ARTE, MITO, RITO E EXPRESSÕES SIMBÓLICAS NA PRÉHISTÓRIA: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A FURNA DO ESTRAGO A PARTIR DO PENSAMENTO OTTO-ELIADEANO José Roberto Feitosa de Sena1 “A religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significado” (BERGER,1985) RESUMO A pré-história do Nordeste brasileiro esconde enigmas que pelo visto não encantaram apenas os homens primitivos que os produziram por meio de sua arte, mas também, os homens contemporâneos, que, inquietos observam a dimensão material e “transcendental” dos seus objetos de investigação. A relação entre a religião e a vida humana na pré-história pode ser especulada através dos vestígios arqueológicos, tais materiais podem indicar a presença de elementos não-concretos, que fogem à metodologia empírica. São as instâncias do sagrado, que são manifestadas por meio da arte, das narrativas míticas, das construções simbólicas, das re-atualizações dos eventos míticos (ritos) e de outras tantas formas de linguagem do homo religiosus. Partindo desse pressuposto, este breve ensaio se arrisca a interpretar a presença do sagrado no sítio arqueológico da Furna do Estrago à luz da fenomenologia de dois nomes clássicos das ciências das religiões Rudolf Otto e Mircea Eliade, ABSTRACT The prehistory of the Brazilian Northeast hidden puzzles that charmed not only seen by primitive men who had produced through his art, but also contemporary men, who, anxious to observe the material dimension and "transcendental" objects of their research . The relationship between religion and human life in prehistory can be speculated through archeological remains, such materials may indicate the presence of non-specific, fleeing the empirical methodology. Are instances of the sacred, which are expressed through art, mythical narratives, symbolic constructions, the re-updates the mythical events (rites) and many other forms of language religiosus homo. Based on this assumption, this short essay dares to interpret the presence of the sacred archaeological site of the Cavern of the Damage in the light of the phenomenology of two classic names of the sciences of religion Rudolf Otto and Mircea Eliade. Keywords: Pre-history, sacred, symbolic expressions. DESCOBRINDO O UNIVERSO DO SAGRADO NA PRÉ-HISTÓRIA 1 Licenciado em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Mestrado em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (PPG-CR/UFPB). Mestrado Sanduíche na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) E-mail: [email protected] 495 O homem arcaico, bem como o das sociedades posteriores, não deve ser interpretado pela leitura reducionista do materialismo que o observa rasteiramente como o homo faber, que mais tarde constituirá o proletariado (teoria da dialética marxiana), mas sim como uma totalidade social que agrega comportamentos culturais de abrangência material e, sobretudo imaterial. Não devemos “re-inventar” a história dos nossos antepassados sem levar em consideração as mundivisões, as ideologias e suas crenças religiosas. A riqueza de seus símbolos, de suas leituras cósmicas, de seus ritos e produções mágico-artísticas. No Nordeste brasileiro os inúmeros sítios arqueológicos nos dão uma breve dimensão da produção cultural dos homens primitivos, incluindo os elementos que nos possibilitam refletir sobre o comportamento religioso e as possíveis múltiplas revelações no sagrado na pré-história. Um dos sítios de destaque e prestígio acadêmico, por ser bastante estudado é a Furna do Estrago, localizado no município do Brejo da Madre de Deus, no Agreste pernambucano. Lá foi encontrado um cemitério indígena de mais de 2.000 anos onde foram resgatados 83 esqueletos humanos em bom estado de conservação, vestígios de fogueira, adornos e inscrições rupestres. As condições ambientais favoreceram a rápida desidratação da matéria orgânica e a preservação da pele, dos cabelos e do cérebro em alguns indivíduos, bem como, do artesanato em palha utilizado no ritual funerário. Observou-se a persistência de um padrão de sepultamento em que os corpos eram colocados na posição fetal amarrados com cipós e embrulhados em esteiras de folhas de palmeira, compondo verdadeiros fardos funerários. Em muitos casos as fossas funerárias estavam também forradas com folhas de palmeira. Os recém-nascidos eram depositados em pequenos cestos ou em espatas de palmeiras. Os adultos estavam acompanhados de colares e alguns levavam flautas ósseas e tacapes. Neste embrionário ensaio, digo isto por ser a primeira vez que me atrevo a escrever a cerca do universo religioso na pré-história, pretendo realizar uma breve reflexão sobre o campo do sagrado na vida social do homem pré-histórico, utilizando como objeto de estudo o sítio arqueológico da Furna do Estrago, que tive contato ainda nos meu primeiro semestre da graduação em História pela Universidade Católica de Pernambuco. Como metodologia de trabalho, tive a precaução de delimitar minhas intenções tendo em vista os limites de meu entendimento sobre a temática, já que não sou um arqueólogo, nem tão pouco me dedico com afinco às leituras clássicas da área. Ainda sim, com a orientação do professor Dr. Carlos Xavier Azevedo Netto, arqueólogo e docente do Programa 496 em Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba – UFPB me debrucei sobre a obra de autores importantes como Leroi-Gourhan (1990), Mithem (2003), Lima (1997), Queiroz (1994), Martim (1995), Prous (1982), Ribeiro (2007) e outros. Realizei uma visita ao sítio da Furna do Estrago na companhia de colegas do Laboratório de Arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco - LABMUARq/UNICAP, visitei ainda o Museu Histórico de Brejo da Madre de Deus, e o Museu de Pré-história, também na UNICAP. Nestes locais tive o contato com o ambiente natural e com o material encontrado no sítio, tal vivência, me provocou à investigar possíveis instâncias do sagrado ali presentes em restos mortais e outros objetos. O ensaio "É uma exposição metodológica dos assuntos realizados e das conclusões originais a que se chegou após apurado o exame de um assunto. O ensaio é problematizador, antidogmático e nele deve se sobressair o espírito crítico do autor e a originalidade" (Medeiros, 2000, p. 112), por isso, pretendo ser sucinto e despojado, procurarei não me estender demasiadamente em elucubrações teóricas, muito menos em dados técnicos, pois aqui cabe a reflexão sobre as multidimensões das hierofanias na pré-história, ancorado não – ortodoxamente, num aporte teórico-filosófico fundamental às ciências das religiões. Para embasar minhas impressões me utilizei de dois autores clássicos nos estudos das religiões: Rudolf Otto (1869-1937) e Mircea Eliade (1907-1986) embora não tenham sido autores contemporâneos, há um diálogo entre eles e essa complementaridade teórica é fundamental para se pensar o fenômeno do sagrado: o primeiro, procura interpretar a experiência do numem (luminoso), partindo do princípio que as religiões são portadoras de um caráter não apenas racional, mais na maior parte das circunstâncias, possuem elementos não-racionais. A concepção deste filósofo é que o estudo do sagrado deve se concentrar na interpretação da consciência do numinous, na análise do comportamento subjetivo, o que ele chama de sentimento numinoso, dito de outra forma é o sentimento incomensurável e inenarrável do ser diante do sagrado; o segundo buscará interpretar a totalidade do fenômeno sagrado. Estabelecendo uma concepção criteriosa de hermenêutica. Da consciência, do objeto (ser) e da imagem (dimensão simbólica). Para isso entenderá que existe uma intercomunicação entre a consciência individual e o ser ôntico, esse processo será configurado pela intermediação simbólica, pelo imago. Para Eliade, o sagrado exerce grande fascínio sobre o ser humano, por isto mesmo um dos conceitos que marcam sua investigação é o de 497 hierofanias, a saber, a manifestação do sagrado no mundo mental de quem nele crê, segundo o autor toda hierofania é real e verdadeira. Objetivamos aqui contrastar a nossa breve experiência no campo da arqueologia préhistórica aos pressupostos teóricos destes autores, empregando terminologias (sagrado, profano, hierofania, transcendência, sentimento numinoso, etc) que nos ajudam a perceber e entender parte da riqueza simbólica presente na Furna do Estrago. Seguindo Eliade (1978), reafirmo minha preocupação e assumo os riscos da análise, visando não esgotar, pelo contrário, instigar provocações e reavaliações sobre a temática. “Como já se repetiu muitas vezes: as crenças e as idéias não fossilizáveis. Alguns cientistas têm, portanto preferido nada dizer sobre as idéias e as crenças dos Paleantrópídeos , em vez de reconstituí-las com o auxílio de comparações com as civilizações dos caçadores. Essa posição metodológica radical não está isenta de perigo. deixar em branco uma enorme parte da história do espírito humano acarreta o risco de encorajar a idéia de que durante todo esse tempo a atividade espiritual se limitava à conservação e à transmissão da tecnologia. Ora, uma opinião como essa não é só errônea, mas nefasta para o conhecimento do homem. O Homo faber era igualmente homo ludens , sapiens e religiosus. Já que não podemos reconstituir as suas crenças e práticas religiosas, devemos pelo menos indicar certas analogias suscetíveis de esclarecê-las de maneira indireta” (ELIADE, 1978 p. 25) O campo de atuação desse ensaio não é a arqueologia, apesar de aqui serem utilizadas informações fornecidas por essa ciência. Estamos aqui diante de uma reflexão livre, que se esforça por utilizar da interdisciplinaridade de maneira didática, pois não constitui um texto rigoroso no sentido científico do termo, mas sim, um estudo em processo, que flutua epistemologicamente pelo campo “minado” da especulação e hermenêutica do simbólico DESCRIÇÃO GERAL DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO FURNA DO ESTRAGO A Furna do Estrago é um abrigo sob rocha localizado no município do Brejo da Madre de Deus2, Pernambuco, O clima da cidade é do tipo tropical semi-árido, mas que devido ao 2 Brejo da Madre de Deus é um município brasileiro do estado de Pernambuco. Sua área total é de 782,69 km². Administrativamente, o município é formado pelos distritos sede e Fazenda Nova e pelos povoados de Tambor de Cima, Tambor de Baixo, Caldeirões, Fazenda Velha, Cavalo Russo, Cacimba de Pedra e Estrago.O seu distrito mais conhecido é Fazenda Nova, lugar do teatro de Nova Jerusalém, onde se realiza anualmente uma popular encenação da Paixão de Cristo. 498 relevo acidentado do município apresenta inúmeras áreas de brejos 3 de altitude, o que dá ao município um micro-clima único na região.4 No mapa (Fig. 1) abaixo podemos ver sua localização geográfica. Por volta de 1983 o sítio começou a ser escavado pela equipe de Arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP, sob a coordenação da arqueóloga e antropóloga Jeannette Maria Dias de Lima. É um dos mais importantes sítios arqueológicos brasileiros. Formado pelo desabamento de um grande bloco de rocha granítica, no sopé da Serra da Boa Vista durante a glaciação de Riss, o abrigo foi preenchido por blocos de rocha e sedimentos soltos pelo intemperismo físico, transportados em violentas precipitações torrenciais, provavelmente durante a glaciação de Würm. Constituído por um único salão de 125m² de área coberta, com abertura voltada para nordeste, o abrigo é bastante arejado, seco e iluminado. Diante dele estende-se um patamar delimitado por grandes blocos de rocha granítica, alguns contendo arte rupestre, de onde se pode observar o vale a 27m abaixo e o relevo aplanado na direção da calha do Rio Capibaribe, dentro de uma vegetação de Caatinga, característica do semi-árido nordestino. (LIMA,1986) Segundo pesquisadores, com a sucessiva utilização do sítio como habitação por grupos caçadores coletores numa seqüência temporal de aproximadamente dez mil anos, foi criada uma estratigrafia em que predominam as lentes de fogueiras superpostas, formando pacotes de cinzas, e sedimentos finos, soltos, secos, de cor parda, fáceis de escavar, contendo restos alimentares e artefatos de pedra e osso. (LIMA,1986) 3 Está localizado no Planalto da Borborema. O relevo da região é bastante acidentado apresentado regiões com altitudes que variam de 600 m a quase 1200 m 4 Localiza-se a uma latitude 08º08'45" sul e a uma longitude 36º22'16" oeste. A Cidade de Brejo da Madre de Deus está a cerca de 190 km da capital do estado de Pernambuco, Recife. 499 Fig. 2 – Vista da entrada do sítio Furna do Estrago (foto do acervo do laboratório e museu de arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco-LABMUARq/UNICAP). Há cerca de dois mil anos, este sítio passou a ser utilizado como cemitério. A estratigrafia construída pelo homem, desde o início do Holoceno, foi intensamente perturbada com a abertura de dezenas de fossas funerárias. Apenas uma área próxima do fundo do abrigo permaneceu intacta e foi tomada para estudos estratigráficos e de distribuição dos restos alimentares possibilitando interpretações paleoclimáticas. (LIMA,1986) Constatou-se que os recursos alimentares animais e vegetais disponíveis na região, e utilizados pelo homem préhistórico, permaneceram os mesmos ao longo dos últimos onze milênios, indicando que não houve alterações ambientais significativas durante o Holoceno. (LIMA,1988) Foram resgatados 83 esqueletos humanos encontrados em bom estado de conservação. As condições ambientais favoreceram a rápida desidratação da matéria orgânica e a preservação da pele, dos cabelos e do cérebro em alguns indivíduos, bem como, do artesanato em palha utilizado no ritual funerário. Observou-se a persistência de um padrão de sepultamento em que os corpos eram colocados na posição fetal amarrados com cipós e embrulhados em esteiras de folhas de palmeira, compondo verdadeiros fardos funerários. Em muitos casos as fossas funerárias estavam também forradas com folhas de palmeira. Os recém-nascidos eram depositados em pequenos cestos ou em espatas de palmeiras. Os adultos estavam acompanhados de colares e alguns levavam flautas ósseas e tacapes. (ALVIM, 1991) Fig – 3. Adornos encontrados da Furna do Estrago. (foto do acervo do laboratório e museu de arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco-LABMUARq/UNICAP). Os recém-nascidos não levavam adornos, com exceção de um que estava acompanhado de duas pequenas contas discoidais de amazonita. Em todos, adultos ou crianças havia matéria corante (ocre), triturado. Estudos de antropologia biológica realizados 500 sobre esses esqueletos revelaram tratar-se de uma população homogeneamente braquicéfala, de estatura média-baixa, robusta, com estado de nutrição satisfatória. (QUEIROZ, 1994) O grupo nômade que habitou o local era muito avançado culturalmente. Uma prova disto é a possível crença em outra vida, assinalado pelo respeito aos sepultados, pois eram amarrados de cordinhas (adornos) enrolados em esteiras com folhas. Foi possível observar também, que próximo às escavações, o teto encontra-se queimado, vestígio das fogueiras que eram acesas naquela época, para fins de utilidade cotidiana ou até mesmo religiosa. Na escavação, foram encontrados vestígios de ossos, fogueiras, colares, cropólitos, o que comprova que o local era utilizado como cemitério. Nos esqueletos foram encontrados homens (um deles considerado idoso), mulheres e algumas crianças. Vejamos abaixo o crânio de um dos indivíduos sepultados. Fig – 4 (Crânio de um esqueleto encontrado na Furna - foto do acervo do laboratório e museu de arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco-LABMUARq/UNICAP). A questão colocada neste ensaio é sobre a existência de comportamento religioso entre esses indivíduos. Suas práticas artísticas e rituais nos indicam que é possível falar em espiritualidade, os funerais e seus acompanhamentos mortuários são o maior indício disso. Os homens da Furna do Estrago já desenvolviam a mística da morte, atribuindo a ela significados de ordem sobrenatural. A forma de organização cultural do grupo, os registros rupestres, a maneira mítico-ritualística com que cuidavam dos seus mortos, assinalam a polissemia dessa sociedade e indicam as revelações do sagrado, como problematizaremos a seguir. REFLETINDO SOBRE O SAGRADO NA PRÉ-HISTÓRIA À LUZ DO PENSAMENTO OTTO-ELIADEANO 501 O homem pré-histórico aceitava que tudo que o cercava tinha uma mobilidade própria e uma vontade intrínseca, ou seja, o cosmo fazia o que queria/precisava, de forma semelhante à que ele fazia. Sendo assim, o cosmo tinha uma alma. Essa visão de mundo era decorrente de uma compreensão simbólica dos fenômenos naturais. Este é o fundamento do mundo extranatural em que ele vivia. De acordo com Mithem (2002), o homem pré-histórico desenvolveu inicialmente a linguagem, como forma de representação e comunicação, e posteriormente a pintura, gravura e a para a fixação dessas representações. Nesse processo, o homem em sua relação com o meio, desenvolve mitos e os rituais que norteiam a sua ação dentro de seu grupo e em grupos distintos, como por exemplo, os ritos de passagem. Cassier (1977) nos remete a uma análise entre mito e religião e como esses elementos interferem na vida do homem e no desenvolvimento de suas atividades cotidianas. Meslin (1992) nos apresenta a religião como elemento imprescindível na vida dos indivíduos e que ela está presente em quase ou por que não dizer em toda sociedade. Lerói-Gourhan (1990) mostra por meio de análises de pinturas parietais do paleolítico superior, que, as evidencias mostram que nossos antepassados tinham comportamentos que excediam o beber e o alimentar-se, como, por exemplo, o hábito de enterrar seus mortos com objetos, como flores, placas de pedra, ocre vermelho e construir um aparelho simbólico constituído de diversos signos binários em suas pinturas parietais e objetos móveis. Morin (1988) também parte da existência de uma concepção religiosa nos primeiros homens para compreender a formação disto que chamamos de cultura. Seu ponto de partida são as sepulturas do paleolítico superior. Para ele, o processo de hominização inicia-se com a morte. Muito mais do que conceitos de homo faber, sapiens e laquax fazem supor, é a morte, que introduz entre o homem o animal uma solução de continuidade mais profunda. Para pensarmos o comportamento religioso do homem pré-histórico do sertão pernambucano, refletiremo-los à luz do marco teórico-filósofico Otto-eliadeano, abordando brevemente aspectos deste pensamento, que acredito ser, fundamental ao nosso objeto de análise. Mircea Eliade foi um dos maiores historiadores e filósofos das religiões, nasceu na cidade de Bucareste, Romênia em 13 de março de 1917 e morreu em Chicago, Estados Unidos em 22 de abril de 1986. Foi um jovem de família cristã ortodoxa, no entanto não se sabe ao certo qual era a sua religião. Pesquisou inúmeras religiões e formas de religiosidade, sua vasta obra compreende desde as religiões paleolíticas às teologias ateístas e os novos 502 movimentos religiosos contemporâneos. (ELIADE, 1978) Em termos espaço-geográfico analisou as expressões simbólicas do sagrado nas mais diversas regiões do planeta. É esse seu trabalho que faz dele um grande pesquisador, bastante preocupado com a questão da alteridade e engajado na valorização e respeito da diversidade religiosa, pois, postulou que todas as expressões religiosas devem ser objetos de estudo, por mais simples que pareçam ser devido a sua forte carga de mensagem e significações de ordem simbólica. Para Eliade o sagrado é poder e realidade por excelência, os homens dependem dele para sobreviver e atribuir ao mundo um universo humanamente significado, um ser totalmente desprovido de elementos sagrados é uma ilusão, o indivíduo necessita de apegar-se a este para ordenar sua vida, caso contrário perder-se-ia na imensidão do caos. Afirmará ainda que: “sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é familiar e no qual ele se sente situado , o homem religioso experimenta a necessidade de existir num mundo total e organizado, num cosmos”. (ELIADE, 1992, p. 43) Para o romeno a experiência religiosa é uma das mais ricas experiências que o ser humano pode vivenciar, a história das manifestações do sagrado se dá de modo dialético entre o homem e o divino. Dialogando com o meio em que esta inserido, em todas regiões, tempos e culturas. “A vida religiosa da humanidade, realizando-se na história, suas expressões, são fatalmente condicionadas pelos múltiplos momentos históricos e estilos culturais” (ELIADE, 1992, p. 59). Este processo torna o sagrado, seja qual for sua sociedade, em algo real, forte, absoluto e significativo, o único fundador do mundo somente se torna possível à medida que ele é colocado em oposição ao profano, a não-realidade, a relatividade, ao caos. Para viver no mundo é preciso fundá-lo. É a manifestação do sagrado que funda ontologicamente o mundo e permite a obtenção de um ponto fixo capaz de orientação na homogeneidade de profano a fim de se viver o real. “O homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do grande número de formas histórico-religiosas, este modo específico é sempre reconhecível. Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real” (ELIADE, 1992, p. 164). Na Furna do Estrago observamos inúmeros registros que nos evidenciam a prática de rituais, para Eliade, o rito é sempre uma forma de reviver um mito fundador, é o momento em que o grupo se reúne para “imitar” o sagrado, rea-tualizando a sacralidade do cosmo, tornando práticas gestuais e objetos materiais suscetíveis à hierofania. A imaginação simbólica recria e 503 ressignifica-os. O que era matéria continua sendo matéria ao mesmo tempo em que é preenchido de poder simbólico e ganha força mágica, cósmica e encantadora, sendo não apenas matéria, e sim, a revelação de um elemento sagrado por meio uma intensa atividade simbólica. “o simbolismo desempenha um papel considerável na vida religiosa da humanidade; graças aos símbolos, o mundo se torna transparente, suscetível de revelar a transcendência” (ELIADE, 1992 p. 109) A arte rupestre encontrada no Sítio pode ser interpretada como uma forma de expressão mítica, dentro dos processos de registro humano. Como expressão de todo um universo simbólico que exprime e influencia a construção de identidades culturais. (AZEVEDO NETTO, 1998). O ser humano tinha a compreensão de que as forças sobrenaturais existiam em outra dimensão: a arte, extrapolando a natureza, também tinha outra dimensão: as pinturas, os adornos, colocavam então o ser humano nessa outra dimensão na qual a comunicação com o sobrenatural era possível. Num sentido mais amplo, a arte rupestre poderia ser um conjunto de expressões estético-simbólicas e práticas sociais sagradas que visavam à comunicação com os deuses. Portanto a arte mítico-ritual é uma categoria sagrada na pré-história, é um meio do homem prestar culto às divindades. São práticas sociais que aparecem para, através do simbolismo resolver um problema colocado para as sociedades de então. “O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados” (ELIADE, 1992, p. 18) Fig – 5 (Inscrição rupestre na Furna - foto do acervo do laboratório e museu de arqueologia da Universidade Católica de PernambucoLABMUARq/UNICAP). Outro aspecto que se evidencia com maior clareza o elemento ritual, este que para Eliade, acessa um pensamento mítico5, é o sepultamento. As práticas funerárias no sítio 5 “O mito proclama a aparição de uma noção situação cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre uma narração de uma criação; conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isso que o mito é solidário da ontologia: só fala de realidades, do que aconteceiu realmente, do que se manifestou plenamente” (ELIADE, 1992, p. 85) 504 arqueológico da Furna do Estrago são bastante estudadas, por suas características enigmáticas e quanti-qualitativas em termos de objetos resgatados, um legado cultural deixado (depositado) pelos nossos ancestrais. “O depósito não passa da expressão de uma intencionalidade mágico-religiosa” (ELIADE, 1978, p. 32) Os sepultamentos são locais importantes para se tentar efetuar uma hermenêutica das relações de poder, através da cultura material presente junto aos mortos, da própria construção do abrigo para depósito, da prática escolhida para deposição do corpo e dos signos de poder (material e imaterial) presentes em contextos mortuários (RIBEIRO, 2007) Segundo Eliade o homem das sociedades primitivas esforçou-se para vencer a morte transformando-a em rito de passagem, atribuindo a ela o status de suprema iniciação, como o começo de uma nova existência espiritual (ELIADE, 1992, p.160) “Em suma, pode-se concluir que as sepulturas confirmam a crença na imortalidade (já assinaladas pela utilização da ocre vermelha) e trazem alguns esclarecimentos suplementares: enterros orientados para leste, marcando a intenção de tornar o destino da alma solidário com o curso de sol, portanto a esperança de “re-nascimento”, i. e., de uma pós-existência num outro mundo; crença na continuação da atividade específica ; certos ritos funerários indicados pelas oferendas de objetos de adornos e restos de refeições” (ELIADE, 1978, p. 28) O outro autor clássico em que nos apoiaremos é Rudolf Otto (1869-1937). De família protestante, tornando-se pastor, teólogo e filósofo, foi professor em diversas universidades alemãs, tendo sido titular de teologia em Breslau de 1915 a 1917 e se aposentado em Marburgo em 1919.6 Passou a ser conhecido pela obra Das Heilige , livro que se tornou um dos clássicos da Filosofia da Religião. A intenção de Otto em seu estudo é observar as características do elemento não-racional em contraste com as do racional, dentro do universo religioso. O autor busca analisar a oposição do racionalismo frente ao puro sentimento do não racional. Mesmo sabendo que a ortodoxia racionalista eliminou o caráter não racional e forjou um sistema de compreensão da religião por meio de pressupostos racionalista-reducionistas, Otto nega a aplicação da razão como caminho de entender o sagrado, para ele esse processo de sobreposição do racional ao aspecto não-racional configura na negação dos elementos simbólicos mais peculiares do fenômeno religioso. O autor inicia o primeiro capítulo de sua obra (o sagrado de 1917) afirmando que a religião, do ponto de vista racionalista, possui categorias racionais que definem a divindade com clareza, e a caracteriza com atributos como espírito, razão, boa vontade, onipotência etc. todos esses são pensados como sendo “absolutos” e “perfeitos”. Estas características, para 6 Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_Otto acesso em 15/1/2011. 505 Otto, são elementos racionalizados que não contemplam a idéia de sagrado, pois este é inefável, não pode ser definido pela razão, apenas descrito. São esses atributos, que numa sociedade racionalista, fazem uma religião considerar-se superior, a partir de suas esquematizações, é o caso do cristianismo, por exemplo. O aspecto racional perece ser tudo, mas não esgotam a compreensão da essência da divindade. Para Rudolf Otto o “pecado” cometido pelos racionalistas reside, no campo da religião, em ter subtraído os atributos com que nos aproximamos do absoluto, por outros que não são privados do contexto sacro, mas que pertencem, também “à natureza das representações humanas (sociais/materiais). Dessa forma não só desvirtuaram a essência da religião, como a inviabilizaram, em grande parte, de seu caráter emotivo e supra-racional. A distinção que muitas vezes se faz entre o racionalismo e a religião é errônea, quando atribui a negação do milagre ao primeiro e a afirmação do mesmo ao segundo, pois, “ao formular doutrina a ortodoxia não soube fazer justiça ao elemento irracional do seu objeto e mantê-lo vivo na experiência religiosa, racionalizando unilateralmente a idéia de Deus” (OTTO, 2007. p. 34). Esse processo de racionalização do elemento religioso está presente até hoje, não apenas nas instituições religiosas, mas nos próprios estudos das ciências da religião, este comportamento frente ao sagrado “fecham os olhos” para aquilo que a manifestação religiosa tem de mais peculiar, para as vivências religiosas mais subjetivas e simbólicas que brotam do imaginário humano, inclusive em suas manifestações mais primitivas: se existe um campo da experiência humana que apresente algo próprio, que apareça somente nele, esse campo é o religioso (OTTO, 2007. p. 35). No entanto, não dispensa nenhuma das categorias, não quer colocar a religião fora do plano racional, que resgatar na idéia de Deus, o que fora perdido pelo racionalismo. Pois crê que a religião toma consciência de si mesma quando evidencia a relação destes dois elementos. Por isso, é necessário observar o elemento nãoracional e sua relação com o racional. No segundo capítulo discute-se a categoria fundamental de que parte Otto, o numinoso7. O termo provém da palavra latina numine que significa divindade. O sufixo oso refere-se a cheio de (numinoso= cheio de divindade), fornecendo a clara conotação de que o ser humano é povoado de simbolismos religiosos, sua vida, visões e práticas são preenchidas de sentido divino. 7 Essa categoria seria a essência do sagrado, um conceito peculiar, Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com acesso em 14/1/2011. 506 explicativo e valorativo, não possível de definição, apenas de descrição. Compreensível indiretamente, mediante sugestões aproximadas que se apresentam ao espírito, de maneira que permite o florescimento e a experiência do sagrado, numa oscilação recíproca, complementar e indissociável entre o terror e a admiração. Característica essencial e exclusivamente do domínio religioso. Para Otto muitas vezes a palavra sagrado é mal aplicada, reduzida a preceitos éticos e morais racionalistas, portanto, empregar o termo numinoso na dimensão do sagrado é adequado para referir-se aos aspectos não-racionais, e, por isso, profundamente simbólicos da religião. Abordar o sagrado como uma categoria que abrange algo inefável propiciando uma abertura para avaliações daquilo que é exclusivamente religioso e que, a seu tempo, escapa ao domínio racional. “Para Otto, o numinoso não é acessível conceptualmente. Então, como é possível a descrição do numinoso? O divino manifesta-se no sentimento religioso. Portanto através de uma análise psicológica, pode-se descrever a experiência numinosa [...] O sentimento numinoso é um estado de alma, ou reação provocada no consciente pelo sentimento de ser objeto do numem, ou pelo sentimento de presença do numem”. (BIRCK, 1993. p. 10) Neste ínterim, no terceiro capítulo do livro, abrange-se a categoria do sagrado como possuidora de um elemento absolutamente especial, o numinoso, que pode ser descrito como o sentimento de ser criatura. Esse sentimento é algo que “está fora de mim” e longe do meu alcance, relaciona-se ao medo, já que está fora e é maior do que “eu”, simultaneamente está ligado ao amor fraternal, já que me sinto atraído e confortado diante dele. O sentimento numinoso não é uma emoção vã, é um estado afetivo. É um sentimento autêntico, ontológico, específico, que emerge dos mais profundos níveis do inconsciente, é uma categoria de interpretação que se manifesta nas experiências mais pessoas, intersubjetivas e intrínsecas aos sentidos do homo symbolicus. “Trate-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo tempo algo qualitativamente diferente. Ao procurar um nome para isso deparo-me com sentimento de criatura – o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura. [...] “O sentimento de criatura” na verdade é apenas um efeito colateral, subjetivo, é por assim dizer a sombra de outro elemento de sentimento (que é o “receio”), que sem dúvida se deve em primeiro lugar e diretamente a um objeto fora de mim.” (OTTO, 2007. 41-42) Busquei o referencial Ottoniano, afim de no diálogo teórico com o eliadeano, refletirmos sobre a sensação do homem religioso diante do sagrado, esse sentimento numinoso que infere sobre aqueles que crêem na revelação divina. No homem pré-histórico da Furna do Estrago essa sensação psico-social, ocorre seguindo suas especificações histórico507 culturais e geográficas, mas, de modo geral, segue um esquema arquetípico presente na mente humana, é esta predisposição à crença no Absoluto e na conseqüente submissão a ele, que povoa o imaginário do Homo Sapiens. Quando o homem cultua o sagrado, lhe oferenda, pede proteção. Ele ritualiza, revive o mito, comunica-se e transporta-se para outro espaço, o do sagrado. Os vestígios arqueológicos da Furna indicam que o sentimento numinoso ali ocorreu entre seus antepassados moradores, os funerais, os adornos, as pinturas rupestres, são indícios dessa revelação dialética, geradora de múltiplos sentimentos, incompreensíveis à luz da razão. Este sentimento é exprimível por sensações de temor, fascínio, encantamento, calafrio, prazeres dionisíacos, terror, desejo, repulsa, conforto e desconforto. Estes e outros aspectos foram categorizados por Otto nas seguintes formulações, que segundo ele são estados do comportamento numinoso: a) tremendum (arrepiante), b) avassalador (“majestas”), c) energético (orgé). O mysterium tremendum ou “mistério que faz tremer” e arrepiar (por se tratar do totalmente outro) aparece inicialmente na maneira brutal do sinistro, do horripilante, que para Otto é o aspecto mais primitivo do tremendo, é o medo e o imaginário do terror em seu estágio inferior. O “Panicon”, o pavor do “demoníaco”, daquele que faz o mal, que pode nos castigar, pois é maior que nós. É o medo que somente o homo religiosus pode sentir. É algo que povoa sua mentalidade em sua profundeza abissal e fornece significados para os sentidos de sua existência. Ele emudece a alma, é o sentimento que corresponde ao mistério que causa calafrios e alucinações. Pode conduzir à estranhas excitações. Segundo Otto, este sentimento pode ser um estado constante, cessando quando a alma volta ao estado profano. Pode também manifestar-se de forma exacerbadamente abrupta e conduzir à visões de miragem, sensações de transporte transplanetários, transes, catarses e êxtases físicos e místicos. De acordo com (BIRCK, 1993. P. 35) “O numem é pressentido no seu caráter terrífico como grandeza, diante da grandeza de Deus surge o sentimento de aniquilamento, o temor místico, o temor de Deus”. No tremendum temos, portanto a cólera do sagrado, que tem como contraponto no sujeito o sentimento de ser mera criatura perante seu criador, correlato de poder a majestade divina, que se revela por meio do mysterium. O “mistério torna-se terrível”, pois tudo aquilo que para nós é secreto, é incompreensível ou inexplicável e muitas vezes inacessível, nos causa um profundo temor e inquietação. 508 O aspecto avassalador (majestas) não se trata apenas do medo do outro misterioso, é o caráter de reverência e reconhecimento de sua superioridade enquanto entidade divina, absoluta. É o sentimento de ser criado pelo absolutamente “maior”, por uma majestade cujo poder é desmedidamente avassalador. O energético (orgé): o tremendum e o majestas ( mistério-temor / poder avassalador / atração - repulsa) resultam em um terceiro elemento do numinoso , que Otto denomina de Orgé, é uma energia que eleva o ser humano à vida religiosa, ao amor pelo sagrado. Essa energia é expressa por sistemas simbólicos de contemplação da vida, de exaltação dos elementos estéticos, morais, éticos e fraternais contidos no amor divino. O homem agora buscará zelar pelo sagrado, pois ele o conforta e o protege. “Para Otto, o elemento da energia numinosa aparece particularmente no misticismo do amor. É o Deus que é fogo, de ardor doravante; é o Deus de amor impetuoso”. (BIRCK, 1993. p. 40). É essa energia que preenche a alma de sentidos, que consola aos braços do Pai que nina como uma mãe ao amamentar, um ato de sensibilidade, excitação e paixão. É o ato de contato entre o homem e seu Deus. A contribuição do pensamento Otto-eliadeano para as ciências sociais foi fundamental para rompermos com o positivismo cientificista, o etnocentrismo difuso-evolucionista, o reducionismo materialista e freudiano, a teologia apologética-fundamentalista e o historicismo estruturalista. Trilhando novos e multiplicáveis caminhos teórico-metodológicos, interdisciplinares e ecumênicos para a abordagem plural dos fenômenos religiosos. Espero que este breve e flexível ensaio possa contribuir para contínuas reflexões filosóficas da religião na pré-história do Nordeste brasileiro REFERÊNCIAS ALVIM, Marília C. M. O grupo pré-histórico da Furna do Estrago, Pernambuco, e suas relações biológicas com outras populações pré-históricas e atuais do Brasil. CLIO - Série Arqueológica, n.4, extraordinário. Anais do I Simpósio de Pré-História do Nordeste Brasileiro. Recife. 1991. AZEVEDO NETTO. Carlos Xavier. O conceito de mito aplicado à arte rupestre. In: Revista de Arqueologia. São Paulo.SAB, v.11, p. 27-41.1998. BERGER, Peter L. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985. 509 BIRCK, Bruno Odélio. O sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. CALLOIS, Roger. O Homem e o Sagrado. Lisboa: Ed. 70, 1988. CASSIER. Ernest. Mito e religião. In: Antropologia Filosófica, São Paulo, Mestre jou. 1977. DURKHEIM, Émile. As Formas elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Ed. 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