UM ENCONTRO MARCADO Mayra Rodrigues Gomes. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, professora conferencista do curso Ciências da Linguagem no Departamento de Jornalismo da ECA/USP, pesquisadora do NTC (Centro de Estudos e Pesquisas em Novas Tecnologias, Comunicação e Cultura). Resumo: Este trabalho examina diversos pontos comuns entre semiótica e psicanálise. Contudo, sua atenção incide sobre o 'corte semiótico', na aproximação possível ao que se entenderia por 'corte psicanalítico', donde decorre uma situação de impedimento: a inapreensibilidade do Real. PALAVRAS CHAVES: Linguagem, Psicanálise, Real Impossível. ______________________________________________________________________ ____ UM ENCONTRO MARCADO "Esse real, onde o encontramos? É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial, que se trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole. " (Lacan, Jacques. 1995. p.55) No que tem sido denominado a 'virada lingüística', na compreensão que parece ter a todos acometido de que a linguagem é fundante, os diversos campos do conhecimento assumem um certo grau de convergência. Não nos pode faltar o testemunho de um historiador e de um lingüista, no registro desse fato: "Em nível mais geral, lingüistas, sociólogos e historiadores argumentam que a língua tem um papel fundamental na 'construção social da realidade': ela cria ou 'constitui' a sociedade assim como é constituída pela sociedade. A exposição do poder da linguagem é um dos principais objetivos do movimento de 'desconstrução'. Jacques Derrida, por exemplo, sugere que é a língua que usa seu falante e não o contrário. Nós somos os servos e não os senhores de nossas metáforas (incluindo esta). Essa sugestão encontra paralelo na ênfase dada por Foucault ao discurso em detrimento dos falantes individuais, e no aforismo de Claude Lévi-Strauss de que nós não pensamos com mitos, mas os mitos pensam-se em nós, e também nas idéias de Whorf, Mauthner e Nietzsche discutidas anteriormente." (Burke, Peter. 1995. p.42),"The conception of language as the 'key' to man and to social history and as the means of access to the laws of societal functioning constitutes perhaps one of the most striking characteristics of our era, and as such is definitely a new phenomenon." (Kristeva, Julia. 1989 p.3) No 'Cultura das mídias', Lúcia Santaella anota os esboços de uma semiótica já no mundo grego que, no entanto, permanecem esquecidos para serem retomados somente no século XX. Aliada à sua hipótese de que a crescente emergência da semiótica caminha paralelamente a uma crescente intersemiose das linguagens, e a uma prodigiosa expansão/proliferação dos signos, algumas explicações para esses fatos nos são apresentadas. Fatores históricos permitiriam a compreensão desse paralelismo - meios industriais de reprodução, objetos utilitários elevados à condição de signo, proliferação dos meios e produtos de cultura de massa, novas tecnologias e memórias artificiais todos eles colocando em evidência a condição de 'duplo', que o signo sempre teve, e contribuindo, assim, para a dissolução de sistemas rígidos de codificação, advindos do Renascimento. Face a esse quadro nos confrontamos com uma dispersão das fronteiras, entre campos anteriormente voltados ao seu próprio segmento, e enfraquecimento da preponderância da linguagem escrita, como meio de produção e transmissão de cultura. Fronteiras e preponderância que, segundo a autora, provavelmente retardaram o surgimento de uma teoria geral dos signos "que desse conta de uma visão interativa de todas as linguagens de que o homem é capaz." (Santaella, Lúcia. 1996 p. 166) É evidente que a superação dessas condições leva os estudos englobados sob termo semiótica a uma enorme abrangência, sob o entendimento de que qualquer ciência só pode ser constituída a partir de processos sígnicos. Nesse patamar, semiótica apareceria como metalinguagem e, assim sendo, abarcaria a psicanálise, justificando um primeiro ponto de intersecção para os dois campos cuja aproximação nos propomos examinar.. Ou, como sustenta Santaella, a conexão acontece como efeito do fato de que o campo de ambas as disciplinas se constituem sobre a linguagem, sendo a própria prática psicanalítica firmada num falar: que o paciente fale é condição necessária para escuta, de um lado, e perlaboração, de outro. De fato, para ambas é o campo simbólico, sob perspectivas diferentes, que é tomado como objeto central. Já em Freud está firmado o papel da linguagem: na interpretação dos sonhos e no exercício da análise. Lacan, trilhando o mesmo caminho, vem reafirmálo ao justificar a importância do significante para a psicanálise, pelo papel que o campo simbólico aí representa: o fato que do inconsciente só posso inferir (algo e sua existência) a partir de suas manifestações linguageiras, que assim ocorrem por ele próprio ser estruturado 'como linguagem'. Nesse sentido, e de um ponto de vista historiográfico, elas já nascem irmãs, e tudo que se possa deduzir a partir do signo, com as reflexões desenvolvidas pela semiótica, tem seu espelhamento na psicanálise. INCOMPLETUDE Entretanto, nesse nosso trabalho, não é aí que reside o ponto privilegiado de intersecção entre as duas áreas. Trata-se do que se embute numa relação, cuja representação por uma barra passa como mero traço de marcação e que, no entanto, é o ferro em brasa de um impedimento radical. Em psicanálise, um assujeitamento básico à linguagem é reconhecido, nos termos de malhas cognoscitivas e discursos ordenadores: "Da mesma maneira, o sujeito, se parece servo da linguagem, ele o é mais ainda de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito desde seu nascimento, ainda que seja apenas sob a forma de seu nome próprio." (Lacan, Jacques. 1992. p.226) Porém, algo nos desafia, nessa afirmação de Lacan, remetendo-nos a um eu que 'ex-siste' na enunciação, e, somente por um equívoco associativo, se instala pelas propriedades que seus predicados anunciam. Para o sujeito que se instaura a partir de um significante, o 'Nome do Pai', a lei que o convoca a 'ser' no simbólico (e o interpela como sujeito), não se cogita mais das molduras, que lhe possam ditar procedimentos cognoscitivos, mas de um modo que é existência. Trata-se de um assujeitamento à linguagem, uma constituição por ela e nela, uma transposição do 'pensar', que se permite toda idéia de poder e plenitude, para o 'falar', que nos coloca em nível das interdições. "É devido a essa fenda entre querer ser o objeto, sem no entanto poder sê-lo, que o signo insiste na sua parcialidade e incompletude de signo. É por isso que a mera presença do signo delata a ausência daquilo que ele representa. A presença do signo, portanto, é uma espécie de morte porque, ao representar alguma coisa, a representação vive vicariamente no lugar daquilo que é por ela representado." (Santaella, Lúcia. 1996 p.64) Semiótica e psicanálise unem-se no falar sobre uma impossibilidade: instaurados que somos por uma mediação, ganhando o mundo somente por esse modo, há entre nós e ele um abismo intransponível. Enquanto na história do pensamento humano registramos tentativas de tampar essa fenda, negando-a a todo custo com mil suturas imaginadas, algumas artimanhas do homem, semiótica, psicanálise e arte, namoram o abismo, bordeando-o, tateando-o, flertando com a loucura1. Devemos relembrar, aqui, Nietzsche, com o olhar que o abismo nos retorna? Ainda há pouco, apresentamos as hipóteses, levantadas por Santaella, que responderiam pela demora no desenvolvimento de uma teoria geral dos signos. Diante do ponto em que desembocamos, com o parágrafo precedente, gostaríamos de acrescentar a essas hipóteses mais uma. Desde Heráclito, há na história do pensamento humano um traçado caminhando paralelamente, sempre amortecido pelos grandes sistemas filosóficos. Essa linhagem trabalha em cima da idéia de mutação constante, da impossibilidade de apreensão desta, como tal (pois fixar é matar o movimento, poder que o signo carrega e exerce), da impossibilidade de apreensão do Todo a partir de uma dimensão que só se exerce pela sinédoque e, como conseqüência, só pode insistir na relativização das fundações que alimentam qualquer sistema. Ora, essa é uma concepção extremamente inconveniente para as pretensões humanas quanto ao exercício de uma razão soberana, garantia da verdade; tanto mais inconveniente quanto parece ser mais difícil ter ânimo para trabalhar considerando sempre um resto de inapreensibilidade: nesse resto a concepção racionalista só pode ver ameaça, e salvo poucos, jamais ver motor, geração, foco de criação. Pela nossa hipótese talvez tenha havido um deliberado esquecimento do signo, porque ele, mais do que qualquer outra coisa, nos força a olhar a fenda e arrasta o germe da incerteza para o coração de qualquer sistema. Acreditamos estar autorizados a supor um acolhimento de nossa hipótese em meio às seguintes palavras: "Não se poderia deixar 1 Lacan, em A ética na psicanálise. p.162, nos fala sobre três modos de abordagem desse 'vazio': a arte que se organiza em torno dele, a religião que consiste em evitá-lo e a ciência que teima em negá-lo. No nosso texto estamos colocando ciências da linguagem e psicanálise no patamar da arte, não como recalque, mas enquanto discursos que se organizam sobre e em torno do vazio, sem sonegá-lo de lembrar aqui que não é senão ocultando a fratura da diferença, ocultamento desse vão entre signo e realidade, que se alimentam todas as ideologias deformantes e todas as mentiras que, escondendo, disfarçando ou mistificando seu caráter de signo, fazem-se passar por realidade. Em razão disso, é no dilaceramento dessa diferença que reside, por outro lado, nossa sede pela verdade, nossa aspiração por revelar o real, assim como a mola de nosso desejo. O signo não é nem pode ser aquilo que ele representa. O objeto da representação, o real, só é parcialmente capturado pelo signo. O real na sua verdade, portanto, é sempre algo inatingível, mas, em menor ou maior medida, sempre aproximável pela mediação do signo." (Santaella, Lúcia. 1996 p. 64) Nossa hipótese se estende para a idéia de que somente com as conjunturas trazidas à baila pelo 'pós-moderno', nesse processo de exacerbação das propostas iluministas, é que se torna impossível subtrair-se a um enfrentamento com a fenda ou vazio. Claro que há sempre estratégias com intento de desvio do confronto, coisa a que semiótica e psicanálise se furtaram, nisso que a elas cabia privilegiadamente. Há, certamente, mil e uma maneiras de falar sobre o impossível. Todas essas maneiras nos falam de uma certeza circunscrita a um campo delimitado e de uma verdade parcial, no que diz respeito a esse campo. Dentre elas, escolhemos trabalhar esse ponto nodal da linguagem, que descortina um campo intransponível, em que semiótica e psicanálise se encontram. No entanto, se acompanharmos o trajeto lacaniano notaremos que, a partir de certo estágio, há uma insistência em declarar a diferença entre o modo de abordagem da linguagem pela psicanálise e aquele praticado pela lingüística, pois dizer que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da lingüística." (Lacan, Jacques. 1985. p. 25) Lacan cria o termo 'linguisteria' para designar a abordagem psicanalítica, mas, se com esse termo se afasta da lingüística, nem por isso deixa de permanecer no campo da linguagem, e, justamente, revolver em torno desse ponto: a brecha exposta pelo simbólico. Retomando suas reflexões, vemos esse desdobrar-se que cada vez mais se dá em torno de relações, de uma topologia firmando abstrações que nos remetem a um suposto lógico das ações, estabelecendo a diferença entre esse e sua concretude. A partir do paradoxo de Zenão, com a disputa entre Aquiles e a tartaruga, Lacan procura nos mostrar uma apreensibilidade ou integração ao Um que é da ordem do infinito, da ordem do inatingível embora compactada na ordem diacrônica nas finitudes enumeráveis que preenchem os espaços da falta. “Aonde está o ser, há exigência de infinitude.” (Lacan, Jacques. 1985. p.19) porque nosso referencial é sempre o Outro (que com letra maiúscula serve a designar uma completude ideal), o Real (a designar um conjunto acabado) que, no entanto, só são apreensíveis por partes, uma a uma, como as 'mille e tre' de D. Juan. Do estado ideal fica sempre um resto, não coberto pelo simbólico, fica sempre uma falta: o que faz trabalhar o caminho dessas mil e três; é justamente o pressuposto de infinitude almejada, sob o signo de uma falta, o que move o conhecimento (e o desejo). É justamente esse pressuposto ideal, 'ausente', que insistimos em abraçar, sempre em novas investidas. Não é disso que nos fala Calvino, em sua leitura de Proust, quando o percebe preocupado com a rede que concatena as coisas e, na multiplicidade dos códigos e dos níveis, com a incapacidade de concluir o romance? Na multiplicação infinita há essa dilatação que deixa o mundo, cada vez mais, 'a um passo a mais'. Donde a "Recherche" ser a ânsia de dar “consistência à multiplicidade do escrevível na brevidade de uma vida que se consome.” (Calvino, Italo. 1995 p.125) Porém não vimos que o linguajar é marcador de uma impossibilidade, irresolvível, quando se procura sua expressão pela linguagem? Sem alcançar consumação, este ideal está para ser repetido, como mola para uma incessante escritura sobre o indizível: Nessas condições, todo projeto de conhecimento desnuda uma “Situação eminentemente paradoxal: o ser daquele que questiona tende inteiramente para esse bem absoluto que seria o saber, mas supõe-se, logo à primeira tentativa e radicalmente, que nenhuma resposta será dada e que se manterá a falta do saber.” (Juranville, Alain. 1987. p.16) Se do ponto de vista da referencialidade temos um real intocado, pela remetência de significante a significante sobre a qual se funde o significado, sob o prisma do saber (lembremos Greimas em Semiótica e Ciências Sociais) o conhecimento aparece como construção de seu objeto, aproximativo, sem realização plena. Caminhamos em direção à verdade, pressupondo-a nesse trajeto; da mesma forma que o signo o conhecimento não cobre o referente e é sempre aproximativo, sem bases imutáveis, sempre relacional. É, portanto, uma exigência de unificação, de integração que norteia nossa linguagem, mesmo que se leve em conta uma impossibilidade primária, pois, "Supor um aquém bem sentimos que só há nisso uma referência intuitiva. E, no entanto, esta suposição é ineliminável porque a linguagem, em seu efeito de significado, não é jamais senão lateral ao referente. Daí, não será verdadeiro que a linguagem nos impõe o ser e nos obriga como tal a admitir que, do ser, jamais temos nada?" (Lacan, Jacques. 1985. p. 61) Do que falamos então aqui senão de intransponibilidade, aproximações, provisoriedade? É aí que estaríamos mais próximos ainda do signo, fato que se expressa tão bem nas palavras "Em síntese, o que se pode dizer hoje é que, quanto mais Lacan se afastava do paradigma da lingüística, rumo à descoberta do impossível do real, daquilo que há de impossível de ser simbolizado no real, quanto mais descobria as antinomias e incompletudes do simbólico, tanto mais Lacan aproximava a psicanálise de um paradigma mais propriamente semiótico, especialmente daquele conceituado por C.S.Peirce, pois não parece haver existido qualquer pensador que tenha conseguido levar a noção de incompletude do signo a conseqüências lógicas tão radicais quanto Peirce." (Santaella, Lúcia. 1996.(2) p. 32) Talvez pudéssemos, com isso, justificar até um paralelo entre semiose infinita e a noção freudiana de análise interminável, mas, preocupados que estamos em firmar esse ponto chave, desnudado por ambas as disciplinas, recorreremos a um decisivo testemunho dessa conexão. O REAL E O TÉTICO Durante a exposição de seu seminário "...Ou pire", em 14 de junho de 1972, Lacan convida M. Recanati a falar sobre uma compreensão dessa inapreensibilidade do real, em relação à teoria dos conjuntos e à lógica matemática. Ora, Recanati, já de início declara que suas formulações se sustentam sobre textos de Peirce, e a semiótica dele oriunda, com os quais se propõe a elucidar a questão. Sua exposição é extensa e mostra diversos trajetos de conexão do pensamento peirceano com o lacaniano. Tomaremos, como exemplo, primeiramente a preocupação cosmológica de Peirce, em que se coloca o problema do 'antes' e do 'depois'. Pensemos que não nos é sancionada a compreensão do que havia 'antes' através de uma operação de subtração, ao que teve lugar 'depois'. O que caracteriza esse 'depois' é o fato de ser rasurado2 com relação ao 'antes', razão pela qual o 'antes' que se obteria de uma operação sobre o 'depois' só pode, ele próprio, estar 'contaminado' e vir como rasura. O 'depois' só se inscreve justamente pelo modo de cancelamento do 'antes'. Dessa forma, podemos dizer que o 'antes' é uma 2 traduzimos para rasurado o termo "'raturé" na sua equivalência a riscado, borrado, raspado, cancelado. espécie de 'depois' como 'avant inscrit' do qual não poderíamos de forma alguma deduzir o 'antes'. Este último, que é inscrito no 'depois', é o 'depois'. Se isso é levado em consideração o 'depois' nada tem a ver com o 'antes' 'dont le propos est justement de n'être pas inscrit.' "Autrement dit, c'est l'inscription qui compte. Ou bien ce qui est avant, ça n'est rien - c'est ce que dit Peirce quando il parle de la genèse de l'univers: avant, il n'y avait rien, mais ce rien c'est quand même un rien spécifique ou plutôt justement il n'est pas spécifique parce que de toute façon il n'est pas inscrit - et on peut dire que tout ce qu'il y a eu après c'est rien non plus, mais alors comme rien, c'est inscrit." (Lacan, Jacques. 1971-1972 pp. 124, 125) Ora, não é justamente isso que Lacan nos diz sobre o Real, ao colocá-lo como o que resiste à simbolização? É do simbólico, em seu trabalho de organização de um 'dado a ver e a falar', que o real é escavado, justamente como aquilo que escapa ao 'dar-se'. Não está lá, nem antes nem depois da linguagem, pois é com ela no momento da simbolização, que ele se instala. O Real é algo a não ser confundido com recalque, uma vez aceito que o recalque diz respeito a algo passível de ser simbolizado e que não o foi, na fenda da linguagem. Se em algum momento significante, significado e referente se cobrissem e coincidissem, não haveria o Real como impossível, assim como Imaginário (na univocidade de uma tal conjunção) e muito menos Simbólico já que, aí, não se trataria mais de mediação e sim da Coisa, ela mesma, inteira. Mas o Real, como não simbolizável, é algo que sequer pode retornar, uma vez que nunca se tornou; e sua manifestação é da ordem dos efeitos, da ordem de uma regra negativa sempre atuante em nível da realidade, a nos puxar ou 'manter nos trilhos', como diria Lacan. Num segundo e último ponto, por nós selecionado, vemos a afirmação de Recanati de que o triângulo semiótico de Peirce (Objet, Representamen, Interprétant) reproduz a relação ternária, dos nós de Borromeo, colocada por Lacan (Real, Simbólico, Imaginário). Os três polos sendo ligados por uma relação que não permite uma outra, de identidade ao objeto. "La relation signe-objet sera le prope objet de l'interprétant comme signe" (Lacan, Jacques. 1971-1972. p. 135), o que faz com que o triângulo, ou os nós, se desenvolva em cadeia como interpretação interminável, a isso que nos remete a uma semiose infinita e a uma 'fala que não cessa'. Ao que Lacan responde, na forma afirmativa da ligação de seu pensar com aquele de Peirce, declarando à sua platéia: "Voilà. Il a fallu que j'aille à Milan, pour éprouver le besoin d'obtenir une réponse. Je trouve que celle que je viens d'obtenir est très suffisamment satisfaisante pour que vous puissiez pour aujourd'hui vous en satisfaire aussi." (Lacan, Jacques. 1971-1972. p. 136) Embora nesses exemplos, que marcam a conexão Peirce/Lacan, não se inclua uma referência ao triângulo edipiano, ou à lógica do desejo, para explicar a constante produção aí implícita, serve-nos as palavras de Deleuze e Guattari, endereçadas aos homens como 'desiring machines': "The rule of continually producing production, of grafting producing onto the product, is a characteristic of desiring machines or of primary production: the production of production." (Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. 1994. p. 7) Por uma outra via, ainda podemos trabalhar esse encontro marcado com um real que escapole: o paralelismo existente entre uma escuta de sintomas e uma notação de índices, justamente isso: a marca deixada por alguma coisa que não está presente. Rastrear os sinais deixados por algo é torná-lo presente retroativamente, pois, de fato, no sinal deixado, propriamente dito, ele nunca esteve: sua presença é a causa do sinal mas não a identificação a esse. "Psychologically, the action of indices depends upon association by contiguity, and not upon association by resemblance or upon intellectual operations." (Peirce, Charles S. 1955. (CP 2.274-302) p. 108) Uma pegada remete ao ser da pegada, enquanto traço do ser, mas não ao ser enquanto ele mesmo. O próprio sinal já é uma presentificação, nisso que uma marca tem como propriedade o congelar. A 'coisa' geradora do sinal é sempre um suposto lógico, a partir desse sinal e por não termos jamais sua presença real, tudo que temos é um efeito que sustenta uma causa. Índice é "Um signo, ou representação, que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mais sim por estar numa conexão dinâmica (espacial inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado, com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo." (Peirce, Charles Sanders. 1977. § 305, p. 74). Num sentido amplo qualquer signo, independentemente da clássica subdivisão (símbolo, ícone, índice), é sempre índice de algo, cuja existência é por meio dele dada a supor e, nesse sentido, identifica-se à concepção de sintoma. Sintoma é a face aparente de uma relação, relação suposta nessa aparência. O que aparece no sintoma, a relação suposta, ou o fantasma no sentido lacaniano, diz respeitos ao modo como um indivíduo se organizou, sua relação ao objeto a (a falta): como se dá para um indivíduo a articulação com Real, Simbólico e Imaginário, a tela pela qual ele vê a realidade, diferenciada em cada um como formação imaginária particular, pela qual se dissimula uma fissura primeira. Neste sentido, o sintoma passa a ser a marca de um indivíduo (mutável na análise enquanto deslocamento do objeto, do 'a' na tela fantasmática), sempre em relação ao Outro, o que permite a Lacan a declaração: “Ainsi des individus qu’Aristote prend pour des corps, peuvent n’être rien que symptômes euxmêmes relativement à d’autres corps.” (Lacan, Jacques. 1987. p. 35) Não é também disso que se trata no índice: uma relação a colocar uma forma de existência que escamoteia a ausência aí implicada? Escutar sintomas é da mesma ordem do ler índices, pois "Anything which focuses the attention is an index. Anything which startles us is an index, in so far as it marks the junction between two portions of experience." (Peirce, Charles S. 1955. (CP 2.274-302) p. 108) Donde inferirmos uma estreita correlação entre o método indiciário proposto por Peirce e a estratégia psicanalítica, em que se persegue o sintoma. Nossa vida se desenrola muito mais através de sintomas, da presença ausente, do que possamos supor. O que é Rebeca (a de Hitchcock) senão os sinais por ela deixados, do cachorro que lhe guarda a porta do quarto às lingeries e monogramas? Peirce vai nos falar de uma ciência compreendida como sempre a meio caminho, sob a égide do falibilismo e da probabilidade. "The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified. For fallibilism is the doctrine that our knowledge is never absolute but always swims, as it were, in a continuum of uncertainty an of indeterminacy." (Peirce, Charles S. 1955. (CP 6.1.170, 171-5) p. 356) Ao estabelecermos uma conduta de observação estamos apostando na probabilidade, sem outras garantias além da razoabilidade. Essa idéia funda um caminho de acertos e erros em que o erro não é visto como um desvio ou má aplicação da razão "suficiente" e sim como uma implicação inevitável do processo, já que, por princípio, estamos na ordem do aproximativo e não na ordem da assimilação. Esta concepção está na origem do pragmatismo que desfaz o mito do conhecimento universal e traz à luz o conhecimento como um dado em "função de". O raciocínio sugerido por Peirce, a abdução, tem o mérito de levar em conta a possibilidade de interferência de qualquer lateralidade, e o fato de que sempre há algo que escapa ao regime de controle, mesmo na observação. "Abdução é o processo de formação de uma hipótese explanatória. É a única operação lógica que apresenta uma idéia nova, pois a indução nada faz além de determinar um valor, e a dedução meramente desenvolve as conseqüências necessárias de uma hipótese pura." (Peirce, Charles Sanders. 1977. § 171, p. 220) Essa coisa que não é nem dedução, nem indução, que procura indícios e se firma na noção de que "eliminadas todas as impossibilidades aquilo que restar deve ser verdadeiro" está a nos falar de probabilidades e não de certezas incontestáveis. O modelo conjectural ou hipotético abdutivo é leitura de sintomas o que permite a Carlo Ginzburg (Ginzburg, Carlo. 1991) uma remetência à medicina e a associação das abordagens de Morelli, Freud, Sherlock Holmes e Peirce como em função de um certo 'background' nas ciências médicas (no caso de Holmes, um fictício, em relação a Conan Doyle, o criador). Seu trabalho se desenvolve no sentido de mostrar a influência do método de Morelli, na identificação de traços que pudessem confirmar a autoria de obras de arte, sobre Freud que, ao dele tomar conhecimento, antes de sua descoberta da psicanálise, manifesta-se entusiasticamente. Em "Peirce, Holmes, Popper", Gian Palo Caprettini nos colocará as histórias de detetive como um tecido de indícios. "Portanto, se é verdade que o processo de leitura de uma história de detetive implica a transformação de sintomas em signos, é fundamental que esse procedimento de decodificação seja válido para um número suficientemente amplo de casos. Em outros termos, precisa passar por um exame de falsificação de alto grau de dificuldade." (Caprettini, Gian Paolo. 1991. p. 154) Não é exatamente a isso que nos referimos no método da análise, quando se pretende na perlaboração, num trabalho sobre os sintomas (efeitos que são do que não passou pelo simbólico) a tentativa de simbolizá-los? Essa tentativa nada mais é que transformar o caos em signos e a pontuação dos traços deve passar por essa prova de falseabilidade, a regra negativa pela qual, se não há dissolução de um sintoma (para se estruturar em torno de outra construção fantasmática), a pontuação se invalida. Ao citar o exemplo de Kepler que a partir de medições da órbita de Marte levanta a hipótese da órbita elíptica, para depois proceder a textes que viriam confirmá-la, Peirce nos dimensiona o âmbito da abdução. "Esta adoção probatória da hipótese era uma Abdução." (Peirce, Charles Sanders. 1977. § 96, p. 30) Um outro ponto ainda resta de conexão entre o método indiciário, contemplado no interior da semiótica peirceana, e esse nosso, que se extrai do psicanalítico. Trata-se de como detectar os traços pertinentes, daquilo que remete ao núcleo que se subtrai ao signo. "Em Sherlock, a relação entre local e global concerne sempre a uma função do raciocínio abdutivo: para resolver o enigma, deve-se encontrar as regularidades." (Caprettini, Gian Paolo. 1991. p. 161) Esse encontrar regularidades só pode ser efetuado na diacronia das repetições, sobre as quais tanto insistimos como demarcação de um ponto nodal, nesse duplo movimento da história que elas nos contam: por um lado, na 'aparência' como forma a esconder a falta, marcada por esse 'azinho' do resto sempre deixado; por outro lado, na estrutura, como recorrência dessa falta, no desejo que instala e gera uma sucessão infinita de revestimentos imaginários em 'objetos a' - cadeia significante, semiose infinita. Desse encontro marcado, no lugar onde se instala a falta, também participa um outro pensador com o qual temos trabalhado. "Ao contrário do que se costuma dizer, para Wittgenstein, se o mundo se apresenta pela linguagem é porque esta falha em representá-lo por inteiro." (Giannotti, J.A. 1995. p. 17) Para que seus jogos de linguagem tenham a posição central que ocupam e possam constituir-se num método de apreensão do próprio movimento criador de significados, é preciso que, anterior à sua concepção, haja esta outra de uma falha, com seu resto. Se de outro modo fosse e linguagem pudesse cobrir todo o real deveríamos ter sincronicamente, no campo paradigmático, todas as significações, relações e circunstâncias possíveis. Teríamos então significados e significações unívocas, num dicionário incomensurável. Essa univocidade impediria a possibilidade de existência de jogos de linguagem, no que eles nos mostram a criação de significação e a aplicabilidade, num ato e suas circunstâncias. Se, como nos diz Giannotti, o método dos jogos de linguagem procura representar um modo de falar e pensar (pensar considerado como operação de signos) e a representação resultante fixa um uso específico de palavras e expressões aparentadas que "serve de objeto de comparação (PU,130) para que se possa compreender a maneira pela qual se estão empregando usualmente tais palavras, evidenciar certas conexões significativas, em geral desapercebidas quando se quer dizer isto ou aquilo." (Giannotti, J.A. 1995. p. 62), esse método se situa na mesma embocadura do analítico, no rastreamento de sintomas fixados pela repetição, que não cessa de se repetir. Nossas duas áreas de conhecimento têm um encontro marcado com uma dimensão tética, ao nos apontar para uma colocação de mundos: nos jogos de linguagem, que nos falam de atualizações constantes, no índice, que é também sintoma, na interpretação, que é também escuta. Mas todas essas instâncias são faces efetivas de um só e primordial encontro com um real que escapole. A fala não cessa nesse trabalho que se rege pelo impossível, pela absorção do real, pelo Um da unificação com o Outro, pela completude almejada. Os discursos, como esse nosso, permanecem sempre como possibilidade, entre os mil e um modos de abordagem e aproximação: tentativas, tateamentos, sempre quase, quase limites. BIBLIOGRAFIA BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo, Unesp, 1995. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. CAPRETTINI, Gian Paolo. "Peirce, Holmes, Popper". in O signo de três. Dupin, Holmes, Peirce. Org. Eco, Umberto e Sebeok, Thomas A. São Paulo, Editora Perspectiva, 1991. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Anti-Oedipus capitalism and schizophrenia. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1994. GIANNOTTI, J.A. Apresentação do mundo. Considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein. 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