultada à data da construção da quinta) e dando escala e
161
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
limite a um jardim que, pela sua dimensão exagerada, está perto de perder a
domesticidade, deve ser sobretudo pensada como quinta de recreio à moda
europeia e como espaço de representação ou símbolo de status.
“A ideia do Conde de Vizela, de facto, é criar uma fantasia. Ele tem de dar uma solução ali em
baixo e, portanto, faz um núcleo rural, sobredimensionado. (…) Nos desenhos do Arquitecto Marques
da Silva, percebe-se que aquilo é manifestamente intencional, de recriar lá em baixo uma quinta de
ambiente idílico como contraponto aos seus jardins formais, com grandes alamedas, tanques,
lagos…” (Teresa Andresen.)
“No caso da quinta do Mata-Sete, (…) fazia parte do conjunto e colocava precisamente essa
contraposição entre a casa de representação, completamente cosmopolita a querer ser Paris e essa
representação do mundo rural. Mas acho que é mesmo uma questão de representação, pura e
simplesmente, aliás como toda a casa. Aquela casa não serve para nada, é assim uma espécie de
casa inútil, um casarão de 2000 m2 ou coisa assim, é claramente para mostrar e eu acho que é isso
que faz sentido. E para mostrar também essa preocupação e valorização do mundo rural e etc.”
(André Tavares).
Perante estas influências e motivações para o projecto da quinta do MataSete, é também importante discutir se, com a passagem do património de Serralves
para o domínio do Estado e a sua consequente abertura ao público e dinamização,
este carácter ruralista e temático foi aproveitado e alimentado. Por outras palavras,
importa pensar se o trabalho da Fundação e, nomeadamente, da Administração do
Parque e do seu Serviço Educativo, tem mantido a sua aura campestre e
aproveitado esse potencial simbólico, quer ao nível paisagístico (com a preservação
ou alteração do seu aspecto inicial) quer nas actividades desenvolvidas (com a
integração e utilização dos seus elementos e equipamentos ou, simplesmente,
tomando-os como sua moldura contextual).
Ora, como já foi referido, no que toca o aspecto exterior dos edifícios e sua
paisagem circundante, foi intenção da Fundação respeitar e preservar o projecto de
Marques da Silva e do Conde de Vizela e, neste sentido, não foram feitas grandes
alterações ao edificado, a não ser nos interiores, adaptados para as novas
funcionalidades. Foi também indiscutivelmente preservada a aura agrícola do
contexto, com a existência de animais de quinta, para os quais foram aumentados
os estábulos, com o cultivo de hortas com as crianças, com a presença de uma
meda de palha e de uma estufa, com a preservação de quase todos os tanques e
com o acrescento de novos pontos de água, com a manutenção dos terrenos de
cultivo para as pastagens, com a presença de tractores, videiras, sebes de madeira
e de muitos outros elementos que, de facto, perpetuam a ideia de que estamos
162
Capítulo VI
numa quinta agrícola, mesmo que não seja produtiva (aliás como se especula que já
acontecesse no tempo do Conde).
Como as principais intervenções paisagísticas que contribuíram para acentuar
o ambiente rural do espaço, devemos enunciar a construção da vacaria, para
possibilitar o aumento do número de animais na quinta, o desafogo da alameda que
vem do jardim até ao Mata-Sete (com a substituição de árvores e a retirada de uma
piscina que rematava o eixo de passagem), o que favorece a sua visualização desde
o caminho e, portanto, a sua valorização e destaque enquanto cenário, bem como a
transladação do horto da casa, destruído com a construção do Museu de Arte
Contemporânea e transferido para as imediações da quinta, para ser convertido em
jardim de plantas aromáticas (Millan, 2000).
Aliadas à cabana de palha e à estufa, por exemplo, estas opções acabam por
acrescentar potencial cénico à quinta, incrementando o seu carácter lúdico e
pedagógico, tendo em conta que existem mais animais e um horto de aromáticas,
mas sobretudo enriquecendo o seu leque de elementos iconográficos e cenográficos
e dando maior protagonismo paisagístico à quinta, não mais escondida atrás de
grandes árvores, como no passado, em que não era tão visível do jardim. De facto,
com as alterações efectuadas, as actividades desenvolvidas e com a vivência e
apropriação do espaço, a quinta tem ganho em diversidade de equipamentos e
elementos paisagísticos e tem desenvolvido muito o seu potencial educativo.
“Transferiu-se uma estufa e o jardim de aromáticas para o local onde está actualmente, como
memória a um espaço que tinha desaparecido e simultaneamente ampliou-se o espaço das quintas
para crianças. As aromáticas estão naquele nível mais alto e as hortas das crianças ocuparam uma
área muitíssimo maior do que tinha sido assumido inicialmente, portanto aumentou-se a vacaria,
instalaram-se as hortas e, simultaneamente, o celeiro e o lagar e a cavalariça foram sendo
transformados em espaços de educação ambiental.” (Teresa Andresen).
“Na estratégia de recuperação foi assumido que esta área da propriedade,
que tinha um carácter rural de qualidade e de excepção numa envolvente
densamente urbanizada, reunia a maior aptidão para introduzir, na quinta, uma
componente pedagógica de promoção da percepção da arte e da natureza.”
(Andresen & Marques, 2001, pág. 99).
De facto, enquanto espaço para actividades pedagógicas, subordinadas ao
projecto educativo da Fundação de Serralves (que pretende combinar a
sensibilização das crianças para a Arte e para a Natureza), o Mata-Sete tem
sobretudo acolhido (tal como o parque em geral) as que dizem respeito à educação
163
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
ambiental e científica, sendo que as artísticas têm no Museu o seu palco
preferencial.
Desde as visitas à quinta e ao parque (aos animais, plantas, árvores, etc.),
passando pelas oficinas regulares de manutenção das hortas ou de recolha de
material para análise científica e respectiva monitorização de resultados, debates e
pequenas actividades experimentais e laboratoriais, até aos eventos com as
famílias, que assinalam determinados momentos e festividades (como a desfolhada
e o magusto, o dia do ambiente, etc.), deve ser dito que existe um leque muito
completo de abordagens educativas (Marques, 1996; Millan, 2000). Organizam-se
também colóquios, seminários e exposições, dirigidos ao público adulto e é clara a
intenção de envolver pais, professores e a comunidade em geral no projecto
educativo, no sentido de tornar o processo de sensibilização ambiental e
alfabetização científica mais efectivo, abrangente e adaptado às necessidades do
nosso tempo histórico.
Apesar das transformações que têm ocorrido no trabalho educativo do parque
de Serralves, devido ao elevar das exigências (de eficiência e abrangência),
provocado pelo aumento acentuado do número de visitantes, sobretudo após a
abertura do Museu de Arte Contemporânea em 1996, o aproveitamento do carácter
rural do Mata-Sete permanece claro. Isto porque as actividades ligadas à sua
identidade de quinta, iconograficamente construída como agrícola (pela presença de
elementos geralmente associados a granjas produtivas, como as hortas e os
animais), se mantêm, mesmo com a progressiva preocupação em acrescentar
actividades de pendor mais laboratorial, ligadas às ciências naturais e ambientais.
Sendo verdade que o celeiro e o lagar se transformaram em pequenos
laboratórios e salas de actividades de educação ambiental e científica, não se
conservando pela sua funcionalidade original, parece continuar a existir a vertente
agrícola e rural do projecto educativo, já que este ainda contempla as hortas
pedagógicas e, mesmo que pontualmente, alguns eventos que reforçam supostas
tradições rurais, como a construção de espantalhos, por exemplo.
Se no início do projecto educativo de Serralves, este pendor para a realização
de actividades de quinta era uma tendência mais acentuada, com os anos a
abordagem científica tem ganho protagonismo. No entanto, o Mata-Sete é ainda
valorizado pela sua função social de aproximar as crianças da cidade, aos
elementos naturais e rurais esquecidos pela vida urbana, e é associado ainda à sua
164
Capítulo VI
função agrícola. Isto é patente se pensarmos, por exemplo, nos produtos vendidos
na loja de Serralves como sendo do Mata-Sete, como os cabazes e produtos como a
marca “Sabores de Serralves”, como compotas de frutas variadas, ervas aromáticas
para infusões e saquinhos de condimentos, que não sendo produzidos na quinta,
são associados a ela, perpetuando a ilusão (agrícola) que parece ter rodeado
sempre a sua função (lúdica e cénica).
“Esses equipamentos fizeram parte de toda a orientação para o programa, sempre
orientámos o Mata-Sete numa matriz rural e montámos o projecto dos espantalhos para aproximar as
crianças da vida do campo, da vida da natureza. (…) Tínhamos um velho jardineiro que tinha
trabalhado durante 50 anos em Serralves, o Mestre Sousa, mais o carpinteiro Mestre António, o Sr.
Júlio e a Teresinha e juntando os conhecimentos do carpinteiro, do lavrador, do jardineiro, montámos
uma quinta para crianças e continuámos sempre a fazer as cabanas de milho, a transmitir-lhes o que
os que sabiam fazer podiam ensinar. (…) E portanto era um entrosamento entre as pessoas e os
saberes das pessoas que estavam lá e as crianças e tudo associado ao ritmo das estações do ano.”
(Teresa Andresen).
“Depois temos também o projecto das hortas pedagógicas que está mais ligado à ideia de
rural, em que as crianças do pré-escolar vêm todas as semanas cultivar os canteiros em modo
biológico, aliás estamos a trabalhar sob o conceito de permacultura que é muito interessante e mais
uma vez é a ideia de promover a biodiversidade e o potencial da biodiversidade, inclusive na
produção orgânica de alimentos e também contactam com animais, com as árvores, etc. e muitas das
crianças são da cidade e nunca tiveram essa oportunidade e esse contacto é muito interessante.”
17
(Elisabete Alves ).
“Por vezes recriamos, quer com escolas, quer com famílias, ao fim de semana, alguns
momentos mais ligados à tradição rural, porque faz parte do imaginário, faz parte da história e faz
algum sentido. Por exemplo, tivemos a festa do Outono no ano passado, em Setembro, foi um
domingo todo, uma coisa lindíssima para as famílias, em que tivemos cá ranchos folclóricos, em que
se fez a desfolhada e andou um burro a passear e os miúdos a perceber a importância do burro,
porque representava a força e o trabalho, tivemos também espantalhos… (…) E é interessante
recuperarmos essas tradições e essas vivências. A minha melhor recordação foi de quando
estávamos a fazer uns espantalhos pequeninos que os pais faziam com as crianças e tínhamos
palha, pauzinhos, tecidos e eles iam fazendo experiências e o mexer com a palha foi completamento
inebriante para as famílias, eu só posso dizer que eram 19h já tinha terminado a festa do Outono, já
só tínhamos palha, não havia mais nada e toda a gente estava a fazer bonecos de palha com palha.
Ora eu acho que isto é algo a reflectir, talvez pela orgânica do material, pelo regresso às origens,
quer dizer, há coisas que acontecem que nem estão previstas e são profundamente interessantes e
depois estavam ali horas numa felicidade e depois desceu a luz do fim do dia e as pessoas estavam
mesmo bem... foi como uma ligação à Terra, foi fantástico.” (Elisabete Alves).
17
Engenheira do Ambiente. Coordenadora do Serviço Educativo do Parque de Serralves.
165
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
De facto, com a abertura ao público e respectiva dinamização, o Mata-Sete
parece ter ganho em potencial cénico, em complexidade iconográfica e em
protagonismo, não só no contexto envolvente (por estar mais aberto ao jardim e pelo
destaque, que a urbanização crescente, da zona da cidade em que se encontra, lhe
confere pelo contraste) como socialmente, dado o elevado número de visitantes que
recebe por ano (em crescimento nos últimos anos). Adicionalmente, este
protagonismo social e a sua utilização educativa vão acrescentando importância e
valor ao próprio lugar, sobretudo pelo reforço da sua função social.
Desta feita, o Mata-Sete não é apenas uma recriação da ruralidade, outrora
privada, que vai sendo aperfeiçoada e divulgada publicamente ao longo dos anos,
constituindo principalmente um espaço que alimenta a ligação dos habitantes da
cidade àquilo que é tido, à distância, como ruralidade, bem como ao conhecimento
dos saberes e imaginários, associados a um rural de pendor agrícola, numa versão
limpa, organizada, lúdica, educativa e agradável.
Por outro lado, sendo a Fundação de Serralves uma instituição de grande
prestígio nacional e internacional, conotada com arte contemporânea, arquitectura e
cultura em geral, o Mata-Sete na sua ruralidade depurada, acaba por reforçar e
actualizar a elevação/associação do bucolismo a bom gosto, como aliás já tinha feito
o Conde Vizela. De facto, tendo sido construída como uma fantasia de gosto
refinado para recriação e ostentação de status no passado, a ruralidade moderna e
limpa do Mata-Sete continua associada, ainda hoje, com contemporaneidade e
cultura.
Resumindo, o Mata-Sete não é apenas a recriação de uma ruralidade
amigável ao olhar urbano, mas sobretudo um seu catalisador, pela sua função social
de alimentá-la e perpetuá-la nos imaginários colectivos.
2.2
O Núcleo Rural de Aldoar (NRA)
Ao contrário do Mata-Sete, o Núcleo Rural de Aldoar nasce da valorização
patrimonial de um lugar e da vontade de preservá-lo, enquanto objecto mnemónico.
Se o Conde de Vizela, como um homem da modernidade, não poupou a casa da
sua família e, muito menos, a quinta que havia no local do Mata-Sete, para a
construção do seu projecto vanguardista, na actualidade, pelo contrário, é muito
comum a valorização dos vestígios do passado, numa perspectiva muito abrangente
166
Capítulo VI
do que pode ser considerado património. Sendo o NRA um projecto do final do séc.
XX, inaugurado já no novo milénio, acaba por ser fruto desta tendência e por revelar
o interesse público no passado e no que é elevado a património. Ao mesmo tempo,
é um exemplo da valorização de uma dimensão específica da memória colectiva,
mais concretamente, a que se prende com a ruralidade e com o passado rural da
cidade e dos seus habitantes. Por estas razões é um objecto de estudo muito
interessante e que importa analisar cuidadosamente.
O espaço do NRA está localizado na Freguesia de Aldoar, na Cidade do
Porto, mais precisamente no Beco de Carreiras, entre a Rua da Vilarinha e uma das
extremidades do Parque da Cidade (Nordeste), funcionando inclusivamente como
uma das suas entradas. Ora, o lugar que hoje constitui o NRA era, até ao inicio da
década de 90 (altura em que se realizaram os primeiros levantamentos e projectos
preliminares), um conjunto de quatro quintas de propriedade municipal, três das
quais habitadas por famílias ligadas à agricultura. Este conjunto estava confinado
entre a malha urbana densificada da freguesia de Aldoar (uma zona fortemente
residencial da cidade do Porto) e a vasta área destinada ao Parque da Cidade,
funcionando como uma espécie de enclave de ruralidade residual dentro da urbe.
As quatro pequenas quintas compunham um conjunto de quatro casas
idênticas (apesar de duas delas estarem ligadas entre si por um acrescento
posterior), rodeadas de múltiplos anexos, telheiros e galinheiros, um celeiro, três
eiras e dois sequeiros, tudo aconchegado por detrás de um muro que separava o
lugar do resto da cidade. Este muro do Beco de Carreiras tem abertura em quatro
portões numerados e é a única face visível do conjunto para quem passa na rua da
Vilarinha, como se este estivesse de costas voltadas para a cidade e apenas aberto
para as bouças, baldios e terrenos lavrados que, há pouco mais de duas décadas,
foram convertidos no Parque da Cidade do Porto.
Foi o pelouro do Ambiente da Câmara Municipal do Porto (CMP) que tomou a
decisão de preservar o conjunto, durante o processo de criação do Parque da
Cidade, para transformá-lo num equipamento público, preservando com isso alguns
vestígios do Porto rural. O facto das quintas serem de propriedade municipal
facilitava a intervenção e a sua localização privilegiada, numa das extremidades do
Parque da Cidade (ainda em construção na altura), garantia-lhe um certo
protagonismo. Estes dois factores potenciaram o interesse no lugar e foram tomadas
167
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
todas as diligências para concretizar um projecto de transformação das quatro
quintas em causa, num equipamento público.
Os seus habitantes foram realojados e foi encomendando um projecto de
transformação das quintas (entretanto realizado pelos Arquitectos João Rapagão e
César Fernandes) e que resultou na sua conversão em espaço comercial,
estabelecimento de hotelaria e num centro de educação ambiental. O lugar foi então
baptizado de Núcleo Rural de Aldoar e inaugurado em 2001, estando aberto ao
público até aos dias de hoje.
Deve ser dito, porém, que a valorização patrimonial deste lugar partiu
inicialmente do Pelouro da Cultura da CMP, mais concretamente do Departamento
de Museus e Património Cultural, de onde saiu o interesse em preservar o núcleo e
transformá-lo no pólo rural de um futuro Museu da Cidade do Porto, que nunca
chegou a ser concretizado. Foram inclusivamente encomendados pareceres sobre a
musealização do núcleo e lavrada a programação preliminar dos pólos do Museu da
Cidade, em que o NRA figurava como o primeiro, dedicado ao passado rural do
Porto.
Foi ainda realizada uma exposição acompanhada de livro 18, que pretendia
atrair interesse público e sensibilizar a cidade, para a riqueza deste lugar como
património e vestígio da sua história. Esta valorização baseava-se no potencial do
lugar enquanto “zona da cidade onde permanecem ainda, embora em condições
degradadas e em condições de abandono, construções e vivências que
documentam uma das formas mais recuadas de viver nos “arrabaldes” da cidade”19.
De facto, durante a década de 90, este projecto de musealização do núcleo
corria a par e em colaboração, com as primeiras diligências do Pelouro do Ambiente,
que tentava dar seguimento ao processo de transformação do conjunto do Beco de
Carreiras. No entanto, devido a eventuais divergências estratégicas ou políticas, ou
simplesmente dado o facto de o projecto do Museu da Cidade se ter protelado
indefinidamente, a orientação do projecto acabou por ser tarefa exclusiva do Pelouro
18
Vasconcelos, Maria João (1995), Essas Pedras Quebradas... Permanências da Ruralidade no Contexto
Urbano, Porto, Departamento de Museus e Património Cultural - Casa Tait, CMP. Livro tratado enquanto material
documental relativo ao objecto e não como literatura científica, para mais detalhe consultar Tabela Resumo de
Material Documental do NRA (2.4) em anexo.
19
Viana, Teresa e Mª João Vasconcelos (1993), Programa Preliminar para o Museu da Cidade, pág. 35 e 36.
Texto tratado e referenciado como material documental e não como literatura científica – para mais detalhe
consultar Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo.
168
Capítulo VI
do Ambiente, até porque a gestão de todos os assuntos relacionados com o Parque
da Cidade eram de sua tutela.
Assim, não se concretizou a ideia inicial de combinar as funções
museológicas com o projecto do Pelouro do Ambiente, mais voltado para a
polivalência do espaço, acabando este por resultar num equipamento de pendor
comercial, recreativo, paisagístico e de educação ambiental. No entanto, mesmo não
tendo nenhuma pretensão museológica, o NRA nunca deixou de ser encarado como
patrimonial e como um lugar que representa a memória da cidade.
Desta feita, da intenção em elevar o lugar a pólo do Museu da Cidade ou
simplesmente a património histórico protegido, resultou uma valorização do potencial
do lugar, que pela localização e conveniência, foi tomado pelo Pelouro do Ambiente
como objecto de reconversão e integrado no grande projecto do Parque da Cidade.
A valorização patrimonial do conjunto, a sua consideração como pretexto para
lembrar a história da evolução da cidade e a sua existência como lugar com
potencial para acolher a nostalgia dos muitos portuenses com passado rural,
justificaram o projecto. No entanto, o NRA não se constitui como sítio histórico, como
museu ou muito menos como monumento, nem a intervenção nele feita pode ser
considerada um restauro.
Para perceber melhor o NRA e o projecto se sua transformação, devemos
discutir o seu alcance e respectivos contornos visíveis, bem como as motivações e
as linhas filosóficas que sustentaram a intervenção. Começaremos por destacar as
mudanças fundamentais ocorridas no espaço e por descrever o lugar, os seus
edifícios, equipamentos e elementos, para depois reflectir em torno dos critérios e
orientações que pautaram o projecto e a intervenção. Queremos perceber o que foi
valorizado, o que foi destruído e de que forma foi aproveitado o carácter rural que
justificou, em primeiro lugar, a sua valorização. Em suma, queremos perceber se
estamos perante uma recriação de uma ruralidade adaptada às expectativas e
memórias urbanas, construídas no quadro do discurso que dá mote a este trabalho
de investigação.
Até às obras de criação do Parque da Cidade, as quintas do Beco de
Carreiras eram ocupadas por três famílias que desenvolviam actividades agrícolas e
pecuárias nos terrenos contíguos às casas. Não sendo uma grande propriedade
com um volume produtivo de assinalar, a agricultura praticada era provavelmente
para subsistência familiar e para combinar com rendimentos resultantes de outras
169
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
actividades. O ambiente do lugar era fortemente marcado por este pendor agropecuário, já que, para além das construções relacionadas com a lavoura (sequeiros,
celeiro, eiras, etc.), os animais, as ferramentas e utensílios vários, a omnipresença
de videiras e esteios, a vegetação hortícola, entre muitos outros elementos,
preenchiam o lugar e reforçavam a sua aura rural.
O conjunto era complexo e saturado de elementos, no sentido em que, às
construções originais se sobrepunham acrescentos e anexos em madeira e chapa
metálica com aspecto abarracado e todos os recantos estavam carregados, com os
tais utensílios e objectos ligados às actividades domésticas e agrícolas, os esteios e
ramadas acrescentavam densidade ao quadro, diversos vasos estavam distribuídos
pelas escadarias, havia ainda inúmeros tanques em pedra e um poço de água, entre
despojos, tralhas e sinais de vivência intensa do lugar. Assim, apesar das quatro
casas serem iguais, era difícil vislumbrar o traçado original, por entre tantos
acrescentos, anexos, telheiros e com esta parafernália de objectos espalhados.
As casas eram de arquitectura popular característica da região entre o final do
século XVIII e princípio do século XIX. Tinham dois pisos (um térreo para as lojas e
estábulos e um piso superior para habitação) e cozinhas de forno exteriores. As
paredes eram de granito, os telhados em telha "Marselha" e as estruturas dos tectos
em madeira. A subida para o primeiro andar fazia-se pelas escadarias exteriores,
que culminavam em pequenos alpendres que protegiam as portas de entrada. O
chão era em madeira no primeiro piso e de terra batida no piso térreo. As portas de
madeira tinham dimensões muito variáveis e por vezes eram reforçadas com chapa
metálica. As janelas eram em "guilhotina" e, no interior, algumas eram
acompanhadas de "namoradeiras". Algumas paredes tinham nichos e reentrâncias.
Antes do realojamento das famílias que habitavam o Beco de Carreiras, todo
o conjunto sofria de um acentuado grau de degradação. É bastante visível nas
fotografias do espaço (ainda habitado) e no levantamento fotográfico feito antes das
obras20, o elevado desgaste nas construções e seus materiais: madeiras
envelhecidas, portas e janelas remendadas, paredes com a tinta muito gasta,
telhados precários, etc. Como foi dito, o traçado original das construções estava
consideravelmente alterado pelo acrescento dos diversos anexos e telheiros e os
caminhos e muros de pedra estavam camuflados por entre a vegetação.
20
Reforça-se que algumas dessas fotografias (devidamente legendadas) estão disponíveis para consulta em
anexo.
170
Capítulo VI
Existiam videiras e múltiplos esteios e arames pendentes ao longo de todas
as quintas, um esgoto a céu aberto e bastantes animais domésticos à solta (como
galinhas, vacas, cães, coelhos, etc.). As casas estavam rodeadas de hortas,
pequenas pastagens e da vegetação autóctone, típica da chamada "bouça"
(pequena mata, cercana a lameiros e terrenos agrícolas) muito comum na região.
Deve ser dito que, vendo as fotografias do espaço antes das obras, pode
parecer difícil vislumbrar o potencial "pitoresco" do lugar, dado o elevado grau de
degradação do conjunto e alguma insalubridade. No entanto, pela intensidade da
apropriação quotidiana que dele era feita, pela sua vida e pela diferença que
representava, quando contraposto com a cidade envolvente, tornava-se num lugar
muito particular e interessante, principalmente porque era nessa especificidade que
estava fundada a sua valorização.
“E havia, sobretudo, o Beco de Carreiras, que a citadinos habituados aos
brilhos rutilantes do Guarany e do Coliseu oferecia a experiência de espaços,
cheiros, ruídos e gente que mais pareciam figuras de Aldeia da Roupa Branca ou
desenhos da D. Laura Costa, no livro da 4ª classe, do que lugares portuenses.”
(Pacheco, 2002, pág. 32).
Actualmente, o aspecto do conjunto é muito diferente. Apesar de se terem
preservado todas as construções originais e em pedra (o muro, as quatro casas e
respectivos anexos e cozinhas, os sequeiros, as eiras, o celeiro, os tanques e o
poço), tendo sido apenas destruídos os acrescentos em madeira e chapa metálica
de carácter provisório e de fraca qualidade, as obras de recuperação do edificado,
as operações de limpeza, as novas utilizações e a integração do conjunto no Parque
da Cidade, transformaram profundamente o lugar e o seu ambiente.
As construções originais, agora remodeladas, foram convertidas em
equipamentos de uso público ou, simplesmente, em elementos decorativos, como é
o caso do sequeiro, por exemplo. Numa das casas funciona o Centro de Educação
Ambiental (que faz parte da rede municipal de equipamentos do género), composto
por escritórios, uma sala de reunião, espaços para oficinas e formação de crianças e
jovens, uma cozinha exterior e as hortas pedagógicas nas imediações. No celeiro
funciona uma casa de chá, com esplanada na eira junto ao sequeiro. Nas duas
171
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
casas “siamesas21” tem actividade uma escola de gastronomia, com loja de produtos
“gourmet” e os respectivos escritórios. Nos anexos maiores funciona uma loja de
“comércio justo” e uma loja de produtos biológicos, apelidadas de “Ecolojas” no
mapa afixado à porta do núcleo. Sendo as restantes construções ocupadas por
armazenamento de materiais relacionados com as actividades citadas, bem como
pelos serviços de apoio ao NRA e ao próprio Parque da Cidade (não sendo de
assinalar com pormenor).
Deve ser reforçado, que estas utilizações dizem respeito ao período do
trabalho de campo, visto que, ao longo dos anos de funcionamento do núcleo,
existiram inúmeras alterações de uso e funcionalidade em alguns equipamentos e
espaços. Para dar um exemplo importante, ainda faz parte do conjunto um picadeiro
para póneis, construído no processo de transformação do espaço, que funcionou
durante vários anos, mas que neste momento está inoperante. Mesmo com
mudanças e trespasses, verifica-se que as construções se têm mantido
praticamente inalteradas, pelo menos exteriormente, desde a sua recuperação e
que, no geral, o ambiente e aspecto do conjunto não tem sofrido grandes alterações,
segundo o que foi apurado.
Acrescentadas foram as casas de banho modernas para uso público,
inexistentes até às obras, bem como o mobiliário de jardim que caracteriza os
parques urbanos (caixotes do lixo, bancos, iluminação, etc.). Foram incluídos
também uma espécie de cobertos com um banco no interior, de tecto e chão em
madeira, desenhados pelos arquitectos responsáveis pelo projecto do NRA e
inspirados nas ripas de madeira dos sequeiros tradicionais, que estão reproduzidas
nas suas paredes. Este tipo de mobiliário assume um certo protagonismo visto que
figura em diversos recantos do núcleo, estando espalhado, desde os jardins
circundantes às casas até para além dos terrenos das hortas, já em pleno parque
urbano.
Estes cobertos servem, por um lado, como elemento de transição das quintas
para o parque, já que estão pintados com o mesmo vermelho das portas e janelas
das casas, estando-lhes relacionados pela cor e pela alusão aos seus sequeiros e,
por outro, como espaços de descanso e contemplação para os visitantes, que
podem sentar-se e abrigar-se do sol ou da chuva, sem deixar de ver
21
Chamamos “siamesas” a duas das casas do núcleo por estarem ligadas por uma varanda de madeira e por, na
prática, funcionarem como um só imóvel.
172
Capítulo VI
confortavelmente o pitoresco conjunto, através das ripas, quase como nas cabanas
para observação de aves, existentes em muitos parques naturais. Como acrescento,
pode ser encontrado ainda o tal picadeiro de póneis, que embora não esteja mais
em funcionamento, como foi dito, continua a fazer parte do conjunto e a ter uma
localização central para quem olha para o núcleo desde o parque.
Não existem animais de quinta, nem outro tipo de espécies, desde a
desactivação do picadeiro de póneis. Existem pequenas hortas de leguminosas e
ervas aromáticas, feitas durante os ateliers do Centro de Educação Ambiental,
mantidas nas visitas semanais das crianças das escolas do Conselho do Porto,
inscritas nesta actividade. Para além disso, não existe produção agrícola e a
vegetação existente está integrada nas opções paisagísticas do Parque da Cidade
do Porto. Se no passado o lugar tinha usos residenciais e agro-pecuários,
actualmente serve de palco para actividades comerciais e de hotelaria, bem como
para as actividades educativas do Centro de Educação Ambiental. De assinalar é
também a sua função recreativa, no sentido em que o núcleo está completamente
integrado no parque urbano que o rodeia e no seu ambiente, funcionando como um
lugar de passeio, desporto, contemplação, convívio, etc. De acrescentar é ainda o
facto de o NRA acolher a feira semanal de produtos biológicos (ao sábado de
manhã), em que se reúnem produtores e consumidores de legumes, fruta, pão,
compotas, mel, frutos secos e flores, com selo de produção em modo biológico.
Esta feira, a loja de produtos do chamado “comércio justo”, a loja da
NaturoCoop (cooperativa de produtores de agricultura biológica) e a loja “gourmet”,
que compõe o conjunto de estabelecimentos comerciais do núcleo, estão
associadas a este universo de produtos de qualidade, ecológicos ou do chamado
“consumo consciente” (relembra-se aliás que são chamadas de “Ecolojas”). Estes
espaços caracterizam-se por decorações simples, em que predomina a madeira, no
chão, tecto e estantes e o granito das paredes, sendo salvaguardado o
protagonismo dos edifícios rústicos e despojados do NRA e mantido o ambiente
singelo e rural do lugar.
A loja “gourmet”, por exemplo, vende bens alimentares de origem classificada,
produtos regionais de qualidade superior ou muito prestigiados (vinhos, compotas,
conservas, chocolates, chás e infusões, biscoitos, etc.) que, mesmo não sendo
todos de origem rural, estão associados a modos de confecção artesanal, a
matérias-primas seleccionadas, a saberes seculares e a tradições, em suma, a todo
173
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
o universo simbólico que rodeia a manufactura, por oposição à produção
tecnológica, massiva, industrial, etc. Em consonância com o contexto do próprio
NRA e com os produtos vendidos, na sua decoração predomina o mobiliário rústico.
Destacam-se os armários de madeira pintada e as inúmeras cestas de vime,
de vários tamanhos, usadas para expor a mercadoria. É nítido que as características
arquitectónicas do edifício orientam o estilo decorativo, pelas cores usadas no
mobiliário (que condizem com a cor da madeira dos tectos e das janelas), pelos
materiais, mas também pelo aproveitamento do potencial do espaço, por exemplo
com a utilização dos nichos e das “namoradeiras” como recantos para dispor os
produtos.
O pendor ecológico e gastronómico destes negócios parecem estar em
consonância com a dimensão educativa do núcleo e com a ideia de que estamos
num nicho de ruralidade, principalmente se pensarmos que culturalmente se associa
o mundo rural à harmonia entre o homem e a natureza e à qualidade alimentar
(com produtos orgânicos, saudáveis, saborosos e opostos à comida de “plástico”
que supostamente se come nas cidades).
O Centro de Educação Ambiental, por seu turno, desenvolve actividades
regulares com crianças das escolas do concelho do Porto, no âmbito da
sensibilização para as boas práticas ecológicas e para temas mais ligados à vida
rural. Assim, existem oficinas ligadas à reciclagem e ao aproveitamento de resíduos
domésticos para artes plásticas, ao conhecimento de árvores, de plantas, das
estações do ano e dos pássaros, bem como à manutenção de pequenas hortas e de
algumas ervas aromáticas.
De mencionar são também as actividades culinárias, que têm lugar na
cozinha (exterior) da casa ocupada pelo centro educativo, em que se ensina às
crianças algumas receitas simples e se faz a articulação teórica e prática, entre
natureza e alimentação. Este espaço, que possui um velho forno de lenha original,
está também decorado com mobiliário de estilo rústico, toalhas de padrões
campestres, louça com pequenos detalhes figurativos, alusivos a frutos e legumes,
potes metálicos, vassouras artesanais, entre outros elementos que reforçam a ideia
de que estamos numa cozinha rural.
Em todo o processo de transformação das quintas, é sobretudo claro que
existiu um enorme esforço de limpeza e salubrização, não só em termos sanitários
obviamente (com a ligação das casas à rede de saneamento básico e a instalação
174
Capítulo VI
de casas de banho modernas), mas também de melhoria do aspecto geral do
conjunto. A recuperação dos edifícios, com a pintura e destruição dos anexos
abarracados que proliferavam, aliada ao desaparecimento dos animais e seus
detritos, dos objectos, vasos, ferramentas, sacos, lixo e todo o tipo de tralha que
estava espalhada pelo lugar, bem como a pavimentação de algumas zonas que
eram lamacentas, contribuíram seriamente para dar uma imagem menos caótica e
degradada às quintas.
A diminuição do número de arames e ramadas, a limpeza das ervas invasivas
que proliferavam entre as pedras dos muros e dos caminhos e o ajardinamento das
imediações, deram também um aspecto mais limpo ao conjunto, para além de
permitirem destacar pormenores pitorescos, como as condutas em pedra, que
levavam a água da rega, na berma dos caminhos, por exemplo. Neste sentido, deve
ser dito que o projecto de transformação do núcleo resultou numa profunda
transformação do seu ambiente, de um espaço vivido, mas degradado e
desordenado, para um espaço limpo, arranjado, salubrizado, mas sem a aura de
lugar habitado. A complexidade de um lugar vivido e portanto desalinhado e
desgastado, foi substituída por uma simplificação e limpeza que realça o potencial
pitoresco do conjunto, mas que lhe retira a riqueza da vivência quotidiana de outrora.
Esta consequência era aliás prevista pelos autores do projecto, muito conscientes da
dificuldade de manter a aura castiça do lugar, após a concretização da operação de
limpeza e transformação que se exigia. Assim, se por um lado existia a urgência de
salubrizar e ordenar um espaço que, apesar de valorizado, era considerado sujo e
degradado, existia também a intenção de manter muitos dos elementos originais que
lhe davam o ambiente rústico e particular.
“Foi esta a conjugação que se tentou fazer, que foi tentar manter alguma verdade, embora
obviamente há ali muito trabalho de limpeza, porque há ali zonas que não eram pavimentadas e nós
tivemos de pavimentar para as pessoas não andarem em lama, mas grosso modo, os caminhos de
entre muros estão exactamente na mesma, todos tortos, com as pedras irregulares, aquela ideia de
22
calçada...” (João Rapagão ).
“Aqui, por exemplo, era a tal casa de banho, isto era surrealista porque era directamente cá
para baixo, aqui estava uma vaca, em baixo e o piso de cima terminava nesta construção que não sei
o que terá sido antes, mas a família fez um buraco, meteu uma sanita em cima e eles faziam
directamente em cima dos animais que estavam cá em baixo... Era um cheiro...Este compartimento
22
Arquitecto. Autor do projecto de requalificação do NRA em conjunto com o Arquitecto César Fernandes.
175
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
em baixo, quando abrimos a porta... eram dezenas de anos de porcaria acumulada com os animais a
pisar... portanto era a porcaria dos animais mais a dos humanos, tudo junto.” (João Rapagão).
“Houve muita coisa que só se viu durante a obra, porque haviam zonas que estavam tão
cheias de coisas que não entrava a luz e haviam gatos mortos há anos e anos e sacos de farinhas e
coisas abandonadas e ratos, quer dizer, haviam zonas em que não se conseguia sequer entrar para
fazer o levantamento, quer dizer, foi muito no processo de desmantelamento, que umas coisas foram
repostas e outras foram eliminadas para pôr à vista alguma verdade...” (João Rapagão)
“Para nós original seria tudo... eu é que tinha pena de tirar, mas era preciso para fazer as
obras, haviam muitos esteios e ramadas muito interessantes que davam um ar carregado e habitado
àquilo tudo, mas para fazer a obra foi preciso tirar tudo, tudo, tudo, como é evidente. Tivemos que
descarnar aquele corpo todo e depois a minha preocupação foi repor isso e portanto se reparar em
todas elas existem esteios, ou perfis metálicos ou cabos ou arames, à espera e há muita vinha que
está a começar a trepar, mas claro que demora, porque aquilo tinha uma carga de dezenas de anos
que agora é preciso esperar que o tempo faça o resto.” (João Rapagão)
A vontade de preservar o mais possível as características arquitectónicas,
iconográficas e decorativas do espaço, funcionou quase como uma tentativa de
cristalizar a aura rural e pitoresca do lugar, retirando-lhe a sua vivência e
apropriação residencial e agrícola, juntamente com as suas consequências menos
agradáveis (o mau cheiro, a confusão, o desgaste, os detritos dos animais, etc.).
Como num processo de destilação, tenta-se preservar uns elementos e fazer
desaparecer outros (menos compatíveis com as exigências de um equipamento
público e do olhar urbano), mas sobretudo (e paradoxalmente) debaixo da ambição
simultânea de manter o ambiente original do conjunto, pelo seu carácter habitado,
vivo, popular, rústico, castiço e rural.
Foi intenção preservar o mais possível todas as construções, mesmo os
anexos e galinheiros, de pequenas dimensões, foram recuperados e aproveitados
para arrumação de material de esplanada, por exemplo. Foram apenas destruídos
os acrescentos que não eram em pedra, com aspecto precário e que escondiam a
semelhança entre as quatro casas. Aliás, esse foi o critério principal, revelar o
desenho original das quatro quintas geminadas e a sua lógica de envelhecimento e
adaptação às vivências e funcionalidades atribuídas. Interessava também valorizar o
facto de, ao longo do tempo, o conjunto se ter densificando, pela construção de mais
anexos em pedra, ao redor das casas, no que resultou numa espécie de fechamento
em casco, contra o muro do Beco.
“Nesta procura da verdade daquela casa e daquela estrutura toda, nós percebemos que
aquelas quatro casas eram exactamente iguais, se reparar, as quatro casas mãe, que nós
176
Capítulo VI
designamos de casas mãe, são as únicas que têm sempre rés-do-chão e primeiro andar e que têm
uma escada exterior, são exactamente iguais, as quatro casas (…) portanto há medida do tempo,
foram sendo desenvolvidas pelas famílias ocupantes à medida das suas necessidades e (…) a nossa
preocupação foi manter legível esta verdade de envelhecimento daquela lógica. Umas dispensaram
anexos e estruturas de apoio agrícola e outras, porque se viraram mais para os animais, iam
precisando muito de anexos, cortes, por ali fora, de uma série de coisas de apoio e, portanto, isso foise mantendo. A primeira, por exemplo, não tem nada porque era a casa do padre e o padre devia
viver do que lhe davam e, portanto, não precisava de coisa nenhuma e a casa estava completamente
solta. Portanto a nossa preocupação foi muito a de manter esta legibilidade do conjunto em que há
alguma preocupação de verdade, entre aspas, histórica, arqueológica e etc. e também arquitectónica,
no sentido de mostrar os valores daquela ruralidade que ali está. Porque depois as construções
abarracadas eram impossíveis também de manter, porque eram chapas tortas, tijolos mal
encaixados, portanto nem sequer construtivamente aquilo era compatível... E há ali um processo
muito engraçado que é... as casas teriam estado soltas no terreno e à medida que a cidade cresce
aquilo vai se fechando em forma de casca. Quando entramos no beco de Carreiras vemos um muro
quase cego com 4 portões...que são das 4 quintas e é engraçado como esta espécie de evolução da
cidade, esta espécie de invasão daquele território por parte da cidade, corresponde a um fechar das
quintas sobre si mesmas e esse fechar vai sendo feito com muros, mas principalmente com anexos e
os anexos vão se fechando em forma de casca protectora, muitas vezes muito mal resolvidos… há ali
construções muito mal resolvidas e nós deixamo-las ficas todas. Nós só tiramos mesmo o que tinha
ar de ser tirado com o vento quase...” (João Rapagão).
De facto, as casas foram recuperadas, mantendo-se o traçado original e os
mesmos materiais. A pedra foi limpa, as madeiras foram poupadas o mais possível,
restauradas e pintadas de vermelho (janelas, portas, etc.) e as paredes exteriores e
interiores de branco. Os tectos em madeira e o soalho dos pisos superiores foram
restaurados e mantidos. Nos pisos térreos, a terra batida foi coberta por estrados de
pôr e tirar. Os anexos em pedra, os tanques, os poços, o sequeiro, as eiras e os
estábulos foram mantidos e recuperados. Já o celeiro foi reconstruído, pois tinha
sido destruído num incêndio que ocorreu antes das obras. Em alguns locais o
tabique foi propositadamente exposto e as técnicas construtivas de recuperação
foram inspiradas nas tradicionais.
Foram instalados os circuitos eléctricos, o isolamento térmico, o sistema de
aquecimento, de telecomunicações e todas as infra-estruturas próprias para os
estabelecimentos comerciais e de hotelaria, para além da, já referida, ligação à rede
de saneamento pública. Por outras palavras, o conjunto foi adaptado às exigências
de conforto, comunicação, salubridade e modernização, que um equipamento
público comporta, principalmente dada a sua diversidade de funções. Aliás o
177
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
programa previsto para o núcleo e que serviu de orientação para o projecto, era
bastante aberto e destacava a necessidade de preparar as quintas para receber
serviços muito distintos (desde comércio, até à educação ambiental, passando por
actividades equestres e por escritórios).
“Acabámos por decidir que vamos recuperar as casas, instalar todos os meios actuais
modernos, para que a casa fique preparada para ter uma exposição de arte contemporânea, se for
preciso, que as casas possam receber um restaurante, possam receber computadores, possam
receber telefones, tudo é viável, mantendo sempre a lógica do soalho de madeira no piso de cima,
mas em baixo manter a ideia da terra, embora quando houvesse necessidade púnhamos um estrado
de madeira que é de pôr e tirar.” (João Rapagão).
O objectivo era o de conseguir lograr um equilíbrio entre a preservação das
características arquitectónicas do conjunto e do seu ambiente rústico e a adaptação
do espaço às novas funcionalidades. Esta proposta é bem patente no Estudo Prévio
do NRA, elaborado pelos autores do projecto de transformação do lugar, os
arquitectos João Rapagão e César Fernandes: “Fecha-se, assim, um sistema interno
de vivências e de usos que associam as necessidades funcionais colectivas e
recreativas e as necessidades funcionais e operativas, aos valores arquitectónicos
do conjunto edificado, caracterizado pela sua identidade rural. Sem descaracterizar
o construído existente, julga-se ter encontrado um equilíbrio entre o existente e o
proposto, sem perda da identidade do núcleo rural.”23
Não nos cabe a nós julgar se foi uma tarefa ganha, mas deve ser destacado,
a propósito, que esta perspectiva de transformação do lugar afasta-se do restauro
(científico, pela fidelidade histórica) e aproxima-se da recriação, precisamente por
estar baseada na selectividade estratégica ou subjectiva, do que é cristalizado,
recuperado, enaltecido e, por outro lado, adaptado, suprimido, disfarçado,
substituído. Esta abordagem tem em atenção, por um lado, as necessidades de
adaptar o espaço aos novos usos e, por outro, assume como referência uma ideia
de ruralidade, que orienta os critérios de selecção e que se aproxima mais do
romantismo do que de uma ruralidade “real”. Esta realidade seria o ponto de partida
(as quintas do Beco de Carreiras antes da transformação) que, através de um
processo de selecção, limpeza e remodelação, é reconfigurada para corresponder a
novas funcionalidades e a determinadas exigências e expectativas (estabelecidas
discursiva e culturalmente, diríamos nós).
23
Para mais detalhe sobre o documento em causa consultar a Tabela Resumo de Material Documental do NRA
(2.4) em anexo.
178
Capítulo VI
“Chamaria uma recuperação ou uma renovação. Porque, de facto, restauro não é, porque o
restauro passa muito pela manutenção da função e aquilo não tem uma manutenção da função...
Repare quando eu tenho de meter cozinhas industriais, para responder à ASAE, por exemplo, não
posso chamar isto de restauro. Há ali num ou dois sítios há ali uma intervenção mais violenta, porque
é impossível que os espaços antigos respondam a 100%, porque há ali casas que se julga terem 300
e 400 anos, portanto, é impossível que satisfaçam os requisitos actuais. Mesmo larguras de portas...
eu cheguei a andar, entre aspas, em guerra com o provedor para as pessoas com deficiência, porque
em grande parte daqueles sítios os deficientes não entram, mas para proporcionar o acesso dos
deficientes motores a todo o lado, também vou perder os valores arquitectónicos que estiveram na
origem da manutenção das quintas e se vou meter rampas ou elevadores eu perco os espaços,
porque há ali espaços tão exíguos, que se eu lá meto um elevador dentro, o espaço deixa de ser útil.
Portanto, é impossível, é incompatível. Portanto há ali toda uma operação de adaptação que não é de
restauro, por isso, nós afastamo-nos cada vez mais da ideia de restauro.” (João Rapagão).
“Para nós os muros e toda aquela divisão, o não se ver tudo de uma vez, o ir descobrindo, o
andar encaminhado, portanto toda essa lógica muito... eu diria romântica, porque tem muito a ver
com as memórias que as pessoas fabricam e que tem que ver até com alguma aproximação, a uma
ideia que eu detesto, mas que é cada vez mais permanente, que é a ideia de parque temático e que
as pessoas procuram muito nos parques de aventura, em que é tudo muito ficcional, mas que é
limpo, entre aspas, é como ir ao shopping e não encontrar lixo, nem prostitutas na rua, portanto é
muito mais simpático viajar no shopping. Desta ideia toda do mundo limpo e preparado para
receber…” (João Rapagão).
De facto, cristaliza-se aquilo que são as características valorizadas,
acrescentam-se as comodidades e recursos, que as necessidades contemporâneas
e urbanas fazem prevalecer, mas suprimem-se outras, tidas como negativas. Neste
processo, transforma-se o lugar numa versão daquilo que era, numa recriação sua,
mais amigável ao olhar urbano e mais próxima da ruralidade imaginada como
tradicional e como “nossa” (cultural e historicamente), mesmo que agora esteja
adaptada a novas funções e usos.
Aliás, na perspectiva de Sérgio Infante, a propósito do projecto do NRA,
espera-se das intervenções no património arquitectónico, que provoquem este tipo
de reacções: “Parece que não fizeram quase nada… Mas, ainda bem que mexeram
nisto. Está melhor do que antes das obras!” (Infante, 2003, pág. 32). Isto porque se
almeja a aproximação do construído ao imaginado, porque se adapta o património
ao sonho e às representações que o classificam enquanto tal (num primeiro
momento), gerando-se uma aura de familiaridade e naturalidade, em torno do que é
produzido com cada “matéria-prima”. Nesta lógica, é maior a identificação com a
reinvenção, do que com o “original”.
179
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
Em suma, busca-se corresponder às expectativas colectivas de reencontro
com o passado, transformando-se os territórios para serem como se sente e imagina
terem sido sempre, nos nossos patrimónios simbólicos, nos nossos discursos, nas
nossas memórias colectivas. E tal como não nos lembramos do nosso próprio
nascimento, colectivamente esquecemos a circunstancialidade, a convencionalidade
e a efemeridade, destas ideias construídas, naturalizadas pelas mesmas políticas
culturais que as convertem em cultura e, por isso mesmo, as fazem parecer inatas.
Posto isto, pode ser assumido que estamos perante um caso de conversão de
um enclave de ruralidade residual dentro da cidade, numa sua recriação, em versão
destilada, limpa, confortável e adaptada ao aproveitamento e usufruto urbano.
Depois de tantos anos de fechamento e alheamento em relação à cidade, o lugar foi
aberto e tornado público, propriedade de todos os portuenses. Por ironia, foi
precisamente essa sua “virgindade” e “integridade” que suscitaram a sua valorização
inicial. Agora o núcleo é da cidade, mas ainda lhe chamam “Rural”, concretizando a
ideia urbana da ruralidade, numa versão domesticada do que foi, para parecer que
foi assim sempre.
Ora, importa então discutir a sua função social e a razão porque justificou este
interesse e investimento. Interessa perceber porque é importante para a cidade e de
que forma é que se legitima o gasto de 1.838.987,97 euros24 com a sua reconversão
e outro tanto na sua manutenção permanente. Nesta linha e recorrendo às palavras
dos responsáveis pela sua valorização e transformação, o NRA pretende servir de
tributo à memória da cidade. Em primeiro lugar pelo seu passado rural muito
recente, já que grande parte do concelho só foi urbanizada na segunda metade do
séc. XX e, depois, porque uma larga fatia da sua população, resultante do êxodo
rural, tem as suas raízes nas aldeias do Minho e Trás-os-Montes.
“Nós na perspectiva da ruralidade, era muito importante também ser o espaço onde muita
gente poderia encontrar ligação à sua própria origem fora do Porto, porque para além dos espaços da
própria cidade serem rurais até há muito pouco tempo, há uma necessidade de muita gente (...) de
origem rural próxima, de geração anterior ou duas, que vinham de zonas rurais e eu penso que o
24
Valor retirado da apresentação Power Point “Metodologia de Construção do Parque da Cidade do Porto”, de
Março de 2006, realizada pelo Eng. Francisco Sendas (Director do Departamento Municipal de Espaços Verdes
e Higiene Pública da CMP), no Congresso Internacional de Parques Urbanos e Metropolitanos, disponível em
http://www.cmporto.pt/users/0/66/FranciscoSendas_79a0958f2144199b769db6b0413ada4e.pdf
Esta apresentação foi tratada como material documental, sendo que para mais detalhe pode consultar-se a
Tabela Resumo de Material Documental do NRA (2.4) em anexo.
180
Capítulo VI
Porto tem essa ligação ao resto do Norte pouco trabalhada. (...) A ligação daquele espaço (NRA) à
vida da cidade passava por essas dimensões de documentar do ponto de vista histórico a evolução
da própria cidade, mas era um bom pretexto para trazer à tona alguns desses patrimónios, que as
pessoas às vezes nem reconhecem como tal e nós só temos de dar o mote para que elas passem a
25
reconhecer.” (Maria João Vasconcelos ).
“E tudo isto é memória, o núcleo rural é memória, estar ali, conservada e preservada, através
da vontade de alguém ou de um grupo de pessoas. E portanto, aquilo também foi um tributo à
memória, a recuperação do NRA, foi também um tributo à memória. Foi por isso que todo aquele
trabalho foi feito com muita paixão. Portanto, é importante preservar a memória, eu mesmo tenho
muito orgulho em dizer que sou aldeão. E até porque, ouça... até há pouco tempo dizia-se "vou de
férias para a Foz!" metiam-se em carros de bois e vinham de Campanhã e dessa zona toda do centro
e iam fazer as férias na Foz, como se fosse uma grande distância, de maneira que ainda há pouco
26
tempo metade do Porto era rural.” (Orlando Gaspar ).
De facto, a cidade do Porto evoluiu de uma forma particularmente rápida,
depois de séculos confinada ao seu núcleo original. Até à segunda metade do
século XX, verificava-se que o crescimento populacional não era acompanhado pela
dispersão da mancha urbana no território e que em redor do núcleo central antigo,
caracterizado por uma elevadíssima densidade populacional, apenas existiam
pequenos povoados rurais, praticamente sem construções. Este tardio avanço da
urbanização, cristalizada no Porto durante muitos séculos de história, resultou no
paradoxal facto de as periferias terem tido um desenvolvimento anterior à ocupação
total do território municipal (Matos, 2001).
O desenvolvimento das estradas e das linhas de transportes públicos
contribuíram para a urbanização de algumas zonas periféricas ao município (como
Matosinhos, Gondomar ou Vila Nova de Gaia), onde as rendas e os terrenos eram
mais baratos e havia menos entraves burocráticos à construção, muito antes de a
sua extensão se ter urbanizado. Assim, entre o núcleo fundador da cidade (hoje
considerado o seu centro histórico) e as periferias em desenvolvimento, existia uma
vasta coroa de terrenos agrícolas, matas e baldios, apenas pontuados por pequenos
lugares (Matos, 2001).
As freguesias de Ramalde, Aldoar, Lordelo, Paranhos e Campanhã (hoje
integrantes do tecido urbano completamente densificado do Porto) eram compostas
25
Historiadora. Autora do estudo de levantamento patrimonial do NRA e uma das primeiras pessoas que
promoveu a sua valorização e conservação, inclusive através da tentativa de torná-lo no Pólo Rural de um
eventual Museu da Cidade.
26
Engenheiro Civil. Antigo Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Porto responsável pela iniciativa de
requalificação do núcleo.
181
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
por pequenas aldeias e denominadas de “arrabaldes” da cidade. Esta designação
dizia respeito à sua situação de exterioridade por relação ao núcleo urbano principal
e ao facto de terem um cariz rural. Estes “arrabaldes” tinham duas funções
essenciais, a de funcionarem como a “horta” de abastecimento da cidade, mas
também como espaço de lazer para os seus habitantes mais abastados. De facto,
era nas freguesias ocidentais da cidade que se construíam os palacetes de veraneio
para as famílias ricas do Porto irem passar os meses quentes (Fonseca, 1998).
A proximidade do mar e da natureza, o contexto campestre, a distância do
buliço urbano, dos seus desconfortos e epidemias, favorecia o descanso e era muito
apreciado por burgueses endinheirados e aristocratas, como a família do Conde de
Vizela (criador da quinta do Mata-Sete), por exemplo.
“O arvoredo das freguesias periféricas do Porto, escondia numerosas quintas,
propriedades de famílias ricas, que nutriam um particular interesse por estas áreas
rurais, reflectindo também o resultado de uma pujante actividade comercial. O gosto
pela construção de habitações nos arrabaldes, em espaços amplos, começou a ser
bastante frequente principalmente em famílias abastadas, pelo que a ligação ao
campo e à propriedade rural foi algo que ficou marcado na paisagem pela
imponência das construções então realizadas.” (Fonseca, 1998, pág. 66).
Só na década de 50, com a construção da Via Norte e da Via Rápida, da
ponte da Arrábida e da zona industrial de Ramalde, foram abertas novas frentes de
urbanização. O Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto de 1956 e o Plano
Director da Cidade do Porto de 1962, aceleraram esta dinâmica que levou à
transferência de uma grande parte da população da cidade para as freguesias
periféricas. Este processo funcionou como uma forma de higienização do centro, a
braços com problemas de insalubridade, dada a exagerada densidade construtiva e
populacional e permitiu também a sua terciarização progressiva (Fonseca, 1998;
Matos, 2001).
Novas políticas urbanas, autorizaram a descentralização residencial, a
proliferação de novos empreendimentos e o aumento da qualidade habitacional,
nomeadamente pelo investimento público em habitação social. De facto, diversos
bairros sociais, disseminados nas freguesias periféricas, foram inaugurados como
fruto destas políticas e a serviço do realojamento de habitantes do centro da cidade.
Para dar um exemplo desta evolução repentina, só na década de 60, a freguesia de
182
Capítulo VI
Ramalde (hoje a mais populosa da cidade) sofreu um aumento populacional de
41,4% (Fonseca, 1998).
Assim,
“No
período de
uma
geração, a
superfície
urbanizada foi
substancialmente aumentada e aquilo a que no início do século era habitual chamarse arrabalde ou periferia urbana, tornou-se componente, por excelência, do espaço
urbanizado, que vai avançando em detrimento dos espaços rurais mais próximos.
Esta expansão urbanística e demográfica, contribuiu para o abandono progressivo
da actividade agrícola, transformando toda esta área num espaço eminentemente
urbano, cuja posição excêntrica em relação ao centro da cidade do Porto e
Matosinhos vai progressivamente diminuindo.” (Fonseca, 1998, pág. 4).
Desta feita, a ideia de que a cidade necessita de um espaço de reencontro
com o seu passado rural, legitima a valorização do lugar do Beco de Carreiras e
posteriormente a sua transformação em equipamento público. O núcleo, na sua
versão pública, funciona como um aproveitamento de um espaço degradado que era
necessário transformar, aquando da criação do Parque da Cidade (dada a sua
localização), mas constitui-se nos discursos (políticos, técnicos, promocionais, etc.)
como um retalho do Porto rural, que importa preservar e acarinhar, a bem da saúde
identitária da cidade.
Este argumento é bem patente, por exemplo, no livro associado à exposição
de 1995, “Essas Pedras Quebradas… Permanências da Ruralidade no Contexto
Urbano”, realizada para sensibilizar a cidade para o valor do lugar do Beco de
Carreiras, na altura em que a valorização do seu potencial museológico (para o pólo
1 do Museu da Cidade) começa a ganhar corpo, ainda pelo trabalho conjunto dos
Pelouros da Cultura e do Ambiente, e em que se encomendam os primeiros estudos,
levantamentos, pareceres e projectos preliminares.
O texto, realizado por um conjunto de historiadores e técnicos da Câmara
Municipal do Porto, coordenado pela Dra. Maria João Vasconcelos, fala do projecto
de musealização do núcleo, centrando-se precisamente no seu valor patrimonial e
no destaque para a importância deste nicho de ruralidade residual, na reconstrução
da história da cidade e como referência simbólica para a sua identidade colectiva.
Curioso é perceber que no texto é colocada a iniciativa de preservação e valorização
do lugar na própria cidade, como se esta fosse o agente mobilizador do projecto,
elevado a necessidade inadiável e quase “natural”, no contexto civilizacional em que
nos encontramos.
183
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
“O que torna este projecto deveras singular é o facto de ele ser gerado pela
cidade enquanto sistema cultural, que desta forma procura manter os seus
fantasmas de referência, a memória de si própria. (…) Desta forma, o ritmo biológico
da cultura rural, em especial os seus signos e valores. Desperta o fascínio de um
tempo antigo que adquiriu um estatuto de raridade, assumindo-se, por sua vez como
uma espécie de paradigma perdido que urge retomar. Dir-se-ia que num período
civilizacional pós-moderno, aparentemente esgotado de inovação, se retomam os
valores de referência do período romântico de oitocentos, no qual o campo, e a
província, adquiriram uma função de catarse em relação ao industrialismo então
nascente.” (Vasconcelos, 1995, pág. 10).
A nostalgia urbana do passado e da vida rural, que talvez nunca tenha
existido como se imagina colectivamente, é identificada como o sentimento
mobilizador do interesse pelo lugar do Beco de Carreiras, reputado como sendo uma
amostra dos tempos idos e da cidade que já existiu, uma saudosa “não-cidade” em
que ainda havia espaço para o rústico e para o tradicional. Esta preservação e
apropriação pública do núcleo, é então apresentada como uma vitória desta
necessidade identitária e nostálgica e como uma garantia do respeito por essa
procura, por esse reencontro, por esse louvor ao passado e à história urbana
colectiva.
A nostalgia funciona como um catalisador da valorização destes espaços de
preservação do passado, relíquias que ajudam ao luto e a sossegar a ansiedade
perante as rápidas mudanças e a fracturante volatilidade urbana.
“De tempos a tempos passo na Vilarinha. (…) Mas, confesso, entro naquela
rua com misto de prazer e receio. O prazer de reencontrar a vereda do cemitério, as
moradias oitocentistas (…), o fontanário, o Beco de Carreiras, as casas e os
canastros da aldeia… O receio de que tudo isto, junto ou separado e em nome do
progresso que por aí apregoam, apareça do dia para a noite arrasado ou, o que é o
mesmo, achincalhado pela anarquia urbanística a que estamos habituados e a que
vamos ficando insensíveis.” (Pacheco, 2002, pág. 33).
A função social deste espaço é existir como amostra desse ideário e como a
cristalização de uma imagem do passado. Esta, mesmo retocada e falsa, (e talvez
por isso) encaixa bem na nossa identificação e com o nosso sonho recordatório. É
adorável, agradável, limpa, não lembra trabalho, nem esforço, está ali bem perto (a
poucos minutos de carro) e sobretudo é familiar, num duplo sentido. Primeiro porque
184
Capítulo VI
é própria para as famílias da cidade, tendo todas as comodidades habituais (casas
de banho, iluminação, comércio, serviço de hotelaria, bancos para contemplar a
paisagem, relva para desfrutar, etc.), e segundo porque é reconhecível, próxima,
relembra a “casa”.
Paralelamente, identificamos a função comercial e educativa do espaço, que
pelas suas características potencia o valor simbólico dos equipamentos que acolhe.
Isto porque o próprio contexto e poder sugestivo do núcleo amplificam o potencial
das suas funções educativas e comercias. O centro de educação ambiental encontra
no seu seio diversos elementos, pretextos e condições para reforçar o interesse e a
atractividade das suas actividades (o espaço das hortas integrado no cenário rural, a
cozinha rústica com forno de lenha para as aulas de culinária, todo o património
arquitectónico ligado à lavoura, etc.), podendo dizer-se que o conjunto é aproveitado
pela alusão à ruralidade e suas conotações ecológicas.
As lojas de produtos biológicos, “gourmet” e de comércio justo, bem como a
feira semanal, na sua associação a valores como a qualidade, a ecologia, a tradição
e a saúde, acabam por ser favorecidas pela aura rural do contexto que, de certa
forma, corrobora essa conotação positiva e acrescenta valor simbólico aos produtos.
Desta feita, o comércio e o centro educativo, ao mesmo tempo que dinamizam e
enriquecem as virtualidades do espaço, alimentam-se do seu ambiente bucólico. A
associação do núcleo com estes equipamentos, fundidos num mesmo conjunto,
reforça a correspondência simbólica deste universo de valores (ecologia, tradição,
qualidade, saúde) à ruralidade, nos imaginários urbanos.
Assim, a versão dominante de ruralidade alimentada discursivamente, e
veiculada neste tipo de recriações no espaço da cidade, para além de estar
associada à memória, está também conotada com a ética de preservação da
natureza. A memória e o património, a sustentabilidade e a ecologia, parecem, de
facto, acompanhar a ideia de ruralidade, sendo esta sua recriação marcada pela
função social de alimentar essa associação. O NRA não só cumpre a função social
de preservar a memória da cidade, enquanto seu património histórico e referência
identitária, como alimenta a associação da vida rural aos valores que a vida urbana,
supostamente, ameaça.
A qualidade alimentar, a sustentabilidade ambiental, o consumo consciente e
os produtos orgânicos, aproximam-se do ideário pastoral por oposição à ideia de
cidade tecnológica, insustentável, plástica e contaminada. Ora, passado e futuro,
185
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
património e sustentabilidade, são afinal os valores associados ao binómio
axiológico que cultural e discursivamente legitima o discurso de reinvenção e
valorização da ruralidade. Como vimos, a sacralização dos patrimónios cultural e
natural, funciona como o reforço da consensualidade em torno da valorização do
rural, não só pelo seu potencial comercial, mas como depósito de tudo o que nos
arriscamos a perder com o estilo de vida urbano.
Assim, o mundo rural, não só se torna atractivo enquanto mercado, como
concentra a responsabilidade de preservar o passado e garantir o futuro. O NRA
enquanto sua recriação, condensa precisamente o pendor patrimonial, ecologista e
comercial, associado à ruralidade, com a vantagem de, sendo um espaço destilado,
encenado e acondicionado, poder corresponder ao sonho e às expectativas urbanas
de uma forma optimizada e perfeitamente adaptada a um consumo quotidiano, livre
dos inconvenientes que a “realidade” acarreta.
3. Reflexões e cruzamentos finais
Constituindo uma espécie de campo de fim-de-semana27, que os habitantes
da cidade integram nos seus passeios pelo Parque, o NRA tem uma função, de
certa forma, complementar ao Mata-Sete, que é mais activo durante a semana, com
as actividades educativas para grupos escolares. De qualquer forma, ambos os
objectos podem ser aproximados pelo seu carácter recriativo e pelo facto de
cumprirem funções bastante semelhantes.
O Mata-Sete deve ser perspectivado como uma dupla recriação, em duas
épocas diferentes: num primeiro momento de origem privada e inspirada nas modas
europeias de valorização do ideário pastoral (séc. XIX e princípio do séc. XX), com
um pendor moderno e requintado e, num segundo momento, pela adaptação ao uso
público, em que se reforça o seu potencial pastoral e educativo. Esta adaptação e
abertura à cidade aproximam os dois objectos, no sentido em que, apesar de terem
origens diferentes e terem nascido em épocas distintas, convertem-se ambos em
equipamentos públicos com funções comuns.
27
É de assinalar o facto de o NRA ter uma afluência muito superior ao fim-de-semana, pela proximidade com o
Parque e eventualmente pela feira semanal de produtos biológicos, o que justifica até que a loja de produtos
NaturoCoop esteja fechada aos dias úteis.
186
Capítulo VI
Nesta linha, podemos questionar se o NRA não funcionará como uma versão
contemporânea e pública do Mata-Sete, no sentido em que acaba por constituir uma
recriação da ruralidade adaptada às exigências urbanas, dentro da tendência actual
de valorização patrimonial. De facto, a distância temporal acaba por justificar essa
diferença fundamental, que consiste no facto de o NRA resultar do aproveitamento
de um lugar pré-existente e da sua valorização patrimonial, ao contrário do MataSete, que se enquadra na visão modernista do Conde de Vizela, apesar de tudo,
menos saudosista.
Ainda dentro desta questão, acrescenta-se a possibilidade de o NRA
constituir uma espécie de Mata-Sete democratizado, como um espaço de
valorização do imaginário rural, de origem pública e aberto à cidade. Por outras
palavras, como o emblema da apropriação mainstream do elitismo pastoralista,
outrora reservado às famílias abastadas, sensíveis às modas românticas e com
possibilidades de desfrutar da paisagem campestre, sem a associar ao trabalho e à
dureza da vida do campo.
Esta democratização do ideário pastoral acompanha a abertura do espectro
de patrimonialização, que passa a incluir os conjuntos arquitectónicos e as
manifestações culturais populares e não apenas monumentais, bem como a
massificação do turismo. Por outro lado, sai também facilitada pela facilidade de
recuperação e recriação paisagística de um cenário pastoral, isto porque o quadro
valorizado, sendo singelo e campestre, acaba por ser de fácil e económica
recriação, baseando-se muito na sua “cultura material” (Denis, 1998; Hitchcock,
2000), com a presença de elementos cenográficos domésticos e até corriqueiros
(cestas de vime, alfaias, poços, etc.), associados a uma arquitectura simples e
popular (chaminés, celeiros, casas térreas, etc.) e à presença da fauna e flora de
quinta (hortas, galinhas, árvores de fruto, vinhas, rebanhos, etc.) (Claval, 2003).
Acrescentando, pode dizer-se que a cultura material associada ao mundo
rural, ganha prestígio e valor simbólico e, consequentemente, utilidade e poder
cenográfico, integrando-se nas paisagens urbanas para concretizar os tais quadros
pastorais e bucólicos. No entanto, tal como acontece na composição de cenários
turísticos, a cultura material aproveitada para a “decoração” dos lugares e,
consequentemente, para a exaltação da experiência turística, é cuidadosamente
seleccionada, no sentido de alimentar uma determinada dramatização (neste caso)
da ruralidade. Desta feita, em ambos os objectos estudados e devido à selecção e
187
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
aproveitamento progressivo do seu potencial cénico, a cultura material “original” dos
lugares, difere (principalmente no NRA) daquela que materializa a sua rusticidade na
actualidade.
A valorização contemporânea do mundo rural, constitui uma generalização de
algumas práticas de valorização associadas ao ideário bucólico, que se reforça
sobretudo durante o Romantismo, sendo, de facto, muito interessante pensá-la
como a abertura às massas de um património simbólico, que num passado recente
era reservado a gostos requintados e que, hoje, pelo contrário, é amplamente
veiculado pelas políticas públicas. Estas, por via da generalização do discurso na
sua dimensão estratégica, apoiam-se na estabilidade destes referentes simbólicos
culturalmente enraizados, cuja robustez se deve, em grande medida, ao poder das
elites que, ao longo dos últimos séculos, têm contribuído para elevar a ruralidade a
bucolismo.
Neste contexto e como já foi amplamente exposto neste trabalho, as políticas
culturais e territoriais, constroem paisagens, estratégias de desenvolvimento, criam
equipamentos públicos e programas educativos, dentro de uma estrutura discursiva
multifacetada, que agrega e capitaliza o poder cultural, de um universo simbólico
enraizado, generalizando-se eficazmente em todas as esferas da vida social. Ora, o
enraizamento cultural da valorização da ruralidade e a aparente consensualidade
dos argumentos que a sustentam, justifica-se, em grande medida, pelo facto de os
interesses e perspectivas em torno dos territórios, que moldam e movem este
discurso, serem as hegemónicas, ou seja, as que estão, não apenas no lado das
cidades, mas sobretudo do lado das elites, antes de se generalizarem socialmente.
As paisagens concretizam um ponto de vista estabelecido segundo os
interesses hegemónicos. As instituições e agências do poder têm um espectro de
influência paisagística suficientemente capaz para reformular as paisagens
vernaculares que, à partida, não estariam sob a sua égide (mais directamente ligada
à monumentalidade, por exemplo). É esse o caso do NRA, que ascende a
“paisagem”, no sentido em que se torna um lugar digno de contemplação e fruição e
deixa de ser apenas uma amostra de “campo” e espaço de trabalho de lavoura,
associado a todos os desconfortos e injustiças sociais que historicamente lhe estão
imputados (Zukin, 1991).
É como se o campo se elevasse a paisagem, através do condão da
intervenção urbanística e da promoção simbólica, que reformula as manifestações
188
Capítulo VI
históricas e populares, através da hipérbole ruralista. Constrói-se assim um
microcosmos saudosista em que a paisagem é utilizada como um tema visual e em
que a descontextualização anacrónica do lugar autoriza um reforço do seu potencial
de consumo. A decadência dá lugar à novidade, a utilidade dá lugar ao consumo, o
presente dá lugar a um passado actualizado, enquanto os habitantes dão lugar aos
visitantes, tanto no NRA como no mundo rural (Zukin, 1991).
Voltando ao cruzamento dos casos estudados, é importante reafirmar a sua
coerência em muitos aspectos importantes e sublinhar ambos os objectos, como
uma recriação urbana da arquitectura rural e da iconografia cenográfica que lhe está
associada. Ambas as paisagens ensaiam a reprodução de cenários campestres,
mas estão adaptadas a exigências urbanas de comodidade e modernidade, que as
afastam da rusticidade tosca e singela. Desta feita, estão transformadas em versões
sofisticadas e limpas de quinta, paisagem, quadro rural, em que se combinam
cozinhas rústicas e casas de banho modernas, pormenores arquitectónicos
populares e com travo a saudade, com apontamentos de design moderno, etc.
Disto são exemplos os bancos cobertos de linhas modernas, inspirados nas
ripas de madeira dos espigueiros (no NRA) ou a instalação de Maria Nordman no
Mata-Sete, composta por uma mesa de xisto ladeada de um bebedouro para
pássaros e por um conjunto de ciprestes. Estes elementos contemporâneos e
potencialmente ousados, acrescentados aos conjuntos, longe de serem intrusos no
meio de edifícios valorizados patrimonial e arquitectonicamente, servem a integração
dos lugares no contexto temporal e territorial em que se encontram (a cidade de
hoje), ao mesmo tempo que lhes acrescentam requinte.
Os detalhes de modernidade aproximam os lugares das expectativas de
conforto dos visitantes. Deve ser dito a propósito que, em nenhum dos casos, existe
a cristalização fundamentalista do quadro, ou algum puritanismo exacerbado por
relação à sua preservação patrimonial. De facto, os objectos não são tomados como
sítios históricos sacralizados, que importa manter intactos, pelo contrário, foram
sendo aproveitados de forma adaptada (a usos e exigências evolutivas) e foram
sendo recriados, pelo acrescento de novos elementos (como a estufa e a cabana no
Mata-Sete, as hortas pedagógicas, o picadeiro do NRA, etc.).
É esse potencial plástico que reforça a sua força cenográfica e o poder
adaptativo às novas funções e exigências, para estar à altura dos elevados
standards urbanos de eficiência, conforto, recreação e riqueza iconográfica. Estas
189
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
dinâmicas de preservação selectiva de determinados elementos e sua adaptação
aos novos usos, permite reforçar a ilusão de que evoluímos como civilização, sem a
perda daquilo que de bom seleccionamos do passado (Park & Coppack, 1994).
Neste caso, conservamos o bucolismo rural, excluindo os seus desconfortos e
combinando as conveniências da vida urbana moderna.
Nestes processos de transformação de paisagens, com base numa rede
complexa de imagens, percepções, mitos e estruturas sentimentais associados ao
mundo rural, muitos lugares acabam por tornar-se o negativo fotográfico da sua
realidade histórica (Park & Coppack, 1994). Lugares decadentes ou disfuncionais,
exageradamente povoados ou desertos, transformam-se, através de processos
minuciosos de requalificação, restauro e “maquilhagem”, em paisagens bucólicas e
adoráveis. É quase como um resgate de paisagens familiares, no que diz respeito às
referências estáveis do nosso ideário colectivo (Park & Coppack, 1994; Remy,
2004).
A nostalgia ruralista, para além de uma forte dimensão sentimental e cultural
e de uma poderosa e lucrativa dimensão comercial e promocional (que lhe é
derivada), concretiza-se, de facto, numa vertente cénica, que não pode ser ignorada
(Park & Coppack, 1994). O rural é tratado como um espectáculo e usado como um
tema, ao qual aludem inúmeros lugares, embalados para consumo recreativo e
turístico (Urry, 1990). As encenações e recriações de ambientes rurais acabam por
ter, desta feita, grande correspondência com os chamados “parques temáticos”, por
se basearem na imaginação e por superarem, muitas vezes, a realidade que se
pretende simetrizar (Clavé, 1999).
É comum encontrar na tematização uma obsessão pela “autenticidade
encenada” (MacCannell, 1973) e pela qualidade da cópia, que resulta no paradoxo
de vermos os lugares mais sorridentes na “morte” do que em vida, mais genuínos e
credíveis do que o modelo em que se basearam (Baudrillard, 1981; Frenkel &
Walton, 2000). Numa época em que se reciclam todos os detritos históricos e os
despojos do tempo em passagem, a voragem conservadora assume proporções
hiperbólicas ao revitalizar faculdades, estilos de vida e hábitos perdidos, através da
sua exacerbação (técnica, ideológica, estética, etc.) (Baudrillard, 1982).
Este perfeccionismo está relacionado com dois binómios interessantes que
rodeiam as tentativas de recriação: nostalgia/utopia e simulação/dissimulação. Isto
porque nascem da necessidade de fazer o luto pela perda, restabelecendo valores
190
Capítulo VI
em extinção, suprindo um vazio histórico por suturar, mas estabelecem nessa
referência e alusão ao passado, as directrizes para definir uma utopia, um projecto
de futuro desejável, um sonho a concretizar. Por outro lado, constituem um ensaio
de simulação de um quadro, projectado a partir de referências reais e imaginárias
que, pelo seu carácter assumidamente utópico de upgrade da realidade, exige a
dissimulação de alguns aspectos mais incómodos e realistas.
Pelo facto de vivermos num tempo de grandes transformações, mas também
de um aparente vazio histórico, exacerba-se o fetiche pelo valor perdido, um apego
ao passado, uma fixação no trauma. A história acaba por funcionar como o último
grande mito, pelo poder tranquilizante de oferecer um encadeamento narrativo, num
contexto de grande volatilidade. Esta “era da história”, funciona também como a “era
do romance”, em que o passado é apresentado fabulosamente, sendo mistificado ao
mesmo tempo em que se ensaiam todo o tipo de conservações da sua fugidia
materialidade. A nostalgia exige a restituição. (Baudrillard, 1981).
“Quando o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido.
Sobrevalorização dos mitos de origem e dos signos da realidade. Sobrevalorização
de verdade, de objectividade e de autenticidade de segundo plano. Escalada do
verdadeiro, do vivido, ressurreição do figurativo onde o objecto e a substância
desapareceram.” (Baudrillard, 1981, pág. 14).
As cidades revelam muitas dessas simulações, pelo facto de grande parte da
arquitectura urbana ser de inspiração histórica e revivalista. As festividades
históricas, as reproduções miméticas, as alusões referenciais, as miniaturas e as
tematizações,
constituem
uma
espécie
de
disfarces
para
a
urbanidade
contemporânea e um conjunto de esforços para manter um vínculo “umbilical” com
estilos de vida em extinção ou, simplesmente, apresentados como extintos nas
grandes cidades (Sorkin, 1992).
A nostalgia pelo passado revela o descontentamento com o presente, com a
suposta perda de valores, a desilusão com a ordem estabelecida e o medo em
relação ao futuro. A exploração deste saudosismo nos espaços temáticos,
comerciais e musealizados, acaba por ser eficaz por suprir (suposta e
aparentemente) a necessidade colectiva de lugares de carácter comunitário,
verdadeiramente públicos, com significados estabelecidos colectivamente, livres da
instrumentalização privada e sem a planificação e o design calculista que
caracterizam as cidades contemporâneas, seus edifícios, equipamentos, etc. (Goss,
191
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
1993). Por estas razões, a conservação selectiva e criteriosa dos lugares e a criação
de ambientes temáticos e históricos, remete para a utopia.
Ora, o saudosismo por alguns elementos do passado e a criação de quadros
que, baseando-se neles, os ultrapassam em perfeição, sofisticação, segurança e
beleza, acabam por revelar as linhas com que se projectam os lugares utópicos, as
paisagens desejadas, o mundo perfeito. As simulações e encenações funcionam
como uma apresentação de alternativas à realidade quotidiana, pelo que, enquanto
paisagens, podem ser lidas como uma expressão palpável do nosso desejo de vida
em colectividade (Sorkin, 1992).
Num mundo hiper-simulado em que os mapas precedem e engendram os
territórios e o real perde a racionalidade, podendo ser virtual, infinitamente
reproduzível e em que a noção de viabilidade é muito abrangente e podem
concretizar-se materialmente quase todos os sonhos, mesmo que estapafúrdios, a
simulação consegue esbater as diferenças entre o verdadeiro e o falso, o real e o
imaginário (Baudrillard, 1981). A simulação assente no passado apresenta uma
historicidade genérica, através da imagética pura, que prescinde da realidade e é de
imediata apreensão, por estar simplificada em alguns referentes simbólicos e
iconográficos convencionais e amplamente disseminados (Sorkin, 1992).
Finge-se o que não se tem e dissimula-se o que não se quer ter (Baudrillard,
1981). Sendo que, neste caso, a cidade dissimula as suas carências, com relicários
e lugares de celebração mnemónica, simulando paisagens imaginárias. No caso do
NRA, por exemplo, em que se aproveita um conjunto pré-existente, é clara a
dissimulação de muitas das características e de muitos dos elementos, que se
afastam da referência romântica a que se almeja. Por outras palavras, simulam-se
ambientes rurais em que estão dissimulados os aspectos incómodos, numa espécie
de sanitarização histórica.
Esta arquitectura “semiótica”, no sentido em que joga com referências e
significados, cria ambientes de falsa familiaridade, mas que simultaneamente se
distanciam da cidade quotidiana e “real” (Sorkin, 1992). De facto, o lugar temático
destaca-se pela diferença, oferecendo um ambiente próprio à recreação e ao
consumo, sendo a ruptura com o habitual, um dos elementos preponderantes na
captação de turistas, consumidores, curiosos, etc. (Frenkel & Walton, 2000). A
alienação criada pelos ambientes acondicionados e cenográficos e em que,
nomeadamente, se incita ao consumo e à recreação, é concretizada precisamente
192
Capítulo VI
por uma patine de nostalgia, por um toque carnavalesco e pela essência icónica de
se estar “num outro lugar” (Goss, 1993).
A atracção pela “fuga” e a necessidade de romper com a rotina da cidade,
leva a que os urbanitas ensaiem estratégias de evasão, que vão desde o turismo, às
casas de campo, passando pelos espaços temáticos e, neste caso, de recriação de
uma ruralidade depurada. Esta associação entre ruralidade e fuga à cidade,
reencontro com as raízes culturais e contacto com a natureza, eleva o poder
comercial do mundo rural e acrescenta valor simbólico aos seus produtos,
alimentares, turísticos, imobiliários, etc. (Bessiére, 1998). A este respeito e,
relacionando com os objectos estudados, importa relembrar a importância que os
produtos alimentares ditos “da terra” assumem neste contexto.
Não deve ser descurado o facto do comércio presente no NRA ser quase
exclusivamente dedicado a bens alimentares e, especificamente, de origem
biológica, regional ou de “comércio justo” e que nos espaços comerciais da
Fundação de Serralves sejam vendidos produtos alimentares ditos “gourmet”, numa
lógica de associação com a quinta do Mata-Sete. O valor acrescentado deste tipo de
produtos, que tantas vezes ultrapassam a condição de simples alimentos e são
oferecidos como lembranças pessoais, ou experiências de degustação para
ocasiões especiais, faz com que sejam encarados e utilizados como prolongamentos
da “fuga”, após a visita (Bessiére, 1998).
O consumo enquanto statement, tomada de posição, afirmação identitária e
escolha ideológica, reforça a assunção de que a aquisição deste tipo de produto
pode ser entendida como um reforço das estratégias de evasão, naquilo que se
parece com uma “fuga de levar para casa”. Como um souvenir da experiência
turística, este tipo de produto alimentar, adquirido nos espaços de recriação, tem no
local de compra (enquanto contexto com um determinado poder simbólico) um
acrescento valorativo importante, por conotação e associação. O seu pendor
alternativo (por serem produtos biológicos certificados, tradicionais e dentro da
categoria “gourmet” e, portanto, diferentes dos consumidos no quotidiano ou, ainda,
por estarem associados ao trabalho de Organizações Não Governamentais com
preocupações ecológicas e humanistas) em associação com a alteridade do próprio
contexto (que rompe com a cidade), reforça o corte ideológico, a fuga e a rejeição
simbólica para com a ordem estabelecida, a norma e o modelo de civilização.
193
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
Continuando e dentro da ideia de ruptura e fuga à cidade, não é de descurar o
facto de ambos os objectos estarem integrados nos dois maiores parques urbanos
da cidade e de terem ambos uma dimensão educativa importante, ao nível da
sensibilização das crianças para as preocupações ambientais. Ora, isto remete,
como já referimos, para a associação da ruralidade com os valores ecologistas e
com a harmonia entre o Homem e a Natureza, bem como para a missão do mundo
rural preservar o que a cidade supostamente se arrisca a destruir e em servir-lhe de
exemplo de sustentabilidade, integração pacífica e respeitadora com o meio
ambiente, de estilos de vida saudáveis e de baixo impacto contaminante, etc.
A ligação dos parques urbanos com a ideia de ruralidade é latente desde a
sua origem histórica, no sentido em que estes nasceram da necessidade de
preservar ou trazer para o corpo da cidade, alguns dos elementos naturais e
ascéticos, associados ao mundo rural, nomeadamente no contexto de forte
urbanização resultante da Revolução Industrial (Burchardt, 2002; Jones & Wills,
2005). O parque representa a natureza, numa dimensão controlada, doméstica e
confortável, que, tal como o rural, concretiza o controlo harmonioso da natureza pelo
Homem (Cauquelin, 2008). O parque, tal como o mundo rural, deve ser acolhedor,
esperando-se dele que eleve moralmente o Homem na sua vivência, por este
contacto do espírito com a natureza e que funcione como um pulmão verde para a
cidade, tantas vezes contaminada e insalubre (Jones & Wills, 2005).
“The reason why reformers and planners of the nineteen century chose the
park over playgrounds, town squares and amusement complexes had to do with
education. (…) The park represented a moral landscape. The crucial ingredient that
lent the park this hallowed reputation as a site of redemption and emancipation was
the presence of nature itself. With its landscape of trees, meadows, lakes and
flowers, the city park represented a conscious attempt to re-create the country in the
city. (…) Park popularity pivoted on the concept of nature as a repository of purity,
simplicity, harmony and morality – rendering an ideal foil for the perceived
degradation, complexity, tension and corruption of city life.” (Jones & Wills, 2005,
pág. 45).
De facto, em grande medida por influência dos pensadores do Romantismo,
generalizou-se a ideia, nas sociedades ocidentais, de que a vida rural (pelo
sacralizado contacto com a terra) garante uma vida mais natural e portanto uma
existência mais realizada aos indivíduos. Ainda dentro desta linha de pensamento, o
194
Capítulo VI
campo é visto como o “lado bom” da civilização, onde ainda existe o espírito
comunitário, a existência plena e natural do Homem, a harmonia com a natureza e
uma estabilidade moral e familiar preservada. Desta feita, o mundo rural é elevado a
refúgio mental e físico para a vida urbana e civilizacional (Bunce, 1994).
“O jardim é, com efeito, a imagem daquilo que de melhor existe no homem, ao
residir aí, torna-se semelhante ao que o envolve.” (Cauquelin, 2008, pág. 48).
Acrescentando, é comum nos discursos mediáticos e populares, tomar-se as
questões ambientais como algo que diz respeito a uma outra esfera (que não a
urbana) – o mundo rural. Este representa o exemplo de boas práticas ecológicas e
por isso mesmo, os parques acabam por funcionar como ensaios de representação
do que idealmente deveria ser a paisagem urbana (Crouch, 1994). Não só enquanto
espaços harmoniosos, naturais e saudáveis, mas também como espaços abertos,
livres e públicos, sobretudo num contexto em que as cidades se assumem como
espaços hiper-privatizados e, pelo contrário, os parques urbanos se democratizam
progressivamente (Jones & Wills, 2005).
A natureza, as paisagens rurais, a arquitectura popular, as pequenas aldeias
e a ideia de “campo”, estabelecida culturalmente nos imaginários colectivos, têm
influenciado em grande medida o tratamento e intervenções feitas dentro da própria
cidade, muito dentro do que são os esforços em lograr maior qualidade de vida e
sustentabilidade urbana. A construção de parques, a preservação de espaços
verdes, a construção de subúrbios ajardinados, entre outros exemplos, funcionam
como tentativas de aproximar a paisagem urbana às referências paisagísticas rurais
e reflectem também a influência dos valores ambientalistas nas cidades (Bunce,
1994).
Por este motivo também, procurar as manifestações destas dinâmicas no
corpo da cidade, não deixa de ser importante, dentro da linha de perceber no
território as influências, não só dos discursos, estratégias políticas e modas
dominantes, mas sobretudo das grandes linhas culturais, axiológicas e históricas do
nosso tempo. As exigências sociais, logísticas, políticas, económicas das
civilizações, invariavelmente articuladas ao campo das ideias, têm influência nas
paisagens e na configuração física do mundo. Para perceber esta relação é
importante confrontar a realidade empírica com a sua dimensão teórica, reflexiva e
discursiva. Por outras palavras, é importante cruzar as concepções que
195
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
colectivamente se tecem em torno do mundo e a forma como estas são projectadas
na paisagem (Duncan, 1990).
Desta forma, ensaia-se nesta reflexão a articulação entre a valorização de
uma ruralidade bucólica, alternativa à cidade, com aquilo que são as crises,
necessidades, ansiedades e desejos da civilização, bem como com um exemplo de
sua influência nas paisagens urbanas (os espaços de recriação e reencontro com o
rural
romantizado).
Escolhemos
procurar
estes
impactos
na
paisagem,
concretamente na paisagem urbana e, mais precisamente em paisagens
“fantasiosas”, pela urbanidade do discurso (como já foi referido), pelo poder deste
tipo de lugares imaginados em sugerir as utopias colectivas e em definir, por
contraste, aquilo que não se quer para os territórios (como também já foi exposto),
mas, antes disso e simplesmente, pelo poder simbólico das paisagens.
A paisagem é um dos elementos centrais de um sistema cultural, por
funcionar como uma espécie de autobiografia das sociedades. Esta, mesmo que
seja escrita inconscientemente, é orquestrada pelos seus mentores. Assim,
enquanto composição de diferentes objectos, este texto ou sistema significante,
comunica um sistema social, revelando sobretudo o que os poderes ideológicos
dominantes querem que se reitere materialmente. A paisagem reifica e incorpora, de
forma aparentemente fixa, as linhas ideológicas do discurso hegemónico. No
entanto, uma espécie de “amnésia cultural”, provocada pela naturalização do
discurso e pela habituação quotidiana às paisagens, mascara o seu carácter
ideológico e estratégico, ao mesmo tempo que reforça o seu poder (Duncan, 1990).
Vivendo nós num mundo hiper-visual, em que tudo é engolido pela voragem
imagética e até os territórios físicos se tornam objectos de consumo contemplativo
(através da generalização de actividades como o sight-seeing, por exemplo) e de
reificação iconográfica, as paisagens, enquanto matéria visual e recreativa, são
instrumentos e recursos poderosos (Brett, 1996). Ora, se pensarmos na importância
estratégica, económica e cultural que o turismo adquire na actualidade, acabamos
por reforçar a relevância do poder de produzir paisagem e associá-la aos esforços
que, um pouco por todo mundo, têm sido feitos para, através da requalificação dos
territórios,
lograr
distintividade,
competitividade,
valorização
patrimonial,
correspondência para com as representações sociais em redor dos lugares, da
natureza, etc. (Urry, 1995).
196
Capítulo VI
De facto, políticos, comunidades locais, técnicos, entre outras entidades, vêm
sendo sensíveis à importância estratégica de melhorar e promover a imagem física e
simbólica dos territórios, no sentido de incitar ao seu consumo visual e turístico,
dentro dos mercados regionais, nacionais e globais fortemente competitivos (Urry,
1995). O trabalho de produção de paisagem está, assim, suportado por interesses
económicos e orientações estratégicas, bem como por patrimónios simbólicos e
culturais, habilmente geridos e utilizados, na composição de quadros que se
pretendem atractivos, competitivos e, portanto, fiéis a todas as expectativas.
“The spatial consequences of combined social and economic power suggest
that landscape is the major cultural product of our time.” (Zukin, 1991, pág. 22).
Pelo seu poder, é importante perceber as “mensagens” transmitidas pela
paisagem e a forma como estas são dadas a ler, ou seja, é eminente desconstruir o
significado das paisagens e a sua retórica (Duncan, 1990). Tal como nos
propusemos a fazer nesta etapa da reflexão, para chegar à desconstrução dessa
retórica, é importante que se tenha em conta o impacto físico, a materialidade e
efectividade do discurso, bem como a forma como este é inscrito na paisagem.
Pegando na paisagem como um texto, pretende ler-se a mensagem e identificar as
figuras de estilo usadas para transmiti-la: as alegorias e alusões, as representações
do todo pela parte (supostamente) representativa, ou as miniaturas, as repetições,
as hipérboles, etc. (Duncan, 1990).
Desta feita, se olharmos para os objectos paisagísticos estudados,
percebemos que uma imagem de ruralidade limpa, ordenada, recreativa, educativa e
ecológica, é veiculada, por via de uma retórica que se faz valer de alusões à
arquitectura popular campestre, à hipérbole da sua iconografia rural simplificada
(chaminés, espigueiros, cabanas, hortas, entre outros elementos amplamente
disseminados socialmente em associação à vida no campo) e à metonimia, já que,
acaba por sugerir-se que estes lugares figuram em representação da totalidade do
mundo rural.
As paisagens, enquanto produtos de interesses, poderes, conveniências e
hegemonias, acabam por funcionar como narrativas moralizantes e por ser
normativas e prescritivas, no sentido em que concretizam materialmente e de forma
intencional e orquestrada, as orientações ideológicas de que são fruto (Brett, 1996).
197
As marcas do discurso no corpo da cidade – Uma etnografia urbana ao encontro da ruralidade recriada
“This double movement is a profound one: architecture is always dream and
function, [an] impression of a utopia and instrument of a convenience.” (Barthes,
1979, pág. 6).
Por isso mesmo, a sua análise possibilita o acesso às orientações que a
moldaram enquanto projecto, sendo uma janela para os valores, necessidades e
motivações dos seus autores.
“A direct study of the physical manifestations of heritage – quite literally its
construction – reveals something of the values and ideological functions of the
concept.” (Brett, 1996, pág. 12).
Falar de paisagem é falar de imaginação, sendo que no caso dos objectos em
estudo, esta ligação é ainda mais clara. Urbanistas, arquitectos, artistas, trabalham
todos com o imaginário como matéria-prima. Desta feita, sai reforçada a importância
da evolução dos imaginários, precisamente porque a evolução das imagens,
representações, projectos e ideologias que precedem as paisagens, resulta na
evolução dos territórios e portanto até das sociedades. Assim, tratar a cidade
imaginária é tratar do seu tecido urbano e da forma como se organiza o seu espaço
social, os seus quotidianos, a sua existência concreta (Augé, 1997).
“Imagination is after all the place where our landscapes begin” (Hoppkins,
1998, pág. 79).
198
VII.
Conclusões.
Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.
O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo.
Sem data, Bernardo Soares (Fernando Pessoa).
28
Após percorrido um intenso caminho de questionamento e desconstrução do
discurso de reinvenção da ruralidade, importa recapitular brevemente as principais
ideias e concretizar os contornos do projecto de ruralidade veiculado. Ou seja,
importa fazer desembocar este percurso reflexivo em torno do discurso, no projecto
que este faz pairar sob os territórios (quase como um programa que impõe
directrizes funcionais e estéticas) e que acaba por orientar as expectativas e
políticas de desenvolvimento.
Assim e antes de mais, deve ser reforçado que tomámos como objecto de
debate o discurso de valorização da ruralidade, num quadro de simultânea
generalização da ideia de “crise” funcional, económica e demográfica nas áreas
rurais. Assumimos a intenção de discuti-lo teoricamente e de forma genérica, para
poder pensá-lo no seu carácter desespacializado e abstracto, sem ter de
circunscrevê-lo às circunstancialidades de um contexto ou território. Naturalizado,
disseminado e homogeneizador de todas as ruralidades, que nele partilham
características, crises, soluções e recursos, o discurso é veiculado em diversas
esferas, sendo difícil abraçar analiticamente toda a sua complexidade.
Dividido e discutido em três dimensões fundamentais, o discurso revela-se
nas suas múltiplas sobreposições de registos (político e técnico, cultural e artístico,
promocional e comercial), no sentido em que vive de um jogo de dependências
mútuas entre diversas vozes, que o instrumentalizam e alimentam simultaneamente,
reforçando o seu poder e coerência. Simplificando, o discurso é concretizado
estrategicamente por um conjunto de políticas de desenvolvimento rural, baseadas
28
Excertos retirados do “Livro do Desassossego, por Bernardo Soares” (Vol. II).
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
num potencial patrimonial atribuído à ruralidade e legitimado pela sua enraizada
romantização cultural, enquanto, no processo, institucionaliza esta valorização e
ajuda a “vender” o mundo rural e um conjunto de produtos que lhe estão associados.
Desta feita, mesmo que em âmbitos e registos diferentes, salta à vista a
unanimidade em torno da valorização patrimonial da ruralidade romantizada e do
seu potencial comercial.
A
robustez
deste
discurso
está
fortemente
relacionada
com
a
consensualidade de dois valores transversais à axiologia das sociedades ocidentais
e que funcionam como poderosos argumentos a favor da valorização da ruralidade.
O binómio cultura/natureza, condensado na sacralização dos patrimónios culturais e
naturais e materializado nos esforços de sua preservação, centraliza a ruralidade
enquanto reserva do que está em risco nas cidades e no nosso tempo histórico.
Nesta lógica, precipitam-se as missões fundamentais para as áreas rurais, no que se
configura como um programa de cariz conservacionista para a ruralidade: preservar
o passado (a memória colectiva, as tradições, as identidades culturais, a coesão
social, etc.) e garantir o futuro (a sustentabilidade ambiental, a chave da harmonia
das relações entre Homem e natureza, etc.).
Fazendo sentido enquanto contraponto à cidade e a um modelo de
desenvolvimento insustentável, sendo moldada pelas expectativas urbanas de
consumo e evasão, estando orientada para o mercado urbano e favorecendo um
conjunto de interesses que lhe são externos e que remetem para a cidade, esta
ruralidade deve ser encarada como um projecto urbano. Desta feita, assumimos a
urbanidade do discurso e, por isso mesmo, fomos ao encontro de exemplos de sua
materialização e alimentação na anatomia da cidade, para perceber como se
desenha e inculca nos imaginários urbanos este sonho ruralista.
Este percurso serviu para explorar a assunção da urbanidade do projecto e
para agregar, pela sua remissão a uma fonte comum, um conjunto de questões e
temáticas, habitualmente tomadas de forma divorciada, mas que brotam do discurso
maior de reinvenção da ruralidade. Assim, foi nossa intenção construir um quadro
teórico coeso, organizado e clarificador, que servisse a interpretação das múltiplas
realidades empíricas associadas ao discurso/projecto de ruralidade reinventada
(suportes, manifestações do mesmo, consequências, seu consumo e promoção,
etc.).
200
Capítulo VII
Posto isto, consideramos que grande parte dos objectivos da pesquisa foram
sendo cumpridos ao longo do desenvolvimento desta dissertação e que resta,
sobretudo, concretizar de forma mais directa e sistematizada, as linhas que compõe
o projecto de ruralidade veiculado pelo discurso e adiantar algumas das suas
possíveis consequências para os territórios. Por outras palavras, importa
sistematizar os contornos da ruralidade depurada, que se impõe por via destas
dinâmicas (discursivas e portanto políticas, culturais e comerciais), para esclarecer o
que é esperado das áreas rurais e o que podem estas esperar neste contexto.
Para isto, enunciaremos as principais ideias e conclusões a destacar do
percurso desenvolvido, já que toda esta discussão serviu para ir desvendando este
projecto, por via da desconstrução do discurso que o tece, difunde e concretiza. Que
ruralidade é esta, a que chamamos de “reinventada”? Quais os seus contornos?
Que consequências parece precipitar para as áreas rurais? São questões que têm
resposta por via da sistematização das conclusões a extrair desta reflexão e que
importa ver satisfeitas.
1. Os contornos desta ruralidade reinventada.
(o que se espera das áreas rurais)
Em primeiro lugar importa reforçar que o interesse crescente na ruralidade,
que é visível em diversas esferas da vida social e que foi amplamente explorado ao
longo deste trabalho, é fortemente selectivo, dizendo respeito a uma versão
específica e simplificada de mundo rural. É um olhar, um interesse ou um discurso,
que exclui e enfatiza determinadas dimensões da ruralidade e, neste processo de
destilação, depura as características idílicas que melhor servem de contraponto à
urbanidade dominante. Desta feita, assistimos a uma simplificação da ruralidade e à
sua conversão naquilo que é amigável dentro dos parâmetros dominantes.
A diversidade e complexidade dos territórios rurais são simplificadas
discursivamente, para reforçar uma ruralidade coesa e de apreensão imediata.
Nesta lógica, as paisagens mesmo sendo apresentadas como reais e acessíveis,
históricas e patrimoniais, passam a fazer parte do domínio dos mitos. Isto porque
ganham protagonismo e valor, ao estarem fora do tempo e da norma (pela aura de
imutabilidade de que gozam e por funcionarem enquanto alteridade) e porque são
destiladas exaustivamente até ao referente essencial que facilita a promoção, o
201
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
entendimento, a estandardização, o consumo e a repetição (Santana Talavera,
2002).
Esta é uma ruralidade depurada e simplificada.
Esta simplificação e adaptação às expectativas de conforto e consumo
urbanos, não só é clara nos casos de recriação estudados empiricamente nesta
pesquisa, como é comum em áreas rurais convertidas em destino turístico,
alargando-se discursivamente à ruralidade representativa. Os lugares (pela
recriação ou turistificação) e a ruralidade como categoria territorial (nos discursos e
representações culturais) vão se afastando dos elementos objectivos que os
ancoram a um contexto (geográfico, social e histórico), ao mesmo tempo que se
moldam ao ideal rural (Santana Talavera, 2002).
Assim, assistimos à difusão de uma versão limpa e amigável da ruralidade,
em que se excluem os desconfortos do trabalho agrícola, a insalubridade dos
animais, a decadência ou a modernização das actividades produtivas, etc. Esta
ruralidade cómoda aproxima-se do ideal rural que, afinal, é a matéria-prima deste
discurso e o arquétipo de perfeição ruralista que paira sobre os territórios e orienta
os seus esforços de reinvenção. Desta feita (e como vimos no casos empíricos
analisados), dissimulam-se determinados aspectos, menos condizentes com o
modelo de ruralidade romantizada (a decadência e insalubridade do NRA, por
exemplo) e simulam-se outros, para compor o quadro (enormes equipamentos
agrícolas como um celeiro e um lagar para uma produção quase inexistente, no caso
do Mata-Sete).
Esta é uma ruralidade idílica.
Outro aspecto que nunca é demais sublinhar, é que o apuramento, a
valorização, a promoção e o aproveitamento desta ruralidade, tem um carácter
externo e que as preocupações institucionais com as questões rurais brotam,
sobretudo, daquilo que são as necessidades urbanas. Este projecto de ruralidade
tem um programa funcional, uma configuração paisagística e um valor simbólico e
económico que respondem às expectativas dominantes. Em todas as dimensões do
discurso que a precipita (nas esferas política, cultural e económica), nos valores
sociais que legitimam a suas “novas” funcionalidades, nos circuitos de sua gestão e
consumo, etc., esta ruralidade é desenhada por mãos alheias.
“De tudo o que ficou dito anteriormente podemos concluir que as políticas
para o mundo rural em Portugal ao mesmo tempo que reconhecem (e materializam)
202
Capítulo VII
a importância desse mesmo mundo para a sociedade entendida globalmente e que
para ele propõem estratégias de desenvolvimento social e económico, acabam por
dar resposta quase exclusivamente às necessidades criadas externamente. (…) a
ênfase na protecção e preservação do ambiente e da cultura rurais, tendo como
objectivo explícito a promoção do turismo, do recreio e do lazer revela uma atitude
institucional de reinvenção do rural que não é compatível, na maior parte dos casos,
com as aspirações, interesses e necessidades das populações locais. “ (Figueiredo,
2003 a, pág. 16).
“O rural proposto pelas políticas de desenvolvimento nacionais e comunitárias
é (…) uma aposta num rural que aparentemente apenas existe na imaginação de
largos sectores da população urbana e dos técnicos responsáveis pela elaboração e
implementação dos programas e medidas de desenvolvimento.” (Figueiredo, 2003 a,
pág. 16).
Esta é uma ruralidade urbana.
Desta feita, faz sentido dizer que esta ruralidade, mais do que uma categoria
territorial, uma paisagem simbólica ou uma bateria de representações, destaca-se
enquanto recurso. Um recurso para reinvenção das áreas rurais e para a reversão
da “crise” que lhes está associada. Um recurso para a indústria do património e do
turismo, em permanente renovação e sempre em busca de novos mercados e
produtos. Um recurso para o capitalismo, que a reaproveita sob novas lógicas de
rentabilização, após um período de desadequação funcional. Um recurso para a
cidade, enquanto bem de consumo, mercado, referente, ponto de fuga, contraponto,
alteridade, etc.
Esta ruralidade é um recurso.
Acrescentando, há que apontar um outro traço essencial para compor esta
ruralidade desejada – a sua aura de imutabilidade. O carácter genérico,
descontextualizado e arquetípico que a define, faz como que se olhe para o mundo
rural como um “fóssil”, em que estão cristalizadas as boas práticas de um passado
romantizado, ou como um enclave (felizmente) intocado pelo progresso. A vantagem
ilusória desta ruralidade e o seu poder enquanto contraponto à cidade e à
civilização, prendem-se precisamente com o facto de esta funcionar como uma
espécie de variável constante que serve de referência no caos.
Neste contexto, o “atraso” evolutivo e a suposta estagnação do mundo rural
são convertidos discursivamente numa mais-valia. E tendo em conta esta
203
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
valorização da “estabilidade” rural, chega a ser paradoxal constatar que, na verdade,
este mesmo processo de reinvenção simbólica e estrutural é, em si mesmo, a
demonstração cabal da falsidade dessa imutabilidade. Já que na verdade, as áreas
rurais não são de forma nenhuma estáveis ou imutáveis, ao contrário desta
ruralidade arquetípica e mitificada.
Esta ruralidade é imutável.
Ora, esta ausência de historicidade, enquanto qualidade conservacionista das
áreas rurais, remete para ideia de que estas devem funcionar como uma espécie de
reserva ecológica e cultural. O mundo rural deve ser uma reserva da ruralidade,
enquanto arquétipo cultural que condensa estilos de vida, valores, práticas, relações
sociais, identidades, etc., ou seja, os elementos que, supostamente, estão em vias
de extinção nas sociedades ocidentais. Funcionando como um depósito daquilo que
se perspectiva e constrói discursiva e culturalmente como rural e sendo mais fiel a
paisagens imaginadas do que a paisagens concretas, esta ruralidade é pautada por
um conservacionismo selectivo e muito associado ao chamado ideal rural (aliás
como é patente no caso do NRA).
O mundo rural representa, desta feita, uma reserva natural e ecológica, uma
reserva patrimonial, mas transversalmente uma reserva moral/moralizante, num
planeta em risco e num mundo carente de referências e “bancos de estabilidade”.
Por outro lado, faz sentido enquanto reserva de si próprio, no sentido em que a sua
valorização é estimulada, em primeiro lugar, pela suposta iminência do seu
desaparecimento. Ora, se tivermos em conta a sua associação com os valores em
risco na contemporaneidade, a sua fragilidade demográfica e evolutiva e a obsessão
patrimonialista que caracteriza as nossas sociedades, a sua elevação a reserva é,
mais do que uma valorização, um repto e a atribuição de uma função (Figueiredo,
2003; 2003 a; 2003 b).
Esta ruralidade é uma reserva ecológica e cultural.
Essa ruralidade a conservar tem, como foi dito anteriormente, duas
dimensões fundamentais – a patrimonial e a ecológica – e, nestes âmbitos, destacase também pela sua utilidade recreativa e consumível. Isto porque está muito
associada ao turismo e a actividades de lazer, normalmente relacionadas com a
natureza ou a gastronomia, funcionando como um pretexto, um suporte e um espaço
de consumo (Urry, 1995). Para além da terciarização e turistificação das áreas rurais
propriamente ditas, que deixam de ser produtivas e passam a servir de palco para o
204
Capítulo VII
consumo, a ruralidade, enquanto referente simbólico com uma carga muito positiva,
é instrumentalizado para fazer vender todo o tipo de produtos, desde bens
alimentares (de origem rural ou não) até condomínios de habitação, clínicas e casas
de repouso, mobiliário, equipamento para jardins, etc.
Esta ruralidade é consumível.
A ruralidade produtiva deu lugar à ruralidade referencial, patrimonial,
simbólica, lúdica e, portanto, consumível, mas também à ruralidade educativa. Já
que, enquanto reserva, é um palco para o contacto urbano com o (que é construído
como sendo o seu) passado, com as raízes e as tradições, mas também com a
natureza e as boas práticas ecológicas. A associação entre ruralidade e educação
ambiental é muito estreita (nomeadamente nos dois casos empíricos estudados) e a
sua importância enquanto referência cultural, do que devem ser as relações entre o
Homem e a natureza e até dentro do seu próprio âmbito comunitário, continua a
pairar sob a cidade (tida como individualista, insustentável, desvinculada…). O rural
funciona como exemplo moralizante e também como o “último” ponto de contacto do
Homem urbano com a (ideia de) natureza.
Esta ruralidade é educativa.
Por todas estas razões, o mundo rural é visto como um refúgio ou um escape,
um contexto apartado dos desconfortos quotidianos, onde é possível encontrar a paz
e a qualidade de vida. Quer como paraíso de fim-de-semana, quer como “valor
refúgio” que apazigua as consciências e mantém a esperança no futuro, funciona
como um santuário ou um ponto de fuga, para as ansiedades urbanas e da
civilização. Enquanto referência, reserva ou alteridade, esta ruralidade é um escape
para a urbanidade hegemónica. Assim, o rural imaginário torna-se essencial para a
saúde da cidade real, premente, dominante, omnipresente (Urry, 1995).
Esta ruralidade é um escape.
De qualquer forma, se esta ruralidade ganha centralidade e valor enquanto
contraponto à cidade, não chega a alcançar o estatuto de alternativa real, no sentido
em que não se verificam fluxos de êxodo urbano significativos (pelo menos nos
países do Sul da Europa), nem se apresenta como um modelo territorial e de
desenvolvimento passível de funcionar como um substituto estrutural viável, no
contexto actual. Por outras palavras, apesar de discursivamente ser apresentada
como desejável e de constituir uma referência comparativa, para as vozes que
alimentam o criticismo que rodeia o nosso modelo urbano-cêntrico de organização
205
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
social e económica, esta ruralidade não se precipita como uma proposta viável de
alternativa.
Esta ruralidade funciona como alteridade, mais do que como alternativa.
Sendo uma referência, um arquétipo e um modelo de território depurado e
radicalizado, esta ruralidade é mais “rural” do que a própria realidade. Enquanto
construção idealizada, ultrapassa a corriqueira materialidade dos lugares concretos,
dos quais se espera uma aproximação ao mito, sob pena de não sobreviverem à
exigência da comparação. Desta feita, quer nos cenários de recriação estudados,
quer nas concepções discursivas em torno das áreas rurais, é dado um destaque à
cultura material, aos estilos arquitectónicos e decorativos, às iconografias e às
funcionalidades que servem a dramatização da ruralidade real. Os territórios rurais
traduzem-se, assim, em espaços hiper-rurais, para facilitar a sua leitura, o seu
consumo e a sua performance, enquanto tal.
Esta é uma ruralidade hiper-rural.
Importa ainda reforçar a ideia de que estamos perante uma versão
democratizada da ruralidade valorizada, no sentido em que, apesar de se ter
massificado e não estar mais reservada a uma elite de gosto refinado (como no
passado), continua a ser um “valor” e a ser elevada a objecto de culto, sacralização,
fruição e conservação. Estando longe do património monumental e sendo próxima
dos patrimónios vernaculares, sendo de fácil recriação, encenação e dramatização,
estando presente em diversas esferas da vida social e quotidiana, no espaço da
cidade e no mercado de consumo (em associação a todo o tipo de produtos), a
ruralidade idílica está democratizada.
Esta é uma ruralidade democratizada.
Contudo, o mesmo não pode ser dito da sua rentabilização enquanto
mercado, valor capitalizável, território, solo ou força produtiva, que não tem revertido
a favor do desenvolvimento local e regional, como seria desejável, e tem pouco de
endógena ou redistributiva. A propósito, importa questionar quais as consequências
deste processo de reinvenção da ruralidade para os territórios rurais em concreto, ou
seja, urge enunciar os possíveis impactos deste modelo de ruralidade que, como
vimos, tem orientado as políticas territoriais.
Se os territórios são incentivados a cumprir este programa, a concretizar este
projecto e a corresponder às expectativas urbanas, é sem dúvida importante
conjecturar a respeito dos resultados da sua aplicação. Enquanto solução para a
206
Capítulo VII
crise do mundo rural e bálsamo para a falta de perspectivas de futuro, esta
reinvenção surge (supostamente) para contrapor o seu desaparecimento. No
entanto, podemos perguntar qual o preço desta ressurreição e se esta não será, em
si mesma, um desaparecimento do rural real, que precipitou esta valorização num
primeiro momento e cuja decadência tem sido tão lamentada (Figueiredo, 2003 a).
Assim, sabendo o que é esperado das áreas rurais, importa discutir o que
podem estas esperar neste contexto.
2. As possíveis consequências deste projecto de ruralidade.
(o que podem as áreas rurais esperar neste contexto)
As possíveis consequências deste projecto estão obviamente relacionadas
com a sua orientação e depreendem-se pela programação funcional que lhe está
associada. Neste sentido, podemos especular em torno das suas diversas
possibilidades, por entre esta recapitulação das propostas que discursivamente se
apresentam às áreas rurais. Antes disso, importa salvaguardar que aquilo que aqui
se ensaia é uma reflexão acerca das eventuais consequências da concretização do
projecto de ruralidade veiculado pelo discurso, num plano, mais uma vez, genérico e
desespacializado.
Isto porque, como já foi dito, pretende discutir-se o discurso e seu projecto de
ruralidade (e neste ponto as suas possíveis consequências) de forma abrangente e
genérica, já que é desta forma que são apresentados como panaceia para as áreas
rurais em crise. Não queremos, também aqui, circunscrever a reflexão à
circunstancialidade de um lugar concreto, de um projecto particular ou de um
exemplo específico.
Estando desconstruído o discurso e desenhado o seu projecto para todos os
territórios que cabem na sua definição de crise, queremos aqui pensar e adiantar as
suas sequelas prováveis, de forma igualmente aglutinadora e abrangente. Por outro
lado, importa também referir que, sendo este um projecto de ruralidade em aplicação
e, portanto, ainda em desenvolvimento, qualquer tentativa de adiantamento dos seus
resultados, acaba por ser conjectural.
Remetendo para o que foi dito anteriormente, este processo de reinvenção da
ruralidade favorece uma simplificação, no sentido em que contribui para que a
complexidade
das
realidades
territoriais
seja
reduzida
a
uma
versão
207
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
“monocromática” e linear, que seja de fácil apropriação e leitura. Não é só a ideia de
ruralidade que se estreita, os lugares também são reduzidos ao denominador
comum estabelecido pela ruralidade idílica, por via da delapidação dos seus
múltiplos significados, grupos e funcionalidades. Por outras palavras, a ruralidade
patrimonial, recreativa e consumível agiganta-se, ao ponto de ocultar, ou passar a
representar, todas as outras realidades rurais, ao mesmo tempo que os lugares, que
antes acumulavam diversos usos e apropriações, correm o risco de afunilar para ir
de encontro ao programa discursivamente estabelecido.
Constrói-se discursivamente uma imagem agregadora da ruralidade, ao
mesmo tempo que, para aproveitar esta tendência cultural de valorização do rural,
se promovem os territórios dentro desta lógica simplificadora. Desta feita, espera-se
do mundo rural que corresponda à ideia sintética do ideal, que domina os nossos
imaginários colectivos, e negoceiam-se visibilidades locais, por via destes códigos,
numa tradução redutora das diversidades territoriais. Esta simplificação acaba,
portanto, por condicionar o olhar sobre as localidades, a sua gestão, a sua
promoção e as expectativas externas e internas, que se tecem em torno das
paisagens e das suas perspectivas de desenvolvimento.
Simplificação.
Esta simplificação pode acarretar uma homogeneização, se pensarmos que
para de ir de encontro ao arquétipo de ruralidade, não só é provável uma redução da
complexidade territorial (que facilite a leitura e a promoção dos lugares), como se
pode cair na tendência de normalizar ou estandardizar as paisagens, as práticas, os
produtos, etc. Nesse caso, ao invés de prestigiar e rentabilizar as particularidades
locais, este projecto estaria a estimular a sua aproximação e adaptação à ideia de
rural estabelecida, ao quadro idealizado e à norma de ruralidade apreciada. Mesmo
que ao nível paisagístico e cultural não se venha a verificar esta tendência, pelo
menos a nível funcional a homogeneização é esperada, já que, a aposta em
actividades terciárias que rentabilizem e promovam os patrimónios culturais e
naturais é incentivada, quase de forma indiferenciada.
Homogeneização.
Nesta linha, há que assinalar a forte possibilidade de exacerbação
cenográfica dos lugares para corresponder ao quadro de ruralidade idílica
promovido. A reconfiguração paisagística, por via da renaturalização do meio e do
restauro arquitectónico do edificado tradicional, pode, de facto, cair no recurso
208
Capítulo VII
exagerado a elementos rústicos e na tematização. Os lugares, dentro de uma lógica
decorativa e cenográfica, são dramatizados para evocar costumes perdidos, práticas
agrícolas ancestrais, memórias familiares, estilos de vida comunitários, etc.
Convertendo-se facilmente em materializações de uma narrativa de ruralidade,
engolidos pelo pastiche e pelo tema que dá mote à encenação, os lugares podem
desaparecer por detrás da estetização, ficando descaracterizados e vazios de
significado.
Exacerbação cenográfica.
Tematização.
Outra possibilidade associada prende-se com a aura de imutabilidade que
rodeia esta noção de ruralidade e concretiza-se no risco de cristalização das áreas
rurais. Ora, se para este projecto é central a ideia de eternidade e estabilidade do
mundo rural, como reserva natural e cultural e como referência sólida num mundo
em rápida transformação, não é despropositado conjecturar esta tentação de
“congelar” e museificar os lugares, para que seja materializada essa ilusão de
perenidade.
Tal como nos centros históricos das cidades, nas áreas rurais, a
patrimonialização pode vir acompanhada da tentativa de parar a evolução
paisagística dos lugares, para que a sua “espontaneidade” não prejudique a
preservação das características e dos ambientes que são valorizados. Desta feita
seleccionam-se os traços que melhor correspondem às expectativas idílicas e, da
mesma forma que se amplifica o seu poder de sugestão cenográfica, cristaliza-se a
sua materialidade sob o argumento (sacro) de conservação patrimonial.
Cristalização.
Com a delapidação das actividades agrícolas e, assim sendo, da função
produtiva das áreas rurais, acentuam-se os estímulos à aposta no turismo e noutros
serviços relacionados com o seu potencial recreativo e patrimonial. Os territórios
rurais passam a espaços de consumo e, neste processo de terciarização, aprofundase a desestruturação das sociedades camponesas, já muito fragilizadas pelo êxodo,
pelo envelhecimento, pela miséria, pela decadência do seu modo de vida secular e
pela dominação externa dos seus destinos. Por outro lado, a terciarização pode
servir para fixar a população mais jovem e qualificada, que pretende romper com a
tradição agrícola e apostar em novas oportunidades de negócio e emprego.
209
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
De qualquer forma, passagem de espaço de produção a espaço de consumo,
a terciarização, mas principalmente um eventual desaparecimento da agricultura,
podem contribuir para a descaracterização dos lugares e desvirtuação identitária das
comunidades locais. Ora, simplificando e reduzindo a complexidade das realidades
territoriais para facilitar a leitura da sua ruralidade exacerbada, cristalizando a sua
evolução paisagística para preservar a sua aura de perenidade, erodindo as suas
particularidades para lograr uma aproximação à norma ou ao standard de ruralidade
e substituindo a sua actividade produtiva principal por novos serviços, não é
arriscado prever uma descaracterização dos contextos locais em favor do projecto
de ruralidade dominante.
Terciarização.
Descaracterização.
Com a prevalência do aproveitamento lúdico e turístico da ruralidade,
aumenta a possibilidade de conversão do mundo rural numa espécie de colónia de
férias, numa reserva aberta a visitantes, num bairro de segundas residências ou
num povoado de “novos rurais”. Destas transformações demográficas e turísticas
podem advir dinâmicas especulativas em torno do valor do solo e dos víveres, que
prejudiquem as comunidades locais. De facto, com o interesse externo e com o
reforço do valor simbólico das localidades, pode esperar-se um aumento do preço
dos terrenos, a inflação dos preços dos serviços e dos produtos no comércio local e,
consequentemente, um processo de exclusão progressiva da população local.
Desta feita, não se conjectura apenas uma gentrificação, mas também um
aumento da conflituosidade de interesses, derivada da diversificação social dos
lugares. Com a abertura das comunidades rurais a novos habitantes e visitantes, a
nova funcionalidades, a diferentes usos e expectativas de desenvolvimento, estão
criadas as condições para que se intensifiquem os conflitos de interesses. Para dar
alguns exemplos, se para as comunidades locais, as vias de comunicação são
essenciais ao desenvolvimento, para os “novos rurais”, turistas ou proprietários de
segundas residências, o isolamento é um factor positivo, que garante a preservação
das características do quadro e a sua imutabilidade; se para as populações
autóctones a maquinaria agrícola facilita o trabalho da lavoura, para os externos
desvirtua a paisagem pastoral…
210
Capítulo VII
Gentrificação.
Conflitos de interesse.
Tendo em conta este rol de possíveis consequências e considerando a
externalidade da produção e gestão destas dinâmicas de reinvenção do mundo
rural, com base no projecto urbano que descrevemos, podemos questionar se não
está latente uma urbanização destes territórios. A substituição da população
autóctone, a terciarização e delapidação da agricultura, a “comodificação” dos
espaços e a sua adaptação aos usos, expectativas e exigências de conforto dos
citadinos, a par da inclusão das áreas rurais nos circuitos de consumo urbano, pode,
muito provavelmente, significar uma urbanização, no sentido lato do termo e não
propriamente de expansão urbanística.
Urbanização.
Com este exercício não se pretende compor um quadro demasiado
pessimista em torno das consequências possíveis para este projecto de ruralidade,
já que a abertura das áreas rurais, a novas actividades, funcionalidades e grupos
sociais, pode de facto, significar novas perspectivas de desenvolvimento,
empreendedorismo, diversidade e vitalidade. Acrescentando, este processo de
reinvenção simbólica e funcional da ruralidade acarreta a destruição de alguns
estigmas, que rodeavam as áreas rurais.
De facto, se era comum olhar para os territórios rurais como atrasados e
decadentes, neste contexto de requalificação simbólica, podem progressivamente
acumular conotações positivas e, consequentemente, melhorar a auto-estima local.
É ainda de assinalar a importância que a valorização cultural e ecológica pode ter,
no incremento dos esforços de preservação dos ecossistemas e dos patrimónios
locais, bem como, a ajuda que todos estes factores podem constituir, para a fixação
de população nas áreas mais desertificadas. Neste sentido a reinvenção simbólica
da ruralidade pode trazer uma renovação funcional, cultural, demográfica, ecológica,
patrimonial e, sobretudo, um reforço da auto-estima rural.
Destruição de estigmas.
Renovação.
Em todo o caso, tendo em conta os contornos e possíveis consequências do
projecto de ruralidade veiculado pelo discurso, é interessante discutir as suas
possibilidades
de
concretização
de
desenvolvimento,
principalmente
se
considerarmos a sua origem externa e o carácter urbano dos interesses que o
211
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
sustentam. Como vimos, apesar de constituir uma espécie de retórica do
desenvolvimento rural, o discurso de reinvenção da ruralidade não é rural e não
parece ter como prioridade a concretização do desenvolvimento.
Não são ainda visíveis grandes impactos positivos neste domínio, sendo mais
líquido o favorecimento dos circuitos de consumo urbano, a diminuição dos apoios
económicos às áreas rurais (nomeadamente com a delapidação progressiva dos
apoios da U.E. ao sector agrícola, sob o argumento de mudança de paradigma
político e estratégico), o crescimento dos negócios imobiliários e turísticos de
operadores externos às comunidades, ou que não revertem em postos de trabalho e
em reprodução/disseminação da despesa dos visitantes, etc.
Importa, como já dissemos, questionar se os habitantes das zonas rurais não
passarão a figurantes e se as aldeias não se transformarão em parques temáticos
para fruição externa; se esta não é mais uma estratégia de rentabilização do rural,
enquanto recurso, e uma forma de o reintegrar nos mercados e nas lógicas do
capitalismo; se temos motivos para confiar nesta retórica e na sua orientação
programática para os meios rurais e se, de facto, esta pode contribuir para uma
reversão real da crise, que assola muitos contextos (principalmente nos países do
Sul da Europa, historicamente mais prejudicados pela PAC e com economias mais
vulneráveis).
Neste sentido, esta reflexão ultrapassa os limites deste trabalho e deve
perpetuar-se até que sejam encontradas repostas para estas questões e,
eventualmente, novas propostas de desenvolvimento para as áreas rurais. Desta
feita, importa reforçar este olhar incisivo e atento, em torno deste processo de
reinvenção da ruralidade, para que o carácter naturalizado e omnipresente do
discurso, não embriague e turve o nosso sentido crítico e a nossa capacidade de
questionar e monitorizar a forma como se produzem, gerem, promovem e
aproveitam os territórios rurais na actualidade. De facto, no caso das áreas rurais
esta necessidade é premente, considerando a externalidade da dominação que se
exerce sobre os seus destinos e o fraco poder de determinação e gestão dos seus
próprios projectos de desenvolvimento.
Finalmente, e concluíndo que o projecto de ruralidade veiculado combina
rusticidade e urbanidade (num reencontro entre natureza e passado, enquanto
referências educativas e moralizantes, com modernidade, comodidade e uma forte
dimensão comercial) e que esta é uma ruralidade patrimonial que deve funcionar
212
Capítulo VII
como uma reserva dos valores em risco, nas cidades e no nosso tempo histórico,
somos levados a pensar se esta não será acima de tudo a busca por um projecto de
cidade melhor. E se a grande questão, inquietação e preocupação, ou pelo menos, o
debate mais urgente, não será a cidade que temos, o modelo territorial dominante, o
nosso estilo de vida, a insustentabilidade do quotidiano e as possibilidades reais do
nosso futuro colectivo …
3. Considerações finais e propostas para futuras pesquisas.
Posto isto, deve reforça-se a pertinência desta abordagem e a sua relevância
para os processos de tomada de decisão sobre os territórios. Não só se logrou uma
contextualização das políticas de desenvolvimento rural e das lógicas de promoção
das áreas rurais, seus produtos e, sobretudo, da ruralidade enquanto referente
simbólico, como se desvendou e discutiu criticamente os interesses que movem e
alimentam estas tendências. Nesta linha, integrou-se o discurso e o seu projecto
para os lugares, no quadro das grandes lógicas culturais e territoriais, que
influenciam a forma como se perspectivam a realidade e se valorizam determinados
recursos, em detrimento de outros.
De facto, conhecer os valores, as representações e os interesses por detrás
das ideias que se veiculam sobre os territórios, é essencial para interpretar, avaliar e
monitorizar as estratégias de desenvolvimento que lhes estão associadas. Assim
sendo, este exercício pretendeu organizar a reflexão e construir ferramentas teóricas
que sirvam essa interpretação, ao mesmo tempo que ensaiou demonstrar a
importância dos discursos no condicionamento da visão, hierarquização, gestão e
produção dos territórios. Neste âmbito, é importante, uma vez mais, sublinhar que
entendemos o discurso, não só enquanto estrutura de significados, mas sobretudo
enquanto projecto, que pressupõe sempre a remissão a um poder e a uma
historicidade.
Esta reflexividade é importante, não só por ser essencial à ciência, mas
principalmente porque exige que se discutam as estruturas ideológicas por detrás do
poder instalado. Se o discurso dominante é produzido pelo poder e se a ciência e a
técnica tendem a alimentar a sua legitimação e difusão, importa subverter a
sedimentação cultural destas dinâmicas e questionar as consensualidades que, na
213
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
voragem naturalizada da norma, perpetuam as lógicas hegemónicas ao serviço dos
interesses mais robustos.
Só através desta consciência, é possível partir para uma discussão
aprofundada das questões territoriais, ou seja, considerando as estruturas
discursivas e ideológicas que produzem as categorias, as agendas, os significados e
as propostas, que antecedem e precipitam os lugares e que condicionam a forma
como os pensamos (em primeiro lugar), como sociedade, como cientistas e como
técnicos.
Num contexto em que a competição territorial é feroz e as disputas por
recursos e visibilidade ocorrem, em grande medida, no plano simbólico, é
interessante dissecar os processos de construção de representações em torno dos
lugares, bem como as políticas culturais que precipitam e legitimam as estratégias
de desenvolvimento, no sentido de contextualizar as realidades empíricas e
entender a origem e orientação dos fenómenos sociais e territoriais (Harvey, 1993).
As ideias forjam os lugares, ao mesmo tempo que os lugares forjam as ideias. Ora,
sendo esta a filosofia por detrás desta abordagem, partimos do discurso para
conhecer a ruralidade que se impõe sobre os lugares, descemos aos lugares para
palpar a materialidade desse condicionamento e voltamos com os contornos do
projecto que resulta desta dialéctica. A partir daqui sugerem-se múltiplas
possibilidades de pesquisa e questionamento.
Como já foi referido, um dos objectivos centrais deste trabalho é precisamente
estimular o estudo de objectos empíricos associados a esta discussão teórica,
enquanto filtro para a sua interpretação e elemento integrador de realidades e
temáticas, que parecendo muitas vezes dissociadas, remetem para o mesmo quadro
discursivo em torno da ruralidade. Assim sendo, poderíamos enunciar uma infinitude
de objectos de pesquisa, que dando continuidade a esta reflexão, serviriam para
concretizar esses esforços. No entanto, para não sugerir indiferenciadamente ou
seleccionar de forma quase aleatória alguns dos caminhos possíveis, dada a
multiplicidade de temáticas relacionadas com esta problemática, parece-nos mais
interessante adiantar possibilidades de aprofundamento do estudo dos casos
empíricos abordados nesta mesma pesquisa.
Assim, seria interessante desenvolver e dar continuidade à incursão aqui
iniciada, em redor dos dois espaços de recriação da ruralidade veiculada pelo
discurso (na cidade do Porto), de forma a ultrapassar a análise da sua produção e
214
Capítulo VII
respectivas motivações, e explorar também o seu consumo e interpretação, sob o
ponto de vista dos visitantes. Por outras palavras, interessaria completar a
abordagem desenvolvida, com o estudo das vivências e representações dos utentes
do NRA e do Mata-Sete, para perceber como é experimentada e perspectivada a
ruralidade de ambos os lugares. Ou seja, através de uma perspectiva complementar
que facilitasse um contraponto entre os projectos, como foram aqui explorados (pela
análise dos seus contornos, motivações e orientações criadoras) e a sua
interpretação, leitura, utilização e consumo.
Cruzar a produção e o consumo destes lugares poderia levar à identificação
de eventuais contradições e novas atribuições de sentido e significados, mas
também ao contacto com as representações que brotam da sua leitura, com as
apropriações diversas que podem ser feitas e com possíveis conflitos entre usos,
perspectivas, interesses, etc. Desta feita, serviria para dar seguimento à abordagem,
já que estudamos o projecto e a materialização do quadro pastoral sugerido pelo
discurso, e seria interessante aprofundar o seu impacto, nas representações de
quem o consome, para acompanhar o seguimento da sua existência e influência,
enquanto eventual arquétipo ou referência de ruralidade nos imaginários urbanos.
Ainda dentro do âmbito do consumo, era igualmente interessante perceber se
aqueles que frequentam os lugares estudados e que habitualmente recorrem a estes
espaços para usufruir da sua aura de ruralidade e da sua dimensão recreativa (e
comercial, no caso do NRA), são também consumidores assíduos de outros
produtos rurais. Ou seja, indagar se estes lugares estão integrados num circuito de
práticas de consumo recorrente, ou mais abrangente, da ruralidade e dos produtos
que lhe estão associados, como os produtos biológicos, o turismo rural, os desportos
de natureza, as casas de campo, etc.
De facto, uma abordagem aos objectos pela perspectiva do consumo seria
deveras interessante e certamente reveladora, permitindo inúmeros caminhos e
contendo múltiplas nuances. No entanto e também por isso, ficamo-nos apenas pelo
estudo do projecto, considerando que seria demasiado ambicioso da nossa parte
desenvolver essa abordagem complementar, ainda no corpo desta pesquisa (tendo
em conta, principalmente, que o volume de visitantes de ambos os objectos por ano
é quase incalculável). E porque nos pareceu que as motivações por detrás da
produção dos espaços, a sua identidade paisagística e o seu eventual carácter
bucólico, respondiam por si só ao âmbito desta pesquisa. Ou seja, permitiam
215
Conclusões. Do discurso ao projecto de ruralidade reinventada
aprofundar o percurso reflexivo, ao encontro dos contornos da ruralidade veiculada
nos discursos, que era afinal o nosso objectivo. Simplificando, para cumprir a
proposta de investigação que estimula este trabalho, era premente procurar a
materialização do projecto, antes sequer de pensar em explorar o seu consumo.
Para finalizar, queremos reforçar uma vez mais que esta é uma discussão
que se mantém em aberto e que, por isso mesmo, importa continuar a debater e a
aprofundar estas questões e a contribuir para o questionamento crítico e para a
produção científica, em torno dos discursos que precipitam os projectos e as
dinâmicas territoriais. Conhecer esses projectos é essencial para prever, planear e
preparar os territórios que se aproximam e, portanto, para trabalhar no sentido do
desenvolvimento. Neste sentido, este trabalho pretende constituir uma humilde
contribuição para essa importante, ambiciosa e sempre inacabada tarefa.
216
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Anexos
Anexo 1 - Mata-Sete
Anexo 1 - Mata-Sete
1.1 Mapas
Mapa 1: Localização do distrito e do concelho do Porto no território português.
Legenda:
1. Portugal.
2. Distrito do Porto.
3. Concelho do Porto.
243
Anexo 1 - Mata-Sete
Mapa 2: Localização do Parque de Serralves dentro do concelho.
Legenda:
1.
2.
3.
4.
5.
Cidade do Porto.
Centro histórico.
Rotunda da Boavista.
Avenida da Boavista.
Parque de Serralves.
Mapa 3: Localização da quinta do Mata-Sete no Parque de Serralves.
Legenda:
1.
2.
3.
4.
244
Parque de Serralves.
Mata-Sete.
Museu de Arte Contemporânea.
Casa de Serralves.
Anexo 1 - Mata-Sete
Fotografia Aérea 1: Imagem da quinta do Mata-Sete
(retirada do serviço Google Earth).
Legenda:
1. Casa.
2. Salão de Caça.
3. Celeiro/Lagar.
4. Eira.
5. Pátio.
6. Estábulo.
7. Hortas pedagógicas.
8. Instalação de Maria Nordman.
9. Prado.
10. Jardim das plantas aromáticas.
245
Anexo 1 - Mata-Sete
Mapa 4: Espaço da Fundação de Serralves (parque, jardim, quinta, casa, museu e
restantes
infra-estruturas)
www.serralves.pt).
246
com
legenda
detalhada
(imagem
retirada
de
Fauna e Flora
Construções e
Equipamentos
Espaço
(área e localização)
História
(origem e evolução)
Presume-se que existissem cavalos e animais de quinta, vinha,
terrenos cultivados com cereais (devido à existência do celeiro),
hortas e pastagens, diversas árvores.
Casa, estábulos, cavalariça, celeiro, lagar, eira e armazém contíguo,
pavilhão de caça, diversos tanques, represa de água, um poço e
supõe-se que existiriam igualmente alguns terrenos cultivados,
pastagens e algumas vinhas.
(1)Originalmente
Existem vacas, ovelhas, um burro e outros animais de quinta, um
prado para pasto dos animais, pequenas hortas cultivadas pelas
crianças das escolas, nas oficinas do serviço educativo, algumas
vinhas jovens e uma horta de ervas aromáticas, transferida para os
limites da Quinta, desde a construção do Museu de Arte
contemporânea nos terrenos em que estava localizado o pomar da
propriedade, para além de diversas árvores centenárias e outras mais
jovens (como na obra de M. Nordman).
As construções mantêm-se exteriormente intactas, mas os interiores
foram transformados em grande medida, para acolher novas
funcionalidades. O estábulo foi aumentado, o pavilhão de caça
transformado em escritórios, o celeiro, o lagar e o armazém da eira
em espaços para actividades educativas, entre outras pequenas
alterações arquitectónicas, apesar das significativas alterações de
funcionalidade. Existe uma cabana de palha com chão de madeira e
mesas e cadeiras no interior. Um bebedouro para pássaros e uma
mesa em xisto rodeado de ciprestes que compõe a obra paisagística
de Maria Nordman. Um conjunto de carroças antigas e velhas alfaias
agrícolas guardaras num pequeno telheiro. Existem igualmente sebes
de madeira a contornar o prado.
(2)Actualmente
Como foi dito a Quinta do Mata-Sete é uma parcela dos 18 hectares que compõe o Parque de Serralves, localizado na cidade do Porto, na
freguesia de Lordelo do Ouro. Localiza-se mais precisamente na extremidade sul da propriedade numa cota mais baixa por relação à casa e a
grande parte do parque.
Construída em 1937, a quinta do Mata-Sete é parte integrante do projecto de Casa e Jardim do Conde de Vizela na Rua de Serralves, ficando
numa das extremidades da propriedade. Era mantida por empregados e, depois da venda a outro proprietário, alugada a caseiros. Na década
de 80 todos os 18 hectares de parque são comprados pelo Estado e em 1987 dá-se a abertura do Parque ao público. Neste processo a quinta
deixa progressivamente de ser utilizada pelos caseiros que a ocupavam, para albergar os serviços administrativos do parque e para se tornar
no espaço em que se desenrola grande parte das actividades de educação ambiental do Serviço Educativo da Fundação. Tomaremos como
momento (1) o período entre a construção da quinta e a sua venda a outro proprietário (Delfim Ferreira) pelo Conde de Vizela, ou seja de 1937
a 1957 e como momento (2) os 4 primeiros meses de 2010 (período de realização do trabalho de campo).
Tabela 1.2.1. Síntese de Caracterização e Análise da Quinta do Mata-Sete
Anexo 1 - Mata-Sete
1.2 Tabelas
247
248
X
X
X
Espaço Ocupado
X
Decoração
A história da Propriedade de Serralves está até hoje pouco esclarecida, existindo algumas dúvidas por relação ao processo de sua construção,
ao que existia antes, às motivações que estimularam uma obra tão ambiciosa, à utilidade da Quinta, etc., pelo que existe um carácter de certa
forma especulativo na versão veiculada pela literatura científica que em torno dela se tece. No entanto, a ilação de que estamos perante uma
quinta de recreio sobredimensionada e com demasiada qualidade para o normal na região e sobretudo para uma propriedade que não era
produtiva, não só é consensual, como é coerente com a ideia de que todo o projecto do Conde de Vizela se reveste de uma espécie de
megalomania de representação, mais para ostentação do que para usufruto. Isto porque não só era proprietário de diversas outras casas e
propriedades, de recreio e agrícolas, como revela uma ambição exagerada no que respeita a escala da casa, do jardim, da quinta, à sua
qualidade (contratando os melhores arquitectos), área, etc.
Produtos
Espaço para actividades educativas e espaço de passeio e fruição
para os visitantes do parque.
Dir-se-ia que terá sido uma quinta de recreio, com uma produção
agrícola reduzida.
Actividade
O aspecto exterior dos edifícios mantém-se, as transformações no
interior basearam-se na substituição de pavimentos, em pequenas
recuperações, pinturas e na instalação de mobiliário apropriado a
novos usos. Por exemplo, no lagar nada foi destruído, apenas se
efectuou à limpeza e ocupação do espaço com material laboratorial e
mesas de trabalho. Por outras palavras, parece ter sido objectivo
transformar o mínimo possível dos espaços, na adaptação a novas
funcionalidades.
No exterior podem encontrar-se bancos de jardim em madeira,
mobiliário de jardim em verga, sebes em madeira, caminhos
empedrados ou areados, tanques de pedra e a cabana de palha.
Obra do Arquitecto Marques da Silva, presumivelmente inspirado pela
Arquitectura Regional Francesa, que resulta num conjunto de edifícios
de linhas simples e construção racional, feitos em pedra de granito,
com alguns apontamentos rústicos, como as chaminés
desmesuradas, a pedra por pintar, acabamentos de madeira, etc. As
janelas têm portadas de madeira pintada de vermelho, sendo que
algumas são em arco e de grandes dimensões e outras funcionam
como portas e têm grandes portadas de correr. Destaca-se a elevada
qualidade da construção e a dimensão exagerada dos equipamentos,
já que aparentemente não se tratava de um espaço de grande
produção agrícola. As construções estão fechadas sobre si próprias
criando um pátio e diversos recantos mais confinados, que de certa
forma entram em contraste com a imensidão da propriedade. É de
assinalar a cozinha do pavilhão de caça, pelo forno a lenha e
mobiliário rústico que a preenche, tendo em conta o gosto do seu
proprietário por mobiliário de design arrojado. Ao que parece a quinta
estava de certa forma escondida por uma alameda de ciprestes que a
separavam do jardim e da mata.
(2)Actualmente
Nota: Quando não especificado, a caracterização refere-se sempre ao período de realização do Trabalho de Campo, ou seja, aos 4 primeiros meses de 2010.
Outros elementos ou
observações
Equipamentos
Comerciais
(caso existam)
Actividades
Decoração, Materiais e
Estilo Arquitectónico
(1)Originalmente
Tabela 1.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise da Quinta do Mata-Sete
Anexo 1 - Mata-Sete
Anexo 1 - Mata-Sete
Tabela 1.2.2. Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo)
Mata-Sete
Entrevistas
Teresa Andresen (Directora do Parque de Serralves).
(ver 3.2_Tabela das Entrevistas para mais detalhe)
Dona Teresinha (antiga Caseira da Quinta do MataSete) - conversa informal, não transcrita.
Nuno Tasso de Sousa (Arquitecto, especialista na obra
de Marques da Silva) - conversa informal, não
transcrita.
André Tavares (Arquitecto e Autor de um livro sobre a
Casa de Serralves).
Elisabete Alves (Coordenadora do Serviço Educativo
do Parque de Serralves).
Material Documental
(ver 4.2_ Tabela Resumo dos materiais relativos ao
Mata-Sete para mais detalhe)
Folheto informativo relativo aos Programas Educativos
(Actividades e Projectos) da Fundação de Serralves
para o ano lectivo 2009/2010.
((*)) Livros:
Leite, Elvira e Helena Captivo (2004), Á
descoberta de Serralves, Porto, Fundação de
Serralves
AA. VV (1997), Espant' homens - exposição de
fotografia de Gérard Castello-Lopes, Porto,
Fundação de Serralves
(*) Analisaremos o catálogo "Espant'homens" e as
duas páginas, que dizem respeito ao Mata-Sete, do
livro "À Descoberta de Serralves", como material
documental relativo ao objecto e não como literatura
científica, pelo facto dos seus autores estarem
envolvidos com o Serviço Educativo da Fundação de
Serralves.
Fotografias
32 Fotografias de Gérard Castello-Lopes tiradas no
ano de 1996, presentes no livro "Espant'homens", que
retratam a quinta e algumas das actividades nelas
desenvolvidas na primeira década de Serviço
Educativo no Mata-Sete.
95 Fotografias próprias, tiradas durante o Trabalho de
Campo, ao espaço da Quinta e seus equipamentos,
fauna, flora e actividades.
249
Anexo 1 - Mata-Sete
Tabela 1.2.2. (cont.) Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo)
Literatura
Outros
(ver 4.2_ Tabela Resumo dos materiais relativos ao
Mata-Sete para mais detalhe)
AA. VV (1997), Espant' homens - exposição de
fotografia de Gérard Castello-Lopes, Porto,
Fundação de Serralves (*)
Andrade, Sérgio C. (2009), Serralves - 20 anos
e outras histórias, Porto, Fundação de Serralves
Andresen, Teresa (1988), "O Parque de
Serralves", in AA. VV, Casa de Serralves Retrato de uma Época, Porto, Fundação de
Serralves
Andresen, Teresa & Teresa P. Marques (2001),
Jardins Históricos do Porto, Lisboa, Edições
INAPA
Cardoso, António (1992), O Arquitecto José
Marques da Silva e a arquitectura do Norte do
País na primeira metade do séc. XX, Porto,
Edições FAUP
Leite, Elvira e Helena Captivo (2004), Á
descoberta de Serralves, Porto, Fundação de
Serralves (*)
Marques, Teresa & Teresa Andresen (1989), "A
Garden Restauration in Porto", in Seminário
Internacional: "Restauració de Jardins Histórics",
Barcelona, April, pp. 7-11 (Policopiado)
Marques, Teresa (1996), "Parque de Serralves.
Passado e Actualidade.", in Horto do Campo
Grande Magazine, nº 2
Millan, Maria (2000), Parque de Serralves Intervenções (Prova Final), Porto, FAUP
Tavares, André (2007), Os fantasmas de
Serralves, Porto, Dafne Editora
Página Web da Fundação de Serralves.
Mapa de Telles Ribeiro de 1982.
Produtos da Quinta de Serralves (compotas, chás,
condimentos, azeite, azeitonas, etc.).
Página Web dos arquitectos Ivo Poças Martins e
Matilde Seabra, responsáveis pela transformação de
alguns equipamentos da Quinta do Mata-Sete para fins
educativos.
250
Data
01/03/2010
08/03/2010
08/03/2010
Entrevistado
Teresa Andresen
Dona Teresinha
Nuno Tasso de Sousa
Arquitecto, especialista
na obra de Marques da
Silva
Antiga caseira do MataSete
Directora do Parque de
Serralves
Função/Cargo
Informações sobre a história de Serralves e das ambições do Conde de Vizela.
Vida e obra do Arquitecto Marques da Silva.
História dos jardins do Porto.
(conversa informal - não transcrita)
Trivialidades sobre a quinta, aspectos ligados ao seu passado e à produção
agrícola.
(conversa informal - não transcrita)
Mata-Sete como espaço de fantasia ruralista do Conde de Vizela, como espaço de
recreio e encenação, como reprodução das influências e modas europeias de
valorização do bucolismo e da vida rural.
A grande dimensão e qualidade do edificado do Mata-Sete e o aparente
sobredimensionamento dos seus equipamentos para a sua (aparentemente)
sempre modesta produção agrícola.
O projecto educativo para a quinta (o conceito inicial, os objectivos, o projecto dos
espantalhos, algumas outras actividades, o aproveitamento do carácter rural do
espaço, etc.).
História da quinta do Mata-Sete (os diferentes ocupantes e usos, a transição para
o domínio público, as intervenções e transformações do espaço, toda a sua
evolução até aos nossos dias)
História de Serralves (desde o projecto do Conde de Vizela até aos nossos dias)
Principais Ideias
Tabela 1.2.3. Síntese das Entrevistas (Mata-Sete)
Anexo 1 - Mata-Sete
251
252
Data
24/03/2010
14/04/2010
Entrevistado
André Tavares
Elisabete Alves
Coordenadora do serviço
educativo do parque de
Serralves
Arquitecto e autor do livro
" Os Fantasmas de
Serralves"
Função/Cargo
Exemplos das actividades que exploram o carácter rural do espaço e de algumas
experiências de recriação de actividades rurais com famílias (desfolhada, cortejo
de burro, construção de espantalhos, contacto com a palha, etc.).
Ideia de que a ruralidade do espaço não é forçada ou acentuada.
Aproveitamento do potencial do espaço (quinta e parque).
Diferenças no Serviço Educativo antes e depois da abertura do Museu de Arte
Contemporânea de Serralves (novas escala de actuação, novas exigências, novas
ambições e objectivos).
Descrição das actividades realizadas no parque e na quinta.
Objectivos, orientações e filosofia por detrás do projecto educativo de Serralves e
sua evolução ao longo dos anos.
Mata-Sete como uma recriação racional e "urbana" de uma quinta rural, pela parca
rusticidade e pela elevada qualidade, racionalidade e dimensão das construções.
Influência da Arquitectura Regional Francesa.
Ideia de que todo o projecto de Serralves, incluindo o Mata-Sete é motivado por
um desejo de ostentação do Conde na sua megalomania.
Alguns paradoxos arquitectónicos que marcam a obra do Mata-Sete (combinação
de uma arquitectura muito racional e alguns detalhes rústicos) e algumas dúvidas
em torno da motivação por detrás da sua construção (falta de necessidade de uma
casa rural, visto já ter uma vasta propriedade produtiva em Vizela, grande
dimensão do edificado para um uso muito limitado, o aparente vazio funcional do
espaço, etc.).
História da compra dos terrenos de Serralves, do projecto do Conde de Vizela e
particularmente do projecto do Mata-Sete.
Principais Ideias
Tabela 1.2.3. (cont.) Síntese das Entrevistas (Mata-Sete)
Anexo 1 - Mata-Sete
Fundação de Serralves
Vários Autores / Fundação de
Serralves
Livro
com o título
"Espant'homens"
Origem ou Autoria
Página Web
Tipo de Material
1997
Em
permanente
actualização
Data
Página da Fundação
onde estão todas as
informações de
contacto, actividades,
história, etc. da
Fundação (parque,
museu, casa, biblioteca,
auditório, serviço
educativo, etc.).
Livro de textos e
fotografias sobre 10
anos do projecto "Arte
Efémera na Paisagem",
ou seja do projecto
educativo de construção
de espantalhos pelas
crianças na quinta do
Mata-Sete.
Descrição
Contêm diversas
informações úteis sobre a
história da Quinta, sobre as
actividades realizadas no
espaço do Mata-Sete,
contactos úteis e apresenta
os produtos alimentares,
vendidos como sendo do
Parque de Serralves.
Desenvolve e explica o
conceito do projecto
educativo para o Mata-Sete,
naquilo que constituiu a
primeira década do seu
Serviço Educativo, muito
baseado na ligação entre
arte e natureza e na
aproximação das crianças à
ruralidade.
Deixa perceber os contornos
do aproveitamento do
carácter rural do espaço e
seu reforço no
desenvolvimento do projecto
educativo.
Interesse
Tabela 1.2.4. Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete
Este projecto específico "Arte Efémera na Paisagem"
já não está em vigor, mas
mantém-se como o projecto
mais marcante e com mais
repercussão e projecção
desenvolvido até hoje, no
âmbito do serviço educativo
para o Parque de Serralves e
mais precisamente no espaço
do Mata-Sete. A importância
do Serviço Educativo, para
perceber o uso que é feito do
Mata-Sete (desde que o
parque é público), acaba por
ser inquestionável, se
pensarmos que também lhe
chamam “Quinta das
Crianças” e que a sua
principal função é servir de
pretexto e suporte para
actividades educativas.
www.serralves.pt
Disponível em:
Observações
Anexo 1 - Mata-Sete
253
254
Folheto Informativo
(seleccionou-se apenas
a parte relativa à quinta
do Mata-Sete)
Fundação de Serralves / Serviço
Educativo
Elvira Leite e Helena Captivo /
Fundação de Serralves
Excerto de Livro Infantil
com o título
"Á Descoberta de
Serralves"
Origem ou Autoria
Tipo de Material
Ano Lectivo
2009/2010
2004
Data
Folheto que apresenta
as actividades
educativas previstas
para o ano lectivo,
nomeadamente as
visitas e as oficinas,
para diferentes grupos
escolares e etários.
Duas páginas ilustradas
que retratam crianças na
Quinta do Mata-Sete a
trabalhar na horta e a
usufruir da obra de
Maria Nordman, com
pequenos diálogos e
textos alusivos ao
espaço e às actividades
nele desenvolvidas.
Descrição
Revela uma preocupação em
reiterar a ligação entre arte e
natureza, partindo da obra
paisagística de Maria
Nordman. As crianças
retratadas reforçam o
interesse e a utilidade da
obra e associam o seu
carácter e utilidade à
natureza, louvando a
importância da arte e
destacando o espaço em
causa da cidade e dos seus
bairros.
Um pequeno texto explica a
obra e outro explica que a
Quinta das Crianças tem
actividades relacionadas com
a natureza e os seus ciclos,
existindo também uma
alusão ao cultivo das hortas,
o que acaba por divulgar e
reforçar a importância dada à
aproximação das crianças às
actividades agrícolas.
Permite conhecer as
principais actividades
educativas anuais
desenvolvidas no Mata-Sete
e perceber para que públicos
estão direccionadas.
Interesse
Tabela 1.2.4. (cont.) Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete
Existe informação
complementar sobre estas
matérias na página Web da
Fundação e noutros folhetos
informativos, como é o caso
do panfleto com a
calendarização dos pequenos
cursos ligados à jardinagem e
agricultura, para adultos, que
têm lugar no Parque, ao longo
do ano.
As autoras fazem parte do
conjunto de consultoras do
Serviço Educativo de
Serralves, estando envolvidas
no projecto educativos há
vários anos, pelo que
tomamos este documento
como material documental
(originário da equipa
responsável pelas actividades
da Quinta das Crianças).
Trata-se de um livro que
pretende dar a conhecer
Serralves ao público infantil,
acabando, de certa forma, por
funcionar como uma espécie
de propaganda da Fundação.
Observações
Anexo 1 - Mata-Sete
Página Web
Loja da Fundação / Parque de
Serralves
Produtos Alimentares
Ivo Poças Martins e Matilde
Seabra (Arquitectos)
https://www.serralves.pt/catalogo/
listaprodutos.
php?cat=11&sessao=1&p=1 )
http://www.serralves.pt/catalogo/
detalhes_produto.php?id=1293
(também disponível na loja
Online de Serralves:
Telles Ribeiro
Origem ou Autoria
Mapa
Tipo de Material
2010
2010
1892
Data
Página Web do
Gabinete de arquitectura
responsável pela
transformação de alguns
edifícios da Quinta do
Mata-Sete em
equipamentos
educativos e
administrativos.
Compotas de vários
frutos, chás e infusões
de ervas aromáticas,
condimentos variados,
azeite e azeitonas,
apresentados como
sendo produtos do
Parque de Serralves.
Mapa da cidade do
Porto que contempla e
regista à data
aproximada de 1892 os
terrenos que hoje
compõe o Parque de
Serralves.
Descrição
Contém fotografias e plantas
dos espaços transformados e
a transformar, explica os
objectivos dos projectos em
causa e anuncia as próximas
intervenções, permitindo
perceber o tipo de
adaptações e utilizações que
têm tido lugar e/ou que estão
previstas para o edificado do
Mata-Sete.
Demonstra um aparente
interesse em passar a ideia
de que se produzem
realmente produtos
alimentares artesanais na
quinta de Serralves, quando
na verdade estes não são de
produção própria, o que
parece reflectir a intenção de
perpetuar a aura agrícola e
produtiva da Quinta que é
hoje Parque Urbano.
Demonstra que antes da
construção do grande
projecto de
casa/quinta/jardim do Conde
de Vizela, grande parte dos
terrenos do parque e das
áreas circundantes eram
agrícolas e que existiam
algumas construções no
local onde foram construídos
os edifícios do Mata-Sete.
Interesse
Tabela 1.2.4. (cont.) Resumo dos Materiais relativos ao Mata-Sete
Disponível em:
http://www.pocasmartinsseabra.com/
Destaque dado para o Cabaz
da Quinta do Mata-Sete,
composto por uma garrafa de
Azeite, uma compota e uma
lata de condimentos à
escolha, vendidos dentro de
uma lata vermelha com o
símbolo de Serralves.
As construções referidas
parecem corresponder a uma
casa ladeada de um jardim e
rodeada de terrenos agrícolas.
Observações
Anexo 1 - Mata-Sete
255
256
Gérard
CastelloLopes
Própria
95
Autoria
32
Nº de Fotos
(por grupo)
Fotografias tiradas
nos primeiros 4
meses de 2010,
durante o trabalho de
campo.
Data ou
momento do
retrato
1996
As fotografias retratam as actividades desenvolvidas na primeira
década de Serviço Educativo no Mata-Sete, nomeadamente o
projecto "Arte Efémera na Paisagem", que consistia na
construção de espantalhos com as crianças das escolas da
cidade, sua exposição nos terrenos da quinta e posterior
celebração, numa festa que terminava com a queima dos
mesmos. O projecto pretendia acompanhar e celebrar os ciclos
da natureza e isso é revelado nas fotos em três momentos,
começando com a colheita dos cereais (1) e aproveitamento da
palha na construção dos espantalhos (2) e acabando com a
devolução das suas cinzas à terra como fertilizante (3).
São retratados igualmente actividades agrícolas e algumas delas
realizadas em conjunto com as crianças, como a desfolhada, a
sementeira ou o tratamento do feno. É visível e interessante
nestas imagens o envolvimento de vários lavradores e pessoas
idosas nas actividades, ao que parece a realizar os trabalhos e a
demonstrar às crianças a melhor forma de os fazer.
De realçar é também o facto de em muitas das actividades
retratadas o número de participantes ser muito elevado,
transparecendo um forte dinamismo e muita animação.
As fotografias retratam os edifícios no seu exterior e interior
(casa, cavalariça, pavilhão de caça, lagar, celeiro, armazém de
cereais, estábulo). Existem várias fotos dos detalhes
arquitectónicos como as paredes de pedra, as janelas e
portadas, chaminés, os tectos de madeira, assim como da
cozinha de decoração rústica com fogão e forno de lenha, do
lagar e suas dornas e restante equipamento vinícola, do
mobiliário das salas de actividades, mesas, cadeiras, laboratório,
etc.
No espaço exterior destacam-se as hortas, a eira, os prados, a
vegetação envolvente, os pontos de água em redor (represa,
tanques, poços, levadas), a cabana e a estufa, os telheiros com
material agrícola, alfaias, carros, pipos e cestos. O mobiliário
exterior como os bancos de pedra e de jardim em madeira, as
mesas e cadeiras em verga. Vêm-se tractores em andamento e
actividades de conserto de ramadas. Crianças a passear pelo
espaço e animais no pasto.
Rebanho de ovelhas no
prado, homem a semear,
feno, construção de medas
de palha, espantalhos,
construção de espantalhos
(com idosos e com
crianças / no interior e no
exterior), actividades
educativas e grupos de
crianças, espectáculo/festa
dos espantalhos,
desfolhada, trabalhos
agrícolas com crianças,
queima dos espantalhos.
Panorâmicas e detalhes do
espaço. Prado, animais,
construções no interior
(cozinha, mobiliário, WC,
salas, pormenores
decorativos, etc.) e exterior
(alpendres, chaminés,
janelas, telhados, cadeiras
de verga, etc.), tanques,
poços, ramadas,
caminhos, muros, eira,
represa, hortas, carros e
alfaias, tractores, cabana,
estufa, pipas de vinho,
vegetação, etc.
Descrição geral dos conteúdos
retratados
Conteúdos
retratados
Tabela 1.2.5. Resumo das Fotografias (Mata-Sete)
AA. VV (1997), Espant'
homens - exposição de
fotografia de Gérard
Castello-Lopes, Porto,
Fundação de Serralves
Fotografias presentes no
livro:
Observações
Anexo 1 - Mata-Sete
Anexo 1 - Mata-Sete
1.3 Fotos
Fotografias relativas à quinta do Mata-Sete29.
Foto 1: Caminho central do Mata-Sete. Vista sobre o edificado para quem desce vindo do Parque. Do
lado esquerdo encontram-se as hortas pedagógicas, do lado direito podem ver-se crianças em
actividades educativas e em frente o casario da quinta. Destaque para a grande dimensão da
chaminé.
Foto 2: Casa de habitação do Mata-Sete, onde moravam os caseiros da quinta. Repare-se nos
pormenores de construção: a pedra de granito bem ordenada e com juntas em betão, as portadas em
madeira pintada, a grande chaminé, o telhado em telha Marselha, etc.
29
Fotografias tiradas durante o Trabalho de Campo, ou seja, nos quatro primeiros meses de 2010.
257
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 3: Hortas pedagógicas. Estábulo ao fundo.
Foto 4: Cabana de madeira com mesas no interior para actividades educativas.
258
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 5: Instalação de Maria Nordman (mesa de xisto com bancos e bebedouro para pássaros no
meio de um conjunto de árvores).
Foto 6: Prado com vacas em pasto, sebes de madeira e o arvoredo denso do parque ao fundo.
259
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 7: Tractor em funcionamento na alameda que ladeia o prado.
Foto 8: Estábulo dos animais da quinta, ampliado pela administração do Parque, enquanto
equipamento de suporte às actividades do Serviço Educativo.
260
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 9: Caminho coberto por ramada de vinha nas traseiras dos edifícios da quinta.
Foto 10: Pátio central do Mata-Sete. Vista para o pavilhão de caça, desde o alpendre do lagar e do
celeiro. Repare-se nas grandes portas e janelas de madeira, na vegetação que cobre as paredes de
pedra, e no pavimento empedrado que cobre o pátio.
261
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 11: Alpendre do celeiro e respectiva entrada. Mesas e cadeiras em verga e grandes portas de
madeira.
Foto 12: Banco no pátio central.
262
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 13: Interior do lagar.
Foto 14: Mesas para as actividades educativas no interior do lagar.
263
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 15: Interior da cozinha, com mobiliário original.
Foto 16: Alameda de acesso ao Mata-Sete para quem desce do jardim. Do lado esquerdo pode verse o prado com o casario no horizonte.
264
Anexo 1 - Mata-Sete
Foto 17: Tanque de pedra com nenúfares.
Foto 18: Caminho que conduz ao portão traseiro da quinta, entre o muro que a separa do exterior e o
relvado onde se localiza a instalação de Maria Nordman. Repare-se no rigor e na perfeição do
empedrado e na ramada de vinha em toda a extensão do caminho.
265
Anexo 1 - Mata-Sete
266
Anexo 2 - NRA
Anexo 2 - NRA
2.1 Mapas
Mapa 1: Localização do distrito e do concelho do Porto no território português.
Legenda:
1. Portugal.
2. Distrito do Porto.
3. Concelho do Porto.
269
Anexo 2 - NRA
Mapa 2: Localização do Parque da cidade dentro do concelho.
Legenda:
1.
2.
3.
4.
5.
Cidade do Porto.
Centro histórico.
Rotunda da Boavista.
Avenida da Boavista.
Parque da cidade.
Mapa 3: Localização do NRA no Parque da Cidade.
Legenda:
1. Parque da Cidade.
2. NRA.
270
Anexo 2 - NRA
Fotografia Aérea 1: Imagem da quinta do NRA (retirada do serviço Google Earth).
Legenda:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Beco de Carreiras.
Casas “siamesas” (loja de produtos “gourmet”).
Centro de Educação Ambiental.
“Ecolojas”.
Celeiro (cafetaria).
Esplanada na eira.
Picadeiro (inactivo).
Anexos.
271
Anexo 2 - NRA
Mapa 4: Localização dos diversos equipamentos do núcleo.
Nota: Esta imagem é uma fotografia do mapa que está localizado na entrada do NRA. A sua legenda
não está actualizada: os espaços 4 e 5 estão desactivados, sendo que o espaço do Restaurante foi
ocupado pela loja de produtos “gourmet”.
272
História
Quatro quintas, constituídas por quatro casas, duas delas ligadas, cozinhas,
vários anexos e estábulos, poços e tanques, três eiras, dois sequeiros, um
celeiro e várias construções abarracadas, destinadas ao depósito de material
doméstico e agrícola, etc. Existiam ainda, algumas alfaias agrícolas, hortas e
campos agricultados.
Vários animais de quinta, como galinhas, vacas, cães, coelhos, etc. Hortas,
pastagens, vegetação autóctone, típica da chamada "bouça" (pequena mata,
cercana a lameiros e terrenos agrícolas) muito comum na região.
Fauna e Flora
(1)Originalmente
Não existem animais de quinta, nem outro tipo de espécies, desde a
desactivação do picadeiro de póneis. Existem pequenas hortas de
leguminosas e ervas aromáticas, feitas durante ateliers do Centro de Educação
Ambiental, mantidas nas visitas semanais das crianças das escolas do
Conselho do Porto, inscritas nesta actividade. Já não existe produção agrícola
e a vegetação está integrada nas opções paisagísticas do Parque da Cidade
do Porto.
Acrescentadas foram as casas de banho e os cobertos com banco interior que
estão espalhados nos jardins circundantes ao núcleo. Como mais um
acrescento, pode ser encontrado ainda um picadeiro de póneis, que embora
não esteja mais em funcionamento, continua a fazer parte do conjunto.
Ao longo dos anos existiram algumas alterações de uso e funcionalidade em
alguns equipamentos e espaços, devendo ser dito que a listagem anterior se
refere apenas aos meses de trabalho de campo. No entanto, verifica-se que as
construções se têm mantido quase inalteradas, pelo menos exteriormente,
mesmo com distintas utilizações.
Apenas foram destruídos os anexos abarracados e provisórios e
acrescentadas algumas casas de banho para uso do público. Foram mantidas
as construções originais, remodeladas e convertidas em vários equipamentos
ou em elementos decorativos (como é o caso do sequeiro, por exemplo): um
Centro de Educação Ambiental (com escritórios, sala de reunião, espaços para
ateliers e formação, uma cozinha, etc.), uma casa de chá no antigo celeiro e
com esplanada na eira junto ao sequeiro, uma escola de gastronomia com loja
de produtos “gourmet” e respectivos escritórios, uma loja de “comércio justo”,
uma loja de produtos biológicos.
(2)Actualmente
O espaço do NRA está localizado na Freguesia de Aldoar, na Cidade do Porto, mais precisamente no Beco de Carreiras, entre a Rua da Vilarinha e uma das
extremidades do Parque da Cidade (Nordeste), funcionando inclusivamente como uma das suas entradas.
O lugar que hoje constitui o NRA era, até ao inicio da década de 90 (séc. XX) ou mais precisamente das obras do Parque da Cidade do Porto, um conjunto de 4
quintas de propriedade municipal, 3 das quais habitadas por famílias ligadas à agricultura. Este conjunto estava confinado entre a malha urbana densificada e a
vasta área destinada ao Parque da Cidade, funcionando como uma espécie de enclave de ruralidade residual, dentro da cidade. O pelouro do Ambiente da CMP
decide preservar o conjunto e transformá-lo num espaço de preservação dos vestígios do Porto rural, realojando os seus habitantes e encomendando um
projecto de transformação das quintas, em espaços comerciais e de hotelaria e num centro de educação ambiental. O NRA foi inaugurado em 2001. Tomaremos
como o momento (1) o período prévio ao realojamento das 3 famílias que habitavam as quintas, ou seja, antes do início do projecto de transformação e, por
momento (2), os primeiros 4 meses de 2010, ou seja, o período do Trabalho de Campo.
Construções e
Equipamentos
(área e localização)
Espaço
(origem e evolução)
Tabela 2.2.1. Síntese de Caracterização e Análise do NRA
Anexo 2 - NRA
2.2 Tabelas
273
274
Actividades
Decoração,
Materiais e Estilo
Arquitectónico
Usos residenciais e agrícolas.
[Vendo as fotografias do espaço no momento (1) é surpreendente perceber o
quão difícil parecia vislumbrar o seu potencial "pitoresco", dado o elevado grau
de degradação do conjunto, apesar de ser um lugar interessante pela
intensidade da apropriação quotidiana que dele era feita.]
O conjunto é densificado por inúmeros anexos de granito, um celeiro, um
sequeiro, construções precárias e telheiros de madeira e zinco, poços e
pequenos tanques de pedra, e fechado por detrás de um muro de pedra que
dá acesso ao Beco por quatro portões. Todo o conjunto sofre de um acentuado
grau de degradação, sendo visível um grande desgaste nos materiais:
madeiras envelhecidas, portas e janelas remendadas, paredes com tintas
muito gastas, telhados precários, etc. O traçado original das construções
estava consideravelmente alterado pelo acrescento dos diversos anexos e
telheiros. Os caminhos e muros de pedra estavam camuflados por entre a
vegetação. Existiam videiras e múltiplos esteios e arames pendentes ao longo
de todas as quintas. Para além dos objectos domésticos e de material agrícola,
existiam diversos vasos com plantas ao longo das escadarias e em alguns
recantos junto às casas e bastantes animais domésticos à solta.
Quatro casas completamente iguais, sendo que duas estavam ligadas entre si
por uma espécie de varanda em madeira. Casas de arquitectura popular, do
final do século XVIII, princípio do século XIX, com dois pisos (piso térreo para
as lojas e estábulos e piso superior para habitação) e cozinhas exteriores.
Paredes e escadas exteriores de granito, com pequenos alpendres, telhados
de telha "Marselha", chão de madeira no primeiro piso e de terra batida no piso
térreo, portas de dimensões muito variáveis em madeira e por vezes
reforçadas com chapa metálica, janelas "guilhotina". No interior das casas
existem alguns nichos de pedra nas paredes e "namoradeiras" nos recantos
das janelas.
(1)Originalmente
Actividades de lazer, educativas, comerciais e de restauração.
[A complexidade de um lugar vivido e portanto desalinhado e desgastado, foi
substituída por uma simplificação e limpeza que realça o potencial pitoresco do
conjunto, mas que lhe retira a riqueza da vivência quotidiana e realista de
outrora.]
Nos terrenos ajardinados em redor do núcleo foram colocados uns pequenos
cobertos com chão de madeira e um banco no interior, rodeados de ripas de
madeira pintada de vermelho, inspirados nos sequeiros tradicionais e que
servem de espaço de descanso para os visitantes que podem sentar-se e
abrigar-se do sol ou da chuva e continuar a contemplar o núcleo e o parque
através das ripas, quase como nas cabanas para observação de aves,
existentes em muitos parques naturais.
As casas foram recuperadas, mantendo-se o traçado original e os mesmos
materiais. Todas as construções precárias e pequenos telheiros e acrescentos
foram destruídos. O critério foi ir de encontro à semelhança original entre as
quatro casas principais, apesar de se ter mantido a ligação entre as duas
casas "siamesas". Os anexos em pedra, os tanques, os poços, o sequeiro, as
eiras e os estábulos foram mantidos e recuperados. A pedra foi limpa, as
madeiras exteriores pintadas de vermelho (janelas, portas, etc.), as paredes
exteriores e interiores de branco. Os tectos em madeira e o soalho dos pisos
superiores foram restaurados e mantidos. Nos pisos térreos a terra batida foi
coberta por estrados de pôr e tirar. Os caminhos e muros de pedra foram
limpos de vegetação. O celeiro foi reconstruído. As portas, janelas e portadas
foram mantidas e restauradas. Todo o conjunto foi limpo e destacam-se a
pedra de granito limpa, as paredes brancas e as madeiras em vermelho. Todos
os telhados foram reconstruídos. O número de esteios e arames diminuiu
drasticamente, existindo apenas algumas videiras em crescimento. A
densidade do conjunto foi de certa forma simplificada pela destruição dos
esteios, das construções precárias e dos telheiros de zinco, pela inexistência
dos objectos domésticos e agrícolas pelos cantos, pelo desaparecimento dos
vasos, dos animais e da vegetação invasiva. O espaço foi de certa forma
salubrizado, com a limpeza dos esgotos a céu aberto e dos detritos dos
animais, com a colocação de casas de banho e com a construção da rede de
saneamento.
(2)Actualmente
Tabela 2.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise do NRA
Anexo 2 - NRA
NaturoCoop (apenas
aberta ao fim de
semana).
Altromercado.
1000 Paladares.
2.
3.
4.
Produtos variados de
"Comércio Justo"
(brinquedos, roupa,
artesanato, produtos
alimentares, objectos
decorativos, etc.).
Produtos alimentares
"gourmet".
4.
Produtos alimentares e
domésticos de
agricultura biológica.
3.
Produtos de cafetaria.
1.
2.
Produtos
Anexo.
Anexo.
Casa com o nº65.
3.
4.
Celeiro.
2.
1.
Espaço Ocupado
Tecto e chão semelhantes aos do celeiro original,
paredes em pedra, cadeiras de verga, mesas de madeira
e vitrinas que expõe brinquedos.
Paredes em pedra, tecto, chão e mobiliário de madeira.
Paredes em pedra, tecto, chão e mobiliário de madeira.
Tectos e paredes pintadas de verde e móveis de madeira
pintados também a verde ou a vermelho escuro.
Mobiliário de madeira nobre, pintada e envernizada ou
em vidro, ora com linhas rústicas, ora de design moderno
e até minimalista. Cestas de vime e caixas de madeira
ocupam vários recantos como expositores de produtos.
Os nichos na parede em granito e as "namoradeiras" são
aproveitadas para dispor a mercadoria.
1.
2.
3.
4.
Decoração
Deve ser acrescentada, como uma actividade importante no NRA, a feira semanal de produtos biológicos ao sábado de manhã, no espaço entre a casa e a eira
do nº67 do Beco de Carreiras, onde diversos produtores ou revendedores de produtos de agricultura biológica, montam as bancas com a mercadoria debaixo do
telheiro do portão, ou mesmo debaixo de guarda-sóis. É uma pequena feira com cerca de 10 bancas, em que os produtos estão dispostos em mesas ou em
caixas, como num mercado e se vendem frutos, legumes, flores, mel, pão, compotas, cereais, frutos secos, etc.
Casa de chá.
1.
Actividade
Nota: Quando não especificado, a caracterização refere-se sempre ao período de realização do Trabalho de Campo, ou seja, aos 4 primeiros meses de 2010.
Outros elementos
ou observações
(caso existam)
Equipamentos
Comerciais
Tabela 2.2.1. (cont.) Síntese de Caracterização e Análise do NRA
Anexo 2 - NRA
275
Anexo 2 - NRA
Tabela 2.2.2. Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo)
NRA
Entrevistas
Arquitecto João Rapagão (um dos autores do projecto
de recuperação do NRA)
(ver 3.1_ Tabela Síntese das Entrevistas para mais
detalhe)
Historiadora Maria João Vasconcelos (uma dos
responsáveis pela valorização patrimonial do NRA)
Maria do Céu Moreira (Centro de Educação Ambiental)
- conversa informal, não transcrita.
Orlando Gaspar (Vereador do Ambiente da CMP à data
da recuperação do NRA)
Material Documental
Folheto sobre as Actividades de Educação Ambiental
da CMP.
(ver 4.1_Tabela Resumo do Material Documental do
NRA (*) para mais detalhe)
Programa Preliminar para o Museu da Cidade do
Porto.
Folheto da Exposição sobre o NRA.
Livro: Vasconcelos, Maria João (coord.) (1995), Essas
Pedras Quebradas... Permanências da Ruralidade no
Contexto Urbano, Porto, Departamento de Museus e
Património Cultural - Casa Tait, CMP
Estudo prévio do NRA.
Fotografias
45 Fotografias da autoria do Arquitecto João Rapagão,
no âmbito do levantamento fotográfico prévio à
recuperação do NRA.
21 Fotografias da autoria do Arquitecto João Rapagão,
tiradas durante os trabalhos de recuperação do NRA.
156 Fotografias próprias tiradas durante o Trabalho de
Campo, ao NRA, seus equipamentos e actividades.
276
Anexo 2 - NRA
Tabela 2.2.2. (cont.) Resumo do Material Recolhido (Trabalho de Campo)
Literatura
Infante, Sérgio (2003), "Reabilitação. Núcleo Rural de
Aldoar, parque da cidade, Porto. Arqs. João Rapagão e
César Fernandes", in Arquitectura e Vida, nº 37
Pacheco, Hélder (2002), Porto,
Esquecimento, Porto, Afrontamento
Outros
Memória
e
Apresentação Power Point da autoria do Eng.
Francisco Sendas (Director do Departamento Municipal
de Espaços Verdes e Higiene Pública da CMP e,
portanto, Administrador do Parque da Cidade do Porto)
com o título "Metodologia de Construção do Parque da
Cidade do Porto", para o Congresso Internacional de
Parques Urbanos e Metropolitanos, datada de Março
de 2006. (*)
277
278
Data
19/01/2010
11/03/2010
12/03/2010
25/03/2010
Entrevistado
João Rapagão
Mª João Vasconcelos
Mª do Céu Moreira
Orlando Gaspar
Vereador do Ambiente da
CMP na altura do
projecto de recuperação
do NRA
Responsável pelo Centro
de Educação Ambiental
do NRA
Historiadora, autora do
estudo e levantamento
patrimonial do NRA
Arquitecto, autor do
projecto de recuperação
do NRA
Função/Cargo
Importância de preservar a memória rural do Porto, pelo seu passado e evoluções
recentes.
Razões que motivaram o projecto de intervenção no NRA.
Explicação do programa previsto para o NRA e dos objectivos da intervenção.
Recuperação do NRA baseada em técnicas de construção tradicionais.
História do Parque da Cidade do Porto, seu projecto e concretização.
Apresentação do espaço.
Explicação e enumeração das actividades educativas realizadas no NRA.
(conversa informal - não transcrita)
Razões para a valorização daquele lugar específico (localização estratégica,
propriedade municipal, exigência de intervenção iminente).
História da evolução da cidade. Passado rural muito recente de muitas zonas da
cidade e de grande parte dos seus habitantes, enquanto motivo importante para a
valorização do património e da memória rural do Porto.
Explicação da ideia de transformar o NRA no Pólo Rural do Museu da Cidade do
Porto (que precedeu à sua recuperação e constituiu a primeira iniciativa de
valorização patrimonial do lugar).
Exposição de algumas ideias que existem para o futuro do núcleo.
Enumeração do que foi preservado, destruído, transformado e porquê.
Descrição do núcleo antes da recuperação (estado, características, potencial).
Explicação dos objectivos e orientações do projecto, critérios e filosofia de
intervenção, escolhas, polémicas e resultados.
Explicação das razões por detrás da iniciativa de intervenção, da sua origem e dos
contornos da "encomenda" do projecto de recuperação.
História do lugar e do projecto de recuperação.
Principais Ideias
Tabela 2.2.3. Síntese das Entrevistas (NRA)
Anexo 2 - NRA
Título
Guia de Actividades de
Educação Ambiental
Núcleo Rural de Aldoar.
Parque da Cidade do
Porto
Programa Preliminar do
Museu da Cidade do
Porto
Tipo de
Documento
Folheto Informativo
Folheto Desdobrável
Documento de Texto
Policopiado
Pelouro do Ambiente
da CMP.
Teresa Viana e
Maria João
Vasconcelos
1993
Gabinete do
Ambiente da CMP.
Autoria
Março de 2002
Ano Lectivo
2009/2010
Data
CMP.
CMP.
CMP e LIPOR
Edição
Apresentação do
projecto do Museu da
Cidade, que teria o
NRA como seu pólo
rural. Enunciação dos
objectivos e das
orientações
metodológicas para o
pólo temático do NRA.
Parecer sobre a
musealização do NRA.
Apresentação do NRA
e da exposição que
pretende descrever o
processo de sua
recuperação.
Descrição e
calendarização das
actividades de
educação ambiental
dos vários centros
educativos da CMP,
incluindo o do NRA.
(integral ou em alguns
casos seleccionado,
pelo que diz respeito
ao objecto)
Síntese de
Conteúdo
Tabela 2.2.4. Resumo do Material Documental recolhido sobre o NRA
Folheto da exposição
sobre o NRA
realizada em 2002,
não disponível na
actualidade.
Folheto fornecido no
Centro de Educação
Ambiental do NRA.
Observações
Anexo 2 - NRA
279
280
Título
Essas pedras
quebradas...
Permanências da
ruralidade em contexto
urbano.
Estudo Prévio do
Núcleo Rural de Aldoar
Metodologia de
Construção do Parque
da Cidade do Porto
Tipo de
Documento
Livro
Documento de Texto
Policopiado
Apresentação Power
Point
Março de 2006
Sem Data
1995
Data
Eng. Francisco
Sendas
João Rapagão e
César Fernandes
(coord.)
Maria João
Vasconcelos
Autoria
Congresso
Internacional de
Parques Urbanos e
Metropolitanos
Direcção do Projecto
Municipal de
Parques Urbanos CMP.
Departamento de
Museus e
Património Cultural CMP.
Edição
Descrição do processo
de construção do
Parque da Cidade do
Porto. Breve
apresentação do NRA,
suas funções e
processo de
recuperação.
Apresentação
detalhada dos custos
da obra do Parque,
incluindo os gastos
com o NRA.
Resumo e explicação
do programa de
ocupação funcional
para os vários espaços
do NRA
Apresentação da ideia
de transformação do
Beco de Carreiras no
pólo rural do Museu da
Cidade e explicação da
importância de
preservar a memória
do Porto rural. Algumas
reflexões sobre
ruralidade residual,
transformações
urbanas, memória e
património.
(integral ou em alguns
casos seleccionado,
pelo que diz respeito
ao objecto)
Síntese de
Conteúdo
Tabela 2.2.4. (cont.) Resumo do Material Documental recolhido sobre o NRA
Disponível em:
http://www.cmporto.pt/
users/0/66/FranciscoS
endas
_79a0958f2144199b7
69
db6b0413ada4e.pdf
O livro em causa
acompanha uma
exposição com o
mesmo nome, que
contempla um espólio
de objectos utilitários
e agrícolas do
quotidiano rural
portuense do final do
séc. XIX / princípio do
séc. XX.
Observações
Anexo 2 - NRA
Autoria
João
Rapagão
João
Rapagão
Nº de Fotos
(por grupo)
45
21
Conteúdos
retratados
Casas no exterior e, por
vezes, no interior,
caminhos, muros,
construções abarracadas e
anexos, sequeiros, celeiro,
telheiros, recantos, animais,
pormenores de construção
e pequenos detalhes
(janelas, portas, relógio de
sol, escadas, pilares,
namoradeiras, etc.),
esteios, ramadas, hortas,
portões, poço, vasos,
varandas e alpendres.
Fachadas, telhados,
interiores, escadarias,
vigas, casas em geral, em
trabalhos de recuperação e
restauro.
Data ou
momento do
retrato
Fotografias tiradas
antes das obras de
recuperação, aquando
do levantamento
fotográfico do núcleo.
Fotografias tiradas
durante os trabalhos
de recuperação.
São visíveis diversos pormenores de encaixes de vigas de
madeira, de escadas e tectos principalmente, bem como estruturas
de suporte dos soalhos. Existem imagens do interior e exterior das
casas em plena obra de reconstrução. Estruturas de telhados em
processo de aplicação de telhas. Chão por empedrar. Casas
rodeadas de andaimes ou já com as fachadas em avançado
processo de limpeza. E finalmente as casas já acabadas e
pintadas de fresco, com as eiras e caminhos limpos, ao que
parece imediatamente após a finalização dos trabalhos.
As fotografias estão organizadas por casa. Em cada grupo, com
maior ou menor detalhe, estão retratados os exteriores e zonas
circundantes, ou seja, as fachadas e construções anexas, pátios e
outros elementos em redor de cada casa, como vasos, material
agrícola, ramadas, animais, hortas, etc. Existem poucas fotografias
dos interiores, sendo que as existentes tendem a retratar
pormenores arquitectónicos particulares, como pilares, janelas
com namoradeiras, portas ou a estrutura interior do celeiro.
Algumas das fotografias retratam detalhes muito específicos como
o relógio de sol e outras, pelo contrário dão uma visão geral do
conjunto. Existe também um conjunto de fotografias que retratam o
beco, ou seja, o exterior do conjunto à face da rua, bem como, dos
caminhos ladeados de muros em pedra, interiores ao núcleo.
Descrição geral dos conteúdos
retratados
Tabela 2.2.5. Resumo das Fotografias (NRA)
Conjunto de fotos
desordenadas e
misturadas com algumas
plantas, esquiços, fotos
aéreas do local, postais
antigos e outras imagens
já incluídas no
levantamento fotográfico.
Fotografias que compõe
o Levantamento
Fotográfico do NRA.
Observações
Anexo 2 - NRA
281
282
Autoria
Própria
Nº de Fotos
(por grupo)
156
Conteúdos
retratados
Interior e exterior das
casas, nomeadamente e
com detalhe acrescido as
salas, mobiliário e
equipamento do centro de
educação ambiental. Os
pátios, recantos, tanques,
eiras, sequeiros, telheiros e
restantes elementos
construídos do conjunto. O
celeiro enquanto casa de
chá e sua esplanada, as
lojas (por fora e por dentro)
seus produtos, decoração e
mobiliário, o picadeiro, as
casas de banho, a feira de
produtos biológicos, a
cozinha, diversos
pormenores de construção,
o beco de Carreiras e os
portões que dão entrada
para o núcleo, as hortas,
canteiros, vegetação e os
cobertos espalhados pelos
jardins circundantes.
Data ou
momento do
retrato
Fotografias tiradas nos
primeiros 4 meses de
2010, durante o
trabalho de campo.
As fotografias tiradas retratam desde o conjunto como um todo,
com panorâmicas das suas casas e espaços circundantes, até aos
detalhes de construção e a todo o tipo de pormenores com
interesse, como por exemplo, os rótulos dos produtos vendidos
nas lojas do NRA.
Desta feita, podem observar-se as casas, pelas fachadas e
elementos arquitectónicos característicos (telhados, janelas,
alpendres, escadarias, etc.), mas também por dentro, sala a sala,
passando pelo mobiliário e pelos pormenores de construção
visíveis internamente (nichos em pedra, tabique exposto, etc.).
São retratados os caminhos, recantos, escadas, muros e pátios,
tanques, poços, canteiros e vegetação circundante, os anexos que
albergam arrumos e lojas, a casa de chá e sua esplanada, o
picadeiro central, as casas de banho, etc. Em resumo, todas as
construções, equipamentos, restaurados ou acrescentados, como
os cobertos com banco, por exemplo.
As actividades comerciais estão igualmente documentadas, a feira
semanal, mas também as lojas, cuja decoração e produtos estão
registados, com muito detalhe principalmente no que toca à loja de
produtos “gourmet “ "1000 paladares".
O conjunto é patente pelo lado do parque, retratado de longe com
o picadeiro ao centro e as casas por trás rodeadas do celeiro, de
pequenos muros, sequeiros e pequenos anexos, mas também foi
registado o beco e o muro que rodeia o núcleo pelo lado exterior
ao parque, apenas aberto pelos portões de acesso às quatro
quintas.
Descrição geral dos conteúdos
retratados
Tabela 2.2.5. (cont.) Resumo das Fotografias (NRA)
Não foi ensaiada uma
correspondência rigorosa
no retrato fotográfico do
NRA para lograr uma
comparação foto a foto
com o levantamento feito
antes das obras, no
entanto, é possível, em
muitos casos, fazer esse
exercício de forma
bastante detalhada, o
que está patente na
selecção de imagens
legendadas em anexo.
Observações
Anexo 2 - NRA
Anexo 2 - NRA
2.3 Fotos
a) Fotografias relativas ao Núcleo Rural de Aldoar (NRA)
Antes das obras de requalificação30
Foto 1: Beco de Carreiras.
Foto 2: Pequeno pátio de acesso a uma das casas (hoje ocupada pelo Centro de Educação
Ambiental). Note-se o avançado estado de desgaste dos materiais de construção, os inúmeros vasos
dispostos junto à casa e nos degraus da escada, as videiras e a antena de televisão.
30
As fotografias apresentadas são da autoria do Arq. João Rapagão e fazem parte do levantamento fotográfico
ao NRA, desenvolvido antes da intervenção.
283
Anexo 2 - NRA
Foto 3: Um dos caminhos de ligação entre as quintas, cujo empedrado se encontra fortemente
coberto por vegetação invasiva, tal como os muros de pedra.
Foto 4: Uma das casas do núcleo, num estado visivelmente degradado. Repare-se no alpendre de
chapa, com aspecto precário, que alberga diversos caixotes e víveres.
284
Anexo 2 - NRA
Foto 5: Outra perspectiva da mesma casa e da respectiva eira.
Foto 6: Pátio entre os diversos estábulos e galinheiros, ocupado por várias aves e um vitelo,
sombreado por inúmeros esteios metálicos e troncos de videira.
285
Anexo 2 - NRA
Foto 7: Vista para o núcleo, desde os campos que hoje constituem o Parque da Cidade. Do lado
esquerdo pode ver-se o celeiro, atrás do qual se encontra um espigueiro, enquanto que, do lado
direito (por detrás dos muretes de pedra), estariam as casas de habitação e os estábulos. Note-se as
pequenas hortas e cultivos, rodeados de sebes feitas de paus e de canas, no campo que rodeia o
celeiro.
Foto 8: O celeiro original, que ficou destruído num incêndio que ocorreu pouco antes das obras.
286
Anexo 2 - NRA
Foto 9: Interior do celeiro.
Foto 10: Vista para o sequeiro (à esquerda), para as traseiras do celeiro (do lado direito) e para a eira
que os separa. Este espaço é actualmente ocupado pela esplanada da cafetaria (localizada no
celeiro).
287
Anexo 2 - NRA
Foto 11: Tanque de lavar roupa, telheiro metálico, bacias e outros objectos do quotidiano.
Foto 12: Poço, rodeado de vasos, algumas vassouras e outros objectos. Repare-se no telheiro
precário (entretanto desaparecido depois das obras) e nos paus que sustentam a sua estrutura.
288
Anexo 2 - NRA
Foto 13: Pequenos estábulos ou galinheiros.
Foto 14: Pátio onde se localizam as cortes e os galinheiros (portas do lado direito).
289
Anexo 2 - NRA
Foto 15: Pormenor de uma das casas que, segundo o que foi apurado, funcionava como uma
espécie de esgoto ou fossa a céu aberto.
Foto 16: Coberto, eventualmente usado para albergar animais ou guardar o feno.
290
Anexo 2 - NRA
Foto 17: Beco entre casas.
291
Anexo 2 - NRA
292
Anexo 2 - NRA
b) Fotografias relativas ao Núcleo Rural de Aldoar (NRA)
Recentemente (primeiros meses de 2010).31
Foto 1a: Beco de Carreiras. No canto inferior esquerdo da fotografia pode ver-se a placa da Câmara
Municipal do Porto que assinala a entrada no “Núcleo Rural de Aldoar”.
Foto 4a: Uma das entradas para o pátio do Centro de Educação Ambiental. Pequeno caminho
coberto e ladeado de portas (de antigos estábulos e galinheiros). Aqui, tal como em todos os edifícios
do NRA, as portas e madeiras estão pintadas de vermelho.
31
Fotografias tiradas durante o Trabalho de Campo, ou seja, nos quatro primeiros meses de 2010.
293
Anexo 2 - NRA
Foto 5a: Recanto entre a Loja da NaturoCoop e o Centro de Educação ambiental. Ao centro podem
ver-se as escadas e a porta que dá acesso ao campo das hortas pedagógicas e o espaço onde tem
lugar a feira semanal de produtos biológicos.
Foto 6a: Cozinha do Centro de Educação Ambiental, com forno de lenha original e decoração rústica.
294
Anexo 2 - NRA
Foto 7a: Sala do Centro de Educação Ambiental com trabalhos feitos pelas crianças que participam
nas actividades.
Foto 8a: Casas “siamesas” (por estarem ligadas por um acrescento posterior, que foi mantido nas
obras de recuperação) e respectiva eira. São actualmente ocupadas pela loja de produtos “gourmet” e
pelo seu escritório.
295
Anexo 2 - NRA
Foto 9a: Varanda que liga as duas casas “siamesas” e que funciona como alpendre de acesso à loja
de produtos “gourmet”. Do lado esquerdo podem ver-se os telhados dos anexos e estábulos que
estão em redor do edifício.
Foto 10a: Interior da loja de produtos “gourmet”, com os produtos dispostos nas suas estantes de
madeira pintada e em algumas cestas de vime ao pé das “namoradeiras” da janela.
296
Anexo 2 - NRA
Foto 11a: Edifício das chamadas “Ecolojas”. A porta aberta do lado esquerdo corresponde à loja de
“comércio justo”, enquanto a do lado direito diz respeito à loja de produtos biológicos (apenas aberta
ao fim de semana).
Foto 12a: Estantes no interior da loja de produtos biológicos.
297
Anexo 2 - NRA
Foto 13a: Celeiro reconstruído. Funciona como uma cafetaria (ver Foto 8 relativa ao período anterior
à transformação).
Foto 14a: Interior do celeiro/cafetaria (ver Foto 9 relativa ao período anterior à intervenção).
298
Anexo 2 - NRA
Foto 15a: Caminho ladeado de muros de pedra, espigueiro recuperado e (do lado direito, atrás deste)
a esplanada da cafetaria (ver Foto 10 relativa ao período anterior à transformação).
Foto 16a: Vista geral do NRA (para quem vê do Parque da Cidade), do lado esquerdo pode ver-se o
celeiro/cafetaria, no centro o picadeiro para póneis (actualmente desactivado) e, do lado direito, o
edifício do Centro de Educação Ambiental (ver Foto 7 relativa ao período anterior às obras de
requalificação).
299
Anexo 2 - NRA
Foto 17a: Feira semanal de produtos biológicos. Repare-se nos esteios metálicos, que mesmo sem
vinhas, foram repostos depois das obras, na tentativa de manter o carácter rústico do lugar.
Foto 18a: Um dos bancos cobertos da autoria dos Arquitectos João Rapagão e César Fernandes,
inspirados nas ripas de madeira dos sequeiros do Norte de Portugal, pintados com o mesmo
vermelho das portas e janelas dos edifícios do núcleo, que estão espalhados pelos terrenos
circundantes ao conjunto (quase como pontos de observação para a paisagem do NRA).
300
Anexo 2 - NRA
Foto 19a: Poço (bastante simplificado e “despido” se compararmos com a Foto12 do período anterior
à intervenção).
Foto 20a: Coberto recuperado (ver Foto 16 relativa ao período anterior à recuperação do núcleo).
301
Anexo 2 - NRA
Foto 21a: Beco entre casas (ver Foto 17 relativa ao período anterior à recuperação do núcleo).
302
Download

Do discurso ao projecto urbano de reinvenção da ruralidade