MÃES E FILHAS: MULHERES NEGRAS NA IMPERIAL
VILA DA VITÓRIA DO SÉCULO XIX*
Ocerlan Ferreira Santos (SEC-BA)**
Resumo:
Neste texto pretendemos fazer uma discussão sobre o cotidiano das mulheres negras no sertão
baiano do XIX. Optamos por analisar conjuntamente escravas e libertas, por entender que a
alforria estabeleceu um novo estatuto jurídico para a liberta, mas pouco fez para a sua vida
material e para o seu reconhecimento como cidadã, pois a liberdade não livrava a ex-cativa do
estigma social que a acompanharia por toda a sua vida e morte. Destarte, procuramos
evidenciar a dinâmica social existente nessa localidade e discutir os papeis sociais da mulher
negra na Bahia para além de Salvador e do Recôncavo. Deseja-se dessa forma incentivar um
maior aprofundamento dessa temática, buscando dar visibilidade a memória e a história
dessas mulheres em tempos da escravidão no interior da Bahia.
Palavras-chave: sertão, Mulheres negras, cotidiano, escravidão.
Abstract: In this paper we intend to discuss the daily lives of black women in the hinterland
of Bahia XIX. We chose to analyze jointly and freed slaves, because it understands that
enfranchisement has established a new legal status for the release, but did little for their
material and for their recognition as citizens, because freedom is not freed the former captive
of the social stigma that would accompany her throughout her life and death. Thus, we
emphasize the social dynamics existing in that locality and discuss the social roles of black
*
Este Artigo é uma versão modificada do trabalho intitulado Mulheres, Esposas, Mães e Filhas: escravas e
liberta na Imperial Vila da Vitória do final do século XIX, apresentado na I Jornada do Grupo de Pesquisa
Escravidão e Mestiçagem, realizada nos dias 17 e 18 de agosto de 2010 na UESB.
**
Graduado em História pela Universidade Estadual do Sudeste da Bahia – UESB. Especialista em Educação
Cultura e Memória pelo DFCH/Museu Pedagógico – UESB. Professor de História e História e Cultura Afrobrasileira e Indígena do Ensino Médio da Rede Pública do Estado da Bahia.
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Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queiros, ISSN 2179-9636, Ano 2, numero 5,
março de 2012. www.faceq.edu.br/regs
women in Bahia Salvador and beyond Recôncavo. It is hoped thereby to encourage a deeper
understanding of this theme, seeking to give visibility to memory and history of these women
in times of slavery in Bahia.
Key words: backwoods, Black women, daily life, slavery.
Mulher, luz, amor e beleza,
Mulher, símbolo da pureza.
Mulher, paixão, perdão e união,
Mulher escuta a voz do coração.
(...)
Mulher, romântica, doce e carinhosa,
Mulher é sempre vaidosa.
Mulher, começo, meio e fim,
Mulher, tu és tudo pra mim.
(Vanessa Tavares Aragão In www.mundo jovem.pucrs.br)
Se estes versos tivessem sido escritos no século XIX, dificilmente seriam declamados
para mulheres como Lizarda, Maria Bernarda, Rosa e Sofia. Isso tudo em razão delas terem
nascido com pele escura, numa sociedade marcada pelo machismo, pela escravidão e pelo
racismo. Que relegou a mulher à esfera privada, sendo retratada como dócil, frágil, submissa,
criada somente para o casamento e a procriação. Mas que usurpou de todos estes dotes à
mulher negra, colocando em seu lugar uma série de adjetivos associados à marginalidade e ao
sexo. Imaginário que segundo Luiz Mott (1988) ainda perdura na Bahia contemporânea ao
observar a utilização das expressões: “nigrinha” como sinônimo de mulher fácil e de
“nigrinhagem” como equivalente “a um misto de desonestidade ética e licenciosidade sexual”
(MOTT, 1988, p. 117).
O espaço em que desenrolaram estas histórias foi na Imperial Vila da Vitória, atual
município de Vitória da Conquista (Sudoeste do Estado da Bahia) que desde a sua elevação à
categoria de Vila em 1840, passou a representar, segundo Idelma Novias (2008), uma das
principais áreas de criação de gado, lavoura de algodão e produção de alimentos, bem como,
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ponto obrigatório de parada de viajantes, comerciantes e boiadeiros, por ser um entreposto
ligando as várias regiões da província da Bahia. Na qual utilizava como mão-de-obra para o
desenvolvimento destas atividades, escravos, forros e homens livres, que dividiam os mesmos
espaços cotidianos de produção.
Diferentemente dos grandes planteis e centros urbanos do sudeste, de acordo
Washington Nascimento (2008), a região da Vila da Vitória possuía uma pequena quantidade
de escravos, a maioria nascidos no Brasil. Isnara Pereira Ivo (2004), com base nos dados do
censo de 1870, corrobora com esta informação, ao revelar que dos 13.619 de habitantes do
lugar, 1.846 eram escravos, um percentual de 15,88% em relação à população livre. Este
contingente escravo, de acordo com Novais (2008) encontrava-se espalhados numa média de
cinco a dez trabalhadores por propriedade, fato predominante também em outras áreas do
sertão baiano, como assinalam os estudos de Erivaldo F. Neves (1998), Maria de Fátima N.
Pires (2003) e Nascimento (2007), constituindo-se numa peculiaridade da escravidão
sertaneja.
Os inventários examinados até o momento1, referentes à primeira metade do século
XIX, assinalam uma população escrava aproximada de 60% de homens e 40% de mulheres.
Já para a segunda metade do século, com base no estudo de Eliana Pólvora Dias (2007),
parece haver um equilíbrio populacional entre os dois gêneros, cerca 51,25% para homens e
48,8% para mulheres, o mesmo se observa em Itamar P. de Aguiar (1998): 56,1% para
homens e 42,9 para mulheres2. O que teria provocado este fenômeno? Será que houve uma
maior aquisição ou número de nascimentos de escravas no período? Ou ocorreram mais
mortes ou vendas de escravos? Possivelmente a explicação esteja ligada a uma série de
fatores, tais como aumento vertiginoso do preço do cativo, principalmente do sexo masculino,
1
Inventários de: Miguel Fernandes Pereira, 1776; Luiza de Souza, 1810; Fernando Francisco e Antonio Felipe
de Oliveira, 1823; Ermenecianna de Souza Cortés, 1818; Verônica de Souza, 1818; Francisco Julianna Simplicia
da Soledade, 1816; Maria Madalena de Jesus, 1820; Clemência Maria de Jesus, 1822; Vicente Martins Abade,
1822; Clemência Maria de jesus, 1822; Joaquina Rosa Ferreira, 1823; Luiz Dionísio França, 1823; Anna Maria
de Souza, 1825; Fernando Francisco e Antonio Felipe de Oliveira, 1823; Victorio Manoel do Rio, 1831;
Apolinário de Oliveira Freitas, 1832; Demeciana Mª da Encarnação, 1832; Anna Mª Gonçalves, 1832; Manoel
da Paixão Moreira, 1833; Claudiana Mª de Jesus, 1832; Estevão Inácio, 1832; Manoel Barbosa e Mª Domingas
Costa, 1832; Delfina Mª da Fé, 1832; Bernardino Ferreira Carvalho, 1832; Manoel de Souza Marques, Anna Mª
Ribeiro, 1833; Antonia Mª de Jesus, 1833; Joaquim José Ferreira, 1834;Manoel Gonçalves dos Santos, 1839;
Paulo José dos Santos, 1839; Anna Josefa de Novias, 1842;AFJM,
2
Este equilíbrio de gênero entre escravos não foi uma realidade apenas da Imperial Vila da Vitória, pois o
verificamos em estudo realizados sobre a Vila de Maracás do século XIX, também na região sudoeste da Bahia,
ver: SANTOS, Ocerlan Ferreira e NASCIMENTO, Washington Santos. Viver e morrer no sertão baiano:
dimensões da vida negra em Maracás/BA (1877-1887). Revista Eletrônica Cadernos de História, UFOP
Mariana, vol. VII, ano 4, n.º 1, julho de 2009. ISSN: 1980-0339. www.ichs.ufop.br/cadernosdehistoria.
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que se verificou após o fim do tráfico externo de 1850 e pelo comércio intra e inter-regional
de cativos3, que já existia, mas ganhou fôlego a partir da década de 1860-70, despertando as
migrações para os cafezais do Oeste Paulista. A crise da agricultura nordestina e a catastrófica
seca de 1857-1851, mas principalmente a de 1877-1879, que “disseminou logo o pânico
popular, provocando a emigração em massa e a venda da escravaria” (NEVES, 2000, p. 103).
Ou ainda, o aumento das famílias escravas nos últimos anos da escravidão em toda a região,
como propõe Nascimento (2008). Só uma analise das cartas de compra e venda e dos registros
de óbitos e batismos poderiam ajudar a responde com mais propriedade esta indagação.
Fato é que, as mulheres eram números expressivos entre a população cativa da Vila, e
seguramente colaboraram para a difusão da cultura ancestral africana e para alto grau de
mestiçagem que atingiu a região ainda no século XIX4, visto que a quantidade de escravas
africanas ou relacionadas como tal era pequena diante da quantidade de crioulas, cabras,
mulatas e pretas, como pode ser observado nas tabelas abaixo:
COR/ORIGEM DAS MULHERES ESCRAVAS (1776-1842)
Mina
01
Angola
07
Hauça
03
Jêje
02
Nagô
02
Congo
01
Africana
16
Crioula
35
Cabra
12
Mulata
14
Negrinha
06
Não Informada
04
Total
92
Fonte: Inventários da Imperial Vila da Vitória. Arquivo do Fórum
João Mangabeira – Vitória da Conquista - BA
COR DAS MULHERES 1860 - 1887
3
Sobre o preço de escravos na Imperial Vila da Vitória ver: NOVAIS, Idelma Aparecida Ferreira. Produção e
comércio na Imperial Vila da Vitória (Bahia, 1840-1888). Salvador: UFBA, 2008 (Dissertação de mestrado),
p. 57; para o alto sertão da Bahia, ver: NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros, traficantes: comércio de
escravos do alto sertão da Bahia para o Oeste cafeeiro paulista. In Revista Afro-Asia, nº 24, 2000, pp. 97-128.
4
A esse respeito ver NASCIMENTO, Washington Santos. Construindo o "negro": lugares, civilidades e
festas em Vitória da Conquista/BA (1870-1930). Mestrado em Ciências Sociais: Antropologia. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil, 2008.
4
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Crioulas
34
Cabras
30
Pretas
10
Africanas
8
Fulas
3
Não identificadas
85
Total
121
Fonte: Extraída de: DIAS, Eliana Pólvora. A mulher negra na região
de vitória da conquista (1860-1887) In: Anais do VII Colóquio do
Museu Pedagógico. Educação: História, memória e práticas Sociais,
Vitória da Conquista-BA. 2007. p.02
Como em todo Brasil escravista, as mulheres cativas da Imperial Vila da Vitória
executavam as mais variadas ocupações. Para a primeira metade do século XIX, observa-se a
ocorrência de muitas omissões por parte dos avaliadores, que não as especificavam,
aparecendo pontualmente apenas às funções de gomadeira, do serviço da roça e da casa. Já
para outra metade do século, as omissões ainda são maioria, como se observa em Dias (2007),
mas aparecem ofícios como: lavradora, rendeira, cozinheira, fiandeira, costureira e doméstica.
A respeito desta última ocupação, Roberto Ferreira Guedes (2005), adverte quanto ao cuidado
as ser dispensado na utilização da expressão, afirmando que, “escravo doméstico é algo que
vai além da atividade que um escravo desempenha e, sobretudo, não deve ser confundido com
o trabalho que se realiza no interior dos lares, com o serviço doméstico” (GUEDES, 2005:
240). Neste sentido, atividades desempenhadas por escravas que remetem ao cotidiano do lar
como costureira, lavadeira, cozinheira, dentre outras, não necessariamente as classificaria
como escravas domésticas, uma vez que elas poderiam oferecer rendimentos ao senhores sem
estarem trabalhando fora de casa. Outra observação importante é que estas ocupações também
nem sempre possibilitavam grande mobilidade ou distanciamento físico em relação aos
senhores:
Costureiras, rendeiras e fiandeiras geralmente passavam o dia, com suas
almofadas, rocas e fusos, a fabricar e remedar tecidos. Ficavam quase
sempre sentadas de pernas cruzadas, no chão, ao redor da senhora ociosa que
[encontrava] algo de parecido com uma ocupação no fato de superintender o
trabalho delas e censurar seus erros (GUEDES, 2005, p.238).
Além dos seus afazeres cotidianos relativos ao cativeiro, muitas destas mulheres,
possivelmente, tiveram de se desdobrar para conseguir atender as necessidades de seus filhos,
visto a quantidade considerável e aparentemente estável de jovens cativos na Vila ao longo do
século XIX. Obtivemos 23,4% de um total de 290 escravos arrolados, para a primeira metade
5
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do século - fonte inventários - e 23,8% do total de 248 escravos, para o segundo período base Dias (2007). A idade máxima dos escravos relacionados foi de 12 anos, já que a tabela
construída por Dias (2007) não nos permitiu uma classificação que levasse em considerações
as observações feitas por Kátia de Queirós Matoso (1988) acerca da faixa etária de 0 a 7 anos,
a qual se considerava o escravo como criança e por essa razão, preferimos chamá-los de
jovens.
Com filhos ou não, a extrema pobreza parece não ter sido uma realidade de todas as
mulheres escravas do sertão baiano, pois algumas conseguiram acumular pecúlio5. Licurgo
dos Santos Filho (1956) em suas análises sobre a vida patriarcal na fazenda Brejo do Campo
Seco (área pertencente ao atual município de Brumado), nos apresenta alguns exemplos,
como o caso da escrava Perpétua que tinha uma quantia nas mãos de seu senhor (Antonio
Pinheiro Pinto) abatendo-a na aquisição de tecidos6. Na imperial Vila da Vitória, como
assegura Novais (2008), isso também ocorria:
Nos inventários e testamentos (...), encontramos relações de escravos
credores a seus senhores e devedores a outros senhores e a casas comerciais.
Constatamos assim, uma economia escrava com base na formação do
pecúlio, proveniente do cultivo de suas roças e de atividades de ganho
(NOVAIS, 2008, p. 149).
Foram os casos de Joaquina, africana de 50 anos, a qual o senhor Fortunato de
Assunção de Jesus lhe devia 60$000 e Antonia que tomou como empréstimo 200$000 de
Rosaura Gonçalves da Costa, sua senhora, para a compra da liberdade; e as devedoras Jacinta,
escrava de João Mendes, que devia 3$620 ao fazendeiro e comerciante Bernardo Lopes
Moitinho, Albina, escrava de Joaquina Lopes que devia a quantia de 2$300 ao negociante
João da Motta dos Santos Coimbra, e Custódia, que devia 11$640 a Antonio Barbosa Coelho,
fazendeiro e comerciante da Vila7.
Com relação às alforrias, é importante notar previamente que as considerações que
prosseguem são preliminares, baseando-se em uma parca documentação e que a maioria dos
5
O acumulo de pecúlio por escravos, já era prática permitida por alguns senhores, mas foi regulamentado pela
Lei do Ventre Livre, no parágrafo 2º do artigo 4º, ver: ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de
Contas, século XIX. UFBA/Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2006. (Dissertação de
mestrado), p. 75.
6
O acumulo de pecúlio por parte destes escravos, estava provavelmente ligado ao fato de Antonio Pinheiro Pinto
permitir que “negros seus plantassem e criassem, possibilitando amealhar haveres que serviram para os gastos
diversos e para a compra da alforria” (Santos Filho, 1956, p. 121).
7
Informações extraídas de NOVAIS, Idelma Aparecida Ferreira. Produção e comércio na Imperial Vila da
Vitória (Bahia, 1840-1888). Salvador: UFBA, 2008 (Dissertação de mestrado), p 151 a 161
6
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alforriados arrolados encontram-se numa correspondência do Juiz Municipal José Cardoso
Cunha ao Presidente da Província datada de 18758. Elas apontam para uma tendência
diferente do que tem sido constatado pela historiografia, ou seja, de que mulheres foram
privilegiadas nas manumissões. Aqui 62,5% dos beneficiados foram escravos do sexo
masculino, contra 37,5% para o feminino. Quanto ao tipo, predominava as pagas sem
condição, assinalando que a maioria desses escravos fazia parte de uma categoria ocupacional
qualificada, na qual poderia acumular pecúlio para a compra de sua alforria, ou ainda, do
serviço doméstico, que estando mais próximo fisicamente do senhor tinham maiores
condições barganhar sua “liberdade”.
Na condição de alforriada essas mulheres se deparavam com uma série de sujeições
pessoais e políticas que compeliam a não esquecerem sua antiga condição. A exemplo da ação
movida por Rosa Silvana de Oliveira contra a crioula Maria Bernarda9, ambas moradoras da
Rua do Espinheiro na Imperial Vila da Vitória. A trama tem início aos 23 dias do mês de
janeiro de 1872, quando Rosa Silvana se dirigiu à delegacia local, afirmando que fora
“atrozmente” injuriada por Maria Bernarda, em razão dela ter repreendido a escrava
Felicidade, pertencente à Bernarda, porque estava agredindo há vários dias uma criança
chamada Theotonio, filho de sua também vizinha Carolina Ferreira. Entretanto, um rio
também esta relacionado à disputa.
Nossa personagem Bernarda, era solteira, de 32 anos, analfabeta, filha de Marcellina e
trabalhava prestando serviços. O fato de possuir uma escrava indica que Bernarda não era tão
carente de recursos financeiros, uma vez que não era fácil adquiri-la. Sheila de Castro Farias
(2000) afirma que “juntar o necessário para se comprar pelo menos um demandava, para a
esmagadora maioria da população, investimentos significativos, quer de ordem econômica,
quer de ordem pessoal” (FARIAS, 2000, p 83), questiona a pobreza absoluta das mulheres
negras que viviam do comércio a retalho ou de outros serviços da rua, sustentada pela
historiografia.
8
Correspondência do Juiz Municipal José Cardoso Cunha ao Presidente da Província. 1875. Seção Colonial e
Provincial. Série Judiciária. Vitória. 1874-1889, maço 2648. APB/BA; Correspondência do Juiz ao Presidente da
Província. 1877. Seção Colonial e Provincial. Série Judiciária. Vitória. 1874-1889, maço 2648. APB/BA; Seção
Colonial e Provincial, Presidência da província, Serie Judiciário (juízes Vitória), Período 1874-1889, Maço 2648
(1875). APB/BA; Livro nº 1 de notas. Cartório do tabelião Aristides Ferreira de Farias, Vila de Poções, 1883,
AFJM/BA; Livro nº 2 de notas. Cartório do tabelião Aristides Ferreira de Farias, Vila de Poções, 1887,
AFJM/BA.
9
AFJM: Termo de Bem viver de Rosa Silvana de Oliveira a Maria Bernarda. Caixa: diversos, 1872. (não
catalogado).
7
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Apesar de a autora afirmar ter sido ofendida, é Maria Bernarda que foi tachada por
esta de “turbulenta”, “prostituta” e “injuriosa”. Tais adjetivos demonstram o imaginário
preconceituoso e racista construído pelos homens e mulheres brancas acerca dos negros
escravos ou alforriados no Brasil, os quais eram vistos como seres propensos à violência,
criminalidade e imoralidades, considerando que suas ações, como afirma Rosa, “ofendiam os
bons costumes e a tranqüilidade das famílias”12; portanto, era preciso mantê-los sobre
constante vigilância.
Lamentavelmente o que talvez possa ser o único testemunho, mesmo que
fragmentado, que nos foi legado sobre a vida da crioula Maria Bernarda, se resume a 10
páginas, isso porque a ação foi arquivada no dia 26 de janeiro de 1872, em decorrência da
desistência da autora, que alegou que as testemunhas não poderiam se fazer presentes no dia
da audiência marcada; o que, de fato, negou a Bernarda o direito de defesa.
Em outro processo, datado de 1875, podemos verificar que a violência física e a
exposição ao ridículo das mulheres negra, escrava ou libertas, foi uma prática muito comum
na Imperial Vila da Vitória. Trata-se de um sumário de culpa10, no qual a escrava Sofia é
acusada de em cumplicidade com a liberta Maria, roubarem a casa comercial de Raimundo
pereira Magalhães, um rico comerciante do arraial dos Poções, localidade pertencente à
Imperial Vila da Vitória. Num cordel que é composto tendo por base a acusação, encontramos
a narrativa onde a escrava foi amarrada, andando pelas ruas de Poções, puxada pelo senhor,
sendo conduzida até a suposta comparsa, a qual a escrava deveria delatar.
Exposição e Castigo também sofreu Maria em 1877, solteira, de idade não
informada, escrava de Cordula Maria de Carvalho, que apanhou de sua senhora de vara de
Marmelo, sofrendo ferimentos que iam “desde as partes inferiores de ambos os joelhos até
acima das nádegas bastante inflamadas”, como também nas costas11.
Os processos de autoria de Lizarda e o que envolveu a crioula Rosa, permitem acompanhar mais de perto como as mulheres
estiveram na vanguarda de diversos processos de alforrias, fossem elas para si ou para seus familiares, como era difícil à conquista da
liberdade e a vulnerabilidade da vida da mulher escravizada.
No ano de 1886, a liberta Lizarda recorreu à instância judicial para requerer o direito
sobre seu filho Abílio, que deixou sobre o domínio de seu ex-senhor quando foi alforriada,
para que este cuidasse de sua educação como havia prometido12. Ela foi escrava e cozinheira
de José Antonio Ribeiro e conseguiu sua alforria no ano de 1883, depois de pagar a quantia de
12
Idem, p. 02
10
AFJM, Diversos 1875 a 1879: Apelação crime – 1875.
11
AFJM: Atuação de corpo de delito, 1877.
AFJM: Autuação de uma petição de Lizarda da Silva, relativamente a seu filho Abílio, Caixa: diversos, 1886.
12
8
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600$00, obtendo desconto de 75$00 por parte de seus senhores. Segundo a declaração de
batismo e uma carta de um dos padrinhos, Abílio tinha mais ou menos 5 meses de vida
quando foi batizado em 10 de Janeiro de 1877. Por que Lizarda demorou tanto para pedir a
guarda do filho? Seriam problemas financeiros? Ao que parece ela tinha meios de obter renda,
uma vez que comprou a alforria, mas talvez tenha encontrado dificuldades após a libertação;
ou quiçá Abílio teria sido fruto de uma relação com José Antonio e por essa razão ela
acreditou que estaria bem ao lado do pai. A historiografia vem apontando que vários senhores
tiveram filhos com suas escravas e que muitas negras se entregavam mantendo relações
“proibidas” com seus proprietários como estratégia para obter vantagens diversas,
principalmente a alforria13.
A disputa judicial chegou ao fim em 24 de maio de 1886, mas a exemplo do que
ocorreu nos casos analisados por Maria Aperecida C. R Papali (2003) em Taubaté, no interior
Paulista, Lizarda não obteve êxito. Analisando os autos o Juiz Municipal, dentre outros
fatores, observou que a legislação em vigor não a favorecia, “visto a renuncia tacitamente
feita” e julgou improcedente o pedido.
Rosa, de mais ou menos 19 anos, era escrava de Antonio de Jesus do Nascimento,
morador da localidade conhecida por Caveira, na Imperial Vila14. No ano de 1848, seu senhor
entrou com uma petição pública contra Cypriano Francisco Meira, sogro do mesmo, que
depois da morte se sua esposa havia declara na avaliação dos bens ser proprietário de Rosa e
de seu filho. Segundo Antonio, a escrava que na época tinha 05 anos, havia sido parte de um
dote recebido pelo sogro e sua esposa a mais ou menos 14 anos atrás. Após inquirir duas
testemunhas, o Juiz Municipal concedeu parecer favorável a Antonio. O que chama a atenção
neste documento é o fato de evidenciar a vulnerabilidade da vida de uma mãe escravizada. As
24 horas em que transcorreu o processo foi seguramente de instabilidade e incertezas para
Rosa, que a mais de 14 anos havia chegado naquela propriedade e estabelecido relações
diversas ali, e que sabia estar correndo o risco de ser afastadas dos seus ou até ser vendida.
Histórias como estas são reveladoras não somente sobre o cotidiano da população
negra escrava e livre, mas o de toda sociedade Imperial, por expor preconceitos de gênero,
13
A esse respeito ver SLENES, R. S. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: História da vida privada no
Brasil, Império: a corte e a modernidade nacional. Coord. Geral Fernando Novais; Org. do volume Luiz
Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 (Coleção História da vida privada no Brasil, v. 2)
e PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade de Taubaté. São
Paulo: Annablume: FAPESP, 2003.
14
AFJM: Caixa Diversos, 1847 a 1848: Justificação – 1848.
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raça, de ofício, afirmações identidades e a vulnerabilidade da vida das mulheres negras. Bem
como os papeis sociais desempenhado por essas mulheres que estiveram na vanguarda dos
processos de alforrias, e colaboraram ativamente na formação da cidade e na edificação da
cultura sertaneja.
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