O transexualismo e seus aspectos jurídicos Paula Prux Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Bacharel em Direito pela FACNOPAR – Apucarana – Paraná. [email protected] Flávio Kamikawa Bacharel em Direito pala FACNOPAR – Paraná. Resumo: o este artigo busca retratar a situação dos transexuais, analisando as suas condições humanas, a sua dignidade, os seus direitos perante o Estado Brasileiro e a forma de como se vê, a consciência jurídica em outros países a seu respeito. Palavras-chave: transexuais; cirurgia; mudança; sexo; dignidade. Sumário: • Introdução • A determinação do sexo sob os aspectos bio-psicológico • A determinação do sexo no sistema jurídico brasileiro • O transexualismo • A cirurgia para alteração de sexo • Mudança de sexo masculino para o feminino • Mudança de sexo feminino para o masculino • A identificação do transexual após a operação para mudança de sexo • A condição do transexual analisada sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana • Conclusão • Bibliografia Introdução Com a crescente difusão de valores e idéias, reflexo das incessantes trocas de informações e crítica às mesmas, que se tornou possível com o rápido desenvolvimento da tecnologia e das comunicações e sobretudo com seu aperfeiçoamento, proporcionando cada vez mais uma maior celeridade e eficiência, evidenciou-se a abrangência de situações discriminatórias pelo país e pelo mundo. A fenomenologia tenta explicar este novo contexto social expondo uma crítica ao idealismo às máquinas, às novas tecnologias, às linguagens ambíguas exploradas pela mídia, e pela repulsa ao ato de pensar, de não utilizarmos a consciência natural como fonte de nossos atos, de nos afastarmos ao vivido. Por conta disso, prepondera uma única realidade, a da não igualdade social. Muitos homens e mulheres são discriminados, desmoralizados e vexados por suas diferenças em relação ao perfil geral de pessoas, quais sejam homens com sexo e aparência masculina e mulheres com sexo e aparência feminina. Diante ao exposto, este artigo buscará retratar a situação dos transexuais, analisando as suas condições humanas, a sua dignidade, os seus direitos perante o Estado Brasileiro e a forma de como se vê, a consciência jurídica em outros países a seu respeito. Por fim, trará uma breve crítica ao conservadorismo dos legisladores brasileiros pela sua omissão na produção de leis, que venham permitir a satisfação de seus interesses e, sobretudo, proteger sua dignidade pessoal. A determinação do sexo sob os aspectos bio-psicológico Ao se observar uma pessoa, é possível, num primeiro momento, saber qual o seu sexo devido à aparência, aos traços, ao modo de andar, à voz, ao modo de se expressar, pensar e devido à forma como se apresenta à sociedade. Contudo, o sexo de uma pessoa não é determinado apenas pelos seus atributos físicos. ¨Há uma série de fatores psicológicos, genéticos, endócrinos e sociais que interagem na determinação do sexo. A falta de integração desses fatores pode tornar difícil a definição do sexo, até mesmo por parte da própria pessoa. Segundo Farina, “num indivíduo tido como protótipo de normalidade, existe um sincronismo perfeito das características tanto orgânicas como psicológicas de per si, como ainda no confronto delas entre si”. (Farina, Roberto, Transexualismo; do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias, São Paulo, Novo-lunar, 1982, p.22) De todos os fatores que, conjuntamente, determinam o sexo, os fatores biológicos são os que mais se fazem presentes. Fazem parte do sexo biológico as características genéticas, endócrinas, e morfológicas, que juntas, chegam ao resultado de um fenótipo único (a aparência da pessoa). São determinantes do sexo, também, os fatores psicológicos, que configuram as reações que o cérebro apresenta diante de certos estímulos. O sexo psicológico pode ser diferente do sexo biológico quando a pessoa reage em desacordo com o que é considerado normal para pessoas do sexo ao qual pertence. Mesmo em face das diversas influências decorrentes da educação familiar, escolar e religiosa, fatores psicológicos podem levar a um desvio sexual, fazendo com que o indivíduo identifique-se com o gênero correspondente ao sexo oposto. De acordo com Juarez Avelar, “a noção que cada um tem a respeito do próprio corpo, construída com base em suas experiências sensoriais e em sua interação com o meio social é formada a partir do nascimento”. (Avelar, Juarez M., Cirurgia Plástica na Infância, vol. 1, Ed. Hipócrates, São Paulo, 1989, p. 03). Complementando, ainda, tal ensinamento, a maior parte dos especialistas em identidade sexual concorda que o direcionamento para um ou outro sexo é tomado ainda antes da criança ter capacidade de discernimento, geralmente até os dois anos de idade. A determinação do sexo no sistema jurídico brasileiro Sexo jurídico é aquele que consta do registro civil, documento de fé pública, que constitui meio de prova fidedigno. Todos os atos inscritos no registro civil, dentre os quais o sexo, são tidos como verdadeiros. A determinação do sexo para inscrição no registro civil baseia-se tão somente nos aspectos biológicos do indivíduo, até porque uma avaliação dos fatores psicológicos não seria possível com bebês. Normalmente, verificam-se as características dos órgãos genitais externos e, felizmente, na maioria dos casos, estes órgãos são compatíveis com os internos. O sexo determinado no registro civil é importante, num sentido mais amplo, para o país, pois há uma série de leis e regulamentos que tratam de forma diferenciada o homem e a mulher. Como exemplo, temos que só o homem é obrigado a servir às forças armadas. O conteúdo do registro civil também é importante para terceiros que se relacionam com o registrado, posto que podem pretender manter um relacionamento íntimo com o mesmo. Por fim, o próprio registrado tem interesse em comprovar o seu sexo por meio de um documento de fé pública a fim de poder exercer determinados direitos e obrigações. O transexualismo O transexualismo caracteriza-se pela não compatibilidade entre o sexo biológico e o sexo psicológico. Ocorre, principalmente, com os homens, sendo que o número de transexuais femininos é inexpressivo. Caracteriza-se o transexualismo pelo desejo que o indivíduo tem de pertencer ao sexo oposto, o que o leva a se submeter à cirurgia de mudança de sexo. Para Holdemar Oliveira de Menezes, “transexualismo é a inadequação psicológica ao sexo somático, que é aquele denunciado pela genitália interna, pela genitália externa e pelos caracteres secundários; ou ainda, a não harmonização entre o sexo somático e o sexo psicossocial, com alterações no comportamento sexual do indivíduo”. (Menezes, Holdemar Oliveira de, Transexualismo, Separata dos Arquivos da Polícia Civil de São Paulo, São Paulo, 28, 2º sem. 1978 p. 85). Os transexuais são indivíduos que possuem perfeitas genitálias externa e interna de um único sexo, no entanto têm a convicção de que pertencem ao sexo oposto e sentem um forte desejo de mudar o seu corpo, aparência e condição perante a sociedade. Os transexuais rejeitam a sua própria condição e acreditam que apenas “nasceram no corpo errado”. Em alguns casos, o desejo compulsivo de mudar de sexo pode levar a uma auto-mutilação ou até a um suicídio, caso não haja intervenção cirúrgica. Pode ocorrer, que o transexualismo desenvolva-se por influência do ambiente, como pó exemplo, a partir de problemas psicológicos da mãe do transexual. O assunto é um tabu para a medicina, psicologia e psiquiatria, sendo que, até hoje, não foi possível se estabelecer uma opinião definida a respeito do tema. O transexual não pode ser confundido com o homossexual ou com o travesti. O transexual não aceita o seu sexo biológico, enquanto o homossexual o aceita e satisfaz-se mantendo relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Já os travestis, em seu fetichismo, têm como principal característica o desejo de se vestir nos moldes do sexo oposto, e não de mudar de sexo. Muitas pessoas associam o transexual ao travesti por falta de informação e, quando não acham que o desvio sexual é ocasionado pela insanidade mental, acham que é “pura safadeza”. O transexual, no entanto, não possui nenhum problema mental e não busca em pessoas do mesmo sexo mera satisfação sexual. O transexual sente, pensa e age como alguém do sexo oposto e angustia-se tanto com a condição de seu corpo que faz da redesignação de sexo sua maior obsessão. Pesquisas feitas com transexuais masculinos crianças mostram que, antes mesmo dos três anos de idade, eles, espontaneamente, preferem brincadeiras características das meninas, escolhem roupas femininas e até demonstram certo “instinto maternal” através de seu comportamento. Na literatura, os casos mais conhecidos são os de Lance, um menino de 5 anos, tratado por Greenson (1966) em análise, e o de Nikki, cuja história pessoal é abordada por Stoller (1975). “Lance foi tratado por apresentar uma compulsão travestista que se expressava de forma aberrante e que era acompanhada por interesses e comportamentos feminóides generalizados, francamente incentivados pela família. Tinha uma identificação intensa com a boneca Barbie, com a qual às vezes parecia confundir-se¨. Greenson entendeu que o transexualismo de Lance se devia a um contato exageradamente próximo com uma mãe possessiva, que o engolfava totalmente em termos táteis, visuais e afetivos, e à existência de um pai desprezado, fracassado e isolado na família. Nikki, cujo nome é a contração de “Verônica”, nome que a mãe desejava dar a uma filha, começou a ser observado com quatro anos, quando tinha já uma identidade totalmente feminina. Ele era vestido pemanentemente de mulher pela mãe, que o maquiava e o registrava nos hotéis como menina, quando viajavam. Nikki gostava de usar vestidos românticos e de ter cabelo longo pela cintura. A distorção extrema da identidade sexual de Nikki parecia estar claramente relacionada à relação intensamente simbólica com a mãe, uma desenhista de moda, e à ausência do pai, um empresário mais velho que achava a família maçante.” (B. Graña, Roberto, Além do Desvio Sexual, Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1996, p. 12 e 13). A convicção que o transexual tem de pertencer a outro sexo é, geralmente, constrangedora para a família, amigos e para o próprio transexual. A situação, já embaraçosa, é agravada pelo preconceito da sociedade que, em sua maioria, vê o transexual como um doente ou anormal. Se o transexual se sujeita à cirurgia para a mudança de sexo biológico, torna-se necessário que seja modificado, também, o seu sexo jurídico. A modificação do sexo biológico e a não modificação do sexo jurídico pode acarretar danos ainda mais graves do que os que o transexual anteriormente suportava A cirurgia para a alteração de sexo: Em 1997, através de sua resolução nº 1.428/97, o Conselho Federal de Medicina (C.F.M.) autorizou as cirurgias para mudança de sexo, desde que realizadas em Hospitais Universitários, considerando-as como Cirurgia Experimental. Em decorrência desta resolução, foi montada uma Equipe Multidisciplinar, na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), com a finalidade de elaborar estudos mais aprofundados sobre a transexualidade, inclusive sobre os aspectos cirúrgicos. O fato de a cirurgia ser realizada em caráter experimental, em hospitais universitários, tornoua mais acessível financeiramente, pois o paciente arcaria apenas com os gastos hospitalares. Em outros países, no entanto, a cirurgia pela sua complexidade pode ultrapassar o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Em Novembro de 2002, o Conselho Federal de Medicina expediu a resolução 1.652, que também dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a resolução de nº 1.482/97. A resolução 1.652/2002, assim como a resolução 1.482/97, confirma ser o paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação. Também define todos os critérios de avaliação dos pacientes. Cabe mencionar que a resolução 1.652/2002 estabelece que as cirurgias para a adequação do fenótipo feminino para o masculino só poderão ser realizadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa, enquanto as cirurgias para a adequação do fenótipo masculino para o feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa. Importante ressaltar que a resolução 1.482/97 não fazia esta diferenciação, sendo que todas as cirurgias para mudança de sexo deveriam ser feitas em hospitais universitários ou públicos adequados à pesquisa. Foi restabelecida, pela resolução 1.652/2002, uma série de pré-requisitos necessários para que seja feita a cirurgia para a mudança de sexo. Os pacientes que desejam submeter-se a este processo cirúrgico precisam passar por investigações clínicas, comportamentais, existenciais e sociais, por médico psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, caracterizando a interdisciplinariedade. Os pacientes devem ter mais de 21 anos de idade, consentir formalmente com a cirurgia, e demonstrar ausência de transtornos mentais, características físicas apropriadas para a cirurgia e, ainda, a permanência do distúrbio transexual de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos. O diagnóstico dos profissionais envolvidos nesse procedimento deve ser bastante preciso, definindo as intervenções mais adequadas às características do paciente. Não é propósito deste artigo analisar a redesignação de sexo sob a ótica médica, no entanto uma sucinta explanação a respeito da cirurgia convém ao melhor entendimento do tema: Mudança do sexo masculino para o feminino: Com o avanço da medicina e das técnicas cirúrgicas, esta operação tem se tornado relativamente simples e rápida, sendo realizada em apenas um tempo cirúrgico(Rmsey, Gerald. Transexuais: Perguntas e Respostas. São Paulo: Summus, 1998, p.148). De forma bastante resumida, pode-se dizer que é feita a amputação do pênis com a preservação da glande, que é colocada no lugar do clitóris para que a sensibilidade não sofra alterações. Posteriormente, um molde siliconizado é revestido com gaze e introduzido no orifício para que este não feche. (Ramsey, Gerald. Transexuais: Perguntas e Respostas. São Paulo: Summus, 1998, p.148). Mudança do sexo feminino para o masculino: A operação para mudança de sexo do feminino para o masculino é mais complicada e longa. Compreende três tempos cirúrgicos. Primeiramente, o paciente é submetido a uma anestesia geral para que seja feita a retirada do útero, ovários e anexos. Em não menos de 30 dias, após a recuperação do paciente, há uma segunda cirurgia que consiste na retirada da vagina e implante de um pênis. Finalmente, após cicatrização total, o paciente é submetido a um terceiro tempo cirúrgico para que sejam feitos os últimos ajustes. (Ramsey, Gerald. Transexuais: Perguntas e Respostas. São Paulo: Summus, 1998, p.144 e ss). Identificação do transexual após a cirurgia para a mudança de sexo: Após a realização da cirurgia e a modificação do sexo, é como se surgisse uma nova pessoa. Algumas características físicas mudam, sendo que o sexo biológico passa a corresponder ao sexo psicológico. É um processo de adaptação pelo qual o transexual espera ansioso, como se fosse a cura de uma doença. Felizmente, a operação cirúrgica para a mudança de sexo foi permitida pela resolução 1.482/97 e, posteriormente, pela resolução 1.652/2002. É imprescindível, no entanto, a alteração do sexo jurídico, ou seja, a mudança do nome que consta no registro civil. Já, nesse aspecto, o Brasil tem relutado em evoluir. Nossa legislação pouco permite no tocante à alteração do nome. Segundo o artigo 58 da Lei nº 6.015, de 31/12/1973 – Lei de Registros Públicos, o nome se altera: a) necessariamente, quando há modificação do estado de filiação (legitimação, reconhecimento de filho, adoção) ou modificação de estado pelo casamento (casamento, divórcio, separação judicial); b) voluntariamente, quando há erros de grafia, ou em casos de nomes extravagantes ou que causem vexame. O nome também é protegido pelo Código Penal (exemplos: artigos 307 e 308) e Lei de Contravenções Penais (exemplos:artigos 49 e 68). O mais coerente seria que a alteração de nome ocorresse de forma automática, logo após a realização da cirurgia para a mudança de sexo, no entanto, o transexual ainda precisa ingressar com uma ação própria pleiteando a alteração de seu nome no registro civil, bem como nos demais documentos. No Brasil, muitos poucos Tribunais têm acolhido os pedidos de alteração de nome nos casos em que já houve a cirurgia de redesignação sexual. As poucas decisões favoráveis são motivadas pela nova aparência da pessoa, que não corresponde ao seu sexo jurídico, o que pode causar situações constrangedoras e vexatórias que expõe a pessoa ao ridículo. Em dezembro de 2002, em Vila Velha, Espírito Santo, uma decisão inédita na justiça brasileira permitiu a alteração do nome de uma transexual feminina sem que essa houvesse passado pela operação de mudança de sexo. A decisão foi fundamentada no fato de a transexual ter aspectos físico e psicológico masculinos e de não ter tirado carteira de motorista nem exercido profissão alguma por vergonha devido ao registro do sexo nos seus documentos. Há divergências em relação à mudança do sexo jurídico, pois as correntes mais conservadoras entendem que permitir a alteração do sexo na certidão de nascimento de uma pessoa, bem como nos demais documentos, seria permitir que se apagasse o passado da pessoa, que em seu estado primeiro, gerou inúmeros efeitos jurídicos. A corrente minoritária da doutrina, no entanto, tem entendido que a mudança do sexo jurídico deve acompanhar a mudança do sexo biológico. A revista “Veja” do dia 16 de junho do ano de 2004, na edição nº1858, publicou uma matéria sobre uma decisão, na época, inédita, da comissão de ética médica alemã. Conforme consta na reportagem, a comissão permitiu que um garoto de apenas 13 anos começasse a tomar hormônio feminino para ficar mais parecido com uma garota. Na Alemanha, a idade mínima para realização de cirurgia para mudança de sexo é 18 anos, no entanto, o garoto de 13 já está passando por uma série de transformações, sendo que a operação, em si, será o último passo a ser tomado para a redesignação sexual. A notícia chamou atenção pela idade do paciente e pela responsabilidade que a ele foi atribuída. Outra notícia divulgada em diversos portais da rede virtual como: o portal Terra e PortugalGay.PT é a de que, pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos, os atletas transexuais puderam participar nas modalidades correspondentes ao seu verdadeiro sexo (o sexo psicológico e biológico corrigido). A decisão do Comitê Olímpico Internacional deu-se por unanimidade, logo após uma reunião dos especialistas na Suécia e foi colocada em prática já nas Olimpíadas de 2004. (Portais Terra e Portugalgay.Pt, disponíveis em: <esportes.terra.com.br/atenas2004/interna >e < portugalgay.pt/news/index) A condição do transexual analisada sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana: Todos os pontos abordados até então conduzem a uma inevitável reflexão que envolve o princípio norteador de todo o ordenamento jurídico, ou seja, o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há valor maior a ser prezado pela legislação do que a dignidade da pessoa humana, razão de existência do próprio direito. O transexual, como pessoa humana, é também parte deste centro de valores sobre o qual incidem as normas de direito positivo e, principalmente, as normas de direito natural, das quais preferem ser descrentes muitos doutrinadores. É também objeto de todos os princípios que tramitam sobre o ordenamento vigente, que iluminam e servem de guia à Lei Maior. Após a Segunda Guerra Mundial, os conceitos de pessoa humana foram reformulados na maioria das comunidades existentes. Tal ponto se ratificou, com a reformulação categórica dos conceitos de Direito Internacional Público, que recepcionou princípios jurídicos e postulados políticos fundados na dignidade da pessoa humana e nas demandas éticas por parte da consciência pública, espelhando-se no conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Tal fato contribuiu, e muito, para a democratização das relações internacionais e nacionais. O mesmo se revelou com os princípios diretivos, inseridos no preâmbulo da Carta da ONU, que preconizou a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano. Com a nova sistemática de valores a serem forjados, a Constituição Brasileira de 1988 veio abarcar, em seus preceitos e princípios basilares, os direitos humanos, em conformidade aos tratados e pactos internacionais. O art.1o, inciso III, da CF, consagra expressamente a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Canotilho, doutrinador português, retrata a dignidade da pessoa humana como sendo “o fundamento e domínio político da República”. Tal dignidade humana, tornou-se o foco da legislação, a essência do homem passou a ser o limite do legislador, este devendo se ater aos interesses e ao bem-estar da pessoa humana. O legislador na sua abstratividade, objetivando cercar de garantias o preceito ¨dignidade da pessoa humana¨, elencou, no art.3o, incisos I a IV, princípios que deverão ser alcançados na sua integralidade para que o referido preceito não seja violado. Um deles, e de salutar importância a este trabalho, condiz ao princípio da igualdade. O princípio da igualdade, constitucionalmente previsto no art.5o, caput e no art.3º, incisos I e IV, tem como idéia o tratamento equânime das pessoas. A interpretação do dispositivo reflete no comportamento social, posicionando-se como a fonte reguladora da vida social no geral. Esta prerrogativa busca impedir a discriminação quanto ao sexo, raça, cor, origem, idade, orientação sexual e demais formas de preconceito. Com efeito, para Celso Antônio Bandeira de Mello, ¨...o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas¨.Uma vez que, existindo o vínculo entre a peculiaridade diferencial acolhida no íntimo do objeto, e a desigualdade de tratamento decorrente em função dela, não vindo a ir contra aos ditames constitucionais, é possível a ocorrência de desigualdade de tratamento, não sendo considerada, nesse sentido, como uma discriminação. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade.São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.18) A discriminação é um dos vastos problemas enfrentados pelas pessoas que não estão incorporadas ao modelo conservador da consciência social. Apesar de se viver em um período neoliberal, o padrão social tradicional muito pouco se alterou. As mentes mantêm-se conservadoras, por meio das gerações e dos costumes, inexpressivas em ação e vontade para abrir os olhos à nova realidade. O que se configura preocupante atém – se ao fato de que ao se discriminar uma pessoa, não importa se esta possui valores contrários ao comum, nem por isso deixa de ser uma pessoa, e conforme foi analisado, todo ser humano possui a garantia da sua dignidade protegida pela Lei Maior, e não existindo o respeito a este preceito, os valores democráticos e sociais da ordem Nacional vigente estariam sendo desrespeitados. Os transexuais, pessoas que não têm compatibilidade entre o seu sexo psicológico e o sexo biológico, fazem parte do contingente de pessoas estigmatizadas socialmente. É de se reconhecer a privação de muitos direitos constitucionais a eles atinentes, como o direito de emprego (artigos 6o e 7o, inciso I, da CF), o direito de votar (artigo 14 da CF), o direito de igualdade (artigo 5º, caput), o direito ao casamento (artigo 226, §3º, da CF) e outros. Poucos são os países que estão debatendo e aprovando normas protetoras aos transexuais. São exemplos: o Japão, a Bélgica e a África do Sul. Ainda, os seguintes estados dos Estados Unidos: Califórnia, Minnesota, Rhode Island e o Novo México. O Japão por exemplo, diante da sua cultura imperialista, de forte posicionamento, centrado em seus valores éticos e tradicionais, impressionou aprovando uma lei que permite aos transexuais japoneses a possibilidade de alterar, nos documentos oficiais, os seus novos nome e sexo. É certo que a discriminação continuará, mas a partir do momento em que fica constada nos documentos oficiais a sua nova condição, correlata a sua aparência, menos constrangimentos enfrentarão na procura de emprego, quando forem votar, matricular-se em cursos, escolas, etc. (Fonte: Portal GLSPlanet, disponível em:glsplanet.terra.com.br/cgi-bin/searchnews) Conclusão A vida de um transexual é muito conturbada e árdua, além da sociedade mirá-lo como um anormal, muitas vezes confundem-no com um travesti, o que se veste como uma pessoa do sexo oposto e visa à prostituição, sem qualquer vontade de fazer uma cirurgia de redesignação sexual, ferindo na maior parte das vezes a índole e a imagem do transexual na sua essência. E isto preocupa, pois finda na maior rejeição ao seu gênero pela sociedade. Muitas vezes, até as pessoas que viam com bons olhos o conceito de transexual, acabam se desviando e passando a discriminá-los. Os transexuais se unem na busca de seus ideais: uma legislação que permita alteração do nome e do sexo jurídico nos documentos oficiais, que legalize a cirurgia de redesignação sexual sem necessitar de que esta se realize em hospitais universitários a título de pesquisa e outros direitos mais. Logo, inferimos que hoje, apesar de morosa, existe um desenvolvimento no sentido de melhorar as condições dos transexuais, especialmente, no Brasil, quanto aos seus direitos, existindo vários julgados atendendo a pretensão de seus autores quanto à alteração do nome e do sexo jurídico. A consciência jurídica aos poucos, vem se movimentando e conscientizando na justiça social, deixando as vaidades de lado e almejando o espírito da dignidade humana. Respeitando os valores tradicionais, mas quando necessário, procurando mudar em prol àquele que necessita para se manter digno perante a sociedade. Infelizmente, para a vergonha da sociedade preconceituosa e culturalmente atrasada em que vivemos, pela ótica da maioria dominante, em vista ao sentimento conservador dos propósitos e valores tradicionais, as raízes de um militarismo, as conseqüências de um pós-guerra, a opressão dos tempos de ditadura, resume-se em um povo que não aceita o diferente, o desigual. Assim, o transexual passa a ser vítima constante de abuso, discriminação, violência e descaso. Toda esta dificuldade em aceitar uma mudança física e jurídica de sexo só demonstra a falta de interesse que todos nós, pessoas “normais” temos em entender o transexual e adequar a sua situação ao nosso “mundo perfeito”. Contudo, fica a questão: sendo os transexuais pessoas humanas, e sendo toda pessoa humana protegida constitucionalmente, nos tratados e pactos internacionais, nas ONG`s, ONU e demais convenções, por que a necessidade de criar normas que venham a protegê-los? Será que o ordenamento jurídico brasileiro e de outros países não tem normas eficazes que garantam os direitos da pessoa humana, principalmente no que se refere àquele grupo de pessoas? Bibliografia AMARAL, Sylvia Mendonça do. Manual Prático dos Direitos de Homossexuais e Transexuais. São Paulo: Edições Inteligentes, 2003. ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 6ed. São Paulo: Saraiva, 2002. AVELAR, Juarez M., Cirurgia Plástica na Infância, vol. 1, Ed. Hipócrates, São Paulo, 1989 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002. CHIARINI JÚNIOR, Enéas Castilho. O transexual e a cirurgia de redesignação de sexo. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto >. Acesso em: 12 jun. 2005. GRAÑA, Roberto B., Além do Desvio Sexual, Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1996. 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