APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR Fabiano Samartin Fernandes * Pelo princípio da presunção de inocência, esboçado no art. 5º, inciso LVII, da CF/88, entendese que toda pessoa é considerada inocente, e assim deve ser tratada, até que se tenha uma decisão irrecorrível que o declare culpado. Foi na França, em 1791 que surgiu esta garantia, na célebre Declaração Universal dos Direitos do Homem, que visava a proteção do cidadão do arbítrio do Estado, que o presumia culpado, querendo a sua condenação; posteriormente foi adotada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948; e pelo Pacto de San Jose da Costa Rica, em 1969, somente, sendo introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 1988 com a promulgação da Constituição Federal. O princípio da presunção de inocência está disposto no art. 5º, inciso LVII, da CF, e informa que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A natureza jurídica desse princípio é uma garantia individual, repercutindo diretamente no processo em favor do acusado, seja processo de natureza cível, crime ou administrativa, dentre outros. O professor Paulo Rangel em sua obra afirma que: A visão correta que se deve dar à regra constitucional do art. 5º, LVII, referese ao ônus da prova. Pensamos que, à luz do sistema acusatório, bem como do princípio da ampla defesa, inseridos no texto constitucional, não é o réu que tem que provar sua inocência, mas sim o Estado-administração (Ministério Público) que tem que provar a sua culpa1. O referido autor entende que a norma contida no inciso LVII, do art. 5º, da Magna Carta não pode ser entendida como princípio da presunção de inocência, mas sim como regra constitucional que inverte, o ônus da prova para o Ministério Público. Todavia, essa visão do autor não é completa. O art. 156 do CPP aduz que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, assim, provar a culpabilidade do réu é ônus do órgão acusador, no caso de alegação por parte da defesa de qualquer causa excludente da ilicitude, de culpabilidade ou extinção da punibilidade, pela inteligência do artigo acima mencionado, deveria caber ao acusado provar tais alegações, porém, como uma das conseqüências do princípio da presunção de inocência é que cabe ao acusador provar a culpa do réu, é aquele que deverá demonstrar, no processo, que não há causas que excluam ou isentem o réu da pena. Assim, entende-se que não há inversão do ônus da prova para o Ministério Público ou Comissão Processante, mas, que cabe a estes provar que o acusado cometeu o delito ou transgressão a que lhe foi imputado, em todos os termos. O que parece é que o princípio, ora em comento, significa que o réu não poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado, devendo ser considerado e tratado como se inocente fosse. Esse significado é iuris tantum, pois caberá prova em contrário. * Advogado, Coordenador Jurídico da AGEPOL/CENAJUR e Pós Graduando em Ciências Criminais. 1 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7. ed. Rio de Janeiro-RJ: Lumen Juris, 2003, p. 27-31. Dito isto, é preciso observar que as conseqüências do princípio da presunção de inocência são: aplicação do in dubio pro reo, acolhido pelo Código de Processo Penal no art. 386, inciso VI, o qual assegura que na dúvida, em favor do réu; somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução processual, e só assim poderá ser tratado como culpado; a prova da culpa do acusado é do Ministério Público ou querelante, no caso de processo crime, e da Comissão processante, no caso de processo administrativo; a de estar obrigado o julgador a verificar detidamente a necessidade da restrição antecipada ao jus libertatis do acusado, fundamentando sua decisão; e, a revogação (ou não recepção) do art. 393, inciso II, do Código de Processo Penal, que mandava lançar o nome do réu no rol dos culpados. Roberto Delmanto Júnior2, acrescenta ainda que o princípio da presunção de inocência, abrange, além da questão do ônus da prova, mas, como também, a inadmissibilidade de qualquer tratamento preconceituoso em função da condição de acusado, direito a sua imagem, ao silêncio, sem que se considere culpado, local condigno em sala de audiências ou no plenário do Júri, ao não uso de algemas, salvo em casos excepcionais, e, por fim, à cautelaridade e excepcionalidade da prisão provisória. Alberto Binder em sua obra Introdução ao Direito Processual Penal, sobre o princípio de presunção de inocência escreve: 1. Que somente a sentença tem essa faculdade. 2. Que no momento da sentença existem somente duas possibilidades: culpado ou inocente. Não existe uma terceira possibilidade. 3. Que a ‘culpabilidade’ deve ser juridicamente provada. 4. Que essa construção implica a aquisição de um grau de certeza. 5. Que o acusado não tem que provar sua inocência. 6. Que o acusado não pode ser tratado como um culpado. 7. Que não podem existir mitos de culpa, isto é, partes da culpa que não necessitam ser provadas3. Por fim, o mesmo autor conclui que: Definitivamente, o acusado chega ao processo isento de culpa e somente pela sentença poderá ser declarado culpado; entre os dois extremos – prazo que constitui, justamente, o processo – deverá ser tratado como um cidadão livre submetido a esse processo porque existem suspeitas a seu respeito, porém, em nenhum momento sua culpabilidade poderá ser antecipada. Uma afirmação deste tipo leva-nos à questão da prisão preventiva, que comumente é utilizada como pena. Este é o programa constitucional, porém, a realidade de nosso processo penal está muito longe de cumprir com o mesmo. Ao contrário, a realidade mostranos que existe uma presunção de culpabilidade e que aqueles que são submetidos a processo são tratados como culpados; em muitas ocasiões, por falhas do procedimento, a sociedade ‘deve deixar sair’, apesar de ‘já’ terem sido ‘condenados’ pela denúncia ou pelos meios de comunicação de massa. Os fenômenos dos ‘presos sem condenação’ – em prisão preventiva; da utilização do processo como método de controle social; das restrições à defesa – especialmente a defesa pública; da enorme quantidade de presunções que existe no processo penal; da utilização do conceito de ‘ônus da prova’ contra o acusado; do maltrato durante a prisão preventiva; do modo como os detidos ‘passeiam’ pelos corredores dos tribunais etc., são sinais evidentes de que o princípio de inocência é um programa a ser realizado, um trabalho pendente4. Para dar efetividade ao princípio aqui comentado, é necessário ter em mente que se trata de uma garantia constitucional que ultrapassa os limites do processo penal, permeando todos os procedimentos que visem à aplicação de sanção, seja qual for a sua natureza. 2 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2. ed. Rio de Janeiro-RJ: Renovar, 2001, p. 67-68. 3 BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal. Tradução de Fernando Zani. Rio de Janeiro-RJ: Lumen Juris, 2003, p. 87. 3 IDEM, IBIDEM, p. 90-91. Assim, sem esgotar o tema, demonstrar-se-á a aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência no processo administrativo disciplinar. O processo administrativo disciplinar é o meio pelo qual a administração apura e pune os servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional da Administração Pública. Tal procedimento baseia-se fundamentalmente na supremacia que o Estado mantém sobre todos aqueles que se vinculam a seus serviços ou atividades, definitiva ou transitoriamente, submetendo-se à sua disciplina. É um processo punitivo. Assim, para a aplicação da sanção de cunho administrativo, necessário a instauração do processo disciplinar para apurar e julgar o servidor acusado de transgressão. No processo administrativo disciplinar, além de outros princípios, deve ser observado o princípio constitucional da presunção de inocência, que autoriza a absolvição do acusado quando não houver provas seguras ou de elementos que possam demonstrar violação ao regulamento disciplinar. Com fundamento nos dispositivos constitucionais, fica evidenciado que o princípio da presunção de inocência é aplicável perfeitamente ao Direito Administrativo. A ampla defesa e o contraditório pressupõem o respeito ao princípio do devido processo legal, no qual se encontra inserido o princípio da inocência, princípios estes que o processo administrativo deve observar, já que a Constituição o igualou ao processo judicial, conforme se evidencia no art. 5º, inciso LV, da Carta Magna. O referido princípio insere-se perfeitamente no âmbito administrativo militar. Neste diapasão, importante trazer à lição de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, a seguir transcrita: Na dúvida, quando da realização de um julgamento administrativo onde o conjunto probatório é deficiente, não se aplica o princípio in dubio pro administração, mas o princípio in dubio pro reo, previsto na Constituição Federal e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que foi subscrita pelo Brasil. A ausência de provas seguras ou de elementos que possam demonstrar que o acusado tenha violado o disposto no regulamento disciplinar leva à sua absolvição com fundamento no princípio da inocência, afastando-se o entendimento segundo o qual no direito administrativo militar vige o princípio in dubio pro administração, que foi revogado a partir de 5 de outubro de 1988. A autoridade administrativa militar (federal ou estadual) deve atuar com imparcialidade nos processos sujeitos aos seus julgamentos, e quando esta verificar que o conjunto probatório estampado é deficiente deve entender pela absolvição do militar. A precariedade do conjunto probatório deve levar à absolvição do acusado para se evitar que este passe por humilhações e constrangimentos de difícil reparação, que poderão deixar suas marcas mesmo quando superados, podendo refletir nos serviços prestados pelo militar à população, que é consumidor final do produto de segurança pública e segurança nacional5. Dessa forma, importante esclarecer que a Constituição Federal garante a todos os acusados, seja em processo criminal, seja em processo administrativo, o direito de serem considerados inocentes, até que uma decisão irrecorrível lhe diga culpado, portanto, perfeitamente, aplicável o princípio da presunção de inocência no processo administrativo disciplinar. As principais conseqüências da aplicação do princípio da presunção de inocência no processo administrativo disciplinar são: a de atribuir inexoravelmente a obrigação de colheita da prova pela Comissão processante, o que significa dizer que o acusado não precisa provar que é inocente, e sim a Comissão que tem que provar que o servidor é culpado; na dúvida a interpretação será sempre em favor do acusado; somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução processual, e só assim poderá ser tratado como culpado. 5 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar. Rio de Janeiro-RJ: Lúmen Júris, 2003.