Pº C.N. 41/2012 SJC-CT ASSUNTO: Habilitação de herdeiros. Testamento. ‘’Balcão das Heranças’’. 1 – A questão em tabela enquadra-se no âmbito dos procedimentos simplificados de sucessão hereditária, os quais, a par dos procedimentos de partilha do património conjugal, resultantes da alteração legislativa materializada no Decreto-Lei nº 324/2007, de 28 de setembro, consubstanciam uma nova face do registo civil, de cariz marcadamente patrimonial, tornando-o mais abrangente, o que representa, indubitavelmente, uma mais-valia para todos os cidadãos utentes, claramente expressa no preâmbulo do referido diploma. No fundo, essa nova face corresponde a uma época de viragem e de renovação, de rejuvenescimento legislativo, de adequação da lei a uma nova realidade, em ordem a melhor servir o público nos aspetos de celeridade, aproximação e maleabilidade. 1.2 – Concretamente está em causa a realização de um procedimento de habilitação de herdeiros, a solicitação de determinada pessoa instituída única e universal herdeira por força de uma disposição testamentária, in casu, um testamento público lavrado em 19 de fevereiro de 2008 no Cartório Notarial de …... 1.3 – As dúvidas que determinaram a consulta formulada pelo senhor notário em substituição do conservador do registo civil de ….. prendem-se com o conteúdo do referido testamento. Com efeito, aí se consigna que sobre a herdeira instituída recai ‘’o encargo especial de lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário e tratamento necessários’’, bem como ‘’ fazer o seu funeral de acordo com os rituais católicos, mandála sepultar na campa do seu marido (…) e ainda ‘’mandar celebrar pela sua alma um trintário gregoriano’’. 1.4 – Emerge, pois, como fundamento da consulta, uma questão de direito, consubstanciada na interpretação da disposição testamentária, com a consequente qualificação jurídica das cláusulas nela apostas e, mais concretamente, a primeira, reportada àquele trecho específico em que a testadora subordina a instituição de herdeiro ao ‘’encargo especial de lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário e tratamento necessários’’, para a partir daí extrair as consequências jurídicas ao caso aplicáveis. 1 2 – Sobre essa primeira cláusula, aquela cuja qualificação se afigura juridicamente controversa – isso mesmo é reconhecido na consulta, aqui residindo, afinal, a sua etiologia – o consulente não deixou de pronunciar-se, como, aliás, lhe era exigido por força do despacho nº 7/94, in BRN nº 1/94. E fê-lo, de forma circunstanciada, socorrendo-se, no essencial, do parecer do Conselho Técnico proferido no processo R.P. 13/2007 DSJ-CT, qualificando a dita cláusula como uma condição suspensiva, por isso que considerou que a testadora subordinou a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do testamento, carecendo por isso de ser provado o seu cumprimento por parte da herdeira, como condição indispensável da sua vocação sucessória, fazendo apelo nesta sede, à míngua de um testamenteiro instituído e por insuficiência da prova documental produzida – declaração do Provedor da Santa Casa da Misericórdia de ….. – aos meios judiciais. 3 – É este também o entendimento expresso pelo Setor Técnico-Jurídico dos Serviços de Registo no âmbito da informação CN 41/2012 no que concerne à qualificação da referida cláusula, nos termos do qual, face ao parecer atrás mencionado, ‘’a qualificação como condição suspensiva da cláusula aposta pela testadora à instituição de herdeiro [encargo especial de lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário e tratamento necessários] não poderá suscitar fundadas dúvidas’’, mais acrescentando que ‘’só determinado o exato alcance da condição imposta poderá apurar-se se foi preenchida; sendo do preenchimento que – a verificar-se – há que fazer prova bastante’’, importando, portanto, ‘’saber a quem caberá averiguar se a condição foi cumprida, antes de determinar a forma de comprovar o cumprimento’’. 4 – Diverge o helpdesk deste enquadramento, sustentando, em síntese, que a cláusula em questão, bem como as restantes apostas no testamento ‘’não são condições jurídicas que condicionem a produção dos efeitos do testamento em causa, antes revestindo a natureza de encargos’’, razão pela qual ‘’a sua verificação ou o seu cumprimento não carece de ser provado pela herdeira testamentária’’. Cumpre, pois, que nos pronunciemos. 1 – Como é sabido, a sucessão, que a lei define como ‘’o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam’’ (artigo 2024º do Código Civil, 2 compêndio substantivo a que pertencem todas as disposições legais doravante indicadas sem menção expressa de origem), pode operar-se por lei, testamento ou contrato (artigo 2026º). No caso em apreço, estamos no domínio da sucessão testamentária, aquela que privilegia a vontade do ‘’de cujus’’ manifestada através de testamento, que constitui ‘’o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles’’ (nº 1 do artigo 2179º), quer através da instituição de herdeiro ou mediante a nomeação de legatário (artigo 2030º). A instituição de herdeiro, bem como a nomeação de legatário podem estar sujeitas a cláusulas acessórias, limitativas da sua validade ou da sua eficácia, devendo salientar-se, a este propósito, a condição, que pode revestir a forma de condição suspensiva ou resolutiva (artigo 2229º), ou a imposição de encargos (artigo 2244º). 2 – Assim sendo, a questão nuclear que aqui se coloca e para a qual importa encontrar uma resposta útil, é a de saber se esta instituição de herdeiro com o encargo especial do mesmo ‘’lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário ou tratamento necessários’’ – é desta figura que se trata face ao critério estabelecido no nº 2 do artigo 2030º - configura uma condição suspensiva ou resolutiva ou, antes, uma cláusula modal. 2.1 – Ora, a resposta a esta questão identitária, não é pacífica, como, aliás, transparece de forma clara do anteriormente exposto, tanto mais, quanto é certo, que a linha que marca a fronteira entre a condição e o modo apresenta, às vezes, contornos muito ténues. Como refere Manuel de Andrade, in Teoria Geral, 1972, volume II, página 394 ‘’por vezes há dificuldade em distinguir no caso concreto se estamos em face de uma condição ou dum simples modo’’, de tal sorte que ‘’a questão há de resolver-se com as particularidades da espécie e as regras da interpretação’’. Vale isto por dizer que a qualificação jurídica daquela cláusula acessória aposta na disposição testamentária pressupõe necessariamente, desde logo, que nos debrucemos sobre a caraterização das cláusulas acima referidas, do mesmo modo que nos transporta inexoravelmente para a interpretação do testamento ou, se quisermos, e com maior propriedade, para a interpretação da última vontade da testadora nele expressa. 3 – Relativamente à caraterização acima referida, urge referir, numa primeira análise, que o modo e a condição se distinguem em função da natureza do negócio, na medida em que o modo só pode ser aposto às liberalidades – doação (artigos 963º a 967º) e 3 testamento (artigos 2244º a 2248º) – enquanto a condição é aponível, ressalvadas as exceções consignadas na lei – v.g. o casamento e a perfilhação (artigos 1618º, nº 2 e 1852º, nº 1), a aceitação e o repúdio da herança (artigos 2054º e 2064º) 1 – a todos os negócios jurídicos, sejam eles onerosos ou gratuitos. Este traço distintivo não resolve a dúvida que nos assiste e que – recordamo-lo aqui – reside no correto enquadramento jurídico da primeira cláusula presente na disposição testamentária – como encargo ou modo (artigo 2244º) ou, antes, como uma disposição condicional suspensiva prevista no artigo 2229º. Importa chamar aqui, então, a noção de condição a que se reporta o artigo 270º, nos termos do qual ‘’as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva’’. Incerteza que não se verifica no modo. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (ob. e vol. citados na nota de rodapé), em anotação ao artigo 2244º ‘’o encargo distingue-se facilmente da condição (porque, ao contrário desta, não torna incerta a existência da disposição), bem como do termo (porque, ao invés deste, não defere para momento posterior à abertura do testamento a execução da disposição) […].E tem ainda de caraterístico, em face da condição e do termo, o facto de, mesmo quando a falta de cumprimento do encargo não acarreta a perda da disposição, expor o herdeiro ou legatário onerado à ação de cumprimento (artigo 2247º)’’. Resulta daqui que no negócio sob condição suspensiva, este só produz os seus efeitos uma vez verificada a condição – a sua não verificação acarreta a volatilização da designação, desprovida, por isso, de qualquer efeito (artigos 2229º e 270º) – enquanto o negócio ‘’sub modo’’ os produz de imediato, embora constituindo a parte em obrigação. Por outras palavras, a condição suspende, mas não obriga, pelo que não é exigível o seu cumprimento, enquanto o modo obriga, mas não suspende, não diferindo a execução do testamento, que conserva plena e atual eficácia, posto que a inadimplência do modo, ao contrário da condição, não influencia os efeitos da liberalidade, sendo necessário que qualquer interessado recorra aos mecanismos legalmente previstos para exigir o seu 1 - As exceções exemplificativamente apontadas, permitem-nos concluir que nem todos os negócios jurídicos admitem condições e alguns admitem-nas com algumas restrições. Como salienta Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. VI, Coimbra, 1998, página 387, em anotação ao artigo 270º, ‘’o caráter incondicional do negócio pode resultar de disposição expressa ou da própria natureza do negócio, incompatível com a suspensão ou incerteza da sua eficácia’’ . 4 cumprimento (artigo 2247º) e/ou solicite a resolução dos correspondentes negócios (artigos 966º e 2248º), resolução que pode suportar-se diretamente na vontade real do testador, quando este assim houver determinado ou, antes, na sua vontade conjetural, ou seja, quando for lícito concluir do testamento que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento do encargo, sendo de salientar ainda que o direito de resolução caduca decorridos que sejam cinco anos sobre a data da constituição do herdeiro ou legatário onerado em mora no cumprimento do encargo ou vinte anos contados a partir da abertura da sucessão (nºs 1 e 3 do artigo 2248º). 4 – Depois de apreendermos nos seus traços essenciais a condição e o modo, afigura-senos que a opção por uma destas duas cláusulas na hipótese sub judice terá de passar, inevitável e necessariamente, como atrás já foi aflorado, pela interpretação do testamento, tarefa árdua e pejada de dificuldades, se considerarmos, como é mister, que o ato interpretativo ocorre num momento em que o ‘’de cujus’’ já não pode esclarecer aquilo que pretendia. A este propósito, o nº 1 do artigo 2187 diz-nos que ‘’na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento’’. E, embora seja admissível prova complementar, ‘’não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa’’ (nº 2 do artigo 2187º). 4.1 – A interpretação do testamento tem, pois, uma singularidade própria, ínsita na norma supracitada, só se aplicando as regras gerais que norteiam a interpretação dos negócios jurídicos previstas nos artigos 236º e seguintes quando não colidam com as regras especiais anteriormente referidas. Assim, contrariamente ao que acontece nos negócios jurídicos entre vivos – nestes, a declaração negocial, como elemento referente da vontade, vale com o sentido que um declaratório normal, colocado na posição de declaratório real, possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º supracitado) – na averiguação e determinação do exato alcance do testamento, o intérprete deve perseguir, de uma forma obstinada até, a verdadeira intenção, a vontade real do testador, apelando, para tanto, se necessário, ao sentido peculiar da sua linguagem e expressões, com clara prevalência, pois, de uma interpretação subjetivista reportada à pessoa do ‘’de cujus’’, objetivada numa visão global do testamento, o que significa que deve atender-se ao 5 contexto deste, isto é, ao conjunto das regras dispositivas nele inseridas e não apenas ao texto de uma determinada cláusula a interpretar. É precisamente em homenagem à última vontade do testador que a lei, embora admita a prova complementar – documental, pericial ou testemunhal – no sentido de permitir a reconstituição dessa mesma vontade, não lhe confere qualquer relevância desde que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, como atrás foi mencionado, o que, aliás, facilmente se compreende, por isso que nenhuma confiança ou expetativa dos destinatários pode ser justificadamente invocada porque o beneficiário de uma disposição testamentária nenhum título possui, a não ser justamente aquele que se funda na vontade do autor da sucessão (José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Sucessões, 5ª edição, revista, Coimbra, 2000, pág. 293). 4.2 – É forçoso concluir, pois, que o assunto que nos vem ocupando, consubstanciado na qualificação da primeira cláusula do testamento, tem de ser analisado à luz da vontade da testadora, conforme o contexto do testamento, sem prejuízo de considerarmos que, em caso de dúvida, a doutrina vai no sentido de considerar a cláusula em apreço como uma cláusula modal.2 4.3 – Aqui chegados, reforçados ainda por este pormenor de indiscutível relevância interpretativa, parece termos encontrado a solução, existindo, prima facie, a tentação de afirmar que a cláusula em apreço configura uma cláusula modal. Em favor deste entendimento, podemos invocar, desde logo, o facto de estarmos perante um testamento público, isto é, perante um testamento cujo conteúdo foi redigido por notário no seu livro de notas (1ª parte do artigo 2204º e artigo 2205º), competindo a este, no respeito pelo estatuído no artigo 4º, nº 1 do Código do Notariado, fazê-lo 2 - ‘’É conhecida a frequência com que o texto do testamento se apresenta ambíguo, ficando o intérprete na dúvida sobre se o testador quis impor um ónus ou sujeitar a disposição a uma condição. A dúvida é grave porque o regime das duas situações é muito diferente. Os autores são unânimes em recomendar que se evite atribuir importância demasiada ao texto, e que se procure a vontade real do testador. Pode acontecer, porém, que esta investigação não surta efeito, permanecendo o intérprete na dúvida sobre o real sentido da cláusula. Neste caso, de acordo com a doutrina geral, deve resolver-se a dúvida no sentido mais favorável ao beneficiário da disposição; isto é: entre considera-lo sujeito a uma condição ou ao mero encargo, escolhe-se coloca-lo na posição mais leve de titular dos bens simplesmente onerado com uma prestação. Trata-se, afinal, de aplicar o regime consagrado no artigo 237º do Código Civil’’ – Guilherme de Oliveira, in O Testamento/Apontamentos, Editora Reproset, páginas 98 e 99. No mesmo sentido, Mota Pinto ‘’Teoria Geral do Direito Civil’’, 3ª edição, página 581 ‘’Em nome do princípio da conservação dos negócios jurídicos é sustentada pela doutrina a solução, segundo a qual, em caso de dúvida, a estipulação deve ser qualificada antes como modo do que como condição’’. 6 conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance. Ora, o notário é um perito do direito, especializado na redação de atos negociais e profundamente conhecedor da hermenêutica testamentária, oferecendo, por isso, a garantia de saber expressar corretamente a vontade da testadora, pelo que se terá de presumir que aquela soube expressar o seu pensamento em termos adequados. À luz deste raciocínio, é lícito admitir que o notário não desconhecia o sentido, o significado jurídico, ou, talvez melhor, o valor intrínseco que encerra o vocábulo ‘’encargo’’ no contexto da disposição testamentária. Nesta conformidade, poderá argumentar-se que o referido vocábulo não foi utilizado de forma leviana ou arbitrária, transparecendo assim do contexto que a testadora não quis subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos da disposição testamentária, antes pretendeu impor à herdeira, desde logo, um encargo, traduzindo-se este num certo comportamento positivo, claramente especificado, a ser adotado por parte da beneficiária, consubstanciado na assistência a prestar-lhe, em termos de alimentação, vestuário e tratamentos indispensáveis, no destino dos seus restos mortais e ainda nos sufrágios por sua alma. 4.4 – Reforçando o entendimento atrás aludido, trazemos também aqui à colação o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de fevereiro de 2008, in www.dgsi.pt, no qual se debatia a qualificação jurídica da cláusula que a seguir se transcreve: ‘’… esta instituição de herdeiro fica condicionada ao facto do mesmo e até à sua morte, a tratar e cuidar na saúde e na doença, prestando-lhe todo o acompanhamento necessário …’’, como uma cláusula resolutiva, como pretendia a apelante, ou uma cláusula modal, como já havia sido decidido pelo tribunal ‘’a quo’’, sendo que o tribunal ‘’ad quem’’ acordou em confirmar a decisão recorrida, concluindo que nela havia sido feito ‘’um juízo interpretativo corretíssimo do testamento feito pela falecida’’. Equivale isto a dizer que a cláusula em apreço, de contornos em tudo idênticos à primeira cláusula da disposição testamentária que nos vem ocupando, mereceu também aqui, em sede de recurso, a qualificação de uma cláusula modal. 4.5 – Todavia, não podemos ignorar que as disposições testamentárias são abertas e postas em execução apenas após a morte do testador. O testamento, como negócio jurídico unilateral e revogável, destina-se a produzir efeitos apenas após a morte do testador (artigo 2179º), pelo que o encargo – como o apelidou o notário – inserto na cláusula analisanda configura obrigação suscetível de poder ser cumprida apenas depois 7 da abertura da herança, sendo que, por isso, e porque extinto com a morte da testadora, esse cumprimento surge como naturalmente impossível, conduzindo inelutavelmente à resolução da disposição, facto que retira todo o sentido ao modo, essencializando antes uma condição para a beneficiária ser (ou não) herdeira – condição suspensiva (artigo 270º). 4.6 – Vale aqui, mutatis mutandis, o entendimento veiculado pelo parecer proferido pelo Conselho Técnico no âmbito do Pº R.P. 13/2007 DSJ-CT, publicado na Intranet, homologado pelo Exm.º Presidente do IRN, I.P., em 5 de julho de 2007, que qualificou como sujeito a condição suspensiva o legado instituído nos seguintes termos: ‘’Deixo… a minha criada …, se continuar ao meu serviço até à data do meu falecimento …’’. 4.7 - Neste mesmo sentido, a propósito da aponibilidade do modo no testamento, Luís A. Carvalho Fernandes, in Lições de Direito das Sucessões, Quid Iuris, Sociedade Editora, Lisboa 1999, página 468, refere: ‘’Vale, pois, em sede de testamento, a noção de modo como encargo imposto ao beneficiário de uma liberalidade testamentária que o constitui numa obrigação a favor de terceiro ou do próprio onerado. Só fica excluída, por natureza das coisas, a hipótese de o encargo ser imposto a favor do próprio autor da liberalidade, a não ser no sentido moral (rezar missas, perpetuar a memória, a favor da alma - cfr. art. 2224º (o sublinhado é nosso). 4.8 – De uma forma assaz criteriosa, e seguindo os traços fundamentais do antecedente percurso argumentativo, teremos de concluir então que estamos confrontados, no que tange à primeira cláusula do testamento, perante uma instituição de herdeiro sujeita pela testadora à condição suspensiva de lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário e tratamento necessários até ao momento temporal representado pelo seu decesso. Equivale isto a dizer, pois, que aquela subordinou a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos que emergem da referida disposição testamentária, os quais, uma vez verificada a condição em apreço, retroagem à data do respetivo falecimento, como decorre da expressa literalidade do artigo 2242º. 5 – A ser assim, pois, como julgamos, e como flui do anteriormente exposto, a parte que pretende fazer valer os efeitos consolidados do negócio, in casu a herdeira testamentária, deve provar que se verificou o evento condicionante, pelo que se coloca agora a questão de saber como fazer a prova dessa verificação. 5.1 – Na esteira do parecer atrás aludido, poderemos apelar, desde logo, a uma figura jurídica privativa da sucessão testamentária – a testamentaria – cuja noção legal está plasmada no artigo 2320º, e que se traduz na nomeação pelo testador, igualmente em 8 sede de testamento, de uma ou, no caso de testamentaria plural prevista no artigo 2329º, de mais pessoas (nomeação conjunta ou sucessiva), às quais incumbe vigiar o cumprimento do seu testamento ou de o executar, no todo ou em parte, sendo que essa nomeação, que pode recair sobre um herdeiro ou legatário, pressupõe, como requisito sine qua non, a plena capacidade jurídica do nomeado (artigo 2321º). 5.1.1 – No que concerne às atribuições do testamenteiro, cabe aqui salientar que a lei não pretende imiscuir-se na vontade do testador, remetendo expressivamente para este a definição do respetivo estatuto, em função das suas necessidades concretas, se bem que condicionado pelos limites que decorrem da própria lei, como resulta da expressa literalidade da norma ínsita no artigo 2325º. Não tendo o testador disfrutado dessa ampla liberdade, é a própria lei, no artigo 2326º, que estabelece supletivamente as atribuições do testamenteiro, cabendo destacar aqui as funções que resultam da alínea b), consubstanciadas em ‘’vigiar a execução das disposições testamentárias e sustentar, se for necessário, a sua validade em juízo’’. Caberia, pois, ao testamenteiro, se nomeado, comprovar o cumprimento pela beneficiária da disposição testamentária da condição nela aposta, nomeação que, no entanto, não se verificou. Nesta conformidade, excluída que está a figura do testamenteiro, urge encontrar outra solução. 5.2 – Uma das hipóteses equacionada pelo consulente reside na legitimidade de a herdeira instituída, enquanto tal e na qualidade de cabeça de casal, poder comprovar por mera declaração, no âmbito daquelas a prestar aquando da realização do procedimento de habilitação de herdeiros, que a condição inserta no testamento se havia verificado, inexistindo, em consequência, quaisquer circunstâncias suscetíveis de condicionar a eficácia da disposição testamentária. Esta solução do ‘’juiz em causa própria’’ não se nos afigura razoável, sendo lícito afirmar que ninguém pode fazer prova a seu próprio favor, como é referido a propósito da interpretação do testamento no parecer proferido no processo R.P. 112/97 DSJ-CT, in BRN nº 3/98. Com efeito, independentemente da idoneidade que se possa reconhecer à beneficiária, o interesse que esta tem na produção dos efeitos do testamento e a importância e o significado de que se reveste uma tal declaração, por isso que dela depende a eficácia da 9 disposição testamentária, são de molde a colocar em causa a veracidade dessa mesma declaração, desaconselhando-a. 5.2.1 – De referir, outrossim, que do assento de nascimento nº 7… de 2009 da Conservatória de ….. respeitante à testadora, falecida no dia 25 de setembro de 2011, no estado de viúva, resulta não se encontrar estabelecida a filiação paterna e materna. Se a esta circunstância adicionarmos a inexistência de descendentes, conclui-se que aquela não deixou herdeiros legitimários ou outros parentes sucessíveis, encontrando-se esgotada, pois, no dizer do consulente, ‘’a relevância (legal) sucessória dos seus familiares’’, o que inviabiliza, desde logo, quaisquer declarações dos mesmos quanto à verificação da condição analisanda, essas sim relevantes porque provenientes de alguém com interesses opostos. 5.3 – Com interesse nesta sede, importa considerar ainda a declaração emitida em 15 de janeiro de 2012 pela Santa Casa da Misericórdia de ……, na qual expressamente se afirma que a testadora foi admitida no lar daquela instituição no dia 1 de agosto de 2008, sendo responsável por ela, perante a referida instituição, a beneficiária da disposição testamentária, que a assistiu ‘’em todas as suas necessidades, responsabilizando-se por tudo a que aquela dizia respeito’’, afigurando-se-nos que a sobredita declaração, considerada de per si, não constitui documento bastante para o fim pretendido, isto é, para prova plena da verificação da condição em apreço, razão pela qual resta à única e universal herdeira instituída o recurso aos meios judiciais – ação declarativa de simples apreciação. 6 – Ultrapassada esta questão, resta-nos abordar as duas últimas cláusulas atinentes ao funeral da testadora e ao pagamento das despesas e sufrágios respetivos ‘’fazer o seu funeral de acordo com os rituais católicos mandá-la sepultar na campa de seu marido, no cemitério de Rebordães’’; e ‘’mandar celebrar pela sua alma um trintário gregoriano’’. Aqui parece haver unanimidade de pontos de vista, considerando-se que as cláusulas em apreço configuram disposições pro anima, cuja validade ancora na norma ínsita no nº 1 do artigo 2224º, na medida em que, atentas as circunstâncias do caso concreto, se torna possível determinar a quantia necessária para o efeito, sendo de referir que constituem encargos que recaem sobre a herdeira instituída (nº 2 do artigo 2224º), e pelos quais responde a herança nos termos do artigo 2068º. 7 – De todo o anteriormente exposto, resulta que estamos confrontados no caso vertente com um testamento em que foram apostas algumas cláusulas típicas destes negócios 10 jurídicos unilaterais não recetícios, uma, a primeira, que constitui uma condição suspensiva, a carecer enquanto tal da prova do evento condicionante, sendo que as restantes consubstanciam um modo ou encargo, razão pela qual os efeitos jurídicos que lhe estão subjacentes se produzem imediatamente independentemente da prova da sua verificação ou do seu cumprimento, encontrando-se as mesmas protegidas, de forma genérica, pelo disposto nos artigos 2247º e 2248º, sendo de referir, outrossim, que o cumprimento da última cláusula se encontra assegurado através da comunicação a que se reporta o artigo 204º do Código do Notariado. 8 – O problema relacionado com a prova da verificação ou cumprimento destas últimas cláusulas não passa, pois, de um falso problema, pelo que não vemos quaisquer entraves à realização do procedimento simplificado de habilitação de herdeiros com ou sem registos, a que alude o nº 2, alínea b) do Código do Registo Civil, visando a promoção do ato de titulação e/ou registo respeitante à sucessão hereditária com fundamento no referido testamento – uma vez feita prova do preenchimento da condição suspensiva – para o qual dispõe de legitimidade o cabeça-de-casal3, a herdeira instituída no caso vertente, seu representante legal ou mandatário, nos termos do artigo 210º-B do referido diploma, nele podendo intervir na qualidade de declarante, podendo optar ainda, em caso de impossibilidade ou não querendo, pela declaração de três pessoas idóneas, como permite o artigo 210º-O do mesmo compêndio adjetivo. 8.1 – Para tanto, e porque aos procedimentos simplificados de sucessão hereditária, ‘’são aplicáveis, subsidiariamente, as legislações registrais pertinentes e a lei notarial’’ (artigo 210º-N do Código do Registo Civil), a elas se devendo recorrer, a título subsidiário, para encontrar as regras e os critérios de preenchimento das formalidades prévias e dos pressupostos indispensáveis à feitura dos vários procedimentos, é necessário, em sede do designado atendimento prévio4, dotar desde logo o procedimento de todos os documentos que devam instrui-lo, indispensáveis à sua feitura, apelando-se, por isso, ao 3 - A propósito da legitimidade para a promoção dos procedimentos de sucessão hereditária, vide o Parecer proferido no Pº C.P. 91/2010 SJC-CT, do qual se transcreve o seguinte trecho: ‘’Só o cabeça-de-casal, pessoalmente ou através do seu representante legal ou voluntário, tem legitimidade para promover o procedimento e, portanto, só a ele cabe indicar o procedimento que pretende desencadear e, tratando-se de habilitação de herdeiros, dizer se é com ou sem registos’’. 4 - Em conformidade com o artigo 1º da Portaria nº 1594/2007, de 17 de dezembro, o atendimento prévio consiste na análise do pedido e dos documentos apresentados pelo requerente, na promoção das diligências de instrução que devam ser efectuadas oficiosamente, nos termos do artigo 210º-E do Código do Registo Civil e na comunicação ao requerente de quais os documentos a apresentar. No fundo, estamos perante um conjunto de atos preparatórios do procedimento, cujo propósito é o de superar as omissões ou eventuais deficiências que possam obstar ao seu normal prosseguimento. 11 disposto no artigo 85º, nº 1 do Código do Notariado, sem esquecer, no entanto, o comprovativo da apresentação da participação prevista no artigo 26º do Código do Imposto do Selo, e tendo em consideração que a verificação do óbito e da qualidade de herdeiro devem, sempre que possível, ser comprovados por acesso à informação constante da base de dados pertinentes (artigo 210º-E, nºs 1 e 2 do Código do Registo Civil) – como corolário lógico do disposto nos artigos 4º e 211º, nº 1 do mesmo diploma – o mesmo acontecendo, aliás, no que concerne à titularidade dos bens, bem como a situação matricial dos imóveis (nº3 da norma em apreço), na hipótese de habilitação de herdeiros com registos, devendo adotar-se, quanto ao arquivo dos documentos, os procedimentos constantes do despacho nº 29/2013, de 16 de abril, do Exm.º Presidente do Conselho Consultivo. Destarte, e por todo o exposto, formulamos as seguintes CONCLUSÕES 1 – O alvo da interpretação das disposições testamentárias, que deve pautar-se por um critério subjetivo, reside na captação da intenção, da vontade real do testador, devendo observar-se o que parecer mais ajustado com essa vontade, conforme o contexto do testamento (nº 1 do artigo 2187º do Código Civil); embora seja admissível prova adicional, atenta a natureza da declaração testamentária, esta não surtirá qualquer efeito se não encontrar um mínimo de correspondência nesse contexto (nº 2 do artigo citado). 2 – Em conformidade com as regras da hermenêutica testamentária, deve qualificar-se como condição suspensiva a instituição como única e universal herdeira ‘’com o encargo especial de lhe prestar assistência, provendo à sua alimentação, vestuário e tratamento necessários’’. 3 – As restantes cláusulas atinentes ao funeral da testadora e ao pagamento das despesas e sufrágios configuram disposições a favor da alma (2ª parte do 12 nº1 do artigo 2224º do Código Civil), as quais, nos termos do nº 2, constituem encargos que recaem sobre a herdeira instituída. 4 – A condição suspensiva só produz inicialmente efeitos potenciais, prodrómicos ou preliminares, razão pela qual a parte que pretende fazer valer os efeitos consolidados do negócio, in casu a herdeira testamentária, deve provar que se verificou o evento condicionante. 5 – Já o cumprimento das restantes cláusulas apostas no testamento não carece de ser provado, encontrando-se as mesmas protegidas, de forma genérica, pelo disposto nos artigos 2247º e 2248º do Código Civil, na medida em que, na hipótese de a herdeira não satisfazer os encargos, qualquer interessado pode exigir o seu cumprimento ou pedir em juízo a resolução da disposição testamentária. 6 – Feita a prova da condição, e considerando que não é necessário a prova do cumprimento das restantes cláusulas por parte da herdeira onerada com os encargos, é lícito concluir que a realização do procedimento simplificado de habilitação de herdeiros com ou sem registos, para cuja promoção tem legitimidade o cabeça-de-casal, seu representante legal ou voluntário (artigo 210º-B do Código do Registo Civil), é absolutamente viável, desde que que o mesmo seja dotado de todos os documentos indispensáveis à sua feitura, designadamente, a certidão de teor do testamento (artigo 85º, nº 1, alínea c) do Código do Notariado), o comprovativo da apresentação da participação prevista no artigo 26º do Código do Imposto do Selo, e tendo em consideração que a verificação do óbito e da qualidade de herdeiro devem, sempre que possível, ser comprovados por acesso à informação constante da base de dados pertinente (artigo 210º-E, nºs 1 e 2 do Código do Registo Civil), o mesmo acontecendo, aliás, no que concerne à titularidade dos bens, bem como a situação matricial dos imóveis (nº3 da norma em apreço), na hipótese de habilitação de herdeiros com registos. Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo de 26 de julho de 2013. António José dos Santos Mendes, relator, Maria de Lurdes Barata Pires de Mendes Serrano, Laura Maria Martins Vaz Ramires Vieira da Silva, José Firmino Fernandes Lareiro, Maria Filomena Fialho Rocha Pereira, Maria Madalena Rodrigues Teixeira, Isabel 13 Ferreira Quelhas Geraldes, António Manuel Fernandes Lopes, Luís Manuel Nunes Martins, Blandina Maria da Silva Soares. Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Diretivo em 02.08.2013. 14